Categoria: Críticas

  • Crítica | Annabelle

    Crítica | Annabelle

    O sucesso Invocação do Mal começa com a primeira entrevista feita por Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga) às estudantes de enfermagem Debbie (Morganna May) e Camilla (Amy Tipton), que falam a respeito da misteriosa boneca que estava lhes causando problemas. Acreditava-se que a boneca estava, de alguma forma, amaldiçoada. A cena termina com Ed Warren dizendo que irá ajudar as meninas. No decorrer do filme, a boneca reaparece dentro de um vidro e sua história é contada rapidamente aos personagens pelo casal Warren. Quando Annabelle se inicia, a mesma cena se repete, com Debbie (novamente vivida por Morganna May) falando da boneca. Então, logo se imagina que a fita contará a história da futura enfermeira, juntamente com o trabalho do casal Warren no caso, (considerado baseado em fatos reais), certo? Errado.

    A história volta ainda mais no tempo para contar um fato que se passa antes da boneca ir para as mãos de Debbie, e, consequentemente, antes do casal Warren entrar em cena, o que, de certo modo, decepciona. Porém, o episódio em questão nos apresenta o jovem casal Mia (Annabelle Wallis – onde qualquer semelhança é uma estranha coincidência) e John (Ward Horton), prestes a ter seu primeiro filho, passando por um trauma muito forte quando sua casa é invadida por Annabelle Wallis (Tree O’Toole) e seu namorado (Trampas Thompson), que fazem parte de uma seita satânica. O casal assassino tinha acabado de matar os pais de Annabelle e passaram a atacar Mia que teve sua barriga esfaqueada. Com a chegada da polícia, Annabelle acaba morrendo no quarto do bebê, tendo parte de seu sangue derramado dentro de uma boneca que estava lá. Assim, a família, que agora possui um bebê saudável passa a experimentar em sua casa estranhos acontecimentos, encerrando um ótimo primeiro ato.

    É uma pena que o filme perde muito de seu fôlego. Por conta das experiências vividas na casa onde ocorreram os assassinatos, Mia e John se mudam para um apartamento, porém a televisão insiste em dar defeito, as portas continuam a bater e a boneca insiste em aparecer numa posição diferente da que foi deixada. É o bastante para Mia buscar conhecimento sobre entidades, demônios e tudo relacionado ao ocultismo numa livraria perto de sua casa. Lá, ela é auxiliada por Evelyn (Alfre Woodard), dona da livraria e com a cabeça bem aberta por já ter passado por experiências estranhas. E quando descobrem a real ameaça, decidem procurar a ajuda do padre Perez (Tony Amendola), conhecido do casal por ser o padre da igreja que frequentam.

    Talvez pelo fato de toda a equipe técnica de Invocação estar diretamente envolvida (emocionalmente, inclusive) com a produção de Velozes e Furiosos 7, a direção ficou a cargo de John R. Leonetti, responsável pela fotografia de Invocação, sendo o único a retornar juntamente com o responsável pela trilha sonora da franquia, Joseph Bishara. Com isso, o roteiro escrito pelo estreante na tela grande Gary Dauberman não se sustenta, trazendo soluções manjadas e experiências idem, vindo, inclusive a adaptar, de certa forma, o final de um grande clássico do horror. Pelo menos, deixa uma ponta para o aparecimento do casal Warren em um eventual segundo Annabelle, contando então a história da estudante de enfermagem mencionada no começo deste texto. Não custa sonhar.

    Apenas a título de curiosidade, recomenda-se uma pesquisa na internet sobre a boneca Annabelle, bem como do casal Warren. É possível, inclusive, visitar o local onde a boneca está guardada na caixa de vidro, além de outros artefatos recolhidos pelos Warren nos seus 50 anos de investigações paranormais. Também é possível encontrar gravações reais de entidades se comunicando com os Warren em algumas de suas investigações.

    Desta forma, chega-se à conclusão que Annabelle foi mais uma tentativa do estúdio faturar algum dinheiro com o sucesso de Invocação, enquanto o diretor James Wan, ao terminar VF7, decide ou não fazer a sequência de seu maior sucesso.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Clube da Luta

    Crítica | Clube da Luta

    Clube da Luta 1

    Por vezes, a humanidade passa por períodos de conflitos. Do antigo com o novo, do espiritual com o material, do “certo” com o “errado”, dentre outros. Também nessas épocas, a humanidade tenta produzir obras para interpretar esses fenômenos e as angústias do homem. Atualmente, em uma sociedade pós-industrial e com gerações de jovens com cada vez mais recursos e cada vez menos perspectivas, o livro de Chuck Palahniuk oferece uma visão singular sobre nós. Adaptado para o cinema em 1999 por David Fincher, o filme Clube da Luta não fez sucesso em sua estreia, e foi muito mal falado por muitos dos principais críticos de cinema do planeta. Porém, hoje, é cultuado por jovens e adultos que identificam na obra a crítica ao vazio existencial de milhões de pessoas frente a uma cultura de consumo em massa, que propõe definir personalidades através da compra de produtos.

    A história gira em torno do narrador (Edward Norton), um funcionário de uma indústria automobilística nos EUA e que leva uma vida tediosa, enquanto descarrega suas frustrações consumindo itens para decorar sua casa, mesmo que não use nada disso. Ao conhecer o excêntrico Tyler Durden (Brad Pitt) em uma viagem de negócios, sua vida irá mudar completamente.

    Dividido em três atos, o primeiro se concentra em detalhar o vazio da vida do narrador (fazendo uma analogia com a vida moderna da humanidade em geral) e sua tentativa de vencer a insônia que lhe impede de dormir. Quando passa a frequentar os grupos de ajuda a pessoas com doenças graves, encontra um certo conforto na profundidade de emoções de pessoas perto do fim, até sua hipocrisia ser desmascarada por Marla Singer (Helena Bonham-Carter), uma mulher atormentada que também procura os grupos de ajuda, segundo ela, por ser mais barato que cinema e ter café de graça.

    O primeiro ato tem como maior mérito a direção de David Fincher, e a edição, com cortes rápidos e usando artifícios para exemplificar o vazio existencial do narrador. As luzes da máquina de xerox se relacionando com a passagem do tempo, e a correria do aeroporto para hotéis com a velocidade dos aviões fornecem um importante elemento de como sua vida está passando, e ele parece sempre estar correndo atrás dela.

    O segundo ato, quando o narrador conhece Durden em um avião, é focada em estabelecer a relação entre ambos. Enquanto o narrador, que já conhecemos, mantém se mostrando superficial e preocupado com bens materiais, Durden oferece outra perspectiva ao fazer uma série de críticas ao consumismo e a forma como somos programados para simplesmente fazer o que a propaganda manda.

    O ponto alto dessa sequência é quando Durden pede para que o narrador lhe dê um soco, o mais forte que conseguir, pois nenhum homem sabe muito sobre si até que tenha entrado numa briga. Tal ato desencadeia a principal linha narrativa do filme a partir de então: a de autodescoberta e autoconhecimento do homem enquanto atinge seus limites físicos e mentais no chamado Clube da Luta, que consiste em pessoas comuns lutando de forma crua e brutal, com as famosas 10 regras, replicadas à exaustão na cultura pop. Funcionando como válvula de escape do homem selvagem preso dentro do reprimido homem moderno, o clube funciona como um elo entre todas aquelas vidas sem sentido, e a camaradagem ali surgida, além da devoção a Durden, servirão também de elemento principal da construção do terceiro ato.

    Simplesmente a libertação individual através do clube da luta não adiantava mais. Era necessário levar essa etapa adiante com o Projeto Caos, onde atos de vandalismo e depois “terrorismo” eram cometidos seja para mandar mensagem, seja para realmente tentar mudar a lógica da sociedade moderna ao explodir os prédios e os centros de informação das empresas de cartão de crédito para zerar as dívidas de todas as pessoas do sistema.

    O terceiro ato, então, se dá exatamente na construção e clímax das ações do “Projeto Caos”, onde o narrador acorda assustado para uma realidade que foi construída sob seus olhos. Quando descobre o que está realmente acontecendo em sua volta (e consigo mesmo), é tarde demais.

    Um dos segredos do sucesso de Clube da Luta é se focar justamente em uma geração que tem todas as necessidades materiais satisfeitas, e como isso não consegue satisfazê-los por completo enquanto seres vivos, ao contrário de toda a propaganda do século XX. Cada vez mais doenças comportamentais como obesidade, associadas ao consumo de drogas prescritas (além de uma nova geração de doenças como depressão, TDHA, DDA, etc.) indicam que o homem moderno não está feliz onde se encontra. Utilizando-se fartamente de metalinguagem, a história tenta mostrar por um lado tragicômico esse quadro. A sequência criada unicamente para o filme, dos protagonistas levando sacos de gordura de lipoaspiração feitas em madames ricas para fazer sabão, que será revendido a elas, demonstra a genialidade agressiva e brutal de um círculo tão simples de acontecimentos.

    A narração, ferramenta tão criticada e tão comumente mal usada, é perfeita no objetivo de clarificar ao espectador o que se passa na cabeça do narrador, aflito por tantas questões no início, e depois nos acompanhando em sua descoberta de um novo mundo, apresentado por Tyler Durden.

    Também importante são os diálogos milimetricamente pensados. Nenhuma fala está desconexa junto ao contexto do filme, ou apresenta contradição. Cada personagem tem sua personalidade e funções definidas, e suas interações representam esse universo de forma crível, fortalecendo a história. Por vezes usando passagens literais do livro, às vezes alterando-as, e até mesmo criando outras totalmente novas, Fincher consegue criar novos elementos dentro deste universo que avança a discussão colocada pelo livro de Palahniuk, o que também é bem raro na indústria cinematográfica. As atuações de Pitt e Norton, talvez as melhores de suas carreiras, também contribuem para isso.

    A música dos Dust Brothers, com toques eletrônicos e industriais (que lembra um pouco o que Fincher iria buscar depois na parceria com Trent Reznor), também contribui para criar o clima seco e caótico do filme, também construído pelas cores de tom alaranjado, azul e cinza usadas, cada um com seu propósito.

    Além da parte técnica, os méritos do filme vão para as citações, iconizadas e reproduzidas por fãs no mundo todo. Frases como “As coisas que você possui acabam te possuindo”, “É somente após perder tudo que você está livre para fazer qualquer coisa” e outras simbolizam essa dicotomia entre uma humanidade que consome para preencher um vazio, mas que nunca consegue. A atração por ideias tão radicais também se dá pela necessidade do espectador procurar um contato com sua natureza interna, ao mesmo tempo em que nega a propaganda a que foi submetido por toda a sua vida. A ação direta contra o sistema, passando longe dos gabinetes políticos e discursos oficiais vazios soa como música para uma geração intermediária, que não construiu nada, não lutou contra nenhuma ameaça real, e aproveitou todos os frutos dessas conquistas. Como o próprio Tyler diz, a falta de desafios reais torna essas vidas uma grande depressão. O próprio conceito de luta de classes é ressignificado não só como interpretação teórica da realidade, mas na ação direta, no puro caos criado pela classe trabalhadora na vida dos ricos através de ações como urinar em sua sopa ou colocar cenas de filmes pornográficos em filmes infantis.

    Clube da Luta funciona, então, como um retrato não só de como as atuais gerações jovens se sentem, mas como elas gostariam de se sentir, e experiências que gostariam de viver. Os clubes da luta e a violência física funcionando como um abandono a toda a sofisticação da vida moderna, e a busca pelo contato com o lado selvagem perdido da humanidade. Talvez o filme não fale para todos. Para aqueles poucos que se sentem confortáveis frente a imensidão do planeta, soe tudo bobo, inocente e negativo demais. Porém, análises profundas da realidade social soam negativas e atraem antipatia ou indiferença de quem não compreende, não se importa ou ainda não se viu em contato com essas questões. Mesmo nestes casos, Clube da Luta pode ser muita coisa, mas não é “simplista”. Nem perto disso. Sua mensagem, produzida nos anos 90, ainda menos “moderno” do que hoje, continua atual e profunda, atraindo novos fãs que também sentem em si esse eterno desconforto com a sociedade. E a tendência deste desconforto é a de só aumentar.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Candidato Honesto

    Crítica | O Candidato Honesto

    Utilizando a desilusão do povo com a política prolixa, falastrona e mentirosa praticada no Brasil, O Candidato Honesto apresenta um produto típico das comédias da Globo Filmes, mais uma vez tentando remontar o sucesso das velhas chanchadas e chamar o público com seu astro principal, Leandro Hassum, conhecido especialmente pelo humor físico e desbocado, além de integrar programas televisivos de qualidade duvidosa.

    A plateia embevecida abraça a trama desde o início ao sorrir com piadas bobas, repletas de trocadilhos com seguimentos escatológicos. O background do político João Ernesto é semelhante é ao do presidente Lula com passado um sindicalista ligado ao setor dos transportes. Em meio a trilha que destaca a corrupção eleitoral, a campanha de Ernesto é mostrada com situações repetidas entre minorias, desde o Movimento de Sem Terra, operários, paraguaios e assim segue.

    A fotografia acompanhada da luz chapada aumenta o escopo de desfaçatez, tanto do candidato quanto no roteiro e direção de Roberto Santucci. A imprensa que envolve João é complacente com seus atos, tratando-o de forma tranquila, sem discussões de qualquer proposta ou questão espinhosa. A vida pessoal, pautada num estilo playboy bon vivant é tratada sem qualquer viés denunciativo, que só não é pior composto do que o costumeiro hábito de Hassum em fazer piadas com sua voz abaixando tons inteiros ao mentir, acompanhada de um vocabulário chulo para referir aos seus aliados e familiares.

    O erro crasso do roteiro é fomentar a estupidez na discussão de ideias relativas ao rumo político do país, apelando a piadas típicas de redes sociais e frases de subcelebridades para garantir o riso do público. Nem mesmo a curva dramática, envolvendo a lição de moral dada por sua convalescente avó, Dona Justina (Prazeres Barbosa), se sustenta. Aos moldes do filme de Jim Carrey, O Mentiroso, um feitiço é lançado para que o plenário fale sempre a verdade. No leito de morte a anciã promete conversar com Deus para mudar o destino do antigo netinho querido.

    A atmosfera de total falsidade não é aplacada sequer pelo montante de palavrões presente nas palavras de João. O modo como o personagem age com a adimplência na câmara e com o mulheril é semelhante ao boatos envolvendo candidatos reais, como Aécio Neves. Diversas analogias rasteiras são mostradas como compras de ministérios por parte de partidários religiosos que convenientemente carregam uma mala com dinheiro.

    Como esperado em um roteiro padrão a redenção do personagem principal surgirá em algum momento, uma prerrogativa praticamente anunciada desde o primeiro minuto de exibição. O arrependimento surge na figura da repórter Amanda ( Luiza Valderato) que acredita na honestidade do político e fica desolada ao saber que este é corrupto e mandante do esquema de compra de influência chamado Mesadinha.

    O ultramoralismo da produção é elevado a alta potência até mesmo para a previsibilidade de sua abordagem com momento convenientes para a trama como o discurso do honesto João assistido por boa parte da população. O nível do poder do candidato é tanto que é capaz de falar para as câmeras até mesmo sem microfone, em horário não programado pela emissora. Tudo em nome de um discurso contra a corrupção, apelando ao final para um argumento bobo, louvando a nulidade do voto e a retirada da campanha de candidatos ficha suja. O paraíso existente nas palavras de João são capazes de anular a eleição e tamanha alienação contida neste seguimento sugere que a sequência foi escrita por João Revolta, um personagem revoltoso de um canal do You Tube. Candidato Honesto consegue se impor abaixo da linha de mediocridade em comparação com as outras comédias ruins de Hassum e de Santucci.

  • Crítica | Sexta-feira 13 (1980)

    Crítica | Sexta-feira 13 (1980)

    Sexta feira 13 - poster

    Quando o maníaco Ghost Face fez a pergunta “Quem é o assassino no filme Sexta-feira 13?”, em 1996, na primeira parte do filme Pânico, muitos na plateia provavelmente teriam cometido o mesmo erro que a personagem de Drew Barrymore fez ao responder. Jason Voorhees é um dos mais icônicos vilões de filme de terror, e sua máscara de hóquei é facilmente reconhecível como uma das mais assustadoras do cinema. Um assassino sanguinário, frio e calculista, que surge do nada e desaparece da mesma forma, levando consigo uma trilha de sangue e vísceras. Nada parece detê-lo: nem balas, nem facadas, e – diacho! – nem mesmo explosivos podem acabar com esse monstro silencioso. Só que ele nem mesmo aparece em Sexta-feira 13, primeiro filme da série de horror lançado em 1980!

    O filme começa no verão de 1958, em um acampamento chamado Crystal Lake, onde jovens cantam e tocam violão, enquanto um casal de monitores dá uma “escapadinha” para o andar de cima. Enquanto o casal está envolvido em seus “amassos”, uma câmera em primeira pessoa sobe as escadas, criando um clima de suspense que culmina na morte dos dois jovens apaixonados. Essa sequência inicial dá o tom do que seria o resto do filme, nunca mostrando o rosto do assassino, nem suas motivações para os assassinatos em série.

    Após os créditos iniciais, temos um salto no tempo para uma sexta-feira, 13 de junho do “presente” – provavelmente 1980, já que foi esse o ano de produção do filme, embora pudesse muito bem ser 1975 (dois anos em que 13 de junho caiu numa sexta-feira). Em uma pacata cidade do interior, uma jovem procura pelo acampamento Crystal Lake, onde será monitora no período de férias. As pessoas na cidade não se sentem confortáveis em falar sobre o local, mas ela acaba conseguindo uma carona até uma estrada próxima. Enquanto isso, os novos monitores começam a chegar ao acampamento para a semana de treinamento que antecede o início da temporada de verão. Os jovens então se divertem em seu primeiro dia, avisados de que o treinamento de verdade começaria no dia seguinte.

    Enquanto isso, a garota que procurava pelo acampamento no começo do filme consegue uma nova carona, mas dessa vez não vemos o rosto do motorista. Ela percebe que há algo errado quando a caminhonete em que está ultrapassa o limite de velocidade, e salta do veículo em movimento. A garota é então perseguida pela floresta, horrorizada, numa sequência novamente em primeira pessoa, na qual não vemos mais uma vez o rosto do assassino.

    A matança começa no cair da noite, dando início ao padrão da série: anoitece, chove, cai a energia, casais fazem sexo e morrem. Não há muito que falar sobre as mortes em si, exceto, talvez, que um dos garotos assassinados era Kevin Bacon antes da fama. É estranho nesse primeiro filme não sabermos absolutamente nada sobre a identidade do assassino, o que causa certa falta de empatia no espectador. Não há como se importar com nenhum personagem. E, após um a um morrer, sobrando apenas a última vítima, é que descobrimos que o assassino é, na verdade, Pamela Voorhees, uma senhora de meia-idade interpretada por Betsy Palmer. O problema é que não fazemos ideia de quem diabos é a Sra. Voorhees! Ela não aparece durante o filme, e sua história trágica só nos é contada nos minutos finais. Se tivéssemos algumas dicas durante o desenrolar da trama de que um garoto havia morrido por negligência dos monitores anos antes, e que depois disso coisas estranhas vinham acontecendo, talvez nos preocuparíamos mais com o destino dessas pessoas. Mas não sabemos nada disso até que a Sra. Vorhees revele sua motivação à última vítima, que consegue fugir e decapita a assassina com um facão. A jovem então dorme num barco, no meio do lago, e quando a polícia chega ao amanhecer, um garoto emerge abruptamente das águas e a puxa para baixo. Ao fim do filme, fica a dúvida se isso realmente aconteceu, pois os policiais que a resgataram dizem não terem visto garoto algum.

    Sexta-feira 13 foi bastante influenciado pelo filme Halloween: A Noite do Terror, de John Carpenter, lançado em 1978. A fórmula narrativa é basicamente a mesma. Além disso, é basicamente um Psicose ao contrário (sendo aqui a mãe viva e o filho morto!), mas, apesar de não ser o primeiro do subgênero slasher films (filmes de suspense ou horror baseados em assassinos em série), é um dos mais queridos. Isso justamente por causa de suas sequências, que foram ficando cada vez melhores até piorar de vez! Talvez o maior mérito do filme seja justamente ter semeado o caminho para os próximos capítulos da série e o impacto no imaginário da cultura pop.

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  • Crítica | Scorpio Rising

    Crítica | Scorpio Rising

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    Movido pela trilha sonora frenética, a câmera de Kenneth Anger passeia pela oficina mecânica, repleta de peças de moto espalhadas por seu espaço físico. Aquele ambiente é quase como um universo à parte, onde somente os anjos “malditos” pela sociedade podem habitar. Resgatando a iconografia visual de O Selvagem de Marlon Brando, porém muito mais contestador que o filme de 1953, Scorpio Rising consegue através de uma narrativa elaborada, que não deixa se ser simples, passar uma mensagem ao mesmo tempo conciliatória, saudosista e conteste.

    Primeiro filme que misturava elementos de motor style com uma trilha regada a rock ‘n’ roll, o curta de 1964 é normalmente esquecido pelos aficionados por motovelocidade, talvez por conter em si uma linguagem sem qualquer fala, com o som provindo da jukebox imaginária como principal elemento argumentativo, além do transitório visual que mostra o personagem principal – se é que pode se chamar de protagonista – vivido por Bruce Byron (Scorpio) customizando sua máquina, e algumas demonstrações de como a sociedade os via, através de pequenos bonecos, que emulavam as perseguições entre os policiais e aqueles marginais.

    Claro que se tratando de Kenneth Anger, a mensagem seria de discussão de símbolos. Já que os tais motociclistas selvagens seriam páreas da sociedade e avatares da rebeldia, o diretor resolveu tomar para si algo que era até óbvio, que é a erotização da figura do selvagem, que através do seu couro, seus óculos escuros e suas máquinas potentes, causa terror no conservadorismo típico do americano médio, mas que neste é ainda mais agressivo, revelando que a relação entre os membros do clube era muito mais que algo apenas fraterno, e sim camuflava uma forte atração mútua. O que impressiona é que a plausibilidade do argumento é enorme, dada a clara erotização enrustida neste arquétipo.

    Pelas paredes dos cenários é possível notar cartazes e pôsteres, de Marlon Brando e de James Dean, que além de reforçar a pulsão e tesão dos amantes de velocidade por estes, remete também a uma clara homenagem, do realizador de um cinema que também está à margem do mainstream, underground em sua essência, mas que também sabe reverenciar os alunos do método de Constantin Stanislavski, inclusive ousando ao mostrar um ato comum na rotina, tanto dos atores quanto dos nômades do asfalto, que era o uso incontrolado de drogas inalantes, sem a preocupação de tornar isto palatável para público algum; inclusive transgredindo mais que Sem Destino e seus primos, escondendo o ato de “cheirar” apenas por uma luva de couro, em plenos anos sessenta, com a contracultura em ebulição, mas ignorada pelas parcelas mais moralistas da sociedade estadunidense.

    Quando um dos personagens focados é mostrado se preparando para montar em sua motocicleta, acontece um paralelo com cenas de um filme bíblico obscuro, onde se vê Jesus passeando com seus discípulos e curando um cego. As cenas mostram o grupo de arruaceiro se esgueirando pelos becos escuros, atacando uns aos outros, em movimentações suspeitas – sendo algumas até explícitas, com cenas que remetem até a estupro, mas que são preconizadas especialmente pelo choque de ideologias, uma vez que o foco dado são em figuras icônicas e signos que remetem a autoridade, como os dos moto-clubes e da bandeira com a suástica centralizada.

    Talvez para o público menos afeito aos midgnight movies e ao cinema underground, este Scorpio Rising possa ser visto como algo ofensivo – certamente não foi este que Anger tencionou alcançar, e sim seus pares, seus iguais, os afeitos a discussão de sentidos e que não se contentam com o que a indústria produz para eles, isto muito antes da instituição do conceito de blockbuster imposto por Steven Spielberg e George Lucas. O uso da juventude transviada para ser o catalisador da mudança contém uma forte mensagem política, que em seu final toma até as rédeas de um filme denúncia, que flagra uma sociedade que oprime o indivíduo, unicamente por este ser diferente dos ditos normais, e claro, sem a necessidade tola de ter de se justificar ou de suavizar seu recado através de moralismos presentes no cinemão estadunidense.

  • Crítica | Jango

    Crítica | Jango

    Reunindo pedaços de informes oficiais da época em que o biografado era um político ativo, Jango começa com a viagem do então vice-presidente a China, que ficaria famosa por ter sido tão “longa”, que não permitiria a João Goulart assumir seu posto como o mandante máximo do país. O medo vermelho, o mesmo que predominava no gigante asiático. O filme de Silvio Tendler não tem qualquer pudor em escolher lados, assim como os que subiriam ao poder e que seriam criticados pela fita.

    Jânio Quadros, até então presidente, circulava com toda a sua ebriedade ao lado das “forças ocultas” (fala do próprio roteiro), junto aos militares, levantando uma série de teorias a respeito das origens do golpe. Enquanto corre a trilha de Wagner Tiso e Milton Nascimento, é mostrado um registro fotográfico saudosista, que remetia ao período histórico menos conturbado antes da tomada de poder e claro, a intimidade de Jango.

    A narração de José Wilker busca dar ainda mais importância a biografia do político, um homem, segundo os altos, sempre comprometido com as causas sociais. A ascensão dele é flagrada, desde o começo da carreira, muito próximo ao segundo governo de Getúlio Vargas, como também seus serviços de parlamentar, as corridas eleitorais ganhas e perdidas e claro, a assessoria que prestava a Juscelino Kubitschek. Jango seria o primeiro político mandante sul-americano a ter autorização de pisar em solo soviético, o que claramente pesaria contra ele anos depois.

    A ascensão de Jânio Quadros é destacada, especialmente os seus modos ultra-moralistas, que incluíam a proibição da veiculação de biquínis na televisão. Era um delegado no poder, alinhado com os interesses da classe média, a mesma que foi denunciada por Arnaldo Jabor em Opinião Pública. No entanto, a posta de Jânio era tão curiosa que ele condecorou Ernesto Guevara, conhecidamente ligado à esquerda vermelha, o que demonstrava o desequilíbrio das suas aspirações e comportamento político. Enquanto Goulart estava na China, fazendo o mesmo que fazia em Moscou, Jânio Quadros renunciaria, deixando Ranieri Mazzilli no poder provisório.

    O medo de que o Brasil se tornasse uma nova Tchecoslováquia seria o principal motivo do motim organizado pelas forças armadas. Mesmo com as atitudes contrárias de famosos políticos, como Leonel Brizola, era tarde, já que os governadores de grandes estados como os de Rio e São Paulo deflagaram a repressão imediatamente.

    A preocupação da direita brasileira com relação a Jango ocorria, claro, pelos contatos do presidenciável, mas foi muito agravada pela opinião declarada de John Kennedy. Além de tencionar conter a dívida externa brasileira, procurava também interferir em alguns dos seus planos econômicos, pois aos seus olhos, estes eram muito semelhantes ao ideal socialista, obviamente, quando analisados pela perspectiva do mandante da nação que era a principal inimiga da URSS.

    A narrativa varia entre os momentos contemporâneos de 1984 e a pregressa vida de Jango quando ainda não era vice, até a tomada de poder por parte dos militares. O período em que Goulart foi presidente, mas com muito menos poder do que deveria, uma vez que se implantou uma política parlamentarista que curiosamente acabou com o término de seu mandato, foi curto, para logo depois ser “convidado” ao exílio, no Uruguai.

    Já com o Regime instaurado no Brasil, e longe de sua pátria, João Goulart via as outras pátrias do Cone Sul serem dominadas por ditaduras de direita, tendo na deposição do chileno Salvador Allende o seu tiro de misericórdia. Segundo familiares, o ex-político sonhava em retornar a sua pátria, mas impossibilitado por sua débil saúde, morreu no exílio, em 1976, sabendo que poderia ser um dos alvos da Operação Condor, que estreitava as relações entre os governos latinos tirânicos e que “coincidentemente” teve muitos dos seus opositores encerrados em mortes misteriosas.

    O jornalista Carlos Castello Branco declarou em nota que Jangomorreu como um peão perdido à procura do seu galpão“, em virtude de não poder voltar ao seu lugar de origem. Somente seu cadáver voltaria a sua cidade natal, a gaúcha São Borja. O filme de Silvio Tendler acaba contando uma parte importante da história brasileira, ainda que sua ótica seja parcial, claro, sendo jamais injusta, uma vez que essa voz nunca havia sido garantida ao político, tampouco aos seus adeptos.

  • Crítica | Miss Violence

    Crítica | Miss Violence

    O começo do fim. O fim de uma família. Uma árvore cortada não por meio de força externa, mas corroída por um invasor cupim que, em um segundo de posse de suas raízes, começa aos poucos a degradação da prejudicada estrutura interna. A primeira denúncia são os frutos que caem em direção ao solo, agora desnutridos, e se espatifam no chão, a polpa estourando – imaginem a cena. A queda junto a decadência marca o declínio de qualquer germinação, sendo assim uma questão de tempo (curto) para a árvore da vida, a partir dai, ostentar apenas o epitáfio já anunciado.

    Miss Violence deseja mexer com seu psicológico. Aos despreparados, vai e consegue bem, porque choca e seu intuito principal é o choque com um verniz de estudo financeiro e social da atual crise que a Grécia ainda enfrenta, com sua população refém de um sistema incrédulo às demandas públicas. O que acontece dentro de uma árvore, um ser vivo à beira do abismo? não é a pergunta certa. Aonde ela assegura suas raízes para resistir a queda total é a pergunta a qual o filme de Alexandro Avranas investiga inteligentemente com poucas palavras, movimento em quadro ou extra-diegeses, dissecando o valor positivo ou negativo das ramificações familiares em tempos de cegueira e emergência existencial. Não há otimismo ou pessimismo.  Não há filosofia ou canções de ninar, gosto de fábula; nada. É desse nada que surge a força do não verbal transformando a atmosfera de cada close ou dose de silêncio em objeto quase  palpável, cortante, visível.

    É o exercício mudo de se assistir três tigres tristes se debatendo numa jaula. Aguenta quem pode. Uma espiral de reviravoltas com base nutrida pela claustrofobia vivida e suportada longe de olhos públicos, sempre entre quatro paredes, no qual tudo o que é visível tem uma importância tão grande quanto o poder da palavra em filme de Woody Allen. O poder neste caso repousa em detalhes: as cortinas sempre fechadas, o silêncio que exclama feito buzina de caminhão e a realidade na mesa do jantar que nos toca por alcançar os personagens, vítimas de si mesmos, com o poder de um jato em rasante no céu.

    Se Miss Violence é gratuito, frio e denso demais, prevendo a opinião da maioria dos espectadores que assisti-lo, o contato com a depressão de uma realidade burlada por uma câmera (que tenta ser invisível mas não consegue atingir tal efeito) também dita de forma extrema e sem meias verdades a impressão do público. Contudo,  nada na projeção omite a certeza quanto a sensibilidade do autor, imerso até o primeiro chacra num miserável cotidiano, árvore que jamais será a mesma, e que pode existir no vizinho ao nosso lado, universalmente. Destaque para as atuações: Sete tigres tristes à flor da pele. Um comediante morreu em Nova York. Uns dizem que foi suicídio. Vai saber.

  • Crítica | Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho

    Crítica | Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho

    Vencedor do Grande Prêmio do Júri e Urso de Prata em Berlim 2013, a composição quase documental de Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro, de Danis Tanović (Terra de Ninguém), é a escolha correta para contar uma história que deseja ser um retrato fiel da realidade delicada da Bósnia e Herzegovina.

    Dentro de um cenário desolado, vivendo em um bairro periférico, Nazif (Nazif Mujić) é o patriarca de uma família composta por sua esposa e duas filhas pequenas. Homem trabalhador, ganha seu dinheiro por meio da venda de ferro-velho. Pequenas quantias suficientes para subsistir entre as contas essenciais e o alimento. Diante desde equilíbrio precário, a vida da família se transforma em martírio quando a esposa, Senana (Senada Alimanović), adoece.

    Diante desta dificuldade, Nazif leva a esposa até o hospital, que, embora faça um procedimento paliativo, não pode realizar a cirurgia necessária para evitar a morte  da mulher devido à ausência de registro e plano de saúde. O catador segue uma via crucis pela cidade à procura de quem possa ajudá-lo na cirurgia da esposa.

    E eis a invisibilidade de um cidadão comum e com baixa renda para encontrar o apoio do governo que deveria ampará-lo. Dentro de suas engrenagens, a morte da esposa seria uma baixa qualquer, um número estatístico do país. A família não só vive à margem da sociedade como também foi marginalizada por esta. Um dos diversos problemas que a Bósnia enfrenta há muito tempo. Desde a década de 90, o país vive um sério problema de pobreza, e o mês de dezembro e notícias recentes informam que a crise atual é uma das mais severas do país.

    Nazif e a família são um retrato vivo da desolação local e de como um governo não ampara seus cidadãos. Um exemplo que se ajusta em qualquer situação mundial que não fornece os benefícios básicos para o cidadão viver. À procura de ajuda para a esposa, o catador encontra médicos especialistas particulares e organizações sem fins lucrativos, mas sempre esbarra ou na falta de dinheiro ou em empecilhos burocráticos que impedem a ajuda imediata.

    A resiliência da personagem dá um rosto a uma multidão que vive em carência crônica e precisa sobreviver com unhas e dentes para manter-se vivo diante desta realidade agressiva. Ampliando a intenção de uma realidade documentada, os personagens trazem o mesmo nome dos atores, e o desfecho encontrado para a problemática não poderia ser mais próximo do improviso cotidiano: diante de um governo omisso que não fornece o básico à população, o que restam é encontrar maneiras de burlar as engrenagens e entortar a burocracia para que se tenha o mínimo para sobreviver.

    O filme evoca a triste realidade que nos cerca, feita da maneira mais fiel possível para parecer um retrato fotocopiado de uma história invisível. Sem arroubos cinematográficos, nem exageros cênicos. Feito de carne, osso, fé, desolação e miséria.

     

  • Crítica | Whiplash: Em Busca da Perfeição

    Crítica | Whiplash: Em Busca da Perfeição

    Whiplash 1

    Antes de abrir os créditos iniciais, ainda com a tela negra, ouve-se um barulho frenético de uma baqueta tamborilando agressivamente sobre os tambores, num solo longo, o único ponto existente naquele universo que seria apresentado no filme de Damien Chazelle. A tônica do que seria Whiplash apresenta-se antes mesmo do “início do filme”, como uma longa preparação de um sujeito que busca o sonho de viver da arte.

    Andrew Neyman (Miles Teller) mostra-se tão entorpecido pela ideia de tocar o instrumento que se impressiona com qualquer audição de seu trabalho, na escola de música de Shaffer. Na execução de seus ensaios, ele vê vultos, silhuetas formadas pelo seu inconsciente e desejos, que, aos poucos, ganham contornos reais. Sua perspectiva é completamente distante e distinta da de seus entes queridos, mesmo diante de seu pai – vivido discreta mas magistralmente por Paul Reiser -, o homem que sempre lhe apoiou mesmo não o entendendo completamente, seja pelo choque de gerações, seja pelos níveis díspares de ambição.

    Shaffer é uma escola onde deveriam brotar anseios pela música, mesmo sendo ali o lugar em que são sepultados muitos desejos de notoriedade. Quando o sonho começa a se materializar, a trilha sobe num suspense atroz. A expectativa em parecer perfeito o faz se atrasar e “quase” – mentira – perder o encontro com o mentor. O método paramilitar do regente funciona, ao menos para ele. A mão de ferro ajuda-o a separar os bons dos maus músicos, ainda que a crueldade impere, às vezes. O agressivo método chega a ser cômico, dado o seu tom caricatural.

    A entropia e um pouco do caráter estabanado do protagonista permitem a Neyman ser titular na banda de Terence Fletcher (J. K. Simmons), que é um referencial enquanto professor, músico e garimpador de talentos. O estado de espírito de Andrew é mostrado pela câmera na mão, tão passional quanto a mente juvenil do formando. A busca pelo ideal é sangrenta e exige tudo do personagem, o que o faz perder o tato com aqueles que o consideram caro.

    Ao mesmo tempo que a raiva deveria predominar em seu ser, Andrew vê na piedade uma boa forma de encarar seu maestro exigente. Nem mesmo a emoção o faz aplacar o castigo físico a que se impõe. Em alguns pontos, ele encara a rigidez do ensino louco de Fletcher como combustível para sua luta, um obstáculo a mais para sobrepujar na jornada rumo ao sucesso.

    O envolvimento de Andrew com a música faz submeter o drama a seu público. Mas nem isto parece ser o suficiente em determinado momento, e ele cede à pressão dos que antes achavam-no fraco, denunciando seu antigo mentor após ser agredido. A leveza com que Fletcher apresenta os acordes no piano é diferenciada de seu método docente – no reencontro dos dois, o regente já teve sua derrocada –, como se os dois personagens fossem encerrados na mesma mente e psiquê, fazendo-o um ser ainda mais rico. A desgraça faz o professor se mostrar mais solícito; seu intuito é empurrar os alunos a conseguir superar suas expectativas.

    No retorno aos palcos, convidado por Fletcher, Neyman vê uma chance de retomar sua jornada rumo à fama, mas, ao executar os acordes, tem uma terrível surpresa. A rivalidade está presente e, junto ao azedume vingativo do mestre, o aluno é esmagado pela banda e plateia. Diante da queda iminente, ele contra-ataca, fazendo do palco seu objeto de revanche, uma emocional réplica digna dos grandes, semelhante ao que a sua ambição sempre buscou, pervertendo-se todos os preceitos do maestro ante sua presença e a dos seus, ganhando o jogo – ao menos em alguns momentos – na casa do adversário.

    A guerra de ego prossegue até mesmo ao final da música, com a última tentativa de apogeu de Andrew. O papel de condutor é incumbido ao baterista, não mais ao maestro. Suas vezes de Charlie Parker o fazem sentir o torpor de dar o seu máximo, passando por cima de todas as convenções e formalidades. Ser grande envolver ser mais do que ele é, exercer mais o que lhe é devido, ter mais braços do que um simples par, e também contrariar a si próprio, para que, finalmente, o talento bruto se aprimore e dê vazão a sua essência. Neste espírito, o filme de Chazelle tem na excelência a sua madura adjetivação.

  • Crítica | Ventos de Agosto

    Crítica | Ventos de Agosto

    A paisagem de uma vila costeira no interior de Pernambuco é o lugar perfeito para narrar o conto bizarro e fantástico de Ventos de Agosto. Uma história que louva a vida simples, típica do brasileiro. Gabriel Mascaro usa a multiplicidade de cores, tanto de pele quanto de seus cenários, para remeter a condição de mistura inerente ao povo brasileiro, fazendo da miscigenação o diálogo entre realidade e o bizarro.

    A história é narrada a partir das vivências de simples aldeões (na sua maioria formada por não atores), pessoas comuns que não tem consciência de que sua imagem será exibida dentro de uma produção vista por parte da população. Como personagens “fictícios” temos Jeison (Geová Manoel Dos Santos) e Shirley (Dandara Morais) um casal de jovens catadores de coco sem muitas preocupações na vida, além do árduo trabalho e da sexualidade aflorada cedo. Aos poucos, a vivência é atravessada por questões existenciais ligada a noção do finito.

    A mudança na rotina dos personagem ocorre quando um documentarista pesquisador de ventos – vivido pelo diretor Gabriel Mascaro – adentra a intimidade da aldeia. Ao ser tragado pelo mar, seu cadáver retorna nas areias da praia e Jeison decide limpar e exumar o defunto. a personagem percebe o vazio de sua existência mas sem qualquer possibilidade de intelectualidade ou arrogância elevada tratando-se de uma epifania. A reação é comedida e conformista.

    Os fenômenos pluviais mostram uma natureza que interfere no cotidiano do homem, natureza esta que não oprime-o apesar de tocá-lo. O Divino existe mas não é tratado com temor, apesar do poder magnânimo. O ideário de Ventos de Agosto parecem frutos de um microuniverso que, ao mesmo tempo, é repleto de completude e se encerra perfeitamente em si.

    Os belos corpanzis exibidos em tela remetem a fugaz natureza que envolve a trama, eximindo esta obra de qualquer necessidade de artifícios banais ou mecânicos. A mocidade é mostrada como bela e digna de louvor enquanto a velhice é um ser de compleições tristes, marcadas por uma vida de tropeços e hachuras, representadas nas rugas de uma das anciãs da vila.

    Mascaro apresenta um filme simples cuja mensagem passa pela designação do destino de cada um dos personagens. Jeison demonstra uma mudança de ethos ao final, deixando de lado a obsessão pelo belo corpo de sua antiga musa para se dedicar ao destino digno para o morto, mesmo que a não-civilização e distância do lugarejo à cidade o impeça de concluir a trajetória. Uma trilha sonora roqueira encerra o filme, quebrando o clichê que  – principalmente – os sulistas costumam dar ao nordestino, aumentando a profundidade do roteiro de Mascaro e Rachell Ellis.  A abordagem do diretor ao seu filme é semelhante a do personagem em tela: agressiva, invasiva e completamente despudorada.

  • Crítica | O Cordeiro

    Crítica | O Cordeiro

    Centrado nas montanhas da Anatolia, uma região da Turquia onde é exigida a circuncisão de seus meninos, que logo é seguida por uma festa de celebração, O Cordeiro (Kuzu) conta a trajetória de uma família que tem muitos problemas, tentando manter a estabilidade entre seguir as rígidas tradições do local e o equilíbrio emocional da família.

    A história é bifurcada, mostrando essencialmente os dramas adultos, que variam nas trajetórias dos pais, em que o homem não tem condições de sustentar seu lar, tornando-se assim um ser inseguro, sem perspectiva de uma auto-estima saudável ou algo que o valha. Nem mesmo para repreender seus filhos com pequenas broncas ele consegue.

    A história paralela mostra a visão agridoce e essencialmente fantasiada de Mert (Mert Tastan), o caçula da família, que vive sua infância em um lugar árido, mas que ainda guarda uma imaginação fértil, capaz de levá-lo às paragens mais incomuns e nonsense possíveis. Motivado por uma anedota contada por sua irmã mais velha, ele acredita correr perigo de morte caso seu pai não consiga um carneiro para realizar a festa que comemoraria a sua circuncisão, crendo piamente que caso eles não consigam, o próprio menino seria o prato principal do banquete referente ao rito de passagem.

    Os preconceitos sociais típicos do vilarejo são tratados de modo anedótico, pelos olhos de uma doce criança, que ainda não tem autonomia para pensar sozinha, somente repetindo os maus pensamentos que ouve. O menino sofre na pele a diferenciação social entre as classes. Experimenta a estrada como uma criança Kerouac, sofrendo do vento, da fome, da neve e do bobo medo de ser sacrificado, após a brincadeira da irmã. Apesar de sofrer ações indiretas em sua rotina, o menino sequer tem noção de que ele e sua família sofrem uma exclusão social por méritos da desgraça de seu patriarca.

    A lente de Kutlug Ataman é feita em grande parte da película no recurso de câmera na mão, no intuito de imitar a realidade presente nos gêneros documentários, e em quase toda a duração do filme ela acerta, uma vez que a verossimilhança é a tônica dos dramas mostrados em tela. O espectador é convidado a experimentar as mesmas sensações dos personagens, desde a depressão do pai, Ismail (Cihat Gök), o desespero da mãe Medine (Nesrin Cavadzade) e a docilidade de Mert, tendo em toda a sua ingenuidade e sinceridade as melhores tiradas, tanto as sérias quanto as cômicas, repletas de escapismo pueril e balanceado.

    O desespero de Medine a faz recorrer a ações temerárias, que visam mudar o quadro em que vivem a custos altíssimos, quase nunca logrando êxito, tendo até sua ética discutida pelos circunvizinhos, piorada mais por ser aquela uma sociedade paternalista e que liga a honra às posses.

    A volúpia pela ostentação junto aos vizinhos faz o casal correr atrás de dinheiro de modos nem sempre dignos, com a mulher penhorando seus bens e o homem pondo a venda o seu corpo, rediscutindo o conceito de mais valia. A humilhação paira sobre a cabeça da mãe, que se põe em posições dificílimas, assim como aos seus filhos, indo ao encontro da infiel, implorar que deixe seu marido.

    O desespero de Ismail é tanto que ele chega a ficar foragido, sem dar qualquer sinal de vida ou assistência aos seus. A fuga dele é motivada por insegurança e vergonha, conceitos ligados demais ao machismo e chauvinismo típicos do lugarejo. O roteiro insiste em retomar o assunto a todo o momento.

    Quando o fatídico dia chega, a vergonha maior é evitada com o serviço de banquete regado ao carneiro, bulgur e ayran. O ritual joga uma fina e frágil camada de hipocrisia sobre a igualmente frágil estrutura familiar, que por sua vez é sabiamente registrada pela câmera de Ataman. O final demonstra uma ruptura que se via necessária há muito, e que finalmente ocorre após os escândalos sexuais daquele que deveria ser o protetor da família, mas que na prática só fez envergonhar e maldizer os seus. O destino de Medine e Mert teria qualquer chance de não ser trágico, uma vez que estava longe daquele que impingiu temor e inseguridade em suas vidas.

  • Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Há muito não se via um registro de cunho esquerdista explícito no Brasil. Há muito. A maioria utiliza-se de metáforas e manobras de marketing pra tapar o sol com a peneira. A famosa produtora O2 Filmes e o jornal Folha de São Paulo de posse de tais circunstâncias uniram fatos e relatos ao útil e agradável, dando voz ao povo, falando em tom publicitário e jornalístico o que o povo quer e fez ouvir, captando o devido caráter subversivo (para um tabloide que apoiou a ditadura e parece se redimir a quem não esquece disso). O efeito multidão, o resgate da repreensão policial (encontrada todos os dias nas periferias), a cobertura sacrificante dos tipos de imprensa dentro da unidade informativa: tudo em Junho representa, da forma mais clara e direta possível, o sentimento e a comoção pela representatividade almejada entre os semestres de 2013. Os responsáveis e as razões são levados tão a sério quanto a credibilidade que a maior produtora e o segundo maior jornal do país conseguem assegurar e manter durante a narrativa com fôlego de cobertura ao vivo.

    Em ordem cronológica, Junho se mantém, se expande e aumenta a carga de denúncia e reconstituição na proporção que as manifestações tomaram: um rastro de pólvora, indo muito além dos grandes centros, incluindo dentro do congresso de Niemeyer; a reputação do hino nacional e a reverberação acadêmica que não resistiram ao levante; a ira que profetizou Bob Dylan e fez roubar o destaque da dita “Copa de Todo Mundo” – sério? – e atrair a atenção do mais alto nível do judiciário brasileiro; do quarto poder celebrado nesta expressão em 1955,  usada pela primeira vez pelo teórico de comunicação norte-americano James Carey. Utilizando a avaliação de vários outros mediadores da opinião pública e do senso comum geral, percebe-se que:

    1. O documentário é um programa político de um canal de televisão disposto a atrair o cidadão que clama por mudanças civis;

    2. A investigação das motivações sociais e dos parlamentares, talvez anárquicas em ambos os casos, e próximas em suas afetações complementares, depende única e exclusivamente do espírito crítico de quem assiste e sente esta produção, só assim respondendo suas perguntas, tecendo o mérito da obra;

    3. É interessante, porém incompleto, o modo com que causa e efeito são redigidas, constatadas ao longo do material, do eco dos gritos, da contradição de um torneio mundial de futebol ser realizado num país exausto pela falsa confraternização esportiva, como se o paralelo das agruras entre a festa nos estádios vitoriosos e uma saúde/educação/segurança/previdência/população carcerária fracassadas ganhassem síntese pela panorâmica de um drone sobrevoando os protestos e movimentos. Senão pela ideia a partir do poder da imagem, o espectador é mais uma vez submetido à qualidade das informações que recebeu e recebe;

    4. Esse viés democrático também se contradiz por não dedicar um minuto à versão da Polícia Militar, por pior ou melhor que esta seja.

    Tamanha a certeira injustiça com os méritos das imprensas locais, o documentário e a Folha acertam por não irem além do foco ocorrido em São Paulo. Mas sugerem que em diversos estados e municípios brasileiros, com sensibilidade e prudência exaltadas, revelaram a mesma alma revolucionária que em 2014 não morreu, sobrevivendo por todo o território ainda marcado nas entrelinhas pela ditadura de anteontem. E o que começa como peça publicitária se revela, entre testemunhos e a relevância social de cada um deles, uma aquisição incansável e honesta até o último minuto, mas com forte gosto de vinagre à quem acha que tá tudo bem. Tá tudo tranquilo.

    Atualizado: Esta crítica foi escrita um dia antes das eleições de 2014, quando o Brasil ainda acreditava em mudanças estruturais no sistema civil que parece representar, sim, a maior parte do povo. Hoje, 06 de outubro, um dia após o resultado eleitoral, tudo continua igual, e Junho se torna, a partir de então, o manifesto de uma revolução que nunca aconteceu.

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  • Crítica | Sem Evidências

    Crítica | Sem Evidências

    O crime como ação, subtração de uma vida e causador de desordem na sociedade é sempre um ato chocante. Um vandalismo que ultrapassa a lei invisível – ou divina, dependendo de sua crença – de que não se deve matar um semelhante. Ação suficiente brutal para modificar estruturas à sua volta.

    Sem Evidências analisa um famoso caso de assassinato, reconhecido, principalmente, pela investigação e condução confusas e errôneas. Trata-se da investigação e do julgamento que culparam três adolescentes – conhecidos como os Três de West Memphis – pela morte de três crianças em 1993. Um crime brutal ocorrido no interior de uma floresta e apontado, na época, como um ritual satânico.

    A morte de infantes atribuída a um ritual satânico são contornos que aprofundam o choque destes assassinatos violentos. Comum em séculos passados, o infanticídio é visto com maior atenção e espanto pela sociedade, em parte, devido à percepção psicológica de que a criança é um ser em formação, ainda puro e inocente, que nunca deveria ser submetido a qualquer ato grotesco. Em um país com parte da população cristã, referir-se a estas mortes como um ato satânico foi o suficiente para que surgissem hordas revoltosas desejando vingança, além de colocar nos holofotes a investigação da polícia, que deveria ser minuciosa, à procura dos culpados.

    A intenção da obra é trazer à tona a parcialidade da verdade em um caso que foi construído sem a clareza necessária e, em julgamento, descartou evidências importantes para o desfecho e a sentença dos adolescentes envolvidos. O enredo acompanha tanto as famílias em luto, centralizadas no drama de Pam Hobbes (Reese Witherspoon), mãe de uma das crianças, quanto a investigação paralela de um detetive (Colin Firth) contrário à condenação e que, em meio aos erros da polícia, tenta descobrir a verdade para salvar os adolescentes.

    Baseado no livro investigativo de Mara Leveritt, a história aproxima-se mais de uma exibição assistida e reconstituída do que um suspense dramático sobre assassinatos brutais. Como um estudo de caso, é fiel em apresentar datas e acontecimentos factuais, mas não se trata de uma filmagem-documentário, e não há nenhum ponto de tensão desenvolvido para uma narrativa ficcional.

    Se parte de um crime consiste na recepção da sociedade e da mídia e na punição dos culpados, é necessário um viés dramático que conduza a experiência. Ao apresentar cenas distantes e imparciais, a história dá a dimensão completa de como o assassinato foi repercutido e os erros perpetuados durante sua execução judicial. No entanto, faz do público uma mera testemunha de uma história criminal que, anos depois, apresentou novas provas, demonstrando o mal andamento da investigação local.

  • Crítica | Doméstica

    Crítica | Doméstica

    A partir de imagens capturadas por adolescentes que registraram as ações de suas empregadas domésticas, o diretor Gabriel Mascaro produziu o documentário Doméstica. O formato de apropriação e edição de imagens alheias é comum no cinema de Pernambuco, onde a mão do realizador se exibe através da edição e, igualmente, na condução da emoção.

    A perspectiva dos jovens que gravam suas incursões é engraçada. Eles exibem uma visão além do cotidiano conhecido e têm um poder imenso de fazer qualquer pergunta e conduzir a narrativa como quiserem, claro, sob a supervisão de um cineasta.

    A improvisação das lentes garante momentos de excentricidade, revelando episódios cômicos ao mesmo tempo em que produz carga dramática. O caráter agridoce permeia a maioria dos registros com depoimentos de vidas marcadas por momentos traumáticos ligados à infidelidades conjugais ou dramas familiares e uso de entorpecentes, um público que, na maioria das vezes, só encontra retorno emocional no repertório romântico executado pelos artistas bregas.

    Os dramas das moças variam entre amores complicados e nem sempre correspondidos – acompanhados de sinceras lágrimas – e dos maus tratos dos primeiros patrões. Em comum, há questões de casamentos infelizes, um padrão que abre a discussão para inúmeras teorias sobre o caso.

    O flagrante exibe o óbvio analisado sob a ótica fugaz de Mascaro. A costumeira rotina dessas profissionais centraliza-se no cuidado de famílias, mas quase nunca de si mesmas.  Uma das entrevistadas, que trabalha desde os 11 anos de idade, reflete sobre o tempo que passou mais em casas alheias do que com a mãe. Em alguns momentos, a casa dos patrões é um refúgio para a grave realidade de violência familiar que sofrem. Notável e até assustador perceber que a casa dos outros é um refúgio do inferno caótico da própria rotina pós-trabalho.

    Outro fator comum nestas histórias é a perda de filhos em eventos trágicos, seja por assassinato – cujas origens não são reveladas, talvez por vergonha – ou por maus tratos de cônjuges. Espancamentos são comuns, assim como a vilania do homem, justificada pelos atos atrozes de alguns deles.

    A origem do preconceito com estes trabalhadores é um dos fatores de maior estranhamento. Um desprezo que vai além dos patrões e se faz presente até mesmo nos familiares. Em um dos casos, um senhor trabalha cuidando de uma garota de 16 anos devido a uma triste separação com sua família e a ausência de condições financeiras para bancá-los. O desprezo é a tônica de sua vida.

    O desfecho documental deixa uma sensação distante de qualquer discurso panfletário ou demonização de indivíduos. As personagens mostradas ou citadas são críveis e condizentes com a realidade que atravessa a existência do brasileiro, fazendo deste Doméstica mais do que um espécime cinematográfico. Um retrato de uma faceta comum do povo brasileiro.

  • Crítica | Jogo da Memória

    Crítica | Jogo da Memória

    A referência óbvia ao jogo de cartas infantil deveria alertar o mal agouro que viria ao público. Jogo da Memória, de Jimi Figueiredo, deveria ser um conto obscuro sobre a busca por um reencontro que não se conclui. Simônia Queiroz interpreta (ou ao menos tenta) Karine, uma ex-modelo que retorna à sua cidade natal – Brasília – para realizar o inventário de sua falecida mãe. Nesse ínterim, a personagem reencontra pessoas importantes do seu passado, reabrindo velhas feridas, especialmente aquela causada pelo abandono de sua filha.

    A inabilidade de Queiroz em passar emoção em tela é funcional, uma vez que sua personagem parece estar sempre aérea, alheia a realidade que a cerca. O núcleo familiar da protagonista atinge extremos como a boa execução dramática da atriz mirim Laura Teles e a completa atuação desmedida de Rosanna Viegas que consegue ser ainda mais alheia do que a protagonista mas sem desculpas de um recurso narrativo como muleta.

    O roteiro é um tanto confuso, além de repleto de convenientes coincidências e também permeado por personagens completamente descartáveis. Falta emoção ao triste reencontro entre Karine e seu antigo amado, vivido por Dalton Vigh, um personagem que possui uma loja de antiguidades e se torna responsável por discussões dignas de comerciais de margarina em que se fala abertamente sobre curiosidades como a suposta autoria de Stanley Kubrick para a filmagem do pouso do homem na lua, introduzindo o público de um modo óbvio às informações em tom de “você sabia?”.

    É a partir deste núcleo que o trabalho de resgate da memória perdida de Karine deveria ocorrer. É neste ponto que ela se depara com seus amigos mais próximos, permitindo o fluir da intimidade. Mas isto não ocorre. O que se vê são situações exageradas com uma tensão sexual além da natural causada pelos casais desequilibrados nas cenas, destacando a figura do namorado de Karine – executado por Flávio Tolezani – a epítome da condução equivocada. Uma sub-trama que não acrescenta nada ao produto final e causa vergonha pela violência estilizada, não condizente com a produção.

    A quantidade de caracterizações bizarras aumenta a cada cena com atuações ou engessadas ou superficiais. As situações vividas pelo elenco global – composto também por Vivianne Pasmanter – tem um cunho nonsense com cenas que remetem à psicodelia do uso de entorpecentes que permanece entre um recurso funcional e incomodo a quem assiste.

    O filme não se posiciona entre o público mais crítico e nem mesmo pelo espectador menos seletivo. Sem qualquer reflexão, o desfecho nem mesmo encerra o ciclo iniciado na sinopse. A premissa se perdeu em meio as desequilibradas cenas que tentam parecer sofisticadas com base em grafismos visuais. A falta de substância e conteúdo predominam neste Jogo da Memória, a despeito do bom começo de Figueiredo em Cru.

  • Crítica | Garota Exemplar

    Crítica | Garota Exemplar

    A narração da intérprete Rosamund Pike contempla uma ode a automartirização de mulher, afirmando merecer castigos físicos e mentais. Amy Elliot é a alcunha da relatora, uma escritora best-seller que comemora cinco anos de casado com Nick Dunne (Ben Affleck), um sujeito inexpressivo e passivo, apesar de ter alguns fatos no passado que supostamente desmentem esse arquétipo tacanho e tímido.

    O encontro cósmico, que reuniria o casal focado na trama é mostrado de modo leve, moderno e deveras atrativo. Ele livraria Ela do deslumbramento, fazendo-a se apaixonar, pervertendo a ideia do ludibriação entre um e outro. Nick era belo, inteligente, sedutor, como todo o mal da Terra.

     Após o preâmbulo, Dunne se mostra surpreso com o sumiço de sua amada. O roteiro em forma de recordatório esconde de modo muito competente a falta de dramaticidade de Affleck, usando isto a seu favor, além de apresentar o afeto dele por sua amada de uma maneira singular, tão única quanto sua percepção do mundo em volta. As feições de Dunne são difíceis de ler, especialmente porque a trama favorece o seu mistério, grafando sua ironia e mantendo longe as informações que preencheriam o quebra-cabeças.

    A chegada do pai de Nick senil representa não só o inconveniente de parar a investigação, mas também o temor de a insanidade acometê-lo como na geração anterior. O relato via diário de Amy prossegue, torpe, sujo, sacana e real. Os estratagemas se encaixam tão bem que parecem até armados, montados para formar o puzzle perfeito. Garota Exemplar consegue ser simultaneamente um thriller e um objeto vago e de difícil decifragem.

    O modo como as pistas são despostas apresenta elementos pseudo-metalinguísticos, quase quebrando a quarta parede, ainda que tal exercício seja bastante comedido no início, regado a um humor nonsense, condizente com a literatura de Amy, como uma caça ao tesouro, de intenções não expostas por completo.

    Da exemplar personagem Amazing Amy até a pervertida e – segundo ela mesma – garota má, a senhora Dunne se mostra confusa, irresoluta e preocupada com o que ocorrerá sob seu lar. Ela luta para não ser a megera controladora. A gentileza com que Nick trata a todos é confundida com falta de preocupação, fruto da sua dificuldade em ser ou se mostrar empático. Ele se sente grato pela ajuda do povo, mas vive um inferno encerrado em si mesmo.

    Aos poucos é revelado o descontentamento de Amy em mudar-se para a terra de seu cônjuge – Missouri – longe da urbanidade de sua Nova York. O fracasso em salva sua sogra faz custar muito de sua moral, uma vez que ela era a válvula de escape para ele, somente usada no sexo. Um objeto. Notar o desprezo não é nada perto da percepção dele em estar amedrontada.

    A insensibilidade acaba sendo mais um indício de culpa e de associação a sociopatia para o marido da “vítima”. Nick sente-se estafado por sempre ser julgado como um crápula por praticamente todas as mulheres em tela. O fato dele não ser um exemplo de conduta não garante a si a culpa automática. As mentiras que pratica pregam contra a sua inocência e ele não para. Fato é que ambos se sentiam como intrusos.

    O roteiro apresenta alguns twists, exibindo a desaparecida arquitetando um plano, cujo senso de punição e vingança, supostamente feita pela mulher. Tudo urdido como deveria ser, pelas mãos de uma perfeita e experiente contadora de história, que busca justiçar aquele a quem machucou-a, pondo a testosterona como objeto de ódio. O ego amargurado a faz ser verborrágica em seu processo de revide, absolutamente fria e minuciosa. O paradigma da vilania muda, desde a suspeita do impingidor do mal até a feitoria do plano maligno. Até o trabalho detetivesco muda de mãos, numa assaz estratégia narrativa em reverter clichês do gênero policial.

    As falhas de concepção dos planos de Amy/Nancy ajudam a aumentar o escopo de realidade, assim como o transtorno de limpeza dela. Mesmo dando errado o primeiro plano, ambos os lados da contenda prosseguem avançando, movidos por instinto na maioria das vezes. Até os papéis de manipulador e manipulado mudam, assim como há reviravoltas com relação a quem dá as cartas a mesa.

    O cinismo carregado nos atos de cada uma das pessoas mostradas pela câmera de Fincher proíbe o espectador de torcer por qualquer um dos personagens. O jogo de lobos prossegue, repleto de erros e de surpresas da parte dos que pareciam ingênuos ou incautos. A situação consegue se sustentar tão louca – e sanguinário – que o planejamento secundário beira a perfeição, assim como a direção da obra. A lente de Fincher é tão fria quanto o caráter de Amy, igualmente psicopata e calculista. A falsidade manipuladora e carismática de Garota Exemplar faz deste um dos melhores suspenses de sua filmografia, destes, o que mais valoriza a ambiguidade de alma e de ethos, sendo deveras amoral, cuja culpa ou arrependimento passam longe, onde o sangue dos inocentes é facilmente retirável, com um ato tão corriqueiro quanto um banho antes de dormir.

    A vida idílica e dissimulada ganha o posto de fantasia suprema, numa alegoria ao eterno teatro chamado casamento, cujo uma das partes tem de viver sob o fio da navalha, como uma presa fácil a espera do seu abatimento inexorável. O roteiro Gillian Flyn é baseado na dualidade típica de um casal, se valendo de um personagem feminino forte, que conta uma história forte, valendo-se da manipulação, a mãe de todos os pecados de vaidade, que faz da tirania da felicidade a base do sentido hipócrita de viver.

  • Crítica | Colegas

    Crítica | Colegas

    “Eu quero ver o mar!”, “Eu quero voar!”, “Eu quero me casar!”.

    Sob o clima revolucionário da trilha sonora de Raul Seixas, a comédia de Marcelo Galvão traz à tona temas mais do que reais e sérios. Colegas acompanha os sonhos de Stallone (Ariel Goldberg), Márcio (Breno Viola) e Aninha (Rita Pook), três amigos com Síndrome de Down que fogem da instituição onde moravam desde crianças, em busca da realização seus maiores desejos, respectivamente: ver o mar, voar e se casar.

    Inspirados pelos seus filmes favoritos, eles vivem dias de Thelma & Louise, viajando até Buenos Aires enquanto são caçados por uma dupla de policiais bonachões e pela imprensa sensacionalista que os transforma em uma gangue de criminosos fortemente armados e perigosos.

    O filme é uma trama cheia de citações e referências a grandes clássicos do cinema, como Pulp Fiction, Cães de Aluguel, Homens de Preto, Exterminador do Futuro e A Vida é Bela. Para os colegas que trabalhavam na videoteca, esses filmes eram realmente inspiradores e sustentam um enredo tão surreal quanto as histórias que eles desejavam viver.

    A aventura de Stallone, Márcio e Aninha começa com a invasão a um circo abandonado, assaltos a restaurantes, uma pescaria em alto mar, um casamento, um show onde arrumam briga, um tango ao ar livre e um jantar francês sofisticado. Nesse meio tempo, os protagonistas, vividos por um elenco altamente talentoso e preparado, se deparam com questões comuns à vida das pessoas com e sem deficiências, como a sexualidade, a saudade e a independência.

    A produção aborda um tema de grande peso polêmico com a leveza da comédia e um sutil descompromisso com a verossimilhança, lembrando uma epopeia contada por um narrador (Lima Duarte) que brinca com a realidade em cenas improváveis na vida de um adolescente. A deficiência é abordada com poucos tabus, transformando o preconceito em algo risível.

    O tom pastel presente na fotografia de Rodrigo Tavares contribui para a ambientação do filme entre as décadas de 1970 e 1980, mostrando a alta qualidade da produção que teve reconhecimento internacional e levou sete prêmios no ano de 2012.

    O filme também alcançou grande notoriedade com a campanha #vemseanpenn, realizada pelo ator Adriel, que, inspirado pelo seu personagem, lutou pela realização de seu sonho: conhecer seu ídolo. Em Uma Lição de Amor (I Am Sam, 2001), Sean Penn viveu o papel de Sam Dawson em uma história de um deficiente intelectual que cria a filha com a ajuda dos amigos, filme que trouxe grande notoriedade para o tema. A abordagem da deficiência no cinema de forma pouco comum e estigmatizada como foi feita em Colegas, abre os olhos do público para a simplicidade e espontaneidade com que o assunto deve ser tratado.

    A atuação de Leonardo Miggiorin, Marco Luque, Juliana Didone, Otávio Mesquita e tantos outros nomes populares da televisão brasileira fica ofuscada diante do talento e da autenticidade da interpretação dos protagonistas, que mesmo enfrentando tantas adversidades, seguem inabaláveis em suas jornadas fictícia e real.

    Texto de autoria de Mayra Massuda.

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  • Crítica | Sin City 2: A Dama Fatal

    Crítica | Sin City 2: A Dama Fatal

    O começo, repleto de cortes rápidos, é seguido por uma cena em que Frank Miller faz uma aparição típica de Stan Lee nos filmes da Marvel, aproveitando-se das benesses de ser um criador e também realizador do longa. O início, excessivamente escapista, faz mais referência ao último filme de Miller (The Spirit: O Filme) do que ao Machete de Rodriguez, o que faz acreditar que o criador do texto original teria maior ingerência na direção compartilhada, a despeito de toda a boataria que envolveu a produção do primeiro episódio.

    O preâmbulo é feito por Marv, personagem, vivido por Mickey Rourke, que, curiosamente, morreu no episódio anterior. Mais uma vez, uma bela apresentação dos créditos estilizada. Na história paralela de Johnny (Joseph Gordon Levitt), são resgatados plots que envolvem personagens cujo destino já havia sido decidido outrora, envolvendo-os em outros pecados, outros vícios tão torpes quantos os que preconizaram a primeira fita. Sin City parece ser um lugar tão escuso que até mesmo os que não vivem mais no mundo dos vivos costumam visitar a cidade. A pendenga de Johnny com Roark (Powers Boothe) é de cunho pessoal e familiar.

    Os subplots se misturam, compartilhando a mesma linha temporal, variante nos núcleos e nos múltiplos amoralismos. A plataforma plural claramente revela momentos mais interessantes com histórias menos apetecedoras. A trama envolvendo Dwight (Josh Brolin) demonstra isto exemplarmente, mesmo que suas cenas sejam de um grafismo agressivo ímpar tanto nos atos violentos quanto no torpor sexual, que causa no personagem um complexo de submissão quase automática à sua musa, Ava (Eva Mendez). Ao menos é nesse período em que é mostrada a cena mais gore e trash do filme, tão digna de nota quanto de gargalhadas.

    A sedução típica da dama fatal envolve os personagens e, claro, o espectador, não só pela nudez bem fotografada por Rodriguez, mas também pelo trabalho sonoro, praticamente perfeito, seja na montagem, seja na voz rouca de Green. As curvas femininas continuam obviamente sendo um dos pontos altos do filme, no entanto têm de conviver com constrangedoras cenas em que as belas mulheres se submetem a show-offs e exibições toscas de poderio armamentista, enquanto são reapresentadas às mulheres de Old Town. As soluções sensuais, fora as da personagem-título, são demasiadamente fáceis, apresentando uma desnecessária aura de pastiche, não condizente até mesmo com o universo milleriano. O tremor da perigosa relação entre Ava e Dwight finalmente se cumpre, e de um modo até surpreendente se comparado com o que o roteiro apresentou até então.

    A banca continua a aceitar as apostas de Johnny, mesmo após sua quase completa destruição. A designação da disputa quase edipiana termina anticlimática, mas é ramificada, abrindo a chance de Nancy Callahan (Jessica Alba) dar vazão a sua raiva e ao seu desejo de vingança. Em alguns momentos, a atriz até demonstra um pouco mais de dramaticidade se comparada a sua habitual filmografia, mas nada que fuja do ordinário e lugar comum de pautar toda a sua apresentação apenas em sua bela aparência. A cena em que sua personagem chora, à frente da TV, transita entre a empatia do público junto à carismática personagem esbarrando na dificuldade da sua intérprete em passar emoção.

    Por mais que o primeiro filme tenha tido um impacto enorme entre os fãs de quadrinhos e do cinema blockbuster violentíssimo, a sensação deixada por este Sin City 2 é o de um filme datado, que deveria ter sido lançado logo após o episódio um, se valendo do hype, mas que não o foi. Tudo na abordagem da película faz pensar que o projeto não era a prioridade de Robert Rodriguez, dado seus outros produtos autorais para a televisão e cinema, além da óbvia demora na produção deste filme. Tudo piorado pela sensação de A Dama Fatal ser um produto requentado, sem muito alma e substância, coisas que sobraram no filme exibido há nove anos.

  • Crítica | Uma Relação Delicada

    Crítica | Uma Relação Delicada

    A diretora Catherine Breillat frequentemente causa controvérsia devido à forma aberta com que aborda a temática sexual em seus filmes. Sua marca registrada são histórias que exploram a sexualidade feminina com um estilo frio e analítico, sendo explícita de modo pouco usual. Em 2005, Breillat sofreu um AVC que a deixou hemiplégica, com o lado esquerdo paralisado, o que não a impediu de continuar fazendo filmes. Depois de fazer Une vieille maitresse, em 2007, planeja rodar Bad Love, filme escrito especificamente para ter Naomi Campbell como protagonista. Conhece Christophe Rocancourt, um golpista reconhecido, e quer que ele esteja em seu filme, como par de Naomi. O produtor recusa Rocancourt e, por esse e outros motivos, o filme acaba não sendo rodado. Aproveitando-se da debilidade de Breillat, Rocancourt consegue “extrair” dela mais 800 mil euros. Acusado pela diretora em 2009, Rocancourt foi indiciado e julgado culpado de abus de faiblesse (abuso de fraqueza) – aproveitar-se da vulnerabilidade de uma pessoa tendo ciência desse estado vulnerável, exercendo pressão no intuito de levá-la a ter atitudes prejudiciais a ela mesma. No final de 2009, Breillat escreveu o livro Abus de faiblesse, em que relata esses eventos e que serviu de base para o filme.

    No filme, Maud Shainberg (Isabelle Huppert) é a diretora que sofre o AVC; e Vilko Piran (Kool Shen) é o escroque que se aproveita da vulnerabilidade de Maud. A atuação de Huppert é excepcional. Tão verossímil que chega a ser aflitivo ver as tentativas da personagem de se virar sozinha. A empatia causada é tamanha que o espectador se percebe fazendo os mesmos trejeitos da atriz, principalmente com as mãos e lábios. E não apenas isso. É irritantemente incômoda a falta de coordenação da personagem e mais incômoda ainda a percepção de que não deveríamos nos irritar com algo que está fora do controle dela. Não há qualquer dúvida de que Huppert carrega o filme nas costas, transpondo para a tela a personalidade incisiva da diretora. O que fica evidente é que o corpo pode ter sido debilitado pelo AVC, mas a personalidade continua “firme e forte”. E justamente por isso fica difícil para o espectador acreditar que seja possível que uma pessoa tão enérgica – beirando a prepotência – e tão resiliente se deixaria enganar dessa forma por um escroque assumido.

    Em contrapartida, Kool Shen é tão inexpressivo quanto o vigarista promovido a ator que representa. Noveleiros das antigas se lembrarão da atuação “emblemática” de Ricardo Macchi como o cigano Igor, na novela Explode coração. Shen tem uma performance tão carismática quanto Macchi. E o restante do elenco é tão apático, que mal se consegue lembrar quem é quem na história.

    Enquanto o primeiro terço do filme envolve o espectador na recuperação de Maud e na adaptação, nada fácil, à sua nova condição; o restante perde força enquanto vemos Vilko se “infiltrando” na vida de Maud e se aproveitando da fragilidade dela para explorá-la. A falta de empenho da diretora em tornar palpável e crível a situação de abus de faiblesse em que Maud se encontra faz a narrativa perder ritmo e intensidade. Não ser convincente o bastante faz o espectador ficar se perguntando por que diabos alguém inteligente agiria assim – assinando cheque após cheque – em vez de se compadecer dela em sua derrocada.

    Fugindo do seu estilo habitual, o filme talvez permita a Breillat uma espécie de catarse, uma forma de sublimar e deixar para trás o que lhe ocorreu. Contudo, mesmo sendo um filme bem executado, não consegue impressionar o espectador o suficiente para ser lembrado além daquele bate papo pós-sessão.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Angry Video Game Nerd: The Movie

    Crítica | Angry Video Game Nerd: The Movie

    Quem é o Angry Video Game Nerd e por que fazer uma crítica desse filme? Bom, para quem passou os últimos dez anos dentro de uma caverna sem acesso à internet de qualidade (Esse fato pode ser questionado, mas quem liga? Esse post é meu!), devo primeiramente contar uma breve história de um rapaz e seu trabalho.

    Apaixonado desde a infância pelo gênero dos filmes de horror dos monstros da Universal, James Rolfe cresceu um fanático pelo gênero da sétima arte. Começou fazendo histórias e até mesmo fotonovelas para seu próprio divertimento e o de seus amigos. Ao por suas mãos em uma filmadora caseira, começou a desenvolver suas próprias produções. Em 1999 cursou a Universidade de Artes da Philadelphia até seu término, em 2004, depois começou trabalhando como editor de vídeos enquanto trabalhava em seus próprios projetos. Juntava suas ideias com amigos, preparava um pequeno cenário no quintal de sua casa e começava a filmar. Essas brincadeiras renderam a Rolfe vários filmes amadores até os dias de hoje. Mais tarde, em 2007, largou o emprego para se dedicar à carreira e ao seu website, o Cinemassacre, onde divulga todos os filmes de sua autoria, reviews, séries e, lógico, os episódios do AVGN. Seus vídeos também foram divulgados através dos sites Gametrailers e Screw Attack, aumentando ainda mais seu público.

    Por volta de 2004, quando houve o início da onda de vídeos e séries amadores lançados na internet, nascia uma criatura ranzinza, tosca e nerd. O Angry Vídeo Game Nerd (AVGN), personagem criado por James Rolfe e estereótipo de gamer aficionado, surgiu através de uma paródia de sua própria frustração com jogos de vídeo game que costumava jogar na infância. Não que ele realmente detestasse os jogos, mas eram jogos primordiais, no início de uma era, e, por isso, eram tão difíceis e complicados que acabavam por despertar raiva e frustração quando ele não conseguia terminar o dito jogo, desferindo palavras de ódio e gestos obscenos para acalmar a amargurada experiência. Originalmente chamado de Angry Nintendo Nerd, o projeto focou primeiramente os jogos do NES – o Famicom no Japão ou Nintendinho para nós, brasileiros – mas acabou tendo o nome trocado para prevenir problemas de direitos autorais e também para expandir seu repertório de xingamentos e lamúrias para outras plataformas, aumentando a quantidade de reviews e também de público. Em 2006, essa brincadeira acabou crescendo junto a Rolfe, destacando sua imagem por todo o mundo através da internet e do Youtube, alcançando um grande e fiel público além do próprio vídeo game.

    O lançamento do filme põe fim a oito longos anos de produção que envolveram grande parte da vida de Rolfe, que contou com a ajuda de um crowdfunding realizado na internet para ter seu projeto finalizado. A história do filme se baseia em uma piada em cima de um jogo real, que é citado no seriado E.T. – O Extraterrestre, baseado no filme homônimo lançado em 1982. A lenda diz que o game era tão ruim que foi o responsável pelo crash da indústria de jogos em 1983, e, para tentar arcar com as despesas, a Atari, produtora de E.T., teria sumido com mais de centenas de cópias, enterrando-as no deserto de Alamagordo no Novo México. A história é demasiada ridícula, confesso, mas, por incrível que pareça, tem até um pouco de verdade nesse caso (que não tem a ver com a história, então deixa pra lá).

    O AVGN: The Movie tem como base os próprios episódios da série do personagem de Rolfe, O Nerd, que aqui trabalha em uma loja que vende jogos de vídeo game e tem um vlog onde constantemente fala sobre o assunto, porém somente comentando os piores e mais frustrantes jogos já feitos. Isso o leva a criar uma legião de fãs que passam a comprar e dar maior valor a estes games, contrariando tudo o que ele fala em seus vídeos.

    O filme inicia-se mostrando o que seria uma empresa desenvolvedora de jogos, as Indústrias Cockburn, começando a desenvolver o que seria a continuação do pior de todos os jogos já criados e que seria propositalmente ruim para poupar gastos com desenvolvimento e produção. Para arcar com as despesas, Mandi (Sarah Glendening), a produtora, diz que fará com que O Nerd faça um vídeo-comentário a respeito do jogo, dando toda a mídia necessária para que as pessoas comprem-no. Para fugir da tarefa de realizar essa crítica, O Nerd, junto a seu colega Cooper Folly (Jeremy Suarez), irá provar que o mito sobre o primeiro jogo, que é um dos maiores mistérios do mundo do jogo eletrônico, nada mais é do que uma farsa para pôr fim a uma perseguição de sua vida: ter que jogar o pior jogo já criado. Ao tentar desvendar o mistério, ele descobre que o jogo está ligado a uma conspiração governamental envolvendo a queda do OVNI de 1947 em Roswell e a área 51. Como se nada mais bastasse, acidentalmente é despertado Death Mwauthzyx, o deus-mostro de todo o universo (!?) que estava adormecido dentro do Monte Fuji. Cabe agora ao Nerd não somente desvendar o mistério do jogo como também salvar a humanidade.

    A história é muito tosca, completamente sem noção e dotada de feitos toscos com miniaturas e fantasias de monstros dignas dos seriados japoneses. É hilariante! Para um fã, tanto de filmes B como dos seriados de Rolfe, se torna um filme super divertido, como se fosse um grande episódio de quase duas horas. Não por ser feito por seus próprios criados, mas por ser uma adaptação bem fiel a seu personagem, bem melhor que muitas adaptações que surgem hoje em dia. Além de um projeto pessoal, esse filme também funciona como uma grande homenagem a diversos filmes e jogos, mostrando diversas piadas que fazem referência ao público nerd e à cultura pop atual. A produção teve um orçamento de pouco mais de 350 mil dólares, e, apesar dos efeitos toscos mencionados, estes foram inclusos propositalmente para garantir o visual exageradamente precário dos filmes antigos. Todas as menções de jogos, produtos e lojas foram maquiadas com nomes paródicos (E.T., por exemplo, ganhou o nome de Eee Tee) para também evitar problemas de direito autoral. Mas isso só deixa o filme mais engraçado. Além disso, há várias aparições especiais, como a do próprio desenvolvedor do jogo original mostrado em E.T.

    O filme teve sua premiere em 21 de julho em alguns cinemas selecionados dos EUA e no dia 27 foi exibido no Fantasia International Film Festival (FIFF). Seu lançamento foi no dia 2 de setembro no Vimeo.

    Texto de Autoria de Bruno Gaspar.

  • Crítica | La Sapienza

    Crítica | La Sapienza

    A definição da palavra sapiência refere-se ao excesso de conhecimento, algumas vezes relacionado a onisciência, típica do Divino. O novo filme do francês Eugène Green apresenta esta sensação, se valendo de arquétipos que a priori são vazios e frios, mas que ao longo da fita exibem curvas dramáticas atrozes e vidas repletas de angústias e anseios, quase sempre não alcançados.

    A câmera de Green em La Sapienza contempla monumentos europeus, artes barrocas e clássicas, antecipando o ideal arquitetônico dos personagens que mais tarde serão explorados pela lente inconformista do diretor. As relações mostradas a partir do casal Alexandre (Fabrizio Rongione) e Aliénor (Christelle Prot Landman), cuja aproximação está claramente deteriorada graças a rotina de anos lado a lado, uma postura vinda de ambos os lados, o maior catalisar dessa condição.

    As relações frias, formais, rígidas e distantes seguem por todo o roteiro, especialmente quando a dupla resolve mudar para a Itália. A troca de país os faz discutirem a respeito da rigidez da língua francesa que serve mais como uma alegoria à insensibilidade do casal médio francês. O enquadramento de fala individual mais uma vez remete à distância entre as linguagens, onde microcosmos tão distintos teimam em se tocar.

    A rotina insossa do par é cortada por uma dupla de irmãos, cuja menina desmaia em meio a rua, tendo em Aliénor o seu socorro. Agradecidos, Goffredo (Ludovico Succio) e Lavinia (Arianna Nastro) oferecem a hospitalidade do estabelecimento comercial de sua mãe para que a dupla se instale. Ali há uma convergência entre duas gerações distintas, separadas por um abismo de interesse totalmente diferente, ainda que tenham nos dois homens – Goffredo e Alexandre – a mesma paixão pela arquitetura.

    Depois de “discutir” de um modo tão civilizado que mal parece uma briga, dada a quietude de ambos, Aliénor manda seu marido viajar com Goffredo, para estimular o rapaz nos estudos do ofício em ser arquiteto. O homem de meia-idade prefere ainda manter uma longitude segura, encerrado em sua autossuficiência discutível, mas aos poucos começa a se afeiçoar ao rapaz, revelando até os motivos que o fizeram se apartar de sua esposa, levantando até a hipótese de um herdeiro indesejado como catalizador de uma reaproximação.

    O pupilo e o mestre finalmente se encontram e se aceitam dentro de seus arquétipos, após longas divagações e negações, que remetem a uma profunda reflexão de suas vivências separadas e mais tarde, conjuntas. A troca de experiências entre os amantes da arte é como uma relação, não sexual, mas de emoção e sentir, que consegue fechar o seu ciclo, dentro da relação entre o jovem e o ancião, e entre as partes do par focado desde o início, levado por um roteiro que se fecha assaz poético.