Categoria: Críticas

  • Crítica | Os Mercenários 3

    Crítica | Os Mercenários 3

    Expendables 3

    Simbolicamente – e claro, a exemplo dos dois episódios anteriores – Os Mercenários 3 já começa em meio a ação, mostrando Barney Ross (Sylvester Stallone) e seu grupo de dispensáveis brucutus invadindo um trem em movimento, no intuito de resgatar o preso e antigo amigo do membro do grupo Surgeon, que é vivido por Wesley Snipes, que apesar de ser resgatado, permanece arredio. A quantidade de referências à vida pessoal do intérprete (este ficou um tempo longe dos holofotes por estar encarcerado) só não é maior que o paralelo feito com o retorno aos sucessos que cada um dos antigos heróis de ação teve após o primeiro filme de Sly e companhia.

    No entanto, uma mudança é notada logo de início. Apesar do conteúdo da fita permanecer agressivo, a faixa etária da classificação indicativa diminuiu drasticamente, o que impede a câmera do novato Patrick Hughes de exibir a quantidade colossal de sangue e dilacerações que permeavam os filmes anteriores. O retorno de Surgeon, além de causar uma marola na relação dos Mercenários (com uma referência, claro, a este como alcunha do clube) por este, como Christmas (Jason Statham) ser especialista em facas, reabre algumas feridas, como com as mostras das tags dos antigos companheiros mortos e claro, com a descoberta da sobrevivência de Conrad Stonebanks, encarnado por um bombadíssimo Mel Gibson.

    Além de guardar o ódio de seus antigos colegas, Stonebanks alveja Caesar (Terry Crews), e o põe em um perigo de vida imenso, o que faz Barney pensar mais seriamente em uma aposentadoria, não por si, mas por seus companheiros. A caçada do herói passa a ser solo, resgatando mais algumas figuras de seu passado, cortando a estrada em busca do que deu errado, e do porquê de Conrad ainda estar vivo. Nesse ínterim, ele é apresentado a uma nova gama de personagens, entre eles o novo encarregado da CIA vivido por Harrison Ford, Drummer – que consegue ser um trocadilho até pior que Church – o selecionador de novos talentos Bonaparte (Kelsey Grammer) e o acrobata cinquentenário Galgo (Antonio Banderas) e alguns outros meninos novos, com disposição e com todos os dentes na boca, que deveriam substituir os trabalhos de seus antigos colegas.

    Refugados por seu antigo líder, Lee e os outros veem a força tarefa da nova geração embarcar junto a Barney e Trench (Arnold Schwarzenegger), repleta de rostos bonitos, sorrisos encantadores, remetendo visualmente às séries consumidas pelos adolescentes atuais, em mais uma artimanha de Stallone em alcançar o público juvenil. A dura realidade de estar novamente relegado a um papel secundário, em um campo onde antes reinavam, acomete Lee, Gunnar (Dolph Lundgren), Toll Road (Randy Couture) e Surgeon, e até o que poderia ser um defeito do guião acaba sendo uma boa anedota, a banalização da figura do brucutu serve como uma excelente motivação dentro da proposta.

    O legado que Ross tenta deixar é o de proteger os que lhe são caros, mesmo que isso signifique tirar da ação aqueles que sempre foram fiéis, o que faz o embate com seu antigo parceiro ser ainda mais aviltante, uma vez que Conrad considera que ambos são iguais. O antagonista não vê diferença nas posturas tomadas pelos sexagenários mercenários, e em meio a uma troca de papéis nos arquétipos de gato e rato, Stonebanks rapta a nova equipe de Barney, o que faz com que o dream team retorne das cinzas, em mais uma manobra redentora típica dos filmes que Sly dirigia nos anos 80.

    O modo como Hughes conduz a câmera é competente em sua proposta, uma vez que, ao contrário dos outros filmes onde se fazia um pastiche dos filmes de ação oitentistas, esse serve para mergulhar na mente e na operação de seus protagonistas. A fita é repleta de humor, especialmente nas figuras de Galgo, mas o viés de reflexão é mais sobre a obsolescência do que qualquer outra coisa, não que haja alguma inteligência maior do que nos outros momentos da franquia, mas a emoção é muito mais elevada, a busca é em comover a audiência através do drama de seus heróis.

    Nas cenas finais, é a velha guarda que toma as rédeas da situação, protagonizando as partes mais interessantes do embate, que infelizmente usa e abusa dos efeitos em CGI. Um dos diferenciais da franquia até então eram os combates filmados in loco, com técnicas que podem ser vistas como rudimentares pelo expectador novato, mas que garantiam às fitas mais veracidade e textura.

    No entanto, os erros de concepção ficam ainda mais evidentes. O vilão poderia ter sido melhor construído, ele não é nem tão digno de ódio quanto Villain era em Os Mercenários 2. Falta sentir apuro pelos personagens principais, a todo momento parece que os velhacos se safarão sem arranhões, são raros os embates físicos, que até são precedidos por frases feitas de cunho excelente, mas pouco mostram, ainda que a breve luta de Stonebanks e Ross seja interessante. O grave problema deste Os Mercenários 3 é ser bem menos divertido do que as fases pretéritas, deixando espaço para enxergar seus defeitos.

    A mensagem deixada em seu final vai de encontro a tudo o que foi mostrado na carreira de Stallone e também nesta franquia. O modo como Barney olha para aqueles que seriam os seus alunos, trinta anos mais jovens fazendo tudo o que ele cansou de fazer em tela dá a tônica de como funciona atualmente a mente e a intimidade do ator, diretor e cineasta, talvez até antevendo uma possível aposentadoria, se não da carreira de cineasta, ao menos do filão de filmes de ação. Esse subtexto acaba sendo mais rico que toda a arquitetura, pirotecnia e atitude bad ass que sempre preconizaram as ações de Barney e seus asseclas.

  • Crítica | Deus Não Está Morto

    Crítica | Deus Não Está Morto

    deus não está morto

    Com uma música de abertura animadora e deveras otimista, a fita cristã Deus Não Está Morto se inicia, tentando resgatar a perda da fé, típica da existência humana no mundo atual. A produção dirigida por Harold Cronk – que já havia trabalhado em Contagem Regressiva, ou Jerusalem Countdown, um prelúdio para o Armageddon – busca representar esta premissa de suma importância para a parcela protestante da população estadunidense.

    Após o preâmbulo, o público é apresentado ao caucasiano americano médio Josh Wheaton (Shane Harper), que acaba de chegar ao seu primeiro dia de aula e se recusa a acolher a máxima defendida por seu professor de filosofia, que obviamente toma por base os escritos de sociólogos e estudiosos. Kevin Sorbo, o Hércules da série que era exibida no SBT, dá vida ao Professor Jeffrey Radisson, que, em virtude de um gracejo de Josh, o impele a se preparar para as aulas posteriores, se munindo de argumentos para apresentar a antítese da discussão e elevando o discurso de que Deus não estaria morto.

    O grave problema é que Josh quer cursar Direito, e mesmo uma nota sete seria um desastre para o estudante no percurso da própria carreira. Enquanto decide se entrará em conflito com o docente ou se concentrará na montanha de problemas típicos da classe média, uma série de acontecimentos acomete os coadjuvantes, quase sempre usando o pano de fundo religioso para explicar as diferenças culturais entre os indivíduos, mas sem conseguir arranhar muito mais do que a superfície de tais questões.

    Com o desenrolar da trama, os dramas das pessoas focalizados pela câmera são piorados, com adventos de doenças incuráveis, crises de relação e outras questões deveras espinhosas, mas que são abordadas de modo raso e pouco convincente por meio de uma abordagem genérica. Até a fotografia lembra as novelas brasileiras de péssima qualidade, emulando-as até em conteúdo e forma. A iluminação chapada faz questão de provar (novamente) que o roteiro não possui qualquer nuance ou variação climática. Tudo é preto no branco e não cambiante. Falta verossimilhança na tacanha abordagem, tanto na fala de Josh quanto no proceder cinematográfico.

    Até existe uma vontade do filme não ser tendencioso, especialmente quando se registram algumas mini-palestras do jovem moço emocionado. Seus olhos, que seguram um mundo de lágrimas de alguém incompreendido, não conseguem passar nada além de um discurso fácil e vazio que tenta disfarçar a falta de conteúdo com clichês técnicos, mascarando a tosquice com a qual os personagens são apresentados. Não é só a obviedade que incomoda, mas também a dificuldade de dialogar com quem pensa fora da caixa, com quem não tem por base de vida o Cristianismo. Isso não seria um grave problema; não seria maior do que qualquer situação ou discussão, mas se torna o pecado capital, já que a ideia principal da missão divina dada a Wheaton é a luz que prevaleceria sobres as trevas. No único contato daquela religião com os seus colegas de classe, e já na primeira tentativa de estabelecer essa ponte, ele falha categoricamente, sendo até motivo de troça por seu recusado mentor.

    As atuações que preenchem a fita são tão caricatas que se torna praticamente impossível se importar com os pequenos dramas descritos pela lente. Nem nos folhetins mexicanos os atores são tão broncos em suas interpelações. E, pior, Deus Não Está Morto mostra-se um espécime insosso. Sequer os dramalhões açucarados conseguem ser copiados de modo satisfatório. O que se apresenta é somente um número x de polêmicas e questões sem o mínimo de aprofundamento, seja na ciência filosófica ou no texto teológico. Tampouco o público protestante é capaz de comprar sua proposta.

    A necessidade de transformar todos os não cristãos em vilões de desenho animado é mais uma das muitas artimanhas malfadadas da fita. Além de ser demasiado artificial, o recurso escolhido serve para propagar um desnecessário preconceito com quem é incrédulo, em qualquer grau: ou ateu ou adepto de outras doutrinas de fé. Um elemento que pode ser considerado, no mínimo, de mal gosto, em uma análise mais taxativa através da fala fanática de repressão ao diferente, propagando uma série de estereótipos fundamentados em considerações infantis, medievais e falaciosas. Basicamente, os cristão sofrem de câncer, de humilhações, de ameaças mil, são pobres coitados, perseguidos e humilhados pelos malvados, e que têm a luz divina em seu coração, e, por isso, carentes de bondade e da boa nova – a presunção é intencional, vide a arrogância do incongruente roteiro de Hunter Dennis, Chuck Konzelman e Cary Solomon.

    Logo é mostrada a motivação do Professor Radisson. Seu interesse pela profissão de educador seria causada por um trauma do passado, a perda de um ente querido, já que nenhum outro elemento poderia tirar os olhos de alguém dos desígnios do alto, nem mesmo a lógica ou o livre-arbítrio, direito que, segundo as mesmas sagradas escrituras que inspiraram os produtores, é inalienável. A apelação chega a níveis astronômicos, mostrando os problemas de relação em meio a uma família islâmica, cuja filha mais nova resolve declarar seu amor por Cristo e é alvejada pela pesada mão de seu progenitor. Em outro núcleo, o conceito de “escolhido e escolhida” é aventado com toda desfaçatez possível, fundamento discutível até mesmo no meio evangélico. É difícil imaginar que qualquer pessoa que tenha o mínimo de senso crítico consiga digerir as instruções e o sermão intolerante produzidos na fita.

    A glamourização do discurso passa por tomar conceitos isolados de textos como os de Dostoiévski e Nietzsche, apoiando-se em suas carreiras irrefutáveis e em fragmentos de suas conclusões para montar um sofisma ainda maior. Uma falácia que usaria as armas dos pretensos inimigos cristãos para provar que, apesar de tudo, os preceitos conservadores e preconceituosos podem, sim, viver em meio à modernidade, utilizando uma capa de solução fácil para qualquer uma das questões de difícil resolução, uma vez que a escolha certa é finalmente colocada em prática.

    Como agravante ainda há o fato de que as situações mostradas nos núcleos são essencialmente as mesmas, em conteúdo e em má composição. É tudo uma prova de fé: a base é um argumento pobre e simplista que é repetido em looping como se fosse construído para o mais ignóbil dos espectadores, relembrando-o constantemente de que a mensagem prossegue viva e a mais didática possível.

    Em meio a um show gospel, onde todos os conservadores curtem juntos uma noite de luzes piscando e vidas sem pecados, no lado de fora, sem a mesma dádiva que os que lá estão, Jeffrey sofre um acidente oportuno que encaixaria um final decente para todos os envolvidos na trama. A mão de Deus pesa fortemente sobre sua cabeça, selando um destino fatal para si, mas convenientemente de reconciliação, que em última análise pode ser encarado como uma decisão arbitrária do Divino, que não aceita aqueles que não professam a fé naquele Deus. Não importa quaisquer ações de cunho polêmico, como caça a animais indefesos ou perseguição religiosa, o interessante é acreditar no ser eterno e que não está morto, uma vez que o amor dEle explode – ás vezes de modo mortífero – sobre toda a humanidade. Que o arrependimento finalmente ocorra. A intenção dos idealizadores não era obviamente banalizar a mensagem, nem desespiritualizar a temática, mas isso ocorre plenamente nos enfadonhos 112 minutos de exibição.

    Nem mesmo a antiga prece de 1 Corintios 2:13-14, “as coisas espirituais se discernem espiritualmente“, serve, ao contrário do que deveria ser, pois até as ações sobrenaturais são banalizadas. O que se tira é uma máxima cruel, pontuada pela fala de um dos vazios personagens, após a morte de Radisson e as trocas de mensagens sms com o nome original do filme: “O que aconteceu aqui, hoje, é motivo de celebração. Dor, sim, só por um instante, mas agora, imagina só a alegria no céu“. O mal gosto é tanto que abre o precedente para Deus estar contente com o perecimento do professor, que teve seu castigo devido por ser malvado e negar a existência Dele. Em última análise, perpetua a maldosa comparação de Jeová com uma cruel criança que queima suas formigas com uma lupa. Após isto, é repetido o mantra, de que o Criador estaria vivo, tentando, por meio da repetição, validar o seu argumento mal concebido.

    É curioso como um filme que promete a vida eterna consegue ser tão pobre de espírito.

  • Crítica | Uma Longa Queda

    Crítica | Uma Longa Queda

    a-long-way-down

    Pessimista e catastrófico, ainda que de um modo leve e agridoce, tratando a morte como algo comum e inerente à existência humana. O fim da trajetória chamada vida não precisa ser algo triste ou digno de choro. Mais que isso: a naturalidade do suicídio é algo presente nas palavras de Martin Sharp, um senhor de meia-idade e famoso apresentador de TV vivido por Pierce Brosnan, e que é o primeiro contador da história de Uma Longa Queda (A Long Way Down), o novo filme de Pascal Chaumeil baseado no texto original de Nick Hornby.

    Em um evento inesperado, de caráter completamente entrópico, Sharp, naquela noite de réveillon, conta com a presença de outras três pessoas que também querem cometer a própria morte, primeiro Maureen (Toni Collette), depois Jess Crichton (Imogen Poots) e J.J. (Aaron Paul). Entre eles há pouco em comum. O repertório e estilo de vida dos personagens são completamente singulares, e cada um contém o seu próprio microcosmo com razões suficientes para odiar a vida. Em comum, somente a aflição da alma. A interação do quarteto mais lembra uma esquete teatral de cunho tragicômico do que um filme. Com o tempo, os personagens se afeiçoam e passam a estimar uns aos outros, projetando cuidado e apoio mútuo aos colegas. Após sofrer uma overdose, Jess, a mais nova e incendiária do grupo – e ainda em recuperação -, sugere que os quatro selem seu destino suicida juntos, dali a seis semanas, no Dia de São Valentim, a segunda data em que mais acontecem suicídios, atrás apenas da virada do ano em incidência desse tipo de caso.

    Em determinados pontos da trama, o narrador dá voz a um dos quatro suicidas, alternando-se. A variação da linguagem explora alguns motivos para a precoce interrupção da vida, como a invisibilidade social, excesso de burocracia, dificuldades de conviver com a própria família, a sensação intermitente de que a vida passa diante dos olhos. Em resumo, a causa que contorna todas as vidas é a da infelicidade motivada pelo sentimento inexorável de solidão.

    Apesar da propensão de Hornby para contar histórias cômicas, o roteiro de Jack Thorne tem um viés muito mais dramático, mostrando o quão intragável é a vida dos personagens e o quão difícil é viver em meio às mentiras que os próprios kamikazes inventam para aplacar ou amenizar o seu sofrimento. A história da morte coletiva planejada vaza para a imprensa, que trata de explorar o circo midiático o qual naturalmente atravessa toda a situação. Graças ao entorno da vida de alguns dos personagens, é interessante para os canais explorar o curioso e fracassado fim da vida, mas a atenção dispensada a eles é pequena, apesar das expectativas de Sharp, que até neste momento derradeiro de sua trajetória se sente humilhado e pouco valorizado.

    Como já era esperado, o pacto foi quebrado, assim como a amizade entre os iguais. A esperança que existia em virtude da união também se esvaiu, e cada um deles tem de lidar com a sua rotina de modo diferente, uma vez que o fim das suas vidas foi postergado novamente.

    Talvez a questão maior do filme esteja em discutir os métodos usados pelos homens para lidar com o que é inevitável. A insistência em sentir-se impotente diante das dificuldades mundanas faz com que este mesmo homem esconda-se, faz com que tenha medo de enfrentar os seus demônios. A existência dessas sensações nem sempre é evitável, uma vez que a maioria dos obstáculos não é inventada pela cabeça do suicida.

    Procurar uma saída digna para as dúvidas referentes à continuidade da vida é o melhor e mais otimista ponto da história de Nick Hornby, que, apesar de cair em algumas armadilhas piegas, consegue passar uma história simpática, capaz de fazer o público se importar com seus personagens, uma vez que eles são como arquétipos. Pessoas reais como as que cruzam as ruas todos os dias e que têm de tocar as suas próprias vidas sem fórmulas mágicas, nem garantias de finais felizes.

  • Crítica | A Um Passo do Estrelato

    Crítica | A Um Passo do Estrelato

    A Um Passo do Estrelato

    A Um Passo do Estrelato  é um documentário musical que reconstrói o manifesto de uma época em que a publicidade ainda era fiel ao artista. Em um fluxo histórico linear, a auto avaliação do período que registra é feita com alma e aura investigativa, com cada relato na linha de frente, um por um à mercê de distintas intensidades.

    O filme é uma refinada unidade do seu gênero no cinema, realçado por elementos como a emoção ao expressar a luz de um espírito musical -“Ele suava feito porco e cantava feito anjo!” -, os fatos de bastidores ainda inéditos, como a clássica interpretação feminina em Gimme Shelter dos Rolling Stones, as lições de “como impressionar de David Bowie a Stevie Wonder, passando por Ray Charles e Michael Jackson“, com o relato de quem conseguiu tal pretensão de principiante, as gravações audiovisuais e fotográficas independentes, e ainda o desafio de realizar uma retrospectiva à altura de todo o montante a se registrar do cenário eufônico americano, nos orgásticos anos das décadas de 50 à 80.

    O contexto da indústria musical pouco mudou desde então, e continua ainda influenciada por quem proporciona o céu para as estrelas brilharem com suas vozes, tentando sobreviver junto, ou contra, o brilho das outras. O documentário, em uma viagem muito bem editada de duas épocas seculares, prova que as armas para se lutar por um lugar na constelação de talentos invencíveis continuam as mesmas. Os tempos trocaram de roupa, mas não de essência, como é possível notar nos closes das divas de outrora e de hoje, em cenas valiosíssimas.

    Após a sessão do documentário, Dream Girls (2006) torna-se um mero ensaio à realidade do pulsante show business, senão uma espécie de subversão à verdade das coisas, deturpando o bom combate de mulheres que, muitas vezes, não tiveram a chance de ter uma vida digna de uma estrela de cinema, muito menos um final feliz como ponto de virada, pois quem não sabe que estrelas não morrem? Pelo menos não antes de explodirem em fragmentos audíveis chamados de discos, sacrifícios, suor e, com um pouco de sorte e dedicação, serem lembradas no mural atemporal do sucesso.

    Há uma sequência que merece ser avaliada em solo aqui: uma revoada de pássaros num céu de começo de manhã. No ar, alguma melodia leve e pouco importante, diante do simbolismo da imagem em movimento, durante instantes que poderiam ser mais largos, inclusive. Metáfora redundante em todo o documentário. Aves, uma revoada delas, disputando, num uníssono de liberdade, o mesmo espaço. Espaço em que nasceram para estar e fazer o que nasceram para performar. Algumas conseguem o voo, e para tanto, continuam a batalhar para honrar seu dom. Outras, do ninho, veem o confronto com o chão, a escuridão. Essa é a vida, essa é a ideia, seja no palco ou na plateia.

  • Crítica | Gênio Indomável

    Crítica | Gênio Indomável

    good will hunting

    A sensibilidade de Gus Van Sant já rodou o globo e faz tempo, mais de dez anos. O cara toca projetos com mãos de fada e satura o lado racional de cada um até não sobrar nada, senão o suprassumo de uma carga emocional plena e linear, território que conhece como poucos na tarefa de traduzir vibrações em narrativas. O âmbito da matemática, ciência exata, todavia, não é frio nem quente, mas indiferente a todo um mundo relativo e cheio de fatores que não podem ser expressos por números, e é justamente no abismo entre o exato e as reviravoltas da vida – que não podem ser pré-calculadas – que o diretor de Elefante encontrou um grande desafio para ser o que é. No caso, um coração forçado a usar uma régua para medir o que sente. Não é justo.

    Will Hunting é um geniosinho arrogante e irritante (“Smartass”, em inglês) na pele de Matt Damon, um Damon inspirado como nunca mais viria a ser, sob o manto, que incorpora com prazer, de um cara de 21 anos perdido na vida, nos desejos e no entorno do próprio umbigo. É quase um Mark Zuckerberg que curte falar besteira e dançar em balada, de postura descolada enquanto analítica na onisciência que presume ter. Mas Will é o corpo divisível de Gênio Indomável, uma estrutura que se move na direção de diálogos bem construídos e de situações insubstituíveis, na tentativa de criar uma realidade que Gênio ao menos consegue nos convencer sobre, mas jamais nos preencher com ela.

    Na odisseia de um escravo do próprio intelecto acima da média, feito Ozymandias em seu habitat natural na gélida Antártida, Gus transmite-nos ideias através do amor de quem inventa uma nova teoria física, e nos incentiva a prestar atenção no que ocorre nos corredores de Harvard com esta mesma emoção. Van Sant faz até parecer que foi fácil, e isso é tão admirável quanto a implicância do bater de asas de um canário e uma tempestade, a léguas de distância.

    E é por isso que a amizade de Will com o analista Sean Maguire é peça-chave na trama, espécie de A Rede Social sem a visão técnica, mas com metade do raciocínio lógico de um David Fincher  o resto é inteligência emocional. Robin Williams, sendo em pessoa tudo o que o filme poderia ser, numa alusão aqui à composição de Milton Nascimento, faz o coração que completa o amigo, o qual só calcula perdas e danos, sendo a figura do analista a mais interessante e rica de reflexões, num filme de ótimas intenções e que se apega a nenhuma delas para decolar em suas verdades. Gus Van Sant esqueceu de levar seu filme a sério, pois este habita o campo minado da batalha particular de um artista, onde Lolita habitou em Stanley Kubrick um dia.

    Contradição: se Gênio Indomável consegue ser laçado apenas pela maturidade de um cineasta ainda em ascensão, na época, mesmo pontuado pelo veterano Williams, por onde então entra ar nesse pastel? Vencedor do Oscar de roteiro original, o filme perde claramente seu rumo na segunda metade, quando corações e mentes são subestimados no poder de integração, e a história perde grande parcela de seu fascínio na perda de suas harmonias. Se filmes são equações, a força do Cinema, então, não é proporcional aos efeitos que reproduz.

  • Crítica | A Batalha do Planeta dos Macacos

    Crítica | A Batalha do Planeta dos Macacos

    Battle for the planet of the apes

    No filme de 1973, a história de um mundo devastado pela terceira guerra mundial – que ocorreria na década de 1990 – é narrada pelo personagem chamado O Legislador (The Lawgiver), um orangotango interpretado por John Huston, relembrando os momentos finais de A Fuga do Planeta dos Macacos e um pouco da escravidão presente em A Conquista do Planeta dos Macacos.

    Nas referências aos filmes anteriores e nos flashbacks, nota-se o cuidado de J. Lee Thompson – o único diretor a retornar à direção da franquia – em aperfeiçoar o tema proposto. Entretanto, os momentos seguintes revelam pouca elaboração, começando pela cena em que os primeiros passos da existência de César (Roddy McDowall) como líder daquela sociedade são anunciados.

    Logo no início do filme, é estabelecido um mini-estado politicamente correto, utopicamente perfeitamente em suas intenções. Um lugarejo que reúne homens e símios que convivem pacificamente e se beneficiam mutuamente dos conhecimentos das duas espécies. Surpreendentemente, o tempo que separa essa narrativa, da anterior, foi suficiente para que todos os símios começassem a falar e tivessem acesso irrestrito à linguagem. Alguns deles até chegam a ler e escrever, desenvolvendo dogmas e criando leis inquebráveis no universo dos macacos.

    Após a retomada da máxima “macaco não mata macaco”, o público é apresentado a um general extremamente totalitário, que contesta o pacifismo de César e é arredio quanto a suas ordens. A obrigação de aprender a teoria estudada nas escolas claramente o incomoda, o que entra em contradição com o nome que recebeu. Batizado como Aldo – aquele que é nobre ou sábio -, o mesmo nome do primeiro macaco que teria falado “não” a um humano, o líder armamentista vivido por Claude Akins não guarda qualquer capacidade de pensamento que não seja hostil e rudimentar.

    César, por sua vez, tornou-se um líder engajado, entretanto demasiado sereno para a posição de um governante que concentra unicamente em si, o poder e a lei. As incongruências com a proposta inicial da saga ocorreram devido à influência dos estúdios na decisão de modificar o roteiro original de Paul Dehn, que havia participado de três dos quatro filmes anteriores. A história é suavizada, assim como haviam feito com o discurso final do líder simiesco em A Conquista do Planeta dos Macacos, além de ser reescrita por John William e Joyce Corrington, sem a complexidade da crítica social comum à saga, resultando em um entretenimento leve, produto para toda a família.

    A crítica ao horror atômico é escrachada e piegas, com falas excessivamente moralistas e enviesadas, carecendo da sutileza necessária a uma discussão mais elaborada da questão. O maniqueísmo da abordagem torna o assunto mais palatável ao grande público, apesar da já consolidada popularidade da franquia, e acabou por construir um enredo simplificado e ainda mais didático que o visto em De Volta ao Planeta dos Macacos, com uma referência ingênua ao que seria o drama da Guerra Fria.

    Os sobreviventes humanos da guerra são híbridos de homens comuns com os mutantes telepatas do segundo episódio. O modo como valorizam a batalha em detrimento da preservação da vida também é muito parecido com De volta ao Planeta dos Macacos, mas não é tão gritante quanto o canto lírico dedicado a um míssil atômico na referência ao tédio criado pela paz.

    Numa incursão de César a uma cidade humana devastada pela radiação, o líder chimpanzé tem acesso a vídeos de seus pais depondo sobre a origem de onde vieram. Lá, César toma conhecimento do porquê os homens o odeiam tanto, embora isso já tenha sido explicado por Armando, personagem de Ricardo Montalbán, na obra cinematográfica anterior. Nota-se assim, uma preferência por ignorar os momentos anteriores da trajetória para recontar alguns preceitos novamente, mas de maneira claramente  modificada.

    Como era de se esperar, os ânimos se exaltam e os humanos feridos pela exposição radioativa decidem atacar o acampamento dos macacos. Os gorilas de Aldo, por sua vez, se preparam para tomar o poder à força, enquanto César se contenta em gastar seu tempo regando plantas, cuidando de seus jardins e conversando descompromissadamente com o humano Macdonald (Austin Stoker) e o orangotango Virgil (Paul Williams). Logo, o inevitável conflito se aproxima, graças aos ardis de Aldo, que manipula a opinião pública e se livra do grande líder, desviando sua atenção ao ferir gravemente seu filho Cornelius, algo que o atinge intimamente.

    Apesar de todo o seu preparo, César ainda não tem o que é preciso para ser um líder sobre os seus semelhantes. Falta-lhe pulso firme para fazer de suas ordens, algo incontestável. Ele não tem uma atitude enérgica com os que entram em contradição com os seus preceitos, e quando, finalmente, reúne forças e coragem para dar fim ao confronto, o ataque dos semi-mutantes começa, e dá início à batalha mais risível dentro da filmografia primata.

    Fora a iconografia visual que, entre outras coisas, influenciaria George Miller na criação da saga Mad Max, pouco há para se elogiar na esperada cena da batalha. Apesar do esforço de Thompson em matizar sua edição com as cenas mais emocionantes, quase não há como acreditar no tiroteio burlesco que é exibido, nem nas armadilhas usadas para capturar os prisioneiros humanos, que mais lembram os filmes infantis da série Esqueceram de Mim.

    O ataque dos gorilas aos homens que fogem mostra-se ainda mais simplista, equiparando Aldo ao Brutus romano e reduzindo o filme a uma trama pouco elaborada. O ponto de maior complexidade da película é o tão esperado enfrentamento entre Aldo e César, momento em que a lei primordial que equilibrava o Estado primata é quebrada, com o assassinato de um macaco por outro. A partir desse momento, os símios se aproximam ainda mais da humanidade, algo reconhecido até mesmo por Macdonald.

    A qualidade do filme é, possivelmente, comprometida pela tentativa do estúdio em esgotar o tema da franquia, explorando cada detalhe de forma que não houvesse mais nada para ser contado. O quadro pintado pelo diretor Lee Thompson, ao final do drama, mostra o Legislador falando a uma plateia de crianças e macacos, criando uma interação que varia do respeito à pirraça, dependendo do foco da câmera. De forma semelhante aos dois primeiros filmes, a última cena culmina em uma estátua, que, dessa vez, homenageia César. O choro da estátua termina a saga de modo ambíguo, possibilitando ao público a interpretação de que as lágrimas representam a alegria pela paz ou o temor pela inevitável guerra entre raças. Um bom final para um filme tão abaixo da qualidade dos filmes anteriores e absolutamente dispensável à franquia.

    Ouça: VortCast 08: Planeta dos Macacos.

  • Crítica | A Última Esperança da Terra

    Crítica | A Última Esperança da Terra

    the omega man

    A temática do fim do mundo foi explorada em inúmeras oportunidades. Dentre estas, a que talvez seja a mais notória em questão de influência, especialmente no meio do público que consome ficção científica e seus derivados, seja o romance de Richard Matheson, Eu sou a Lenda, que teria influído até no imaginário de infestação zumbi reinventado por George A. Romero em seu A Noite dos Mortos-Vivos. Até por seu repertório como roteirista, era natural que o texto de Matheson fosse explorado pelo cinema, também por seu potencial midiático. Uma destas versões seria protagonizada pelo herói de ação da época (1971), Sir Charlton Heston, em A Última Esperança da Terra.

    Logo no início o espectador é apresentado à temática da história, uma aparente tranquilidade com uma dose de violência pouco elevada. Até pelas já citadas influências que Eu Sou a Lenda deixaria na cultura pop, passou a ser comum associar a espécie que teve seu apogeu na trama como zumbis. No entanto, o diretor Boris Sagal deixa ainda mais evidente nesta versão – especialmente quando comparada com a mais recente interpretação – que os mortos-andantes são, na verdade, vampiros. Mesmo assim é curioso como o mundo arquitetado pela direção de arte guarda muitas semelhanças com o filão de filmes com mortos-vivos. Os ambientes áridos, cidades abandonadas, figurinos de personagens maltrapilhos, qualquer ponto que remeta ao pós-apocalipse acaba lembrando o que Romero havia feito em 1968, mas de modo evoluído, mais amplo, em um espaço urbano, cuja iconografia visual seguiria o influxo até em Despertar dos MortosThe Walking Dead, e até um pouco de Mad Max.

    O protagonista do filme, o sobrevivente Robert Neville é canastra ao máximo, cheio de frases feitas e piadinhas infames, contém em si todos os clichês cinematográficos que se tornaram moda entre os action heroes. Este A Última Esperança da Terra exala um forte cheiro de filme B, em determinados pontos da trama é quase uma comédia. Figurinos destoantes e cafonas, maquiagens toscas, personagens estereotipados, crianças que falam como adultos, tudo isso torna o filme bastante datado, o que exige de quem vê uma porção considerável de paciência.

    Heston faz Neville, aparentemente o único sobrevivente de uma praga que transformou a humanidade em seres albinos, que tem vulnerabilidade a luz. A “doença” ocorreu devido a uma guerra bacteriológica, protagonizada pelas duas potencias mundiais da época: EUA e URSS. As pessoas portadoras desta doença tornam-se uma comunidade, e recusam qualquer tentativa de “cura”, perseguem Neville como se ele fosse o monstro – até porque ele tirou a vida de muitos membros desta “Família”.

    A Nova Raça tenta realizar uma super correção, refutando tudo que é moderno: a ciência, tecnologia, armamentos, para viver em condições semi medievais – essa é a intenção do roteiro, ainda que falhe em muitos aspectos. O curioso é que o papel de Charlton Heston é semelhante a outro de seus mais famosos personagens. Dave, de Planeta dos Macacos, assim como Neville está diante de outra classe dominante, sozinho contra uma sociedade inteira. Na visão da “Família”, o morto é Neville, assim como Dave era o involuído para os símios.

    O grande pecado da fita é que em quase momento nenhum se teme pelo futuro dos personagens, ainda que os seus tristes destinos sejam iminentes. Os sobreviventes vivem num mundo pós-apocalíptico, mas o seu status quo parece não ter mudado praticamente nada. O pânico que deveria estar instaurado é nulo, inexiste e o desfecho é anticlimático, já que o fim do herói é pouco significativo. A cena acaba sendo mal executada, talvez se o orçamento fosse um pouco maior, poderia ter havido um maior esmero em concluir a película.

    Até em virtude do pouco investimento e da decadência de Heston como astro do cinema, o filme de Boris Sagal torna-se essencial, uma vez que em suas devidas proporções, foi um divisor de águas dentro do seu universo temático, além, é claro, de ter em seu subtexto uma mensagem relevante e atual.

  • Crítica | Longwave: Nas Ondas da Revolução

    Crítica | Longwave: Nas Ondas da Revolução

    Longwave – Nas Ondas da Revolução

    No conto sobre vivências dentro do comportamento de militância, o suíço Lionel Baier une culturas diversas, com elementos europeus variantes entre Portugal, Suíça e França. Longwave: Nas Ondas da Revolução brinca com estereótipos políticos e críticos, de modo minimalista e debochadíssimo.

    Toda a paranoia da espionagem é registrada pela câmera, tanto por parte dos perseguidores quanto dos revolucionários, que buscam ficar incógnitos. A jornalista feminista Julie Dujonc-Renens (da bela Valérie Donzelli) vai até Portugal, acompanhada de Joseph-Marie Cauvin (Michel Vuillermoz), e juntos procuram por ligações financeiras entre o governo suíço e os países pobres, que estariam recebendo um forte aporte financeiro, o que iria contra toda a política de neutralidade predominante no país.

    O modo como Julie segue suas reportagens detetivescas envolve muitos populares portugueses, mas seus resultados são quase sempre inconclusivos, com pitadas de humor baseadas muito no nonsense, com a ausência de noção remetendo à obscuridade das relações internacionais entre as bandeiras envolvidas. Grande parte das gags de humor se concentram no captador de áudio que está prestes a se aposentar, e que por isso, é pouco afeito ao ofício dos agentes. Desde que aparece, Alain Dit Bon (Patrick Lapp) se mostra indisposto e cansado desses estratagemas “chatos”.

    O presente da película é 1974, tempo de paranoias mil, tantas que até mesmo o serviço de dentro das agências costumam sabotar-se mutuamente. Julie é obrigada em muitos momentos a tomar as rédeas ela mesma, se valendo de seus valores pessoais para conseguir seus tentos. Entre suas armas está a exposição de seu próprio corpo. Gradativamente ela explora cada um dos clichês de espionagem.

    Mesmo com toda a camada comediante de seu roteiro, o filme ainda guarda muito de sua duração para mostrar os gritos revolucionários, na maioria das vezes como uivos isolados, mas em alguns poucos momentos apresenta a ação popular, com dezenas de vozes em conjunto, protestando contra a ditadura capitaneada pela Junta de Salvação Nacional.

    As ações que confrontam a repressão aos protestantes são mostradas com coreografias semelhantes às dos grandes musicais antigos, tratados com uma essência leve e diferenciada até nos figurinos. Os “maus” usam preto, enquanto os “bons jovens” possuem bandanas de cores variadas, remetendo à multiplicidade de ideias que convivem pacificamente entre si, ao contrário da palavra do soberano, avessa, e muito, a qualquer argumento diferenciado.

    A revolução guarda muitos desprendimentos morais, ela é livre até para a execução do sexo, seja por quais parceiros forem. As ações mostradas em tela provam isso, sem pudor ou medo de ser taxada como uma fita tarada. Não há medo de ser flagrada em nada, o que faz com que a película seja guardada do panfletarismo barato e do discurso político idiotizado. A tônica do roteiro de Baier é essencialmente leve, ainda que trate de questões de difícil digestão.

    A trabalho do trio é finalmente agraciado com os louros que tanto mereciam e com o reconhecimento de seus superiores. No entanto, o modus operandi deles em terra estrangeira é discutido pelo conservadorismo de alguns deles, mostrando novamente a multiplicidade de pensamentos entre aqueles que colaboram com o viés contestatório da revolução. Os resultados de toda a luta são conferidos ao final, com uma surpreendente revolução por parte do narrador, Pelé (vivido na juventude por Francisco Belard), onde expõe todo o final de carreira de cada um dos membros daquela expedição jornalística, contada através de uma competentíssima direção de Lionel Baier, que sabe equilibrar informação e humor, mostrando que ambas abordagens não são tão diferentes quanto é pensado pelo raciocínio normativo e limitado do expectador conservador.

  • Crítica | Sociedade dos Poetas Mortos

    Crítica | Sociedade dos Poetas Mortos

    Sociedade dos Poetas Mortos

    Ao conceituar a Jornada do Herói, Joseph Campbell resumiria a trajetória básica do protagonismo em seu livro O Herói de Mil Faces, o qual apresenta o arquétipo de personagens. Dentre eles, a figura de mentor caracteriza-se por uma das mais carismáticas, possivelmente até roubando do herói os holofotes da trama. São poucos momentos no cinema que esta possibilidade se mostrou tão concreta e emotiva quanto foi em Sociedade dos Poetas Mortos.

    Robin Williams vive o professor John Keating, um docente que, em 1959, decide lecionar novamente no internato tradicionalíssimo Welton Academy, ministrando inglês aos seus pupilos. O diretor da obra, Peter Weir, usa os primeiros minutos de exibição para assinalar o quão arcaica era a instituição, presa a dogmas religiosos e conservadores e portadora de uma sisudez muito diferente do sorriso franco que o Mestre Keating, inserido em uma instituição onde as únicas demonstrações de riso eram amarelas e mecânicas, ostentava.

    O foco narrativo está na contestação do futuro, mostrando os jovens estudantes se preparando para a vida adulta, fazendo escolhas que não necessariamente coincidem com seus desejos próprios. No início, Neil Perry, personagem de Robert Sean Leonard, é quem personifica este descontentamento em relação ao seu pai, uma figura atenta e opressora que representa um chamado ao capitalismo exacerbado, cujo enfoque é o pensar normativo, e nunca na diversão. Neil é colocado para dividir o quarto com Todd Anderson, personagem de Ethan Hawke, um menino tímido recém-chegado à escola. A classe de aspirantes, incluindo os dois garotos, tem uma surpresa ao adentrar a primeira aula do Senhor Keating, que os leva para conhecer um pouco a origem do colégio e apresenta-lhes uma nova interpretação de toda a rigidez que permeia a história da instituição, dizendo que dos pulmões dos alunos do Hall da Fama vem o suspiro em latim, Carpe Diem, e mostrando a otimista mensagem de aproveitar o tempo que os acomete.

    Esta breve introdução produz em muitos alunos uma vontade de explorar um mundo desconhecido. O desbravar se agrava com a segunda aula, na qual o Capitão divaga sobre poesia, ensinando que esta não é algo morto, insosso e ausente de vida, mas sim vívido, radical, agressivo e, sempre que possível, transgressor. Os meninos são convidados a rasgar páginas de seus livros, um símbolo daquele regime ditatorial obsoleto. O ato contestador gera nos alunos a curiosidade e, investigando o passado de John, descobrem que ele fez parte da Sociedade dos Poetas Mortos, um lugar livre, onde se podia estudar a beleza dos contos de Thoreau , Whitman e Shelley, e um espaço predominante do romance, da magia e da doçura de espírito. Uma chama é despertada em Neil, enquanto Todd se mostra confuso, aturdido pela fala do mentor.

    O desafio do orientador é fazer com que os moços tenham a sua própria voz, que deem vazão a sua vontade, sem medo de se expor e sem receio de viver. Suas atividades extra-sala maximizam essas sensações, e os fazem enxergar quais os limites de seus atos e até de seus potenciais. A validez de seu discurso passa por não ignorar a necessidade de aceitação que o homem frequentemente tem, especialmente em uma fase tão conflituosa e aviltante como é a puberdade, na qual a maioria dos destinos é escolhida como base para uma vida.

    Charlie Dalton (Gale Hansen) parece ter aprendido a lição mais rápido, tornando-se a voz rebelde mais ativa dentro da escola, questionando a autoridade até mesmo do diretor colegiado e à frente de todos os alunos e docentes. O reclame é destacado pelo professor, que o instrui a ir devagar em sua postura, mostrando que a audácia não deve dar lugar à estupidez.

    Logo Neil tenta dar vazão ao seu sonho, o de ser ator, o que incomoda o pai, o senhor Perry (Kurtwood Smith), que pensa ser o melhor para o filho estudar Medicina e ter uma educação militar, regrada e normativa, como deveria já ter sido. O sufocamento de suas ideias cobra um alto preço: a vida.  Com o direito de se expressar cerceado, o sentido de viver também se perdeu na mentalidade pueril de Neil. A severidade do pai castigador não é aliviada nem mesmo na caminhada rumo ao seu escritório, onde seu herdeiro descansa após a recusa em existir.

    Todd caminha sozinho pela neve ao saber da fatídica notícia. Prefere se isolar para chorar a sua tristeza e lamentar a ida daquele que o ajudou a superar a solidão e a enfrentar os poderosos pais. Keating, não suportando as lágrimas, desabafa em cima do livro com anotações do menino, sentindo-se parcialmente culpado, imaginando que se tivesse dado maior apoio ao garoto, este não desistiria de lutar contra a repressão do pai. O inquérito aberto é mais um golpe, tanto no professor quanto nos alunos, que mal conseguem enxugar as lágrimas e têm de lidar com o fato de Keating ser o alvo das investigações.

    A nova Sociedade perde seu orientador e não consegue encontrar uma maneira de reverter o processo. Suas mãos estavam atadas e o poder de fogo era diminuto, pois no mundo dos adultos as crianças não podem opinar. O destino do Professor John estava selado; os rapazes nada puderam fazer para modificá-lo. No último momento, na lendária cena em que Keating tem de entrar na sua antiga sala, tomada por seu substituto, os pupilos assumem seu lugar de direito com os pés sobre as mesas escolares, saudando o valoroso capitão, a despeito da ordem do diretor e de qualquer figura de autoridade. O contato que há entre o mentor e seus discípulos é essencialmente emocional, mas também demonstra a maturidade de moços que descobriram o sofrimento íntimo. A cena contém tantos signos visuais ricos que uma análise periga ser pobre, além de correr o risco de negligenciar qualquer aspecto.

    O modo como a direção de Peter Weir e o roteiro de Tom Schulman conduzem a película remete à nostalgia, ao doce sabor da juventude e dos anos áureos de quem se permitiu conduzir por belos ensinadores. A obra, ao mesmo mesmo tempo em que valoriza outros muitos préstimos, como amizade, companheirismo, fidelidade e liberdade, claro, utilizando períodos tão ternos como a infância e adolescência, é um louvor à obra artística de Robin Williams.

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  • Crítica | The Normal Heart

    Crítica | The Normal Heart

    The_Normal_Heart

    A AIDS como denúncia enquanto produto do meio inexplicável. Teorias da conspiração são o tipo de coisa que não falta nesse mundo, e até hoje seguem feito esporte efetivo aos incapazes de compreender a pandemia, alastrada nos anos 80, do vírus de tantos amores soropositivos, de segregação sexual. Você sente que The Normal Heart é dedicado a todas as vozes caladas no passado, esquecidas na época por seus representantes políticos (que hoje ganham ou perdem votos por apoiar o casamento homo, como se o direito fosse alienígena), e cientes de que nunca seriam lembradas. Um daqueles raros filmes gays que não tenta se heteronormatizar, não tenta se encaixar no contexto que a maioria do público gosta de ver. Se faz com total orgulho acerca de uma minoria, e realizado para ela mesma, ainda que possa ser totalmente adotado por qualquer pesquisador da raça humana e usuário do cinema para tanto.

    Se resgatar atos e fatos de um passado recente e incômodo indispõe muita gente, o telefilme do canal HBO tem a força de mil elefantes, carregada nas costas da visibilidade, da expressão, sendo tal expressão totalmente econômica e serena durante toda a projeção, além de utilizar-se como ponto central da polêmica enfermidade, já tratada antes mas não debatida ainda com tamanho realismo, seja em Clube de Compras Dallas ou em Meu Querido Companheiro, os dois melhores exemplos até então.

    A questão do direito foi mencionada acima. Direito de ser o que é? Quanto ao amor, esse é guerra. Quanto ao filme, Ryan Murphy, o cineasta, se apropria da história em mãos para tecer uma analogia própria e intrínseca ao enredo, ou seja, constrói uma obra democrática e bilateral, de pontos de interpretação diversos junto a um dínamo ligado a todos eles, ao fator ambíguo da proposta derivado de cada personagem apresentado; ora pelo representante do presidente dos Estados Unidos que se apavora na dúvida de que a AIDS poderia ser transmitida em contato hetero, ora pelos amigos, desesperados e a ponto de explodirem, do ativista da causa Ned Weeks – Mark Ruffalo, melhor atuação da carreira, com postura de Milk, de Sean Penn, e ecos do Lincoln de Daniel Day-Lewis. Weeks também não sabe direito quais procedências tomar em relação a uma doença que deixou de ser simples endemia ou caso isolado há muito, ou em quem acreditar, senão na responsável doutora Emma Brookner (Julia Roberts, a joia do filme). Em The Normal Heart, provocações só nascem de quem ainda não sabe o que lhe agrada.

    Murphy comanda o show e seu elenco com uma serenidade e um desejo de perícia, entre causa e efeito, inesperados, em especial para um cara que não detinha provas reais do seu talento, a despeito da fraca trilha sonora aqui, que perde a chance de embalar várias sequências, num incentivo voltado a uma maior profundidade sensorial. Todavia, num filme que contém a difícil cena de uma mãe, em prantos agonizantes que, junto do namorado de seu filho infectado, deve enterrar o próprio herdeiro rejeitado pelo nojo dos médicos que atestaram seu óbito, seria previsível um clima pesado, apelativo ou cético, certo? Nada mais contraditório a tal expectativa num filme acerca do amor, que aqui sofre a desconstrução a partir de quem o sente, jamais do sentimento.

    Trilhando caminho oposto aos taxativos de plantão, o explícito da obra gira em torno da necessidade de mostrar o que é preciso na tarefa de escancarar um mundo semi-proibido, sob uma economia de recursos eficiente para uma experiência serena, informativa e bem temperada, ao longo de elementos cuja intensidade vai além de um romance de Woody Allen.

  • Crítica | A Verdadeira História de Hermes e Renato

    Crítica | A Verdadeira História de Hermes e Renato

    A Verdadeira História de Hermes e Renato

    Gravado em 2009, o filme começa após locuções pequenas de cada um dos cinco membros do grupo que viria a ser chamado de Hermes e Renato. Após as falas, Fausto Fanti inicia sua narração, contando sobre seu antigo cunhado, Sandro, que possuía uma câmera VHS e gravava os meninos, em filmagens toscas, no início dos anos noventa. Desse modo tímido, começariam as primeiras aventuras em fita, sem roteiros elaborados, somente com pautas bobas e pueris, que Fausto e Adriano Pereira (Joselito) começariam a gravar, junto com alguns outros parentes de Fanti, todos crianças ainda, pondo para fora a sua criatividade.

    Em Petrópolis, os futuros integrantes viriam a se encontrar e a brincar juntos. A partir de 1992, eles começam a registrar em cassetes as suas ideias esdrúxulas. De um modo embrionário, os meninos se reuniam para discutir alguns conceitos, gravando de modo contínuo, sem guião, somente “apertando o pause”, como dito por Sandro. Em 1994, o namoro com a irmã de Fausto terminou, e os moços ficaram perdidos, sem o seu mentor, mas prosseguiram gravando sátiras de clipes de bandas. O curioso é que todos os momentos são ricos em vídeos das épocas citadas, pontuados de modo peculiar e informativo.

    Em 1996 começou uma renovação na equipe, com a adição de Felipe Torres. Foi nesta época que surgiu o programa de auditório Claudio Ricardo, que satirizava os seus pares, como o Show de Calouros do Silvio Santos. Dali também viria o personagem Joselito, vivido por Adriano, que seria uma variação de uma figura real, um ex-cunhado de Fausto que era bastante sem noção, fazendo brincadeiras violentas com pessoas inadequadas. Esse caldeirão de influências contribui muito no humor deles, e até os ajudou a começar a se reunir na escola, onde eles encontram Marco Antônio Alves, cujas semelhanças eram enormes, pelo deboche e pela vontade de expor as ideias para o mundo.

    A música foi um divisor de águas. Ainda aprendendo a tocar seus instrumentos, eles passaram a gravar versões de músicas famosas. Nesse tempo eles conheceram Bruno Sutter, conhecido também como Chapolim, amigo de colégio de Marco, que também era músico. Ali estava o embrião do que seria Massacration e Coração Melão.

    Em 1998 a maturidade enfim chegaria, com os humoristas passando a escrever roteiros para as suas esquetes. Unindo esse ímpeto e um bocado de influência de pornochanchada, com textos repletos de palavrões e canastrices. O primeiro vídeo finalmente reuniria os personagens Hermes e Renato, com Lágrimas de um Corno. Junto a outras pequenas sátiras, enviaram uma fita, que viralizaram dentro da MTV. O contato do presidente André Mantovani foi quase imediato, graças a uma jogada inteligente de Fausto. A dupla que protagonizaria o nome do grupo viajaria a São Paulo, para conversar com a diretoria, utilizando os termos toscos e torpes, para gravar pequenas vinhetas, para passar na programação do canal.

    Com o tempo, a emissora mandaria sua equipe de produção ir gravar com eles, em Petrópolis. A partir dali o amadorismo teria de ser trocado por algo mais elaborado. A aceitação do público foi praticamente imediato. Apesar de toda a tosquice trash deles, havia um certo apuro dos moços, tosco, mas demasiado esforçado, segundo os próprios profissionais da MTV. O período deles no ar aumentaria demais, de um para quinze minutos. Os cinco integrantes se mudaram para uma casa na Lapa, em São Paulo, num apartamento minúsculo, em condições precárias, graças a um descuido de um dos produtores. Como moleques, os comediantes destruíam tudo dentro do apartamento, avacalhando tudo, fazendo fogueiras, guerras de talco, matando periquitos de estimação. Os perrengues serviram para unir o grupo em prol do objetivo em comum, de seguir nessa carreira artística.

    Em 2001 eles se mudaram de vez para São Paulo, com o acréscimo de um programa de trinta minutos, sempre com esse viés canalha e tosco, de ver o mundo e de fazer comédia. O documentário contempla alguns dos personagens mais famosos do grupo, dentre eles, o Gil Brother, que deixava aos poucos de ser um simples personagem para tornar-se quase como um sexto membro da equipe, a atenção da câmera dispensada a ele obviamente era mais curta, possivelmente graças ao processo que Jaime Gil da Costa movia contra eles.

    Os assuntos polêmicos eram subalternos no documentário, que preferia focar na inventividade do quinteto e nas propostas de trabalho em multi-plataformas, e claro, visavam tornar o grupo ainda mais popular. Destacando a trajetória do Unidos do Caralho a Quatro, enquanto zueira de escolas de samba, até chegar às ideias que calhariam no Massacration. Os momentos históricos do grupo dentro da MTV são examinados de modo rápido, mas ainda assim detalhadíssimos, como no período em que dublavam o Tela Class, cujo esmero era enorme e a repercussão era pequena em comparação com o esforço.

    Os setenta e um minutos não contemplam as novelas, Sinhá Boça e O Proxeneta, tampouco falam dos momentos espinhosos, como a saída da MTV e entrada na Record, que aconteceria logo depois da feitoria do filme. O tom do discurso é emocionado, como uma biografia sentimental, que louva a amizade e o árduo trabalho que garantiu a eles uma trajetória que, guardadas as devidas proporções, foi muito exitosa e repleta de talento, influenciando a geração de espectadores que viria, sem descuidar de seus próprios gostos e do que eles achavam por bem publicar. A fala de Felipe Torres é emblemática, de que o desejo dele seria envelhecer fazendo o que gosta, como Chico Anysio, claro, com os seus camaradas. Ademais o pouco aprofundamento dentro da programação de H&R, a fita serve perfeitamente como memória afetiva, não só do grupo, mas também como recordatório e biografia de Fausto Fanti.

  • Crítica | Quando Eu Era Vivo

    Crítica | Quando Eu Era Vivo

    A despeito de toda a discussão sobre a produção de filmes de terror no Brasil, Marco Dutra constrói seu novo filme, Quando eu era vivo, de maneira bem elaborada, a começar por um vídeo caseiro que se vale de easter eggs interessantes. O vídeo, protagonizado por uma personagem mirim que faz a gravação em uma câmera super 8, remete a lendas urbanas conhecidas, como a do malfadado boneco do Fofão, que segundo a sabedoria popular, continha em seu interior uma adaga para rituais satânicos. A sessão de créditos que inicia o filme com uma trilha de piano ao fundo, destaca um elenco incomum, ao mesmo tempo que insere o espectador em sua curiosa trama, baseada no livro A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli.

    Os passos largos e o andar vagaroso marcam o desgosto de José Marques Júnior (Marat Descartes) ao voltar a viver na casa dos pais. Em seu semblante, já se nota um humor que beira a depressão, motivado pelo casamento fracassado e por sua condição de desempregado. Ao chegar, Júnior é recebido por seu pai, Zé Marques Sênior (Antonio Fagundes), que tenta ser positivo a todo custo, evitando qualquer assunto embaraçoso. A distância entre os dois é notada nos diálogos pouco profundos, que tangenciam apenas atividades corriqueiras e banalidades a respeito das reformas no prédio e na casa.

    Na casa de seu pai, Júnior observa o tempo passar sem qualquer entusiasmo, até que conhece a inquilina Bruna, uma estudante de música vivida por Sandy Leah. Estonteado por sua beleza, ele dá vazão a algumas fantasias sexuais, intercaladas por sonhos de retorno a sua infância. Acordar na sala de seu pai o faz perceber o enorme peso da rotina em sua vida, o que o impulsiona a buscar ansiosamente qualquer coisa que ocupe sua mente. O vazio de seu pensamento e de sua alma fazem dele um hospedeiro ideal para a obsessão que se apresenta quando resolve explorar o quartinho que guarda toda a velharia de sua família.  Motivado por seu novo objetivo, Júnior ignora o pedido de seu pai para que ele não mexa no quarto, mergulhando no mar de lembranças de seu irmão e sua mãe, que não estão mais presentes em sua vida.

    Logo,  o personagem encontra uma fita de 1985-86 com cenas de recordações familiares que chamam sua atenção, como um misterioso ritual realizado por sua mãe, envolvendo Júnior e o irmão quando crianças. Remexer no passado e nas lembranças da mãe traz alguns incômodos na relação com seu pai, que se recusa a lembrar da esposa e busca dar um novo rumo a sua própria vida, sugerindo ao filho que faça o mesmo.

    Algo muito complicado parece ter acontecido no passado da família, uma situação misteriosa e traumática que dividiu os seus membros e os fez ficarem ainda mais distantes com o passar dos anos. Júnior começa, então, a  apresentar sintomas de uma doença de origem misteriosa, com febre e uma perene dor de cabeça, que remetem diretamente aos vídeos em que sua mãe fazia moldes de gesso das cabeças dos filhos, sob o pretexto de obter boas vibrações. Segundo o pai, essas eram práticas de ocultismo, que não o incomodavam propriamente, mas que teriam levado a esposa à loucura.

    Em sua busca obsessiva, o protagonista encontra uma partitura antiga que entrega a Bruna. A música, ao ser entoada, produz em Júnior uma reação estranha, uma contorção corporal epiléptica, originada no mundo espiritual. A partir desse momento, ele muda sua postura e começa a agir de modo estranho. O mistério e ambiguidade de suas ações, o fazem questionar qual seria a real origem de seu novo comportamento, uma possessão sobrenatural ou um problema de ordem mental.

    Isso aguça ainda mais a curiosidade de Júnior e Bruna, que passam a explorar o passado e a música da falecida matriarca. Ele começa, então, a agir de modo ainda mais estranho, refutando qualquer aproximação que ameaçasse a memória de sua mãe ou de seu irmão, internado em um sanatório. Até seu pai é obrigado a tratá-lo como uma criança, colocando-o de castigo após suas reações violentas.

    Quando Eu Era Vivo consegue reunir elementos comuns a filmes estrangeiros do gênero, como os sacrifícios profanos, tocando em questões profundas, sem abrir mão da brasilidade. O modo como Marco Dutra conduz a trama é interessantíssimo, conseguindo equilibrar o tédio apático da vida decadente de um divorciado, com o grotesco terror de histórias enterradas no passado.

    A atuação dos atores escalados é delicada e proporciona maior afinidade com cada figura da trama. Dessa forma, Dutra sustenta cenas díspares de modo harmonioso e consegue garantir momentos de medo e pavor sem quebrar a empatia do espectador pelos personagens. As cores que marcam o tom desbotado dos tecidos na fotografia do filme, e o enredo macabro, mostram algo muito além do costumeiramente encontrado no mercado de filmes de terror, o que faz da película,  uma obra especial dentro do gênero.

  • Crítica | A Grande Vitória

    Crítica | A Grande Vitória

    A Grande Vitória

    Demonstrando o bom momento do cinema nacional que se expandiu além dos filmes de mazelas sociais ou excessivamente formatados por patrocinadores, A Grande Vitória apresenta uma tradicional história esportiva que parte da trajetória de Max Trombini como argumento fundamental em defesa do esporte.

    Baseada no livro Aprendiz de Samurai, escrito pelo próprio Trombini, a trama dirigida por Stefano Capuzzi inicia-se com um profundo mergulho memorialístico. Vivendo em uma casa simples com sua mãe e os avós, o jovem Max tem como figura patriarcal o avô, que, ao lado das pequenas pílulas de sabedoria madura, ensina-lhe golpes de judô. Após brigas na escola que quase geram uma expulsão, o garoto é orientado a praticar o esporte como forma de conquistar disciplina e responsabilidade.

    A trajetória inicial do personagem atravessa uma tradicional narrativa de uma família humilde que, com esforço, dedica-se a estruturar o futuro do garoto. Ciente de uma vida modesta, Max dedica-se com amor ao esporte e faz dele um objetivo de vida rumo a um sonho: competir pelo Brasil nas Olimpíadas. O roteiro da produção é simples, mas enfocado de maneira ideal no personagem do garoto. O drama equilibra-se de maneira sensível, sem parecer exagerado ou fatalista, e ainda consegue expandir temas sobre conflitos naturais da juventude – como o reconhecimento, a procura da identificação própria e a busca pelo pai ausente de Max – sem que se perca o cerne da trama centrado no esporte. Algo que produz uma carga emotiva bem delineada entre os conflitos exteriores e a força interna, evidenciada pela trilha composta pelo maestro José Carlos Martins – inspirada nas obras de Bach –, que dá o tom magistral da jornada em composições que utilizam o piano como base melódica.

    Em seu primeiro papel cinematográfico, Caio Castro, que interpreta o personagem central, é apoiado por Tato Gabus Mendes, o primeiro mestre sensei do garoto e quem o acompanha em sua trajetória. Os dois personagens produzem a tradicional equipe de mestre e aprendiz e demonstram muita dedicação em cena, como se os próprios atores acreditassem na história que estão contando. Na infância do personagem, a trama conta ainda com Rosi Campos como a diretora do colégio; Moacyr Franco, que faz o simpático avô de Max; o próprio Trombini sendo testemunha de sua história como um professor de educação física; e Carlos Massa, o Ratinho, em uma pequena participação como um dono de supermercado que apoia o início de carreira do judoca. Porém, ao contrário do que possa ser pressuposto no cartaz, o papel de Sabrina Sato não merece o destaque exagerado oferecido pelo pôster. Mesmo que seja um personagem importante e definidor na história de Max, seu tempo em cena não ultrapassa 10 minutos, e Sato está longe de manter-se ao menos na base de uma interpretação crível, levando-nos a crer que sua figura conhecida talvez tenha sido o motivo de apelo para figurar na divulgação.

    Defendida com paixão, a produção é um filme esportivo e sensível. Uma biografia registrada de um aprendiz, que parece nunca escolher os caminhos mais fáceis.

  • Crítica | O Herdeiro do Diabo

    Crítica | O Herdeiro do Diabo

    O Herdeiro do Diabo

    Desde A Bruxa de Blair que os filmes de terror têm se utilizado da câmera em primeira pessoa para tornar suas tramas ainda mais assustadoras e pessoais, utilizando o intimismo deste formato para aproximar a história do temor imaginável e da realidade palpável. A fórmula ganhou uma franquia lucrativa, a partir de 2007 com Atividade Paranormal, onde o filão ficou ainda mais barato, se eximindo de ter bons atores em nome da situação ficar ainda mais real, já que emula-se um amadorismo nas câmeras. O Herdeiro do Diabo (Devils Due) lembra muito a franquia iniciada por Oren Peli, ainda que mexa com outros tantos temores.

    Um dos graves problemas do filme é a completa falta de carisma dos personagens. A dupla recém-casada, formada por Samantha (Allison Miller) e Zach McCall (Zach Gilford) começa a história numa viagem de lua de mel malfadada, em terras estrangeiras, e após um porre homérico eles voltam para casa, descobrindo que tem uma gravidez deveras cedo. Após isso, o registro em vídeo do futuro pai mostra que a esposa começa a agir de modo estranho e paranoico, variando as imagens entre sua câmera e outras filmagens de vigilância. O inconveniente é que nem uma e nem outra são cativantes e não despertam praticamente nenhuma curiosidade em seu espectador.

    A fita dirigida pela dupla Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett se vale do viés mitológico ligado ao apocalipse cristão, iniciando sua narração com trechos da Bíblia Sagrada, remetendo ao nascimento de inúmeros anticristos pelo curso da história. Curioso é que tal coisa já havia sido feita recentemente, em O Último Exorcismo, que fazia mais questão de disfarçar tal coisa. O grande twist é evitado nesse filme de 2014, já deixando claro que será a mesma temática de A Profecia e O Bebê de Rosemary, mas sem a sutileza de Donner ou Polanski, dando lugar a uma abordagem das mais manjadas.

    Uma das poucas coisas válidas são os sinais que ocorrem em volta de Samantha, ainda que estes não sejam sutis, tampouco bem interpretados, os muitos rompantes de violência não são plenamente explorados graças a câmera trêmula, que não permite olhar a expressão facial de Alllison Miller, que leva mais jeito do que qualquer protagonista de Atividade Paranormal. Mesmo assim a direção segue irritante, levantando a possibilidade de forças malignas estarem manipulando até as filmagens – uma quebra da quarta-parede desnecessária e pretensiosa, que piora com os aspectos visuais demasiado grotescos.

    Nem mesmo os sustos valem muito o interesse do público ávido por tal artifício, até as discussões de relação causam mais medo do que as tomadas em ambientes escuros, sem qualquer produção de suspense. Algo milenar e que causa tanto medo na população geral desde então deveria ter uma abordagem mais assertiva e menos variante. A troca das câmeras é confusa e fica ainda mais evidente quando Zach resolve investigar o que acontece de errado com a sua esposa.

    O filme muda de gênero, deixando de ser um sub-produto de terror para virar uma amostra de poderes paranormais sinistros, lembrando muito o recente Poder Sem Limites, obviamente muito mais galhofado e imberbe. Os fatos que seguem perdem a razão e o sentido com a investigação mal realizada pelo sujeito que deveria ser o sustentáculo da família. Até o seu ethos é traído, com o ânimo dobre de Zach sendo mostrado, ao não saber se abandona os não pretensos membros de sua família. Outra incoerência enorme é o personagem manter a câmera segura a despeito de toda a perseguição que sofre ao tentar chegar ao âmago do sinistro nascimento. O desenrolar foi tão esquizofrênico que os créditos acabam com uma música alegre, afirmando que tais coisas irremediavelmente aconteceriam, pois antes dos reclames, a cena inicial de lua de mel se reprisa com outro casal e em outro canto do mundo, mostrando a inexorabilidade destes preceitos, e claro, jogando uma pá de cal em cima de qualquer bom senso que poderia ocorrer com os realizadores. Nada em O Herdeiro do Diabo é coerente ou bem construído, fazendo dele um sub-produto ainda mais inferior à franquia Atividade Paranormal.

  • Crítica | A Minha Casa Caiu

    Crítica | A Minha Casa Caiu

    A-Minha-Casa-Caiu

    O ofício do jornalista televisivo, especialmente daquele que entra ao ar em tempo real, envolve uma série de contratempos possíveis, como ações inesperadas da natureza, atitudes de populares e confusão com palavras ou sentenças capciosas. O início do filme de Steven Brill, Walk of Shame mostra exatamente isto com uma sequência de trapalhadas de comunicólogos, âncoras, repórteres e comentaristas, como a protagonista Meghan Milles (Elizabeth Banks), cuja ambição inclui apresentar o KZLA, principal informativo do canal 6, onde trabalha.

    Em meio à subida na carreira que tanto tenciona, a protagonista é abandonada pelo namorado, algo que até então não foi mostrado ou construído, mas que abala muito o bem estar da moça. Paralelo a isso, há a sua recusa para a vaga de apresentadora. Motivada por suas amigas mais próxima, vai para uma balada e lá se enfia numa ode ao álcool e à boêmia. Sua jornada é estranha, até encontrar Gordon (Jamers Marsden), um galante bartender e escritor que a leva para a casa dele, uma vez que ela está ébria demais para dirigir.

    A altura dos dezenove minutos de fita, uma reviravolta ocorre, e a moça eleita para o jornal é afastada por motivos de polêmica sexual, uma vez que fotos íntimas da moça vazaram. Isso faz com que Megan seja a escolha regular para o trabalho, já que não se meteu em sarilhos semelhantes. Para atender à ordem de seu empresário, decide ir embora, e a partir daí começa uma longa cruzada pela cidade que envolve uma série de confusões, quase sempre estabelecendo uma indefinição entre o seu emprego e serviços de prostituição – talvez a sacada mais engraçada do roteiro.

    Depois de se enfiar em situações das mais loucas com traficantes do “gueto”, ela tem de recorrer ao seu temido ex-noivo para tentar sair daquela situação, mas como já era esperado, ele não a ajuda. Ela vivencia muitas das coisas comuns à vida dos que vivem à margem da sociedade, assim como aprende um pouco o modo de operar das gangues comerciantes de crack. O desfile que ela faz vestindo um Marc Jacobs de cor amarela – um refinado vestido, segundo um dos personagens – só grafa ainda mais a maluquice que é a sua odisseia.

    A experiência de Steven Brill com comédias (A Herança de Mister Deeds e Meu Nome é Taylor) não o resguardou de erros primários, como o de estabelecer as possibilidades humorísticas em avatares não confiáveis, a começar pela atriz principal. Elizabeth Banks é bonita, mas nunca foi capaz de segurar sozinha a jocosidade de seus filmes. Quando acompanhada de profissionais mais experientes como Seth Rogen, Paul Rudd ou Steve Carell, funcionava, sendo na maioria das vezes escada para os comediantes. Outro fator fraco é o excesso de piadas baseadas em sotaques de estrangeiros e de grupos minoritários.

    A comicidade das situações dificilmente alcança o espectador, especialmente aquele (mal) acostumado aos longas de Judd Apatow e Kevin Smith nos quais Banks brilhou antes. A tentativa de transformar o comunicador da notícia na notícia em si – uma vez que a “moça de vestido amarelo” vira um evento – poderia ser um artifício interessante, mas a premissa não se concretiza como algo realmente válido. Pouco antes do final, a moça que não conseguia um dólar e meio para o ticket de ônibus tira um coelho da cartola, arrumando um helicóptero em meio à hora do rush, numa manobra deus Ex Machina. Ela chega ao ponto em que opera o milagre do quarto poder estadunidense unicamente para contestar a principal história e passar à audiência uma mensagem edificante, que acaba gerando a possibilidade de mergulhar no jornalismo investigativo, em um reality show. Mas tudo isso é posto de lado em nome do novo casal que surge ao horizonte, mas que não convence em momento algum, visto que não há qualquer química entre o casal. A Minha Casa Caiu entrega uma comédia de erros previsível: não ofende o público, porém causa pouquíssimo alento.

  • Crítica | Sabotage

    Crítica | Sabotage

    Sabotage

    A ação desenfreada é notada logo nos primeiros segundos de filme, pouco após os créditos do estúdio. Uma situação de sequestro é aventada e assistida por John ‘Breacher’ Wharton, personagem do geriátrico astro de ação Arnold Schwarzenegger. Logo após o preâmbulo, uma ação impingida pelo esquadrão do DEA é executada, muito semelhante ao tom do segundo filme da franquia Os Mercenários, logicamente com um cunho muito menos galhofado. Sabotage é um legítimo tributo aos bem montados filmes de ação oitentistas, com uma dose de violência ainda mais evidente, graças a classificação etária elevada.

    Apesar de toda a construção do mundo comum que contemplaria mitologias semelhantes a Comando Para Matar e Cobra, as semelhanças são interrompidas, para dar lugar a uma trama um pouco mais séria. Na tal ação mostrada no começo há um roubo aos espólios do cartel, cuja soma excede dez milhões de dólares, e todo o grupo liderado por Breacher passa a ser suspeito, tendo os seus passos seguidos e monitorados por outros agentes da lei. Com o tempo, o caso é arquivado, e John é liberado para reunir seu esquadrão novamente, já que ninguém mais dentro da agência confiaria ou daria crédito a ele.

    A retomada é acompanhada de uma série de eventos suspeitos, em que os subalternos a Breacher vão sendo abatidos, como em uma “Queima de Arquivo“. A experiência de David Ayer em conduzir thrillers policiais o faz uma ótima escolha para conduzir o drama cheio de mistérios, conspirações, assassinatos e traições. A questão de mexer com cartéis de drogas já havia sido abordada em Dia de Treinamento, cujo roteiro era seu, assim como em Marcados Para Morrer, onde sua câmera na mão era o meio pelo qual contava sua história. Em Sabotage, o aspecto parece mais aprimorado, visto que ele usa a primeira pessoa para grafar algumas das sensações conflitantes dos personagens, como Paul Greengrass cansou de fazer na Trilogia Bourne.

    O personagem cujas nuances são mais verificadas pela câmera é a da investigadora Caroline Brentwood, vivida por Olivia Williams. Ela é a responsável pelo departamento de homicídios, por verificar a origem dos assassinatos ao grupo de federais. A investigadora é o alvo perfeito para a inserção do público na história, inclusive ao tomar noção das questões pessoais e de vingança que motivam Breacher.

    A questão é que, com o tempo, Caroline se vê em uma encruzilhada moral, entre ter de acreditar em John – já que ela, de maneira ingênua, se envolve emocionalmente com ele – ou dar prosseguimento a investigação da qual ele é um dos principais suspeitos. O roteiro de Skip Woods e Ayer consegue passar uma tensão interessante na troca de acusações entre os parceiros de ações, conseguindo bons momentos a despeito até das já esperadas atuações pífias de Sam Worthington, fazendo o ciumento e segundo em comando Monster.

    Não há qualquer complacência com o receptor, a fita inteira é violentíssima e completamente não condizente com o grande público, mesmo para o fã de filmes de ação do austríaco é necessário um pouco de estômago para tragar este Sabotage. A sanguinolência faz lembrar os filmes gore de terror, ou os espécimes de Quentin Tarantino e Takashi Miike, mas sem a capa de exagero irrealista típica da filmografia dos dois diretores. Todas as dilacerações são plenamente justificáveis dentro da lógica do filme, não existe qualquer pedido abusivo de suspensão de descrença.

    O peso dos anos denegriram o físico de Arnold, mas também o tornou um bocado mais afeito a passar através de suas expressões alguns sentimentos que antes não eram possíveis ver em suas participações. Seu papel permanece o de um homem duro e talhado pelo destino, com características de brucutu, mas ao analisar o seu rosto, nota-se uma carga escondida atrás do semblante fechado. Não há como esperar algo semelhante a Brando ou Pacino, mas nota-se que o papel encaixa bem em suas pretensões. As limitações dele servem à trama, a rigidez com que ele se move propicia um álibi perfeito, fazendo dele um improvável suspeito para quaisquer atos possivelmente ruins.

    Nos minutos finais o filme muda de gênero, fazendo crer que toda retórica mostrada antes era um despiste, um mcguffin para a questão maior, ligada à motivação do personagem principal. Toda a trajetória de John Wharton é muito bem construída, e é isso que faz com que o público compre a sua proposta e se afeiçoe a ele, claro, com a ajuda da face carismática de Schwarzenegger, mas sem abrir mão de uma condução de trama muito competente, como é a levada por David Ayer.

  • Crítica | Bistrô Romantique

    Crítica | Bistrô Romantique

    Bistrô Romantique

    Saudade é um termo encontrado somente no dicionário brasileiro, e que, cada vez mais, sofre tentativas de ser equiparado por outras culturas em línguas estrangeiras. Marcada pelo nostálgico sabor que a vida tem, provado ao lembrar das emoções que um dia fizeram bem, ou que ainda fazem falta, essa sensação conflita com a realidade e pode provocar frustração ou raiva no coração de quem sofre. Joël Vanhoebrouck faz uma sábia escolha ao eleger um bistrô para representar essa impressão nostálgica e para contar suas histórias em Bistrô Romantique.

    O cenário do filme toma forma como um personagem ativo dentro da rotina daqueles que o frequentam. O bistrô, chamado de Brasserie Romantiek – como no original belga – pertence a Pascaline (Sara de Roo), uma resignada mulher de meia idade que demonstra estar muito incomodada com o misterioso retorno de alguém do seu passado, Frank, vivido por Koen De Bouw e cuja presença é incapaz de reconstruir uma intimidade que não existe mais.

    Um dos momentos mais peculiares e tragicômicos do filme é o drama de Walter (Mathijs Scheepers), um sujeito inseguro e que se considera “o mais maçante dos homens da Europa Ocidental, pelo menos“. Ao marcar um encontro às escuras, Walter não imagina que a mulher que conheceria pudesse ser tão estonteante quanto ele jamais imaginou, além de direta em suas intenções. A surpresa do encontro com Sylivia, genialmente interpretada por Tine Embrechts, faz com que ele saia correndo até o toalete para se encher de coragem, consultando a única pessoa que conhece, o espelho, onde mora a sua segunda personalidade, muito mais contundente e direta.

    No eco de seu anseio por tornar-se alguém mais forte, Walter não encontra resposta, dialogando somente com sua própria solidão. Para sua surpresa, e também do espectador, seu único e enfadonho assunto causa volúpia na mulher, fazendo com que ele entre em um pânico legítimo, lentamente diluído graças à necessidade de romper com a sua timidez, mesmo que a contragosto. É curioso como a ambiguidade atua na psiquê de Walter, mostrando duas facetas de um mesmo homem e da musa que está a sua frente.

    O pequeno ambiente compartilhado do bistrô comporta um multiverso, uma porção de mundos que coexistem no mesmo espaço físico, desafiando a máxima de que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar. Por ser um ponto de encontro comum para tantos casais, o bistrô é visto como um clichê que incomoda a personagem Roos (Barbara Sarafian), que vive uma crise conjugal silenciosa e unilateral desconhecida por seu marido, Paul (Filip Peeters), um homem muito mais preocupado com as suas conquistas profissionais do que com qualquer outra situação.

    A indiferença de Paul faz que com que ela experimente um misto de inveja e desprezo pelos pares mais jovens, questionando, de modo pessimista, o futuro desses relacionamentos, e descobrindo que algo que antes era tão valioso, não possui mais vida ou substância. Ela está desiludida e desacreditada no futuro da sua relação conjugal, o que a faz perder o medo e o respeito próprio ao contar suas indiscrições com tanta sinceridade. Sua jornada mostra que há coisas muito mais flagrantes que a infidelidade conjugal, especialmente no que toca o orgulho ferido de uma mulher.

    Apesar da força das histórias paralelas, o drama de Pascaline ainda conquista a atenção do público. A sua história amorosa foi interrompida por décadas, e bate à porta de modo repentino. Com uma proposta tentadora, mas também inconsequente, Pascaline não consegue abandonar as responsabilidades de seu cotidiano, o que a impede de pensar em vôos mais distantes. Mais do que isso, tanto para Pascaline, quanto para as outras personagens que se mostram mesa a mesa, dói mexer no passado e revirar o porão da alma, o que prova que esse não é um exercício de fácil acesso, tampouco de agradabilidade garantida.

    Talvez, a mais catastróficas das historietas seja a de Mia (Ruth Becquart), que pensa diretamente em suicídio e no fim de sua triste existência. Apesar do pouco que se sabe sobre seu passado, ela representa a coragem que nenhuma das outras mulheres sofredoras têm. Nem Pascaline consegue prosseguir em sua jornada, nem Roos consegue ir em frente e desfazer o enlace matrimonial que a martiriza tanto. É a mais jovem delas que, munida da possível ingenuidade de seus poucos anos de vida, tem a presença de espírito de assumir o desejo impraticável.

    Embora quisesse dar vazão ao seu desejo, Pascaline é inibida por aqueles que precisam dela, especialmente Angelo (Axel Daeseleire), seu irmão, sócio e também chef do Romantiek, que tem pela irmã um apreço muito grande, além de uma dependência emocional e profissional exacerbada, já que foi Pascaline quem o ajudou quando tornou-se viúvo e responsável por cuidar de sua família. Ao saber da vontade da irmã, ele entra em desespero e larga seu posto no meio da noite que deveria ser a mais romântica do calendário.

    Rooss, Walter e Mia falham em criar expectativas e em construir castelos de areia, pois não se sujeitam ao risco de serem submersos pelo natural movimento das ondas no mar. Eles acabam se escondendo em suas próprias fantasias, em uma fuga da realidade, que, de certa forma, os permite buscar um meio de subsistir e encontrar as soluções para as perguntas da vida. Possivelmente, essas não são as respostas mais otimistas, mas são as mais acertadas e condizentes com a realidade. Cada um a seu modo supera os seus próprios demônios e temores, enterrando-os no lugar que lhes é de direito.

    Pascaline também confronta seu par, fazendo a pergunta que estava presa em sua garganta por intermináveis vinte e três anos. Seu grito é liberado e bradado aos quatro ventos, porém não consegue transformar a realidade que a cerca.

    Talvez, a maior magia de Bistrô Romantique seja a sensibilidade com que Vanhoebrouck consegue equilibrar sentimentos como piedade, resignação, abandono, pena, perda, luto, ciúmes, medo da solidão e claro, sem descuidar de contar, em tão pouco tempo de filme, uma gama de histórias ricas em detalhes.

  • Crítica | Guerras Sujas

    Crítica | Guerras Sujas

    DirtyWars-Cover

    Não é novidade que os EUA são a maior máquina militar que a humanidade já produziu, além de ser um império que põe e tira governantes em países ao redor do globo a seu bel-prazer. Portanto, mexer no tema do militarismo americano sem cair no lugar comum se mostra atualmente uma tarefa relativamente complicada, mas que o documentário Guerras Sujas, baseado no livro homônimo de Jeremy Scahill, indicado ao Oscar em 2014, consegue fazer bem.

    Jeremy Scahill é um repórter investigativo da revista Nation, especializado em cobrir conflitos ao redor do planeta, passando por lugares como a Nigéria e o Kosovo. Seu livro anterior, sobre os mercenários da Blackwater, empresa militar que prestou serviços ao exército americano durante a guerra do Iraque, denunciou vários crimes cometidos por seus soldados dentro do país. Um verdadeiro escândalo seguiu a publicação do livro, com entrevistas de jornais e audiências no senado americano, onde o repórter tentou fazer com que os autores de tais crimes fossem condenados, mas não conseguiu, ao enfrentar o pesado establishment militar americano, com aliados poderosos na mídia. O máximo que conseguiu fazer foi a Blackwater trocar de nome, chamando agora Academi.

    Tamanha desilusão com o fruto de seu trabalho quase fez Scahill desistir de cobrir conflitos e voltar à sua pacata vida em Nova Iorque, mas logo ele estava de volta, cobrindo a guerra no Afeganistão. Lá se depara com o tema de sua nova produção, o novo modelo de guerra travada pelos EUA. O filme é dividido em quatro partes, contando diferentes formas de ação dos EUA pelo mundo: no Afeganistão, Iêmen, Somália, e um ataque de drones que resultou na morte de dois americanos.

    Ao entrevistar uma família que mora em Gardez, uma região do Afeganistão dominada pelo Taleban, Scahill se depara com evidências de que vários membros familiares, inclusive mulheres grávidas, foram executados por americanos em uma noite. Através de depoimentos e outras fontes alternativas, ele toma ciência de uma equipe tática chamada J-SOC (Joint Special Operations Command), que teria feito o ataque a essa família afegã. Ao se deparar com esse caso, Scahill tenta torná-lo público e denunciá-lo, mas novamente é barrado em todas as tentativas. Somente a exposição de um vídeo de celular, em que vozes americanas são ouvidas e é possível ver pessoas mexendo nos corpos da família executada, é que garante ao caso certa notoriedade.

    Após sair do Afeganistão, Scahill vai ao Iêmen investigar também um caso estranho de um suposto ataque americano a uma vila. Estranho, porque o Iêmen não se encontra em guerra com os EUA, ou tampouco consta em qualquer lista de países hostis. No entanto, ao chegar lá, ele se depara com evidências da destruição de uma vila inteira feita por um míssil Cruiser. Novamente, mulheres e crianças entre os feridos e os restos do míssil nem sequer haviam sido removidos.

    Na Somália, Scahill tem contato com verdadeiros “Senhores da Guerra” que, financiados e treinados pelos EUA, promovem o terror oficial na região em lutas intermináveis, responsáveis pela completa destruição do país. Trocando constantemente de lado, de acordo com o interesse da época, os EUA equilibram a balança ao, em cada hora, apoiar um comandante diferente, mantendo a instabilidade e o conflito eternos na região.

    A última parte do filme fala sobre Anwar Awlaki, um cidadão americano e muçulmano que foi mudando de posição com o passar dos tempos. De um moderado, condenando de forma enfática o terrorismo após o 11/9, a um incentivador do terrorismo nos dias atuais. Scahill investiga a fundo o que causou essa mudança em Anwar Awlaki e observa que a causa disso está na mesma razão pela qual o terrorismo não pode e nem será vencido com uma guerra. A cada ataque militar ou de drones com baixas civis, o ódio aos EUA aumenta e as fileiras das organizações terroristas crescem de voluntários. Após a morte de Bin Laden, Anwar Awlaki é alçado ao posto de novo inimigo público número 1, até ser morto por um ataque de drones em 2011. O que causa ainda mais espanto é a revelação de que o filho de 16 anos de Anwar Awlaki, também americano, Abdulrahman Anwar al-Awlaki é morto de maneira semelhante, para evitar uma possível retaliação do filho pela morte do pai, revelando a lógica doentia do militarismo americano. Aqui talvez resida a maior falha do filme, ao tentar tornar a morte de crianças algo ainda mais sensível do que já é, através de recursos, como câmera lenta e imagens de rostos em preto e branco.

    Por fim, ainda temos a revelação de que o uso de tais mecanismos, como de mercenários e drones, não só foi mantida, como incentivada pela administração Obama, mostrando que não há muita diferença entre republicanos e democratas no manejo da chamada Guerra ao Terror. Scahill inclusive faz uma contundente crítica a esse modelo privatista, desumano e especialmente contraproducente de guerra, pois esta se auto alimenta, sendo, portanto, sem fim. Gerando mais morte e destruição, fora e dentro dos EUA. Também há uma interessante crítica ao fato de os americanos terem comemorado a morte de Osama Bin Laden, como se ela representasse algo na política externa dos EUA, quando na verdade não alterou em nada o jogo. Também há uma crítica ao fato das J-SOC terem alcançado o status de popstars após terem executado o líder da Al Qaeda.

    Apesar de o filme não trazer muitas informações novas para quem acompanha o noticiário internacional, ele nos ajuda a amarrar algumas pontas soltas e relacionar conceitos que esclarecem a verdadeira intenção e ação dos EUA atualmente. Dessa forma, a crítica desta produção se direciona a esse novo modelo de guerra utilizado pelos EUA. Uma guerra total, onde o planeta Terra é um campo de batalha e todos os seus moradores são possíveis inimigos, e a menor suspeita, por mais fraca que seja, é o suficiente para alguém ser morto sem justificativa ou prestação de contas. É uma visão assustadora para o futuro, que ganha cada vez mais adeptos, onde qualquer pessoa é um potencial inimigo e isto lhes dá direito suficiente para tirar uma vida. Onde a tecnologia é usada não para a libertação humana, mas sim para promover o terror oficial, que por sua vez promove o terror de grupos fundamentalistas. Se retroalimentando ao custo das liberdades, e pior, vidas humanas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | Cine Holliúdy

    Crítica | Cine Holliúdy

    CINE-HOLLIUDY

    Na década de 70 a televisão chegava aos lares nordestinos. Casas de famílias abastadas eram cobiçadas pelo fato de possuírem o aparelho que, assim como em escala global, modificou o entretenimento no interior do Ceará. A mudança vinda com a chegada da televisão parecia tão definidora que políticos utilizavam o aparelho em suas campanhas como forma de conquistar o povo. Diante desta novidade, o cinema parecia ameaçado por esta revolução.

    Reverenciando a sétima arte, Cine Holliúdy narra a saga de Francisgleydisson, um brasileiro resiliente, casado, pai de um menino, e que viaja de povoado a povoado Ceará adentro exibindo diversos filmes para um público variado. A história é considerada a primeira a ser falada no dialeto local, o cearês, o que justifica a exibição de legendas no longa-metragem para o público que desconhece o sotaque. Ao utilizar uma linguagem local, a produção demonstra a pluralidade de pronúncias regionais do país, enriquecendo uma trama que se torna universal por meio da paixão ao cinema, dando ao público maior imersão nesta realidade.

    Como um projetista itinerante, o personagem central e sua família carregam consigo parte da representação da sétima arte. São os fornecedores do momento em que a realidade entra em suspensão e a atenção e foco estão centrados num espaço em branco capaz de contar qualquer estilo de história. Dentro de um estado ainda rudimentar em relação à urbana região sudeste, o cinema representa a quebra da rotina, uma fuga que abre outra janela diferente da observada dia a dia. Mesmo sentindo-se uma relíquia em tempos do surgimento televisivo, o personagem prossegue em sua profissão, como uma sina, uma luz que leva ao povo o divertimento e uma pílula de cultura.

    Ao mesmo tempo em que dialoga com muito carinho sobre a experiência cinematográfica, a narrativa demonstra o quão transformadora é esta jornada para o público. Mesmo que momentaneamente, as cidades se modificam após as sessões de exibição de aventuras variadas: chineses que desejam vingança, lutadores melhores que Bruce Lee e, quando calha do velho projetor falhar, surge em cena o próprio Francisglaydisson para acalmar os ânimos e, como um contador de histórias orais, prosseguir a narrativa.

    A cena em que o ator Edmilson Filho relata as futuras cenas do filme que era exibido, não fosse um problema no projetor, é talentosa e demonstra o amor do personagem pelo cinema, ao mesmo tempo em que traz comicidade pelas imitações exageradas. Como se a produção rompesse a barreira entre o público e se transformasse em um diálogo entre amigos cinéfilos que repassam as melhores cenas assistidas. Tentando salvar a noite do fiasco, o próprio projetista se transforma na ação central e sintetiza a força da arte e do cinema como comunicação.

    Ao demonstrar o conflito entre a televisão e o cinema e a força da arte, a produção conseguiu destaque também fora das telas. Mesmo com poucas cópias em exibição, conseguiu uma excelente média de bilheteria, ultrapassando números de blockbusters em relação à quantidade de público x cópias em circuito. A obra comprova o bom momento vivido pelo cinema brasileiro e evidencia – como muitos outros veículos destacaram – que é possível contar histórias sem o uso da nudez de atores, um onipresente background político-militar ou a utilização da estética da pobreza para contá-las. Uma bonita narrativa cinematográfica made in Ceará.

  • Crítica | Guardiões da Galáxia

    Crítica | Guardiões da Galáxia

    guardiões da galáxia

    Os filmes de super-heróis se consolidaram com um gênero cinematográfico de tal maneira, que os vídeos estão cada vez mais parecidos com os quadrinhos. Não no sentido de fidelidade nas adaptações, mas em estruturas que podem ser reconhecidas em ambas as mídias. Temos continuações, cronologias confusas, reboots, e no meio desse emaranhado, fãs discutindo qual é o melhor. Agora, realizadores tentam faturar um pouco mais com personagens de baixo escalão. O segredo, nesses casos, parece ser a pouca pretensão por parte de quem produz e as baixas expectativas por parte de quem consome. Guardiões da Galáxia partiu da desconfiança total para uma leve curiosidade, e acabou se revelando mais um acerto do Marvel Studios.

    Embora exista há décadas e tenha passado por várias reformulações, o grupo nunca foi muito conhecido, nem mesmo entre os leitores de HQ. Até porque, a parte cósmica do Universo Marvel sempre foi um nicho dentro de outro. Entretanto, isso permitiu grande liberdade na hora da transposição para a telona: ainda que os personagens sejam, em sua maioria, fiéis às atuais versões dos gibi, o tom do filme vai por outro caminho. O humor sempre foi parte marcante nas produções do estúdio, mas Guardiões da Galáxia é, de longe, a que mais se assume como comédia. Ou melhor dizendo, uma aventura que não se leva a sério, com cara e alma de anos 80. Não à toa, a cultura pop dessa época é reverenciada ao longo de todo o filme, como por exemplo, a citação, gritantemente óbvia a Star Wars.

    Nessa linha descompromissada, o diretor James Gunn (co-roteirista ao lado de Nicole Perlman) não se preocupa em construir um plot elaborado, ou mesmo em estabelecer os detalhes do cenário em que a história se passa. Temos a sutil noção de uma história que se passa em um universo grande, multicultural, e com narrativa pregressa. Em um canto limitado desse universo, uma arma poderosa ameaça, não apenas a frágil paz entre duas civilizações, mas também todos os seres do cosmo. Argumento inegavelmente clichê, mas que não se mostra um problema, justamente por se apresentar-se desde o início, como uma justificativa para juntar uma galerinha do barulho que vai se meter em altas confusões – e garantir uma diversão insana durante a jornada.

    Os aspectos técnicos são irrepreensíveis, principalmente a trilha sonora, inspirada e perfeitamente conectada com a narrativa. Mas a chave para o filme funcionar é a maravilhosa interação entre os protagonistas. Todos têm espaço para se diferenciar enquanto indivíduos, ganhando um carisma que só aumenta conforme o grupo vai se formando. A união pode até ser rápida, mas convence. Em comum, eles são anti-heróis imperfeitos que, por baixo da pose, escondem traumas verdadeiros. Seres solitários que, mesmo sem entender ou admitir, são tocados por uma amizade que surge de forma natural, porém nada piegas, já que, como amigos de verdade, eles vivem zombando uns dos outros, comprovando que a zoeira não tem limites.

    Nessa conexão com a loucura espacial está o terráqueo Peter Quill, abduzido quando criança, logo após perder a mãe, e criado por saqueadores espaciais. Ele se torna um aventureiro canastrão que se autodenomina Senhor das Estrelas. O ator Chris Pratt começa atuando com um ar abobalhado, o que soa muito forçado, mas se recupera brilhantemente, conforme novas camadas são adicionadas ao personagem: um malandro que mostra ter bom coração e ser capaz de atos heroicos de pura abnegação, embora, logo em seguida, exija ser reconhecido e louvado por isso. As cenas são tão impagáveis quanto sua visão de Footloose e Kevin Bacon, que simplesmente valem o ingresso.

    Zoë Saldana como Gamora, repete com qualidade o papel que já representou várias vezes (Avatar, Star Trek, Os Perdedores, etc), a durona que esconde uma certa fragilidade. O conceito da “mulher mais perigosa do universo”, presente nos quadrinhos, foi levemente ignorado, mas o resultado foi uma personagem menos unidimensional e mais interessante. Drax, o Destruidor, encenado pelo competente Dave Bautista, seguiu um caminho parecido. Entretanto, seu background mostra-se denso e sombrio, o que destoa um pouco do contexto.  A solução para encaixá-lo foi manter sua postura séria e criar um humor involuntário em cima disso, como pode ser notado em suas sensacionais interpretações literais das gírias de Peter.

    Os membros mais estranhos do grupo são também os mais marcantes. É impressionante o carisma conseguido por Groot, uma árvore humanoide que só repete uma mesma fala. O personagem, (na voz de Vin Diesel) tem sido comparado a uma versão muito mais simpática de Chewbacca. E por fim, Rocket, o célebre Guaxinim com Trabuco que ganhou a voz, quase irreconhecível de Bradley Cooper, mostrando a versatilidade do ator nesse trabalho. Rocket é um gênio tecnológico e planejador, irônico, mordaz, sacana, carente e raivoso; mais um caso em que as camadas compõem um ótimo personagem.

    O restante do elenco conta com nomes notáveis em participações discretas, como Glenn Close (líder da Tropa Nova), John C. Reilly (oficial da mesma Tropa), Djimon Hounson (capanga do vilão) e Benicio Del Toro (mais uma vez como o afetado Colecionador, já visto na cena pós-créditos de Thor – O Mundo Sombrio). Michael Rooker se destaca um pouco mais, como o divertido Yondu, “pai adotivo” de Peter e Lee Pace se encaixa perfeitamente no estilo religioso fanático do vilão Ronan, o Acusador, personagem visualmente interessante, mas pouco desenvolvido. Karen Gillan também faz um bom trabalho, irreconhecível como a ajudante de Ronan, Nebulosa. O pai da moça, ninguém menos do que Thanos, aparece rapidamente, e ainda que seu interesse pelas Joias do Infinito seja citado explicitamente, sua sombra ameaçadora permanece apenas nas margens do filme, de forma que somente os bons amantes da Marvel entenderão.

    A conexão com o restante do universo cinematográfico da Marvel é tímida. A cena pós-créditos, por sinal, é tão desconexa quanto a de Homem de Ferro 3. Disso, porém, resulta algo de positivo. Guardiões da Galáxia mostrou potencial para ser uma franquia com identidade e atrativos próprios, e não apenas um laboratório para apresentar e testar conceitos a serem utilizados nos filmes dos astros do estúdio. A sequência, já anunciada, prova não apenas o conhecido planejamento da Marvel Studios, mas também sua capacidade de continuar expandindo e explorando novas propriedades.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | Batman: Assalto em Arkham

    Crítica | Batman: Assalto em Arkham

    Batman Assalto em Arkham

    De começo simplista, Batman: Assalto em Arkham segue a nova onda de animações da DC Comics pós-reboot, e diferentemente de outros pares como Liga da Justiça: Guerra e O Filho do Batman, esta foca personagens secundários do universo do Morcego, mais especificamente os vilões. A toada é diferenciada da estética dos Novos 52, já que logo no início é mostrada uma Amanda Waller ainda obesa, com a costumeira e bela construção de sua personagem antes da última “reinvenção”. A violência também é inserida no filme de maneira mais acentuada se comparada a de seus primos, com direito a sangue e dilacerações.

    O mote da história varia nas referências, com momentos que lembram a série recente de games de Batman relacionados a Franquia Arkham e, claro, a formação do Esquadrão Suicida, idealizada pela membro do Projeto Cadmus. A velha máxima do grupo de bandidos é reafirmada, cuja sentença aparece em duas formas: a total cooperação deles em troca da remissão de seus pecados ou a morte.

    A missão desta vez caracteriza-se por uma invasão ao asilo de Amadeus Arkham para recuperar o cajado do Charada, que poderia conter uma arma de destruição em massa. A desculpa para a ausência de Batman na história se dá por ele estar em outra missão, ainda que tal prioridade seja muito discutível.

    O submundo de Gotham é um campo muito fértil para as desventuras do grupo de marginais, ao exibirem toda a a sua misantropia à procura das condições mínimas para a execução da missão a qual foram comissionados. No entanto, a postura dos personagens do ideário da cidade é curiosa e contrastante com a violência gráfica mostrada anteriormente.

    O mafioso superpoderoso Pinguim é apresentado como um selvagem se alimentando de uma pilha de peixes crus, como fazia sua contraparte deformada e monstruosa em Batman: O Retorno – tal caracterização além de datada é contraditória por ser demasiada imatura, especialmente quando é precedida por uma cena de cunho sexual envolvendo Arlequina e o Pistoleiro.

    Os ares do universo pré-Novos 52 são notados na escolha de dubladores, especialmente com o retorno de Kevin Conroy como dublador do Cruzado Encapuzado, o que não ocorria em longas desde Liga da Justiça: Ponto de Ignição. É curioso como o diretor Jay Oliva prossegue reverenciando o segundo filme de Tim Burton à frente do herói, com cenas literalmente copiadas e com o design do batmóvel muito semelhante ao veículo pilotado por Michael Keaton. Por mais que não seja o personagem que mais aparece em tela, o Morcego ainda envolve-se em cenas de luta impressionantes se analisadas sob o ponto de vista gráfico.

    Alguns outros easter eggs são mostrados, entre eles máscaras dos palhaços capangas do Coringa de Heath Ledger. Do meio para o final da exibição, a tônica volta para os personagens mais conhecidos e carismáticos, primeiro remetendo à óbvia rivalidade de Batman com seu nêmese, depois com a reativação do romance protagonizado por Coringa e Arlequina – é esta relação, aliás, a responsável para que o caótico plano do Palhaço do Crime fosse às vias de fato. O caos do manicômio ganha as ruas da cidade, pondo-se além dos portões da casa de loucos.

    O Coringa rouba a cena, fazendo do Asilo e seus arredores um zoológico ao liberar todas as feras enjauladas para desviar a atenção da bomba de Nygma, que ele resolve ativar só por diversão. Tudo ocorre em tempo o suficiente para o herói destravar todas as traquitanas de seu rival. Se por um lado há uma sobra de violência nos primeiros momentos, o roteiro de Heath Corson não consegue desenvolver algo mais elaborado quando se cobra uma visão mais adulta dos fatos.

    Esse desequilíbrio entre o juvenil e o infantil denigre muito a fita, fazendo dela uma peça de gosto duvidoso e de público não definido. Seu caráter é de difícil distinção, e fora a bela coordenação de vozes de Andrea Romano e seu atores, pouco há para se elogiar no filme, claro, destacando a melhora aparente quando comparado com as animações que emulam os Novos 52.