Categoria: Críticas

  • Crítica | Virgínia (2010)

    Crítica | Virgínia (2010)

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    Dirigido por Dustin Lance Black – em seu segundo trabalho como diretor, cujo currículo de roteirista inclui Milk: A Voz da Igualdade – o drama foca na personagem título, Virgínia (Jennifer Connelly), uma mulher de meia idade, residente de uma cidade pequena que é acometida de uma doença mental. Tal instabilidade a faz regredir anos, até a época quem que esta tinha um caso com Dick Tipton (Ed Harris), chefe da polícia local. A narrativa envolve a geração posterior a dos personagens citados e toca em questões primordiais para os envolvidos em sua trama, de um modo pessoal e tocante.

    A chamada nos créditos iniciais com uma animação 2D insere o espectador em um ambiente semelhante ao de um conto de fadas, a sensação é prolongada pela primeira música da trilha, executada em cima de imagens que exploram a área restrita de ocorrência criminal. A fotografia de Eric Edwards lembra muito alguns trabalhos de Gus Van Sant (não à toa, pois este é o produtor executivo) e de Sam Mendes, especialmente em Foi Apenas Um Sonho, onde as questões primordiais ligadas a discussão da sanidade mental são semelhantes, mas abordadas de modo e de ângulos diferentes, visto que em Virgínia a moralidade é aventada na questão da transa sexual de uma pessoa mentalmente débil com uma sã – julgada pela câmera – e a mesma transa entre pessoas de diferentes credos – esta interpretada pela mentalidade juvenil de Emmett (Harrison Gilbertson), filho de Virgínia.

    A perversão que ocorre, bem próxima dos olhos do menino, influi e muito no que ele entende passar com sua mãe. Ele enxerga a reluzente figura do xerife de forma bastante diferente do que a opinião pública costuma julgá-lo. Tipton é candidato a senador estatal, e a explanação de tal polêmica seria um desastre para a sua campanha.

    A multiplicidade de narradores/personagens mostra que a história tem muitos ângulos de análise, e a situação passa longe de ser simplória. Emmett busca incessantemente a identidade de seu anônimo pai, e ela passa pela pessoa de Tipton, o confronto entre os dois é extremo e o embate envolve até o entendimento de ambos sobre o Divino.

    A paranoia de Virgínia não é tão injustificada e muito menos pautada em suas sandices, suas preocupações ligadas a interceptação de sua correspondência (por exemplo) é evidenciada como algo real. A única pessoa genuinamente preocupada com o seu bem-estar é Emmett. O ego ferido da mulher tem iguais proporções (ou até piores) ao de uma mulher abandonada cuja sanidade é plena, Virgínia passa a declarar estar grávida para os populares da cidade, sem pensar na preservação da imagem de Tipton, já que este não a enxerga como ela pensa ser merecido: como uma segunda esposa. As ações da protagonista ganham contornos de uma variação demente da Gata Borralheira.

    A revelação da anormalidade de sua mãe não é uma total surpresa, visto que ele há tempos observava o seu comportamento “incomum”, mas a verificação do óbvio o faz com que seus planos de fuga sejam antecipados. O regime emergencial também atinge o seio familiar dos Tipton, a certeza da infidelidade abala a matriarca, que reage também de forma fugitiva. O desfecho é confuso, o que deveria ser um arremedo de inconsequência unido a tentativa de redenção da protagonista, acaba sendo um momento que carece de um maior aprofundamento, arranhando somente na superfície da questão proposta, faltou um pouco de esforço em pensar numa resolução melhor dos crimes cometidos, uma pena, visto que a primeira metade do filme é interessantíssima.

  • Crítica | Viagens Alucinantes

    Crítica | Viagens Alucinantes

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    Muito antes do cinema extremo virar moda (com os “quase comerciais” Centopeia Humana e Taxidermia), Ken Rusell já punha o dedo na ferida, com uma filmografia que se valia demais da contestação do conservadorismo e dos bons costumes. Viagens Alucinantes usa experimentos científicos utilizados pelo panteão de personagens para discutir os efeitos dos alucinógenos sobre a mente de quem os experimenta.

    William Hurt (ainda moço) estrela o filme, fazendo um cientista que perde a fé nas escrituras sagradas, na família como instituição e contraditoriamente se abre com a parceira sexual que acaba de conhecer. Os experimentos que Eddie Jessup submete a si mesmo o levam a alucinações que mesclam o santo, o satânico e o sexual, o que demonstra a bagunça mental que subsiste no campo de suas ideias, evidenciando a confusão interna que ele tem de enfrentar.

    A volúpia de Eddie em prosseguir com seus testes faz com que ele se isole, aumentando o desejo de fugir da vidinha perfeita e normativa que possui. A realidade e o conjunto de crenças dos homens comuns não são suficientes para ele e causam-no um incômodo enorme. A superação do Ego (enquanto conceito freudiano) torna-se uma obsessão para ele. A busca por novos psicotrópicos e substâncias alucinantes vira uma questão fundamental e substitui a necessidade de uma rotina e do convívio com outros seres humanos.

    Os signos visuais utilizados pelo realizador têm o intuito de emular a viagem que o ácido gera em quem o consome. Apesar do conteúdo, por vezes perturbador, torna-se praticamente impossível desviar o olhar dos terrores mostrados. Tal impossibilidade é muitíssimo semelhante à ânsia pela não-interrupção do efeito causado pelo LSD, amplificado pelas câmeras de isolamento que Eddie utiliza. As situações que o envolvem ajudam a enfatizar o desprendimento do usuário de entorpecentes em relação a tudo o que não tem relação com o vício. O estado em que ele fica após uma longa exposição à droga o mostra fisicamente debilitado, mas evoluído mentalmente, segundo o seu próprio depoimento.

    A fissura piora com o passar do tempo, as alucinações ganham contornos de realidade e o estado de transe e o mundo concreto se confundem cada vez mais. Os efeitos visuais, demasiados datados, mas muito mais orgânicos que o CGI largamente usado atualmente, ajudam a aumentar o escopo de pavor, abrilhantando cenas aparentemente inimagináveis e magistralmente filmadas. As regressões que Eddie sofre são tão intensas que o fazem sentir estar retornando a um estágio de pensamento primitivo – a coisa toda é tão intoxicante que ele não pode ficar muito tempo distante dos auto-experimentos.

    O terço final carrega uma carga tão nonsense que é difícil até para o público distinguir o que é piração e realidade, transitando entre as alterações de estado mental e a metamorfose kafkiana, apresentada num nível mais bruto e selvagem que a transmutação insetóide. A faceta animal do protagonista passa da caça aos que lhe são hostis à predação dos seres abaixo de si na cadeia alimentar, quando invade de mãos nuas algumas jaulas do zoológico, tudo graças a uma bad trip.

    As questões fundamentais levantadas no fim do filme são dúbias e a viagem visual decorrente do uso abusivo das substâncias remete bastante às últimas cenas da pérola kubrickiana, 2001: Uma Odisseia no Espaço. Até o sentido é semelhante, pois visa replicar a transcendência, ainda que em Viagens Alucinantes a fronteira final não seja o espaço, e sim a psiquê humana e a transposição de seus limites.

    Há um sem número de signos espalhados pelo cenário, quase sempre referindo-se à fisiologia humana, a sexual quase sempre, reforçando o pensamento de Sigmund Freud em associar as anomalias psíquicas à vida sexual. Eddie entende que está em apuros, mas declara que é impossível retirar-se da insanidade que o habita. No entanto, o desfecho levanta a possibilidade de reabilitação, o que contradiz quase todo o roteiro, mas que não invalida uma eventual recaída, porém foca num otimismo que não combina com o resto da obra.

  • Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

    Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

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    Sem qualquer circunlóquio, Lars Von Trier continua a história de onde parou, mostrando a insatisfeita Joe (ainda interpretada por Stacy Martin) tendo o coito com seu objeto de desejo, mas ainda sem atingir o êxtase. Quando sua narração corta a trama, ela é mostrada em um flashback, com 12 anos, tendo um orgasmo espontâneo que a eleva a um transe e enxerga perto de si duas criaturas totêmicas relacionadas à religião. Logo, a questão do profano e do divino relacionados ao sexo é abordada novamente. Curiosamente, os último fatos narrados no capítulo anterior têm muito do lúdico e da coincidência, a qual é caracterizada como destino pela religião.

    A questão conflitante para a protagonista do épico é a completa ausência de sensações sexuais. Ela parece proibida de sentir prazeres após tanto buscá-los. Sua liberdade caíra graças à luxúria. Seligman (Stellan Skarsgård), como dito por ele mesmo, é assexuado e virgem, e por este motivo pode ser o melhor ouvinte para a história incomum e bizarra de Joe (Charlotte Gainsbourg). Os dois são lados opostos da mesma moeda, contrapartes um do outro, e por isso a química entre os dois funciona.

    Voltando às reminiscências, a mulher assume que este tempo foi um dos mais tranquilos, muito graças ao prazer negado a ela e a desobrigação de gozar. A vinda de um herdeiro parece reacender a chama da libido, mas logo a necessidade de mais e mais relações sexuais se agravava, a ponto de o casal tomar uma postura pouco ortodoxa. O pilar familiar que os personagens erguem para si é demasiado grotesco e pautado no sofrimento de tentar viver uma vida normal, mas distante demais das atitudes basicamente comuns, diante do que a sociedade julga normativo. Joe permanecia longe do orgasmo, mesmo com tal multiplicidade de parceiros.

    A tentativa de fazer um ménage à trois prova-se difícil de ser executada, ganhando ares de Babel, onde nem os que falam a mesma língua conseguem se entender. Tal confusão é exacerbada diante da simplicidade da ninfomaníaca em classificar os homens pelos nomes que secularmente possuem, não se preocupando com o politicamente correto. A discussão a respeito da abolição de alguns termos é valiosa, mas secundária diante do mundo de experiências que Joe está prestes a explorar, pois, na tentativa de reabilitar seu prazer, ela se submete aos cuidados de K, um homem que usa um método humilhante, violento e de pouca sensibilidade no tratamento. O impacto das agressões é tamanho que é difícil até identificar o que é mais impressionante, se é o barulho acarretado pelos golpes ou a vermelhidão da pele atingida, tingida pela dor do chicote. Sua curiosidade e incontrolável vontade superam até seus predicados maternos e a fazem pensar somente em suas necessidades físicas, ignorando o seu papel como mãe, desejando ardentemente o que lhe é proibido, o falo negado a ela. Quando finalmente encontra prazer na dor, o preço é alto: não poder ver o seu filho.

    O abuso físico que fazia de seu sexo teve consequências à saúde. O sangramento clitoriano serve, entre outras coisas, como uma tentativa da natureza do corpo de paralisar o esforço que ela insiste em ter. A obrigação de se unir ao grupo de apoio a faz tentar reprimir seus impulsos. Ao quase alcançar seu objetivo de “se limpar”, ela prepara o discurso, mas enxerga a contraparte mais nova, que, como o Superego, passa por cima do consciente e assume a postura de viciada em sexo. Sem medo do julgamento alheio e obsceno, porque gosta de ser obscena e porque ama a sua condição e desejo sexual, mesmo que toda a população a veja como uma condenada.

    As digressões de Seligman nem sempre funcionam, mas ajudam o espectador menos afeito ao tema da livre sexualidade entender o pervertido lado da mulher analisada, mostrando paralelos de vivências mais comuns para os episódicos acontecimentos do curioso cotidiano da protagonista. O rompimento com o contrato social é bem exemplificado, tanto pela explicação analógica do sujeito quanto pelo ofício que ela exerce, evidenciando, através de atitudes marginais, os mais recônditos segredos e perversões sexuais de seus alvos. Para grande surpresa, o roteiro ainda apresenta uma boa argumentação sobre tipos de sexualidades encaradas como monstruosidades pela humanidade, de até onde tais práticas devem ser proibidas.

    A interdição ao sexo faz o tabu do corpo finalmente se tornar algo palpável dentro de sua vida, logo no momento em que encontra P (Mia Goth), sua possível sucessora no ramo de inquirições, extorsões e torturas. A rejeição que Joe sofre dói e avassala a alma, sendo humilhada até por aqueles que colaboraram com os seus “pecados abomináveis”. Até os hábitos mais corriqueiros a traem; o final de sua trajetória é repleto de atos falhos.

    Em última instância, Joe é, de certa forma, uma continuação de um pedaço do corpo de She (de Anticristo); personagem de mesma intérprete, ela é o clitóris cortado pela mulher, o desejo e volúpia sem precedentes e sem barreiras, tentando viver plenamente o que acredita ser o melhor. O descanso e ausência de perturbação jamais a deixam, mesmo quando tudo parece ter mudado em sua vida. A decisão é difícil, a libertação que é viver pelo que se quer, mesmo quando tudo e todos apontam o contrário e a condenam.

  • Crítica | Uivo

    Crítica | Uivo

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    A produção de Rob Epstein e Jeffrey Friedman aborda de modo mais poético e lírico a Geração Beat que Na Estrada, tomando a figura e a obra de Allen Ginsberg como temas. Howl, a obra em que o filme se baseou, abusa do lúdico e do etilismo. O registro cinematográfico é composto de cenas equivalentemente alucinógenas, salientando a sábia escolha de usar uma animação das mais primitivas – remontando aos clássicos de Walt Disney – para ilustrar as delirantes memórias do protagonista/narrador.

    Muito mais modesto que seu primo dirigido por Walter Salles, Uivo é mais competente em demonstrar as desventuras dos beats, até por não ter a pretensão de ser algo grandioso. Sua simplicidade é algo louvável, mas não o torna medíocre, muito graças à boa encarnação do (ainda não estelar) James Franco. A produção é quase artesanal, dado o seu caráter, e confessional ao extremo, competente em reproduzir a aura do escrito original.

    A variação de estilos cinematográficos garante um novo fôlego à obra, que varia entre thriller jurídico, mockumentary, beatnik, épico etc. O estourar de palavras e letras, que formam os poemas, faz um contraponto curioso com os objetos de consumo que também teimam em aparecer na tela. A falta de apego material de Ginsberg é mostrada, evidenciando os poucos bens que importavam para ele – seus óculos, sua máquina datilográfica e objetos de uso “marginal”.

    A falta de traquejo de James Franco ao ler as poesias em público é incômoda e diferente de suas boas narrações – o defeito representa o deslocamento de Allen em relação ao mundo, suas preferências carnais e a forma com que é tratado como artista iniciante em uma época em que nenhuma dessas práticas era explorada e discutida de forma igualitária e justa. Ele era um astro fora de órbita, mesmo na galáxia em que orbitavam Jack Kerouac e Neal Cassaday. A negação da existência de uma “geração” demonstra com maestria o seu pensamento. Ainda que essa declaração tenha um forte apelo, há nela algo eufemístico, visto que (ao menos no roteiro), Ginsberg deixa claro que se sentia rejeitado até mesmo pelos dois amigos, e muito por isso se deve o fato de eles não formarem um movimento, sendo apenas escritores que buscavam vender mais.

    A empatia pelo personagem é automática e nem é tanto pela belíssima poesia – utilizada de forma inteligente, pontual e nada enfadonha – mas também pela fragilidade que ele transparece.

    Para a promotoria, Howl era uma literatura suja, imoral, que propagava obscenidades, não só para os letrados, mas também ao alcance dos incautos e dos adeptos da moral e bons costumes. A disputa no tribunal não filma Ginsberg como réu; como se a batalha fosse ideológica, de dois pólos: um conservador e outro amoral e pró-arte. O que se julga é a obra e não o autor, e o resultado é favorável a ela, garantindo-lhe o direito à livre expressão.

    O final contém os destinos dos próximos a Ginsberg e resulta numa confissão positiva do autor, que, depois de muito procurar, parecer ter finalmente achado o seu lugar ao lado de seu parceiro e, claro, com seu trabalho como escritor. Uivo é um bom retrato de época e acerta demais na ambientação e no espírito daquele período.

  • Crítica | Ninfomaníaca – Volume 1

    Crítica | Ninfomaníaca – Volume 1

    Nymphomaniac

    Lars Von Trier usa a carreira de realizador de filmes para demonstrar algumas facetas bastante reais do ser humano, ainda que as que ele escolha sejam, na maioria das vezes, as mais inconvenientes segundo o ponto de vista de  parte esmagadora da população mundial alinhada com o conservadorismo e o ideal da moral e dos bons costumes. Restringindo o argumento a sua filmografia recente, pode-se exemplificar essa máxima com a discussão sobre o fim da humanidade de um ponto de vista inconveniente e deveras cínico em Melancolia; a problemática da inocência e complacência dos cidadãos comuns e simplórios diante do sofrimento alheio e do senso de justiça que movem essas pessoas no excelente Dogville; e a questão do papel do homem e da mulher no conjunto sexual da natureza. A dualidade de Ninfomaníaca não passa muito longe disso, e aborda outras tantas formas de enxergar a sexualidade e a necessidade de dar vazão a ela.

    Dividido em capítulos, o roteiro não tem medo ou receio de acarretar o choque no espectador, esfregando conceitos freudianos no rosto de quem assiste ao filme. As sensações sexuais de prazer não afloram somente na puberdade, mas vêm desde a infância para a pequena Joe, que, mesmo não se achando uma pessoa religiosa, auto intitula-se uma pecadora graças aos seus atos e à obsessão pelos limites do seu próprio corpo. A narração da protagonista já adulta, vivida por Charlotte Gainsbourg, dá a história biográfica um ar de confessionário, em que a mulher conta as suas memórias como se procurasse uma remissão por seus atos maus ou uma justificativa ao fazê-los – aparentemente.

    As primeiras experiências movidas pelo ato sexual, com Jerôme (Shia LaBeouf), deixam-na envergonhada por terem sido tão velozes e efêmeras, e, como uma super-correção, sua busca envolve uma contestação que visa chegar a uma satisfação por meio de uma grande quantidade de parceiros de coito. O prêmio do concurso, o saco de chocolates, faz referência à infância perdida, mas é uma clara distração para a sua real procura, que ainda aflora na forma de uma primitiva sexualidade. Mesmo com a inexperiência, ela encontra uma especialidade, uma arma final para atingir seu alvo.

    Diante da figura do mentor, Seligman (Stellan Skarsgård), ela implora pelo veredito de culpa, mas o sujeito, que a encontrou ao léu na rua, não a vê assim, não condena a sua feminilidade nem o seu poder sobre o falo: se um pássaro tem asas, por que não voar?. Nos relatos de sua juventude, vivida por Stacy Martin, em diversos estágios há uma união entre as mulheres contra o sentimento do amor, que seria somente um misto de luxúria e inveja, enquanto o sexo era algo “criminalizado”. A declaração delas visava a extinção do sentimento, o apego a figuras sentimentais, como namorados ou homens fixos.

    A questão de Joe não é uma parafilia, uma doença a qual ela refuta, ao menos não no início. Sua postura caracteriza-se pela decisão de dar vazão à libido e sensualidade, inclusive achando um avatar para o seu objeto de esforço bélico. Jerôme, antes chamado de J, seu primeiro homem e agora patrão, era o alvo de ódio e desprezo da protagonista. Mas, aos poucos, tal associação muda até que se perde de vez, tornando a mulher ainda mais desejosa daquele a quem ela primeiro rejeitou. Suas fantasias a seu respeito a envolvem, e não permitem outro alvo até o fim do segundo capítulo, em que ela declara seu fascínio por diferentes formas e tamanhos de falos, provando um pouco de cada um.

    O asco de Joe pelo sentimentalismo que acompanhava alguns de seus parceiros não invalida a situação constrangedora e tragicômica de ter de enfrentar a passiva esposa – vivida por Uma Thurman em uma atuação arrebatadora – de um de seus amantes, o qual decide viver com Joe. Em uma situação vergonhosa e doentia, as motivações da mulher abandonada são apresentadas na forma de uma conduta tão agressiva e insana que até os motivos de sua visita não são claros. A demolição do estandarte de uma família ainda não a faz sentir-se culpada. O vício não se assinalava na necessidade de se saciar, mas na luxúria, não conseguindo esconder seu eterno estado de solidão.

    A queda de sua figura de espelho causa nela uma sensação atroz de desespero e necessidade por uma fuga daquela realidade, mas nem seus escapes a livram do exaspero e do sofrer. Com o enfrentamento das figuras amedrontadoras e com a descoberta de que aquela condição viria para ficar, temor e tesão se fundem, e tal amálgama a faz sentir-se envergonhada.

    Curiosa é a forma como a câmera registra os “preferidos” de Joe, cada um à sua maneira, sendo tão singular que quase não há a necessidade de diálogos para descrever cada uma das distintas posturas. O dócil F (Nicolas Bro) é filmado em planos abertos, enquanto o dominador G (Christian Gade Bjerrum) é mostrado de maneira erotizada, cujas zonas do belo sexo são cortadas e não enquadradas. Mas é Jerôme quem desperta nela a real e mais plena forma de transar, elevando a frase dita ao pé de seu ouvido em uma máxima real: que o prazer maior do sexo é quando este é executado com amor, momento em que ela não consegue sequer alcançar o gozo, mostrando que sua caça, do ponto alto e idealizado do romance, não atingiu o ápice com o cavaleiro andante moderno. Não como na primeira vez.

    O fim abrupto está longe de ser algo perfeito, mas consegue desenvolver no espectador a vontade de assistir ao segundo volume. A sensação de interrupção no momento do orgasmo – simbolizado pela quebra de expectativa da revelação do segredo – é notória e muito difícil de evitar, especialmente para quem acompanha o trabalho de Von Trier. A avaliação da película em si precisa ser feita como a exploração de um arco, em uma história enorme que não pode ser contida em um único filme.

  • Crítica | A Culpa é do Fidel

    Crítica | A Culpa é do Fidel

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    A influência de nossos pais sobre nossas vidas é maior do que parece, e talvez só nos demos conta disso com o peso da idade ou através da visão de um ser externo. O cinema de Julie Gavras parece ser um desses casos onde essa influência paterna se torna inevitável, já que é filha de Costa-Gavras. Por isso, nada mais normal a inclinação pelo cinema político contido em A Culpa é do Fidel, de 2006.

    O filme retrata uma paris dos anos 1970, onde somos apresentados a Anna (Nina Kervel-Bey), uma garota de nove anos de idade, inteligente e caprichosa, que mora com seus pais, Fernando (Stefano Accorsi) e Marie (Julie Depardieu), o irmão mais novo, François (Benjamin Feuillet), e a empregada da família, Filomena (Marie-Noelle Bordeaux). Anna tem uma vida confortável e razoavelmente luxuosa, mora em um pequeno palacete, frequenta um dos melhores colégios católicos da cidade, passa suas tardes brincando em seu imenso jardim. Seu pai é um advogado bem sucedido e sua mãe escreve artigos para a Marie Claire, que Anna lê religiosamente.

    A vida aparentemente pacata e metódica de Anna muda radicalmente quando surge a figura de Marga (Mar Sodupe), sua tia, irmã de seu pai. Fernando passa a se sentir culpado quando seu cunhado é capturado e assassinado pela ditadura espanhola de Franco. Seu sentimento de culpa o leva até o Chile dos anos 70, onde a cena política efervescia com a chegada de Salvador Allende à presidência. Assim, ao retornar a França, os pais de Anna decidem viver de maneira mais modesta, trocando a vida de outrora pelo engajamento político.

    Esse mundo novo não é bem aceito por Anna e há uma cisão clara desses universos, de um lado os pais e amigos de Anna, representando essa mudança, do outro, os avós e a empregada representando o lado conservador, mas também carinhoso e confortável. Filomena, a empregada da família é uma exilada cubana que culpa Fidel Castro e os “outros barbudos” por ter perdido suas propriedades e vê os comunistas como o mal do mundo. Seus avós mantem uma postura tradicional, são grandes proprietários de terra que acreditam que comunistas são jovens pobres que querem tomar seus bens.

    Sua mãe cada vez mais ligada ao movimento feminista abandona seu trabalho na revista Marie Claire, enquanto seu pai passa a advogar para minorias e se torna ativista de ideais revolucionários, o ambiente da casa de Anna pouco a pouco cede lugar a empregada reacionária para outras, dessa vez imigrantes refugiadas de regimes conservadores. Sempre rodeada pelos amigos de esquerda de seus pais e suas reuniões infinitas ou pelas entrevistas de sua mãe com outras mulheres, tudo isso somado a rígida educação católica de Anna, cria um multifacetado universo de ideologias e diferenças culturais, tratando de maneira delicada, poética e bom humor todas as mudanças pelas quais a personagem irá passar.

    A visão romântica, quase de contos de fadas e histórias de princesas que Anna tanto gosta se desconstrói ao longo do filme, assim como seu penteado, impecável no início da trama, e já perto do final, completamente desgrenhado, o mesmo ocorre com os figurinos das personagens, Anna a principio utiliza vestidos e saias com cores sóbrias, ao longo da projeção cores vivas tomam corpo, e ao final abandona suas saias e vestidos por calças, referência ao movimento feminista e uma metáfora clara às mudanças e reflexões pelas quais a protagonista e as demais personagens passaram.

    No meio desse plano de fundo político, pós 68, revolução cubana e outros movimentos importantes, Anna é inserida nesse mundo, repleto de tipos esquisitos, torna obrigatória para Anna tomar decisões difíceis, mudar posturas, refletir sobre sua a vida e a daqueles que estão à sua volta. Toda essa dualidade contida em A Culpa é do Fidel é feita com extrema leveza, propondo uma nova perspectiva do mundo.

    A câmera de Julie Gavras trabalha com ângulos baixos, sempre filmando de baixo pra cima, deixando claro se tratar do ponto de vista de uma criança, talvez por isso alguns temas sejam martelados não apenas uma única vez, já que temos conceitos complexos, repletos de fatos históricos acontecendo ao seu redor e crianças tentando entender as mudanças pelas quais estão passando. Todo o contexto político apresentado pelo filme não soa panfletário, e a diretora evita uma demonização de qualquer dos lados, já que o tema maior por trás do longa é discutir valores, ideias e acima de tudo, o amadurecimento. As relações familiares, a importante discussão sobre o real significado de ser solidário e o conceito de crescimento são explorados com enorme delicadeza, na visão de uma criança de nove anos. Todas essas reflexões são ainda maiores que o tema político existente no filme, que este sim serve apenas como cenário para a discussão maior que a cineasta propõe.

    A Culpa é do Fidel é um belíssimo filme, repleto de grandes atuações e grandes diálogos, e acima de tudo, um grande estudo sobre como crescer em tempos de crise.

  • Crítica | Camille Claudel 1915

    Crítica | Camille Claudel 1915

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    A escultora francesa Camille Claudel teve uma vida conturbada. Graças a ação de sua família tipicamente burguesa a respeito da escolha de seu ofício, a artista sofrera muito para desempenhar sua ocupação, muito bem retratada no filme homônimo de Bruno Nuytten. A película do sórdido realizador Bruno Dumont pode ser encarada de certa forma como uma continuação do filme de 1988 (ainda que seja bem mais contestadora que a original), pois foca na fase decadente de Claudel apresentando o conjunto de elementos que faria o cinema de Dumont famoso, e claro, abrilhantado pelo protagonismo de Juliette Binoche.

    O roteiro de Dumont é baseado livremente nas cartas de Paul Claudel – irmão de Camille. A preocupação da trama é focar no estado de espírito em que a escultora se encontra, mostrando uma nudez pouco atraente se comparado ao auge da beleza de sua intérprete. Camille está em uma casa de repouso devido ao seu estado mental débil, diagnosticado na segunda década do século XX. A artista tem sentimentos paranoicos, levando a estima dos funcionários da casa para o mais baixo nível, acreditando que eles envenenariam a sua comida. No entanto, ela ainda sofre com alguns momentos de lucidez (ou algo que se aproxime disso), mostrando-se incomodada com as ações e repetições irritantes de alguns pacientes, além de ser fisicamente muito diferente das delirantes internas.

    Mesmo que Binoche não tenha mais uma beleza jovial, sua Claudel consegue se destacar das outras mulheres desgrenhadas e maltratadas da casa de repouso. Quando está com a mente controlada, ela ainda se permite sentir-se altiva ao ser comparada às outras doentes, mas isso não a faz sentir-se remida quando vê que está longe de conseguir exercer a sua vocação.

    As maquiagens fortes das pacientes, unidas aos figurinos bizarros dão um ar amedrontador a obra, a atmosfera causa facilmente a sensação de fobia no espectador, aumentada e muito pela arquitetura clássica da mansão, que remete a um ambiente claustrofóbico. A sensação de achar-se prisioneira, tanto pelas portas do estabelecimento quanto por sua condição de saúde devasta o pouco de consciência e perspicácia que Claudel ainda persiste em manter. Sua ânsia por mudança inclui uma busca ligada a busca religiosa, logicamente ligada ao desejo de fuga da situação sufocante e da privação de liberdade de sua mente. A “crença” de estar sendo manipulada, como o barro que ela manuseava no passado a faz se sentir extremamente impotente e desprezada, até mesmo pelos seus chegados.

    A interação entre as mulheres adoecidas tem alguns poucos momentos agridoces, capazes de gerar em Claudel e no público um pouco de simpatia. A câmera não é óbvia, mas emula os olhos da protagonista em quase todo tempo, torturando a ela e a quem assiste com o drama de decadência cada vez mais evidente e menos passível de ser ignorado. O que poderia ser um indício de melhora de estado acaba por ser uma maldição, pois os lapsos de lucidez a fazem enxergar nas outras mulheres o quão mal ela fica quando está com o estado mental alterado. O cuidado do realizador em mostrar Camille “bem” a maior parte do tempo, ajuda a grafar a situação calamitosa em que se encontra e multiplica a aura amedrontadora da obra.

    Os últimos vinte minutos mostram uma faceta esperançosa de Camille, levantada evidentemente por causa dos seus delírios de que seria liberta de sua prisão pessoal. A razão que ainda permanece de pé em sua vida consome a personagem título, que é ignorada por um ente querido, desta vez com o ato registrado em câmera, sem deixar rastro para a dúvida. Uma das questões dúbias no comportamento de Camille é o amargor que ela tem pela figura de Rodin, seu antigo mentor e amante. Binoche consegue fazer uma multiplicidade de papéis encarnadas em uma única mulher, a exploração das nuances da mulher afetada é muitíssimo exitosa em representar uma figura histórica, assim como demonstrar de forma bela a resignação e a fuga de uma mente da consciência.

  • Crítica | Linha de Frente

    Crítica | Linha de Frente

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    Uma produção que carrega os nomes de Jason Statham como protagonista e Sylvester Stallone como roteirista sem dúvida chama a atenção. O mínimo que se espera é um filme de ação razoavelmente divertido, apoiado em clichês do gênero, e, talvez, com uma dose de auto-ironia  tendo em vista a parceria dos dois brucutus na franquia Os Mercenários. Uma pena, então, que Linha de Frente fique abaixo do mediano, comprometido por um roteiro muito confuso e uma direção pouco inspirada.

    O eterno Frank Martin/Chev Chelios desta vez vive Phil Broker, um ex-policial que se muda para uma pequena cidade da Luisiana. Viúvo há pouco tempo, ele só quer ficar na moita e criar sua filha em paz, mas é óbvio que os problemas o perseguem. A escalada é quase surreal: a pequena Maddy, treinada pelo papai, defende-se de um bully na escola. A mãe do garoto (Kate Bosworth) é uma viciada maluca que pede vingança ao irmão traficante, Gator Bodine (James Franco). Ele, por sua vez, descobre o passado de Broker e o “vende” para antigos desafetos. Parece muito forçado? Calma, que a coisa ainda piora.

    É possível dar um desconto para Statham, que, bem, é sempre ele mesmo, e para a estreante Izabela Vidovic, muito carismática como Maddy. Todos os outros personagens são mal definidos e mal aproveitados, configurando-se como o problema maior do filme. Suas atitudes são contraditórias, seus objetivos e índoles parecem mudar de acordo com a necessidade da trama. A personagem de Bosworth surge como uma megera cuja reação é muito exagerada diante de uma situação pequena. E, do nada, cria consciência e se redime. Bodine (com direito a Franco caricato até dizer chega) indica que vai ser o vilão principal, mas é reduzido a um papel acessório, e termina enlouquecendo e decidindo ser o malvadão-mor, de maneira nem um pouco convincente.

    A trama limita-se a criar problemas para o herói, resolvê-los rapidamente e partir pra outra situação de perigo, sem muita preocupação com lógica e coesão narrativa. Fica gritante a indecisão entre destacar Bodine ou os vilões do passado de Broker (que acabam sendo um subplot mal encaixado). Além de vários personagens que aparecem e somem aleatoriamente, como a professorinha/interesse amoroso (Rachelle Lefevre), o xerife talvez corrupto, mas gente boa (Clancy Brown), e a namorada do vilão (Winona Ryder). Triste dizer, mas Linha de Frente é o velho Sly num de seus piores momentos criativos.

    Nem visualmente o filme consegue ganhar muitos pontos. O diretor é Gary Fleder, que, dos trabalhos mais relevantes, fez O Júri e Beijos Que Matam. Aqui ele apela pra cansativa estética da câmera tremida, que, aliada à fotografia escura nos momentos mais climáticos, resultam em sequências de ação pouco interessantes. As cenas que mostram as habilidades marciais do protagonista à luz do dia até empolgam, mas são poucas. O desfecho traz tiroteios e perseguições automobilísticas genéricas e filmadas à noite, sacramentando mais um capítulo esquecível da extensa filmografia de Jason Statham. Ele ainda é o cara, mas tá devendo.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | A Origem

    Crítica | A Origem

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    É fácil olhar hoje para a carreira de Christopher Nolan e ver nele um exemplo de cineasta de grandes feitos e em quem os estúdios confiam, seja pela franquia de super-heróis da Warner que deu certo (vide o insucesso de O Homem de Aço e Lanterna Verde, só para citar os mais recentes), assim como em produções caríssimas, como O Grande Truque. A Origem é um projeto bastante antigo de Christopher Nolan, engavetado na época graças à escassez de efeitos especiais adequados ao roteiro apresentado. Mas também relegado ao limbo por ter em sua concepção um preço absurdamente alto para os padrões de um cineasta iniciante. Foram precisos seis longa-metragens no currículo para confiarem a ele o orçamento estimado em 160 milhões de dólares.

    O visual do filme impressiona, a fotografia, edição, tudo é belíssimo. A escolha por narrar a trajetória de Cobb (Leonardo DiCaprio) por meio de flashbacks é uma opção muito inteligente. A história, contada de forma linear, não teria metade do impacto que teve como produto final. Além disso, a estratégia de usar a máscara de filme de assalto para abordar uma coisa tão complexa como o funcionamento da psiquê e seus segredos dentro do ambiente misterioso do sonho é brilhante, e, aliada à estética noir, fazem da fórmula do filme algo único. O didatismo de Nolan, tão criticado nos filmes do Morcego, é muitíssimo necessário neste evento em particular.

    A cartilha de Joseph Campbell é cumprida à risca: todos os arquétipos são desenhados e representados de forma bastante óbvia. O intuito é de não deixar qualquer dúvida acometer o público, a não ser em relação à realidade tangível. O grave problema de Inception é a motivação dos personagens. Cobb é um herói falido típico, que não consegue ter controle sequer sobre o destino de suas ações. Toda a gigantesca trama, os roubos de informações, os sequestros e outras tantas atitudes fora da lei protagonizadas por ele só acontecem graças à sua reticência. A humanidade não é um problema, mas a contradição de seus atos o são. Para alguém que lidera uma operação tão complexa, é simplesmente inaceitável a sua falta de pulso, mesmo levando-se em conta o seu trauma. Outra questão que influi na percepção do público quanto à atuação do ator principal foi a proximidade entre o lançamento de A Origem e Ilha do Medo, de Scorsese, cujas premissas dos personagens centrais são bastante parecidas.

    O segundo erro capital é a personagem que deveria ser a orelha, a inserção do espectador dentro da experiência como um todo. Ariadne, de mesmo nome da libertadora de Teseu do labirinto do Minotauro, deveria ser uma promissora arquiteta que, ao ser desafiada, mostra-se muito competente no que faz, mas ainda assim é neófita e inexperiente. Uma vez que o papel de Ellen Page sabe perverter as regras do mundo dos sonhos, ela se torna uma deusa, que desliza sem dificuldades pelos segredos da mente e que molda a estrutura das construções compartilhadas entre os aventureiros. Sua evolução é rápida e até admirável, mas passa muito do ponto, pois instantaneamente se torna presunçosa e moralista, pondo o dedo em riste, acusando o seu contratante, como se ela fosse onipotente. Tais pecados podem ser explicados pela inexperiência, mas não são tão bem justificados quanto facilmente poderiam. Mais uma vez a omissão de Cobb é demonstrada, e assim como a vilã, Ariadne se usa disso para se achar maior do que realmente é, ignorando a possibilidade de, uma vez no subconsciente, perder a noção do que é verdade e do que é sonho. Ela carrega tanta arrogância sem causa que não consegue amadurecer ao tomar conhecimento das experiências alheias, algo que claramente faz falta ao perceber que a mente de Fischer era treinada, desmoralizando Cobb por cultivar tais pensamentos.

    A ideia de Nolan é discutir filosoficamente os limites do tecido da realidade. Antes de completar 60 minutos de exibição, um simples funcionário de um “dormitório” indaga Cobb sobre a veracidade da dimensão sonhada e qual destas é a mais verídica de fato. Primeiro ele desmistifica a questão da “elitização da verdade”, pondo um mestiço comumente ignorado e fadado a ser taxado como simplório como o detentor da informação primordial e do questionamento fundamental. Depois ele joga no colo do herói a interpretação do seu maior anseio, fazendo ele confrontar seus próprios demônios. Viver no passado é sedutor, e o avatar curvilíneo e as belas feições de Mal (Marion Cotillard) representam toda essa volúpia de forma ímpar. Cobb deseja tanto sua beleza quanto anseia se encontrar com os seus filhos novamente. Toda a sua reticência é voltada para a dificuldade de escolha da realidade que terá de fazer.

    A escolha de Mallory em ignorar a verdade é parte da utopia do mundo ideal, onde somente ela e seu amado vivem, alienando-se totalmente ao que acontece na vida real. A projeção de um conto de fadas é maximizada e elevada a níveis altíssimos, numa alegoria clara à fuga da inconveniente verdade do fruto proibido. A personagem Mal é como uma louca Eva, que, ao provar da árvore do Bem e do Mal, não consegue mais viver sua antiga rotina. O cotidiano é démodé demais para os seus gostos, e sua tentativa de voltar ao ideal condena o seu amado a uma vida sem realizações que lhe são prazerosas e necessárias.

    A utilização dos elementos externos a quem dorme dentro da camada inferior de sonho é uma ótima forma de representar o nonsense e descompromisso com as regras físicas dentro desta alternativa efetivamente verdadeira. A perseguição frenética e apressada em relação até mesmo ao tempo acrescido se dá graças ao mergulho dentro das camadas de transe. A contradição ajuda a aumentar o suspense da história.

    O limbo que é a prisão de Mallory representa uma amostra decadente de como o mundo idílico era e de como ele se tornou assustador com o decorrer do tempo. O passado é amedrontador e contém muitos dos medos de Cobb. A simples chance de olhar no rosto de suas crianças dentro de sua fantasia causa asco no herói. Sua incessante busca é pelo real: poder tocar seus herdeiros, aqueles a quem ele abandonou, primeiro ao se isolar e depois por motivos de força maior. A ideia, implantada em Mal, de que tudo muda parecia ser a maldição de sua própria vida. Enfrentar a sua própria verdade inconveniente e ter de assumir a sua parcela de culpa o consome e só não dói mais do que a distância de seus filhos, Sam e Phillipa. A dificuldade em liberar sua alma do sentimento de Mal é intenso, e a despedida é emotiva, especialmente para a projeção da mulher. Já Cobb parece, pela primeira vez, seguro de si e do que quer. A questão da dualidade no final é agravada pelos olhares do protagonista e cada um dos seus companheiros de jornada, dos cenários e cenas idênticos aos que se propagam em seu imaginário.

    A Origem é o momento mais autoral de Christopher Nolan, e a prova do quão prolífico é o seu cinema. Uma promessa para filmes ainda melhores do realizador britânico.

    Ouça nosso podcast sobre Christopher Nolan.

  • Crítica | Obsessão

    Crítica | Obsessão

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    Um pouco distante da temática que o fez ganhar notoriedade – ligada e muito à questão racial e sempre pelo olhar do negro, citando Preciosa e O Mordomo da Casa BrancaLee Daniels aborda questões de interesse público e privado, sob uma estética bastante semelhante às andanças de Jack Kerouac e aos poemas de Allen Ginsberg. O roteiro de Obsessão é baseado no livro de Pete Dexter, lançado no Brasil como Paperboy – Não Existem Homens Íntegros (compre aqui). É interessante como tanto o subtítulo do romance quanto a tradução do nome do filme expressam bastante o espírito da película, resumindo algumas das questões apresentadas no roteiro do autor e do realizador da obra.

    A imoralidade contrastava com o ambiente rural dos white trash, um lugar tradicional que remete normalmente a momentos de extremo conservadorismo. A escolha do diretor ao contar a história começando com uma filmagem documental é um enorme acerto, pois dá à película um aspecto de veracidade, o que obviamente faz toda a efervescência de insanidade presente na história fazer sentido dentro do universo proposto. A escolha do bom menino Zac Efron para interpretar Jack aumenta ainda mais o escopo de cinismo do filme, assim como a opção pela figura de musa para Nicole Kidman (Charlotte Bless), cinquentenária, decadente, entupida de botox, mas ainda assim, sensualíssima. A dupla formada por Matthew McConaughey (Ward Jansen, irmão mais velho de Jack) e David Oyeleywo (Yardley Acheman) é uma perversão do ideal mostrado em Todos os Homens do Presidente  por Hoffman e Redford obviamente levando em consideração a tensão racial e os conflitos que a interação entre ele e o mundo poderiam ocasionar.

    A câmera, por múltiplas vezes, registra os personagens de uma vista aérea, distante fisicamente deles, no intuito de se fazer notar a diferença entre o pensamento comum e a insana psiquê de cada um dos obcecados personagens. Charlotte é uma tiete de marginais; Jack tem uma séria necessidade sentimental pela senhorita Bless, fantasiando o seu status conjugal de noiva; Ward e Acheman querem chegar ao cerne do personagem investigado  o assassino encarcerado Hillary Van Wetter, interpretado por um desfigurado John Cusack. Dos insanos, ele obviamente é o pior, vide o repertório que o fez ser preso: pelos idos de 28/29 minutos de exibição, ele dá mostras de um pouco de sua insanidade pessoal, pondo em prática seus diálogos sujos que troca com Charlotte através de cartas, e consegue se sujar sem sequer tocar na mulher.

    O script é cortado por disfunções comportamentais protagonizadas por quase todos os personagens principais. O eterno desejo de Jack não se concretiza, apesar de ele desejar desfrutar das curvas de sua musa, sem se mostrar um predador sexual em momento algum. O auge do platonismo na relação, e que mais se aproxima do seu tencionado alvo, é o momento em que ele é obrigado a sofrer com uma chuva dourada dela em plena praia, em uma situação no mínimo inesperada.

    O clã Wetter, ligado a Hillary, é formado por caipiras de aspecto visual degradante, todas figuras esquisitíssimas, maltrapilhas e de aparência asquerosa ou desleixada. Uma das moças, grávida, é mostrada sem camisa ou roupa de baixo, exibindo sua barriga e partes íntimas no pântano. A possibilidade de anomalia mental parece ser algo que abrange as famílias, tanto os Wetter quanto os Jansen.

    As figuras de inspiração de Jack vão caindo diante dele, a começar por seu pai, até o seu irmão, pego em uma situação constrangedora. Quem estende a mão a ele é Charlotte, que está no lugar e momento certos para aliviar as tensões do rapaz. O caçula guarda seus sentimentos e não se entristece com o irmão, graças às suas “preferências”, mas não contém a mágoa por ele ter escondido o segredo de si.

    A fotografia de Roberto Schaefer é um primor e a câmera nervosa de Daniels consegue emular as sensações dúbias das conversas após a revelação de Ward. As relações vão ruindo na medida em que o interesse acaba, ligado, é claro, à solução do caso graças ao artigo publicado. Dali em diante, as situações tornam-se ainda mais loucas e doentias. As cenas de “amor” entre Hillary e Charlotte revezam-se entre o violento coito e flagrantes de animais no pântano. Cusack consegue fazer uma das mais demoníacas figuras do cinema atual sem precisar apelar para clichês, e sua insanidade é justificada e plausível graças a toda sua caracterização.

    Jack era um menino solitário, sem a presença do irmão que sempre trabalhou fora e com a presença da figura opressora da madrasta. Só se afeiçoaria por Anitta (Macy Gray), a doméstica negra que serviu como para-raio de sua solidão e que por muito tempo foi a única pessoa em quem confiou. No seu pensamento irreal, Charlotte era a princesa encantada, a protagonista do conto de fadas, quem ele imaginava ter uma vida perfeita. Saber que ela estava com o asqueroso psicopata o enojava, o que pioraria evidentemente após saber o destino de sua amada. Na fúria elevada pelo ciúme, Jack se mostra um macho viril, mas tal estado ilusório logo cede com a queda do irmão, sua figura de exemplo. O instinto de sobrevivência rivaliza com a aspiração assassina do facínora e este, após perder tudo, finalmente tem sua primeira vitória sobre o inimigo baseada no único comportamento que conhecia: a covardia.

    A película faz apologia ao bizarro e constitui um dos melhores exemplares de filmes que usam o homem como figura monstruosa, tecendo uma possibilidade de futuro nada otimista. O curioso é que o jovem motorista não é tão diferente da nêmese, especialmente no que envolve o nível de isolamento destes do mundo real: enquanto um volta suas atenções para a fria psicopatia sem limites, o outro torna-se um criador de histórias, provavelmente de cunho tão grotesco quanto o que foi narrado em tela.

  • Crítica | Quando Explode a Vingança

    Crítica | Quando Explode a Vingança

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    O italiano Sergio Leone se tornou um dos principais nomes no faroeste, não só por dirigir alguns dos filmes clássicos como a Trilogia dos Dólares ou Era Uma Vez No Oeste, mas também por ser um dos principais cineastas que ajudou a modernizar o gênero. É o que ele fez neste Quando Explode a Vingança.

    Sinopse: um irlandês perito em explosivos e ex-membro do IRA se alia a um bandido mexicano e acabam sendo jogados no meio da revolução mexicana e acabam ajudando na luta.

    O filme começa com um impressionante assalto à uma diligência por Juan Miranda, interpretado por Rod Steiger, e logo depois promove um encontro explosivo entre os dois protagonistas que se estranham, dando a entender que se trataria de mais um filme com história similar à da trilogia dos dólares. Felizmente, o diretor segue por outro caminho ao escolher uni-los em favor da revolução mexicana, trazendo algo diferente ao espectador.

    Os traços da direção de Sergio Leone, que o acompanham desde Por Um Punhado de Dólares (1964), mostram porque ele se tornou um dos principais nomes do faroeste: os closes e planos detalhes, além dos característicos zooms, são filmados para tornar a edição fluida nos momentos de tensão; a direção de atores com pouca ou nenhuma marcação, aliado as improvisações deixa os atores soltos para construir os personagens e tornar a mise-en-scene mais realista, menos conservadora, sem as interpretações teatrais dos filmes clássicos. No entanto, Leone também filma demais algumas das cenas, elas acabam sendo mais longas do que deveriam. O filme de 2 horas e meia poderia ter menos 40 ou 50 minutos que não faria muita diferença para a narrativa.

    James Coburn interpreta o irlandês John Mallory, enquanto Rod Steiger faz com que o bandido mexicano Juan Miranda ganhe vida. Ambos os atores fazem o que é exigido deles, no entanto, sem tornar nenhuma cena memorável ou digna de nota para a história do cinema do ponto de vista da atuação.

    Já do ponto de vista do roteiro a coisa muda de figura. O filme é bem escrito, e, fugindo um pouco da tradição dos faroestes do diretor, aqui temos constantes flashbacks em pontos chaves do filme que fazem o cruzamento entre a narrativa atual e passada, ajudando a criar a personalidade de Mallory e o seu passado revolucionário, o que dá ao espectador motivo suficiente para que o personagem participe da revolução mexicana quase que por vontade própria, diferente um pouco do mexicano Juan Miranda, que só pensa em tirar proveito próprio de situações da guerra. Este, até então resoluto em participar, muda de lado na impressionante cena de revelação da caverna.

    A fotografia realista mais uma vez denota o cuidado de Sergio Leone com uma mise-en-scene menos fantasiosa. Os constantes tons de marrom criam contraste com a filmagem no deserto, além dos figurinos igualmente marrons de quase todos os atores e figurantes. A decupagem das cenas é outro ponto alto: os já citados zooms, os closes e os planos americanos são recorrentes, no entanto, quase não há câmera na mão, recurso que alguns diretores de vanguarda passaram a usar nos anos 60 e 70 para quebrar com o cinema clássico. O resultado são as impressionantes cenas de batalhas que Leone ainda filma de forma conservadora, com a câmera no tripé.

    A edição do filme, como já dito, reforça a importância de Sergio Leone para o cinema e principalmente para o gênero do faroeste. Ela se utiliza dos inúmeros closes para aumentar a tensão do espectador nas cenas de conflito. No mais, o editor Nino Baraglia seguiu o roteiro e a direção mantendo as principais características do diretor. Ennio Morricone empresta o seu talento na criação da identidade musical do filme, que apesar de bonita, também passa batido no geral.

    Para finalizar, quem se interessa pelo gênero ou principalmente pelos filmes do Sergio Leone, este filme é obrigatório.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | O Conselheiro Do Crime

    Crítica | O Conselheiro Do Crime

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    O britânico Ridley Scott está no panteão de grandes diretores vivos. Porém, as melhores produções de sua carreira estão situadas em décadas passadas: sua estréia, Os Duelistas, adaptação de uma história de Joseph Conrad, ganhou o prêmio de Melhor Primeira Obra em Cannes. E suas duas seguintes produções, Alien – O Oitavo Passageiro e Blade Runner – O Caçador de Andróides são obras máximas da ficção científica. Três filmes que sustentam com muita solidez o sucesso do diretor.

    Scott ainda vive pela potência do passado, projetando na própria carreira a sombra de seu início. Até mesmo quando intentou um retorno às suas origens com outra ficção científica, Prometheus, teve uma recepção dividida entre público e crítica.

    Diante desta filmografia oscilante, o grande atrativo de O Conselheiro do Crime era o roteiro assinado por Corman McCarthy, considerado um dos maiores escritores americanos contemporâneos, e o elenco talentoso formado por Michael Fassbender, Javier Bardem, Brad Pitt e Penélope Cruz.

    A história entregue pelo escritor situa-se longe de sua prosa premiada. Mesmo que uma narrativa e um roteiro cinematográfico se aproximem em certas instâncias, há diferenças estruturais entre eles. Tem-se a ilusão de que um bom escritor é capaz de dominar todas as vertentes narrativas, mas poucos foram capazes de se destacar em todos os gêneros. No Brasil, Rubem Fonseca, em entrevistas, autodeclara-se um cineasta frustrado e seu roteiro de O Homem do Ano, baseado na obra de Patrícia Melo (diretamente influenciada pela obra de Fonseca), não se compara com o talento de prosador que possui. Exemplos que demonstram a disparidade entre estilos de texto distintos.

    O suspense é focado no conselheiro do título que investe no tráfico de drogas à procura de dinheiro fácil. Dentro deste ambiente hostil e desconhecido, o conselheiro se torna alvo fácil quando o comboio com narcóticos não chega ao local estabelecido.

    Sem evidenciar as intenções dos personagens, como se tentasse abordá-los com nuances elípticas, a história é disfuncional. Conduz o público de vazio a vazio, sem intriga, drama, suspense, sem elementos que se destaquem. A história reproduz eventuais componentes vistos em histórias do gênero: a droga produzida em ambientes pobres, o contraste luxuoso dos poderosos que retêm o dinheiro, e as iscas fáceis que decidem adentrar no perigoso negócio. Personagens tipificados e interpretados sem muita exigência pelo elenco.

    A falta de clareza narrativa produz uma frieza não-intencional. Ampliando a sensação de que nem mesmo o roteirista e, por consequência, os atores sabem das motivações dos personagens. E o que parecia ser uma história de erros se anula pela condução mal realizada.

  • Crítica | A Praça Tahrir

    Crítica | A Praça Tahrir

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    Karl Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, escreveu que a história se repete primeiro como tragédia e depois como farsa. Dentro deste espírito, a análise dos eventos históricos após a Revolução Francesa, marco da era contemporânea, sempre nos traz a elementos, conceitos e grupos políticos que tiveram origem nela e em suas ramificações, como a Revolução Russa de 1917. Portanto, não é a toa que a chamada Primavera Árabe (em referência a Primavera dos Povos, de 1848) ainda confunda tanta gente em relação a seus significados e grupos sociais na disputa pelo poder no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, entre outros.

    Filmado in loco por participantes das manifestações que aconteceram em 2011 no Egito, A Praça Tahrir fornece raro material de análise da história enquanto acontece, semelhante ao que aconteceu com o livro de John ReedOs Dez Dias Que Abalaram o Mundo e o documentário venezuelano A Revolução Não Será Televisionada. Os protagonistas egípcios são Ahmed Hassan, Magdy Ashour, Khalid Abdalla, Ramy Essam, dentre outros.

    Tudo se inicia com uma manifestação contra o regime de Hosni Mubarak, ditador há 30 anos no comando do Egito, que instaurou uma sanguinária e violenta repressão a qualquer voz dissonante, com o apoio dos regimes ocidentais, como é comum na região. Formada basicamente por estudantes, jovens e demais camadas sociais sem ligação com partidos políticos ou experiência de luta política, os manifestantes se reuniram, aos milhões, na Praça Tahrir, exigindo a queda de Mubarak, o que aconteceu pouco tempo depois.

    Dali até então, o filme retrata de forma intensa e bem detalhada a sucessão de eventos e a instabilidade que tomou conta do Egito. Com a instauração de uma junta militar de pessoas ainda ligadas a Mubarak e que aumentaram a violência contra os manifestantes, até a aliança desses militares com a Irmandade Muçulmana, uma organização extremista que usa o Islã para obter ganhos políticos, onde juntos organizaram uma eleição de cartas marcadas, que garantiu a vitória do candidato da Irmandade, Mohamed Mursi, que se mostra também um ditador ao concentrar ainda mais poderes em si do que Mubarak havia feito. Mas a resiliência dos manifestantes garantiu também a sua queda.

    Porém, é importante citar também a grande consciência de vários manifestantes, em especial Ahmed, ao dizer que a revolução não estava pronta, e que não bastava a eles retirar presidentes, e sim propor algo para colocar no lugar, pois caso eles não o fizessem, alguém mais organizado o faria. Esse amadurecimento de ideias é raro de ver em embriões de revoluções.

    Todos os eventos descritos acima aconteceram em dois anos, que é o período retratado no filme. Nele, vemos o anseio de jovens empobrecidos que rejeitam a política tradicional, como Ahmed, ou jovens de classe média que estudaram fora, como Khalid, além de figuras ligadas ao extremismo da Irmandade Muçulmana, mas que ao mesmo tempo se divide ao concordar com os amigos independentes, como Magdy. Também vemos a distorção entre a cobertura da mídia oficial, pró-governo, sempre tentando desqualificar os manifestantes e justificar a brutal repressão que receberam, sendo inclusive alguns deles mortos por agentes do Estado. A relação entre Ahmed e Khalid com Magdy é, aliás, um dos pontos altos do filme, onde os dois primeiros, revolucionários independentes, criticam a Irmandade Muçulmana, do qual Magdy faz parte e tenta defender, mesmo quando o presidente era Mursi. Mais ou menos como os defensores do governo federal agem ao tentar defender a repressão aos manifestantes anti-Copa.

    Ao nos levar por toda a turbulência revolucionária do Egito, A Praça Tahrir nos ensina que nenhuma revolução é pronta, e que as mudanças são construídas na prática, disputando espaços, entendendo o contexto e buscando ações que saibam identificar o real inimigo e a melhor tática a ser usada a cada momento, pois um erro nesse cálculo pode favorecer a reação. E caso a força da revolução não seja grande, a reação vem em força geralmente maior que o regime anterior.

    Vendo o filme também dá para traçarmos um paralelo com as manifestações de junho no Brasil, que possui alguns elementos similares, como a desilusão com as instituições políticas tradicionais, a violência da repressão, o papel da mídia, etc. As diferenças vão no fervor revolucionário do povo egípcio, que não contaminou de forma eficiente a população brasileira.

    Obviamente que falta ao filme um trato profissional na qualidade da captação e na edição do filme. Porém, tudo isso fica reduzido perto da importância histórica de pessoas terem registrado esse evento naquele momento, e que provavelmente servirá, por muitos anos, para tentarmos entender toda a avalanche de eventos que ocorreram no Oriente Médio desde 2011. Ainda mais se quisermos entender daqui a alguns anos o que terá acontecido com esses países e esses jovens.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Álbum de Família

    Crítica | Álbum de Família

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    Tracy Letts é um escritor pouco ortodoxo. Suas peças já renderam ótimos roteiros de filmes, como Possuídos e Killer Joe: Matador de Aluguel, ambos de William Friedkin. Em Álbum de Família, o autor parece querer grafar uma afeição em trocar farpas com a instituição família, pervertendo o tempo inteiro os seus conceitos e tradições só para demonstrar o quanto o circo é anacrônico e hipócrita em sua essência.

    Cada um dos rebentos possui o seu próprio código ético e um conjunto de perversões com peculiares e curiosidades. Eles fazem questão de ser assim: seus pecados são a marca registrada de suas vidas, o que os diferencia do mundo e, claro, uns dos outros. A casa da matriarca Violet, interpretada por Meryl Streep, é sempre muito movimentada, e quando está cheia transpira incômodo e sufocamento, produzindo calor em quem a adentra (exceto aos os que lá vivem), além de parecer uma mansão de filme de terror. Violet é amarga, ácida, opressora com todos que a cercam e pouco preocupada com as pessoas na maior parte de tempo. Ainda assim, ela mostra-se interessada em cuidar dos seus, demonstrando a dicotomia que é ser mãe e sofrer do mal misantrópico.

    O momento em que Barbara, a filha mais velha (interpretada pela veterana Julia Roberts), atravessa é muito semelhante ao da mãe. A estética das duas serve como avatar do estado depressivo que atravessam, simplificado pelos cabelos maltratados de ambas. Diante  das tristezas que elas possuem, não há muita lógica em cuidar-se ou transpirar feminilidade. No lugar disso há o cansaço e o enfado em ter de prosseguir uma vida sem muitos objetivos. O único momento em que a primogênita escova os cabelos e demonstra amor próprio é quando está tomada pelo desespero, assim que descobre que pereceu — seu superego assumira e, no estado de emergência, ela age, baseando em seu instinto de preservar o melhor que consegue. As semelhanças entre as duas também se dão na personalidade passiva-agressiva e, obviamente, opressora com as figuras masculinas.

    O trabalho com os personagens utiliza-se do uso de estereótipos cômicos, até mesmo para tornar a louca história mais universal possível, maximizando a sensação de sufocamento e claustrofobia, tanto dos caracteres quanto do espectador.

    Demonstrações pequenas de ódio, como o desprezo pelos mais jovens, é um argumento também mostrado, mas a praxe durante as brigas é o amargor, que segundo Violet, tem a ver com a forma como a mulher envelhece, deixando a leveza e graça para se tornar algo feio, não só externa como internamente. A verdade torna-se uma arma branca que fere os familiares, explicitando de forma cruel como a decadência destrói a auto-estima. O canhão de ofensas de Violet consegue atingir a todos, e ela se usa dos segredos de toda a vida para humilhá-los, mesmo os que não disputam rivalidade com ela.

    O roteiro de Letts é cruel e pródigo em causar terror, mostrando, nas relações familiares doentias, os sentimentos que variam entre o ódio completo e o cinismo exacerbado, contrastando com a solidariedade mútua. Todos os personagens são repletos de defeitos, não há por quem torcer, tampouco existe redenção moral; mesmo os que aparentam fragilidade e quietude, escondem uma carga de ofensas e um potencial destrutivo, condição esta que parece inerente ao clã. O que Barbara faz, em relação às mágoas impingidas sobre suas irmãs para supostamente protegê-la da verdade, a faz perceber que ela não está tão distante do lodo da geração anterior. O signo da peruca de Violet funciona como uma máscara no intuito de esconder a fragilidade da alma da mãe, que só é agressiva quando veste a cabeleira postiça; quando não a usa, se mostra vulnerável e semi-morta, como sua alma prossegue.

    John Wells conduz o filme com a maestria de não atrapalhar as ótimas atuações de seu elenco e nem manchar o belo roteiro que tem em mãos.

  • Crítica | Colosso de Rodes

    Crítica | Colosso de Rodes

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    Antes da parceria com Clint Eastwood, e após participação como diretor de segunda unidade em alguns filmes (Quo Vadis, Ben Hur, Uma Cruz à Beira do Abismo) Sergio Leone finalmente iniciaria sua carreira como realizador (oficial) de filmes, lançando em 1961 uma versão sobre a catástrofe lendária em Rodes.

    O paupérrimo orçamento fica evidente logo de cara, seja com as cenas de luta sofríveis, pelos erros de continuidade, pelo cromaqui tosco. Uma das marcas de Leone aparecia com a escolha do elenco cosmopolita, com o americano Rory Calhoun – um decadente ator de westerns clássicos, como A Lei do Oeste, Domino Kid, O Vingador e Revólver Mercenário -, com o francês Georges Marchal e com a belíssima italiana Lea Massari. Os cenários também carregam em si um caráter de filme de baixo orçamento, especialmente nas masmorras e cavernas, no entanto, tais instalações contrastam com as suntuosas e quase perfeitas obras arquitetônicas.

    A estátua/monumento faria de Rodes uma boa alternativa para a rota marítima de Grécia, e internamente, os opositores eram raptores, meio bárbaros e nada abertos ao diálogo, o que pode gerar no espectador um pouco de xenofobia. O caráter da fita ainda não era visceral como as fitas de westerns spaghetti, os astros usavam gomex e seus cabelos permaneciam intactos mesmo com todas as adversidades do tempo, mas também não cai no erro de ser panfletário e não faz propaganda nacionalista gratuita, características comuns aos filmes históricos estadunidenses.

    As planícies, as montanhas e a paisagem formam um belo quadro ao fundo da película e é mérito total de Leone, que em alguns momentos dá ares de cinemão ao seu barato filme.

    Apesar da abissal diferença entre os atores e os dublês – flagrados em closes algumas vezes – a luta no interior do Colosso é muito boa, tanto na reconstituição do artefato histórico, quanto na forma de filmar, os ângulos escolhidos por Leone põem a visão do espectador a perspectiva que importa, escondendo as falhas nos objetos de cenário. No entanto, o pieguismo nas cenas edificantes de Dario é enorme, em nada diferente de outras produções semelhantes.

    A catástrofe natural subjuga os planos de dominação do lado dos “mocinhos” e dos “bandidos”, a destruição da cidade mostra que as artimanhas e conchavos feitos por parte dos mortais não são nada diante dos desígnios e vontades do Divino, as maquetes sendo destroçadas tornam-se uma piada involuntária, mas não constituem incômodos. Foi preciso que o símbolo maior do poder local para que a máxima de “Cidade da Paz” fizesse real sentido. O esqueleto do roteiro de Colosso de Rodes é muito semelhante ao de Os Últimos Dias de Pompeia, com temas como revolta, insurreição, desastre orgânico e com um final feliz para o casal de protagonistas. Colosso de Rodes é dos filmes de Leone o menos notável, mas possui muitos dos méritos que tornariam o diretor na lenda que se tornaria.

  • Crítica | 300: A Ascensão do Império

    Crítica | 300: A Ascensão do Império

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    Dirigido por Noam Murro, com roteiro escrito por Zack Snyder e Kurt Johnstad, o filme, assim como o anterior, é “baseado” numa graphic novel de Frank Miller, Xerxes. “Baseado” é modo de dizer, já que a HQ sequer tem previsão de lançamento. Miller finalizou apenas as duas primeiras edições, entregues para a Dark Horse Comics no início de 2011. Deve retomar o trabalho assim que terminar sua colaboração com Robert Rodriguez nas filmagens de Sin City 2.

    O filme não é uma sequência de 300, nem uma prequel. A história se passa concomitantemente à Batalha das Termópilas, onde está Leônidas (Gerard Butler) e seus espartanos. A trama se inicia 10 anos antes de 300, na Batalha de Maratona, que foi perdida pelos persas liderados por Dario (Igal Naor), pai de Xerxes (Rodrigo Santoro). Após a morte de Dario, Xerxes quer retaliar os gregos pela humilhação sofrida em Maratona. Auxiliado por Artemísia (Eva Green), rainha de Halicarnasso, investe pelo mar contra os gregos liderados por Temístocles (Sullivan Stapleton), general reconhecido por suas estratégias de guerra. O clímax ocorre na Batalha de Salamina, que ocorreu no estreito que separa Salamina da Ática.

    Está explícito na tela que praticamente toda a ambientação do filme foi feita em computação gráfica. Contudo, diferentemente de 300, a fotografia não é tão estilizada, não é tão semelhante à estética dos quadrinhos. Fica de lado a intenção de reproduzir fielmente os quadros da graphic novel – objetivo plenamente atingido em 300 – e apesar de tantos efeitos em CGI, ganha-se em realismo. Ambas são soluções satisfatórias.

    Não é um documentário, é uma obra de ficção, portanto deve-se relevar as imprecisões históricas e a liberdade criativa do roteiro. Em linhas gerais, o filme não distorce demais os fatos em prol da trama. A mistura entre História e ficção, realidade e fantasia, está bem equilibrada. Mas isso nem tem tanta importância, pois percebe-se que interessa mais a ação do que a trama em si. E, enquanto 300 foca a ação numa luta em terra firme, neste o ponto alto são os embates marítimos. Não apenas os confrontos entre naus persas e gregas, mas as lutas homem a homem nos conveses.

    Para os fãs do gênero, há espadas, escudos, lanças, flechas, sangue e membros decepados de sobra. E muito, muito slow motion. Tanto que chega a enjoar. As lutas são muito bem estruturadas e executadas, disso não há dúvida. Mas o uso excessivo da câmera lenta deixa-as enfadonhas em muitos momentos. O ritmo das cenas seria bastante beneficiado com uma montagem mais “uniforme”. Pois se todos os momentos são destacados com slow motion, nenhum deles efetivamente mereceria destaque.

    Supostamente, Temístocles é o protagonista, mas o personagem é tão insosso que fica difícil de se sustentar. Aliás, mesmo pouco desenvolvida como os demais personagens, é Artemísia quem consegue prender a atenção do espectador. Eva Green a interpreta com “sangue nos olhos”. Qualquer sequência – exceto as de batalha – que não a tenha em cena é extremamente tediosa.

    Se a história é simples, os personagens pouco elaborados, o mesmo não se pode dizer das batalhas marítimas. São todas grandiosas, com manobras navais literalmente de encher os olhos. E quando o confronto parece que será apenas mais do mesmo, algum estratagema incomum surge como elemento surpresa, mantendo a atenção e deixando a ação ainda mais interessante. Alguns expedientes utilizados nos embates parecem inverossímeis, beirando o exagero. Mas quem se importa? O espetáculo é tão bem coreografado que esses pequenos detalhes se perdem no quadro geral e não atrapalham em nada. É divertido, com cenas de ação bem feitas, o 3D não trapalha. Como entretenimento cumpre sua função satisfatoriamente.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Três Reis

    Crítica | Três Reis

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    Três Reis começa como um sinal de mudança de tempos, anunciando a metamorfose da era belicista americana, retratando a Guerra do Golfo sob uma ótica singular e engraçada. A maneira jocosa, totalmente diversa de como era retratada o conflito pela imprensa (a época) e mais diferenciada ainda da cobertura que fora realizada na guerra americana anterior: Vietnã – foi uma boa maneira de David O. Russell mostrar que os tempos eram outros, esta era a Guerra da Mídia, em Nam a opinião pública derrubou os EUA, e este erro teria de ser evitado a todo custo.

    A aventura com premissa escapista joga o trio de protagonistas numa curiosa caça ao tesouro, repaginando os filmes de pirata, atualizando-o não só na linguagem textual, mas também nos cenários, saindo os sete mares para explorar o desértico cenário do Oriente Médio e tirando os estereótipos de piratas desregrados e maltrapilhos, pondo militares porra loucas no lugar.

    A obstinação da repórter Adriana Cruz (Nora Dunn) em busca do furo é digna de nota, especialmente se comparada as atitudes de sua rival (Cathy Deitch, feita pela já maravilhosa Judy Greer), dois lados da investigação jornalística são mostradas e suas procuras pelo sucesso ajudam a compor o quadro louco da trama proposta pelo roteiro.

    A edição do filme privilegia o tema da comédia, mostrando a caça pelo ouro e a tentação dos soldados em embolsar os valores, mas a história transita entre isso e demonstrações de maus tratos aos cidadãos iraquianos. O propósito dessas transições é mostrar humoristicamente o quão ambígua é a relação entre o povo e seu ditador, revelando o pouco apoio da plebe a imposta e autodeclarada autoridade local. Mesmo os “bravos” yankees não são unânimes quanto ao nível de interferência que deveriam empregar na situação. Em muitos momentos a comédia é posta de lado, fazendo do filme um filhote de Dr. Fantástico de Stanley Kubrick, abusando do humor negro para provar seu ponto. As cenas violentas são registradas numa velocidade diferente, truncada, quase como se Russell estivesse registrando-as a contragosto – a guerra é impessoal, é devastadora com quem está envolvido nela.

    O foco, depois da captura de Troy Barlow (Mark Wahlberg) muda, a câmera na mão prevalece em detrimento das cenas em terceira pessoa, a intenção é imergir o público na incomoda sensação da captura e na transformação, de um caçador de um baú lotado de opulência para o estado miserável de um simples refém. Nesse estágio, o roteiro permanece repleto de situações engraçadas, mas as piadas são não mais os percalços da procura pela riqueza e sim as promessas infundadas de que o governo de Bush Primeiro auxiliaria a castigada escuma iraquiana.

    As cenas que mostram os órgãos internos sendo alvejados pode ser encarado como uma alegoria as feridas dos militares retratados, que superficialmente parecem bem e motivados, mas que por dentro estão apodrecendo, graças a situações que se meteram graças a sua cobiça desmedida. A motivação de Elgin (Cube), Gates (Clooney) e Barlow muda e a frustração por não conseguir prosseguir com a sua missão é maior que sua fome pelo ouro. A nobreza dita no título se manifestaria nas atitudes do trio, que após a odisseia mudaram sua postura a fim de se diferenciar dos seus superiores engravatados, o desfecho pode ser encarado como piegas, especialmente graças a mensagem edificante, mas também pode ser visto como uma evolução na jornada dos personagens, e neste ponto, o trabalho de David O. Russell é competentíssimo.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Huckabees: A Vida é uma Comédia

    Crítica | Huckabees: A Vida é uma Comédia

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    A introdução escolhida para este I Heart Huckabees é um arroubo de insatisfação do ativista ambiental e poeta frustrado Albert Markovski, personagem de Jason Schwartzman, inconformado com a transformação que o pântano vizinho a si sofrera, sendo praticamente dizimado, sobrando uma única rocha – sua insignificância é tão grande que chega a dar pena e não simpatizar com o personagem é praticamente impossível.

    Mais uma vez David O. Russell escolhe um protagonista neurótico e inseguro para ser o herói de sua jornada, mostrando o homem pequeno diante do destino, buscando mais uma vez uma boa razão para existir. Diferente de Procurando Encrenca, onde o personagem principal buscava sua origem, procurando a raiz de sua árvore genealógica, Albert procura a outra ponta de sua vida, tentando entender onde chegaria. A película é ainda mais idílica e surreal que a anterior do realizador, mostrando uma organização que investiga as vicissitudes da vida com uma abordagem lúdica e um tanto nonsense flertando com surrealismo, através de um transe meditativo que eleva a psiquê do paciente a um estágio em que este desconstrói as figuras importantes de sua vida para encontrar a razão de seus problemas.

    A personagem de Naomi Watts é a prova da obsolescência programada do homem dentro do sistema de extremo capitalismo. Ela quase nunca é chamada por seu nome (Dawn Campbell), mas sim por uma alcunha – a voz da Huckabees – mostrando uma demasiada falta de identidade, praticamente inexistente. Seu clamor por atenção é legítimo, já que atrás do sorriso, do corpo perfeito, sem rugas ou imperfeições esconde-se uma alma aflita que vê se avizinhar a velhice e a perda do que a distingue da multidão, sem falar que sua garota propaganda em depressão é algo genial por si só.

    Huckabees fala do mundo corporativo, da impessoalidade que um lugar repleto de empresas que só visam o lucro e de como os homens vivem neste ambiente, perdendo sua individualidade e sendo tratados por meio de estereótipos. Mesmo os ramos que deveriam não se pautar nisto sofrem com competições mil por clientes que deveriam ser únicos e não estereotipados. Artifícios como máquinas de sucção de insegurança e repositores de bons climas mostram o quão mecânico tornou-se o trabalho dos Jaffes. Uma saída plausível seria a junção de Tommy Corn (Mark Wahlberg) a Albert, a fim de que ambos conseguissem a transcendental mudança de perspectiva – outro clichê psicológico de solução por meio de apoio mútuo, associando duas almas igualmente perturbadas e alinhadas com pensamentos pró-ecológicos e até alinhados a esquerda, necessariamente avessos aos pilares de tradição, família e propriedade. Mesmo com esta jogada de sucesso pretensamente garantido, a união não garante lograr êxito, visto que o discurso dos dois é agressivo e não sabe se adequar aos adeptos mais conservadores – a crítica é clara ao problema comum das “minorias”, que tentam defender os marginalizados sem se fazer entender aos incautos.

    A linha de raciocínio dos investigadores do inconsciente defendida por Vivian (Lily Tomlin) e Bernard (Dustin Hoffman) é muito pautada no otimismo, enquanto para Caterine Vauben (Isabelle Huppert), a vida é um conjunto de eventos tragicômicos organizados ao acaso, a disputa é quase como uma luta entre sofistas e niilistas pela atenção do indivíduo à procura do “algo”. Tal embate deixa Albert e Tommy confusos, e cada um embarca de forma diversa na viagem proposta pelos analistas.

    Albert precisa ver o seu nêmese Brad (Jude Law) no momento mais decadente para finalmente ter sua epifania – que serve para si e também para reflexão dos terapeutas rivais. A crise do ser e a autocomiseração são unidas, o ponto de coalizão, o lugar onde os diferentes podem achar suas semelhanças, perceber que não há tanta distinção entre seus estados de espíritos e tornarem-se um. O roteiro de O. Russel e Jeff Baena pode e deve gerar múltiplas interpretações, e as ramificações destas são infinitas, mas a linha guia dele passa pelos incômodos inerentes a vida humana e como cada individuo tende a tratar disto, mesmo os descompensados e os mentalmente desequilibrados.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Procurando Encrenca

    Crítica | Procurando Encrenca

    flirting with disaster

    O texto de Procurando Encrenca é iniciado de forma nonsense, com uma discussão sobre a descoberta da verdadeira mãe de Mel Coplin, personagem de Ben Stiller. O método escolhido e a série de eventos que ocorre logo após isso é uma ótima forma de demonstrar o quão bagunçada é a vida do personagem e justifica toda a sua neurose, insegurança e conservadorismo em relação ao sexo. A inserção por parte do público é automática.

    O elenco semi-estelar a época – com Tea Leoni, Patricia Arquette, Josh Brolin, etc – não esconde o caráter artesanal e barato da produção, tampouco o clima de comédia de situação, pervertida em muitos pontos, mas que transpira naturalidade e lugar comum: toda essa familiaridade aumenta o escopo do inesperado e faz as piadas inesperadas funcionarem ainda melhor.

    Tudo é tosco, até a forma de Mel flertar com outrem é rudimentar e grosseira, além disto, as indiscrições ocorrem nos locais menos apropriados possíveis. Além do caráter proibitivo do namorico em primeira instância, o evento ainda é feito de forma agressiva e desmoderada – os filmes de Russell neste início de carreira têm uma temática em comum, grifando demais as tensões sexuais entre “entes proibidos”.

    A busca de Mel por sua origem genética é uma manifestação da avidez que sente por fugir de sua antiga vida, repleta de neuroses e algumas outras anomalias mentais, mas nada poderia prepará-lo para a odisseica aventura que sofreria ao atravessar o país atrás de seus pais. Os múltiplos enganos ao tentar achar a real identidade de seus genitores é confusa, mas não é nada comparada ao road movie carnavalesco de relacionamentos ilícitos e inter-sexuais, a maneira como cada uma das pontas do “pentângulo” amoroso reage é diversa, mas o tom de quase todas elas é muito regado de cinismo e desfaçatez. O curioso é que o grito de moralidade que ocorre dentro dessa situação é de Paul (Richard Jenkins), um personagem que deveria ser a antítese disto, visto que é um homossexual que vive dentro de seu armário e que tem muito receio de se expor graças a profissão que exerce como policial – o que demonstra que apesar de sua orientação sexual, não é muito diferente de seus colegas de farda quanto ao conservadorismo em relação a questões ligadas a monogamia.

    Os Schliting, verdadeiros pais de Mel – feitos pelos ótimos Alan Alda e Lily Tomlin – são absolutamente desequilibrados. A capa de superficial felicidade familiar esconde um passado marginal e uma rotina ainda pautada na ebriedade, no ácido, boemia e falta de lucidez mesmo nas atividades corriqueiras. O desequilíbrio que impera na vida de seus progenitores reflete nas atitudes de Mel, mesmo sem ter tido contato com eles durante sua vida, a insanidade parece estar impressa no DNA deles e cada um dos indivíduos enfrenta isso a sua maneira.

    Ao final, a mãe adotiva de Mel vê com maus olhos a possibilidade de um casal gay criar uma criança, argumentando que tal cópula traria um conjunto de neuroses desnecessárias para um infante – o que é no mínimo curioso, diante do desequilíbrio emocional que ocorre com a matriarca dos Coplin. O tempo todo David O. Russell brinca com os estereótipos familiares e critica a hipocrisia ocidental, especialmente quando comparados os homens de família com os ditos desajustados. O guião comprova que a pretensa normalidade pregada pelo americano médio não garante uma psiquê saudável e livre das inconveniências da insanidade “moderada”.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Carrie: A Estranha (2013)

    Crítica | Carrie: A Estranha (2013)

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    Quarenta anos após o lançamento de seu primeiro romance, Stephen King é considerado um dos melhores escritores de suspense. Influência que transpassa a maioria dos literatos que encontraram no autor uma espécie de precursor contemporâneo do medo.

    Lançado em 1974, marcando sua estreia, Carrie – A Estranha apresenta a inventividade do autor ao narrar a história de uma garota colegial que descobre poderes telecinéticos. O arroubo narrativo, que King considera cru, produz uma história entrecortada com documentos ficcionais, trechos de outros livros, citações de especialistas, promovendo uma falsa veracidade dos fatos.

    Dois anos após o lançamento do romance, Brian de Palma trouxe a história para as telas. O roteiro de Lawrence D. Cohen concretiza uma adaptação eficiente e que, reconhecendo a estrutura narrativa de King (a qual é impossível de ser transportada para as telas sem parecer um falso documentário) escolhe um outro foco sobre a mesma história.

    A primeira cena da produção de 1976 apresenta um grupo de garotas no vestiário. A câmera passeia com naturalidade pela nudez feminina até encontrar a estranha Carrie no final de um corredor. A cena não sexualiza os corpos nus, deixando-os como parte de um cotidiano natural.

    A personagem interpretada por Sissy Spacek se tornou icônica, principalmente quando banhada em sangue em sua formatura. Como filme, Carrie foi bem sucedido tanto como produção de terror quanto destaque da carreira da equipe envolvida. Quase 40 anos após a eficiente versão de De Palma, uma nova produção cinematográfica foi lançada, dirigida por Kimberly Peirce (Meninos Não Choram), e com Chloë Grace Moretz e Julianne Moore no elenco.

    Adaptar uma obra com versões lançadas anteriormente garante uma base de retorno financeiro maior do que um produto inédito, ao mesmo tempo em que nasce a sombra da comparação. Os produtores ficam em um impasse entre reconhecer as adaptações anteriores ou negá-las, afirmando que a obra literária foi a única fonte fiel. Mesmo que se tente esconder, é clara a reprodução do filme anterior na nova produção.

    As mesmas modificações de roteiro e composições cênicas construídas por Cohen e De Palma estão presentes neste Carrie – A Estranha. A cena inicial do chuveiro se repete. Mas, transformada através dos anos, tem a mão da vigília dos bons costumes e esconde a naturalidade da nudez. O que resulta em uma Carrie desesperada a, em boa parte desta cena, manter-se com as mãos retesadas ao corpo, segurando a toalha para esconder a sensualidade e ganhar uma faixa indicativa menor.

    Alem da proximidade exagerada com a versão anterior, a seleção de elenco falha ao colocar Moretz como personagem central. Escolheu-se uma garota bonita demais para um personagem cuja estranheza é uma de suas características. Sem a capacidade cênica de Spacek, a atriz demonstra sua disparidade em relação aos outros alunos com olhares assustados, uma cruz no pescoço e um cabelo mal penteado. Não há o medo de uma garota que se sente deslocada na escola. Sem o reconhecimento do drama, não há ação que se sustente.

    Até mesmo a exímia Julianne Moore não consegue entregar uma interpretação além do comum. Novamente o visual exagera na caracterização de uma cristã fervorosa, parecendo esconder qualquer vontade da atriz em dar credibilidade a uma mãe que vê o mundo como a panela do diabo e as mudanças hormonais da filha como primeiro contato com este mundo pecaminoso.

    Mãe e filha não estabelecem tensão necessária para que a história se sustente, destruindo uma das bases da história. Ainda que os efeitos especiais sejam bem compostos, não deixam de ser um decalque da versão anterior, em que planos cênicos parecem copiados em demasia. Não há espaço para originalidade.

    Sem a credibilidade dramática, sem o suspense aterrorizante, o remake resulta em uma obra sem razão, falha em seus princípios. Ainda que a afirmação caia em uma nostalgia que observa o passado com maior brilhantismo, a produção de De Palma continua tão forte quanto a obra de King, um mestre do gênero até hoje e poucas vezes bem adaptado a outras mídias.

  • Crítica | Pompeia

    Crítica | Pompeia

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    Filmes de tragédias anunciadas, isto é, cujo final já é de conhecimento público precisam ter um mínimo de criatividade para prender a atenção do público, já que saber como termina não é o foco. Não é o caso de Pompeia. Dirigido por Paul W.S. Anderson, conhecido por alguns filmes da franquia Resident Evil, não nega a fama do diretor que costuma preterir a narrativa em favor do visual.

    Milo, o Celta (Kit Harrington) – o Jon Snow de Game of Thrones – é de uma “tribo de bárbaros” que foi dizimada por uma horda romana. É capturado e feito escravo. Cresce e se torna um gladiador. Levado a Pompeia para lutar, conhece uma moça, Cassia (Emily Browning), filha de Aurelia (Carrie-Ann Moss) e Severus (Jared Harris), um comerciante rico. Durante a erupção do Vesúvio, o Celta precisa salvar Cassia das mãos do senador Corvus (Kiefer Sutherland).

    A junção de filme-catástrofe com épico romano dificilmente escaparia de estar repleta de clichês. Nada contra clichês, desde que bem utilizados. Mas um pouco de criatividade é sempre bem-vindo. No entanto, o roteiro parece uma colcha de retalhos de outros filmes. O início remete a Conan. O envolvimento do Celta e Cassia – com o antagonismo de Corvus – lembra Jack, Rose e Cal Hockney em Titanic, sem contar a catástrofe já esperada. E o “retalho” maior cabe a Gladiador. A quantidade de cenas similares é tamanha que tem-se a impressão de estar assistindo a uma versão para TV do filme de Ridley Scott. O escravo que se torna gladiador. O amigo do protagonista é outro gladiador negro, Atticus (Adewale Akinnuoye-Agbaje) – o eterno Mr. Eko de Lost. No anfiteatro da cidade, ocorre uma luta entre gladiadores simulando uma batalha real, em que o grupo que deveria perder – onde está o protagonista – se organiza e vence. Em suma, mesmo que as cenas de luta sejam interessantes, a falta de originalidade e a sensação de déjà-vu atrapalham.

    Os aspectos políticos e históricos são apenas tangenciados. O que é uma pena, pois poderiam dar uma “encorpada” na trama. Os personagens são rasos e pouco carismáticos. A mocinha é insossa. Seus pais seguem um modelo bem comum – pai justo e compreensivo, mãe dedicada. O mocinho, que deveria ser estereótipo do bravo lutador, passa boa parte do tempo com cara de cachorro perdido. O romance entre os dois não convence, não se percebe qualquer atração ou tensão entre eles. Nem se pode culpar os atores pela bidimensionalidade dos personagens. Ao menos o vilão, apesar de caricato, é vivido de forma enérgica – e quase divertida – por Sutherland.

    A fotografia não faz feio. Mas boa parte da violência – e do sangue – não aparecem em cena, para permitir que o filme seja PG-13, classificado para maiores de 13 anos. O 3D neste filme, que felizmente não é convertido, consegue fazer alguma diferença, com grandes planos abertos repletos de detalhes ao fundo dando realmente a impressão de profundidade – não apenas nas legendas.

    E já que é tudo bastante previsível e quase nada consegue surpreender o espectador, resta aguardar pelo cataclisma final, torcendo para que seja grandioso e espetacular. E não decepciona. Como todo bom filme-catástrofe há multidões em correria, pessoas pisoteadas, uma criança perdida resgatada por um dos mocinhos, bolas de fogo, prédios desmoronando, cinzas voando, enquanto o casal central se esforça para escapar do vilão e do desastre. Enfim, polegar para cima para fotografia e efeitos especiais; e polegar para baixo para roteiro e personagens.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.