Categoria: Críticas

  • Crítica | Shotgun Stories

    Crítica | Shotgun Stories

    Shotgun Stories

    Son Hayes (Michael Shannon) aparece na primeira cena do filme sem camisa. Seu corpo é mostrado repleto de cicatrizes nas costas, que mais tarde se revelam um segredo pessoal e de sua família. Seu porte não é nada atlético, garantindo-lhe um aspecto de “aparente” fragilidade natural, característica logo contrariada no decorrer da história.

    A péssima relação familiar, revelada em minutos de exibição, escancara os motivos que o fazem ser tão isolado.  O personagem de Son é real. Com defeitos e falhas, não tem pretensão de ser diferente do que apresenta. Funciona como uma tela em branco, que reflete tudo exposto a sua frente. A reprodução é fidedigna, sem condescendência e rodeios. Tal crueza certamente atrapalha a relação (surpreendentemente existente, visto seu aspecto) com sua parceira/esposa.

    A câmera de Nichols é natural. A forma de filmar é fluida, sem firulas. Sua intenção é mostrar de forma fiel o modo de vida dos habitantes comuns da cidade, sem pretensões de glamourização e afins. Somente registra como estes tocam suas ordinárias vidas e o quão bizarra pode ser a existência do homem, mesmo quando esta segue todos os padrões de normatividade e valorização da família, tradição e propriedade. Son, mesmo não demonstrando de início, tem em seu interior um conjunto de metas deveras ambiciosas, e a frustração de não te-las alcançado se reflete em seu modo passivo/depressivo de encarar a rotina. Ele tem dificuldade de expressar sentimentos, mesmo diante do filho.

    A briga familiar, completamente descabida se analisada de forma fria, deixa rastros de destruição dos dois lados do entrave, onde nenhuma das partes se enxerga como errada, ambas lutam com unhas e dentes por seus “ideais”. Explicita-se uma crítica do realizador às atitudes cegas tomadas de forma passional, praxe infelizmente constante em grande parte dos lares rurais e outras localidades. O constrangimento com os “familiares” dos envolvidos é grande, especialmente em razão da cidade onde vivem ser tão diminuta. A possibilidade de mais confrontamentos só aumenta com o convívio entre os “iguais”, no entanto Son é o retrato da serenidade. Resoluto e calmo em aparência, contraria as evidências internas de ódio que plantou em seu coração e no de seus irmãos. Sua reação é raivosa e carregada de rancor, mas em momento algum é barulhenta ou violenta e, ainda assim, agride muito mais do que um arroubo de emoções ou um estouro de impropérios.

    As maneiras distintas de encarar a perda de um ente querido e as possibilidades de vingança são mostradas de forma clara e direta, explicitando o rompimento dos limites por pessoas de personalidades diversas. A mensagem que Jeff Nichols quer passar pode ser encarada de duas formas: uma crítica direta à violência com que são resolvidos os conflitos, das menores esferas de influência até as maiores; ou pode ser vista como contemplação à natureza humana, agressiva, odiosa e rancorosa. A violência que permeou a existência de Son cobra o seu preço, exigindo de si, e dos que o envolvem, mais e mais ódio e derramamento de sangue. A atitude mais corajosa, que traria a hipótese de uma convivência amistosa, provém do personagem mais covarde retratado, o irmão Bob Hayer (Douglas Ligon). Seu modo de enxergar o mundo prova-se do ponto de vista mais interessante e cabível apresentado na trama.

    O roteiro passa um argumento pacifista sem apelar para moralismos ou armadilhas politicamente corretas, mesmo com o fim do bem sobrepujando o mal. Shotgun Stories é uma análise que evidencia o quão selvagem pode ser o modo de vida do homem, se ele assim o permitir, e visa causar uma reflexão sobre o que realmente vale na defesa do que se acredita ser o certo.

  • Crítica | Rota de Fuga

    Crítica | Rota de Fuga

    Escape-Plan

    O sonho de consumo de todo fã de filmes de ação era ver os dois maiores brucutus dos anos 80 contracenando juntos – preferencialmente num embate de vida ou morte. Isso ocorreu em doses homeopáticas nos dois episódios da franquia Mercenários. Rota de Fuga viria para suprir a lacuna de um filme inteiro em que Sylvester Stallone (Ray Breslin) e Arnold Schwarzenegger (Emil Rottmayer) interagiriam com tempo de sobra.

    A história não tenta reinventar nada, é somente um filme de fuga da prisão, mas com uma pompa que se mostra desnecessária com minutos de exibição. O roteiro de Jason Keller e Miles Chapman não é lotado de clichês, seu excesso é nos devaneios (mal filmados) de Ray Breslin e nas “saídas de situações” confusas. A desorganização geral tira o poder do clímax, joga o que deveria ser importante na vala comum e torna os dramas mostrados em tela em situações vexaminosas.

    A história não é de todo o ruim, mas as escolhas do elenco são muito equivocadas, especialmente a da dupla de protagonistas. Este era um filme para atores quarentões e canastras, como Tom Cruise e Ben Affleck por exemplo, e não os geriátricos Sly e Schwarza – acreditar que os dois senhores podem fugir de prisões como querem é demais até para a “suspensão de descrença”. É mais fácil crer que eles são capazes de derrubar republiquetas, atirar com metralhadoras na altura da barriga e matar tudo que vive e respira ao redor… é possível até vê-los salvando o mundo de aliens ou de ameaças humanas, mas colocá-las como engenhosos arquitetos e planejadores geniais não é galhofa, é só mau gosto.

    Não chega a ser um dos piores exemplares da filmografia dos dois astros, mas não parece em momento nenhum que os papéis foram feitos para eles. A frustração deste Rota de Fuga é semelhante ao sentimento horrendo de assistir-se As Duas Faces da Lei, que reunia Pacino e DeNiro. O carisma dos atores não garante uma experiência prazerosa, e nem os profissionais com maior talento dramatúrgico podem exercê-lo, dado o podamento que eles sofrem.

    Escape Plan falha como action movie, gera uma expectativa que não é para si. A presença de Stallone e Schwarzenegger faz com que cresça um sentimento de avidez por ação, que não é satisfeito em praticamente momento nenhum, e outro grave defeito da obra é que o problema citado é notado muito cedo no filme.

    As sequências finais são até bem feitas, o suspense e a perseguição fazem o espectador ficar atento como nunca no filme, mesmo com o péssimo antagonista vivido por Jim Caviezel. A última luta, entre Stallone e Vinnie Jones tem bons momentos, mas termina de forma melancólica, com um desfecho aquém do esperado de uma batalha entre brucutus de diferentes gerações – até lembra visualmente o entrave entre Villain e Barney em Mercenários 2. Já o momento em que Rottmayer toma uma metralhadora em punho e começa a atirar nos capangas poderia ser mais sangrenta, o que não ocorre, mesmo este sendo um filme Rated R, o que é lastimável por si só.

  • Crítica | Clube de Compras Dallas

    Crítica | Clube de Compras Dallas

    Dallas Buyers Club

    Ron Woodroof, personagem de Matthew McConaughey, é mostrado imediatamente como um sujeito desregrado cuja vida boêmia o empurrou para o estágio em que está. A câmera o registra a meia distância em suas atividades “marginais”, sua aparência é de decadência, seu corpo aparenta uma enorme fraqueza através da magreza excessiva e das tosses constantes. A notícia de que seria um soropositivo o pega de surpresa e o faz começar negando o problema. Dallas Buyers Club se passa nos anos 80, onde ainda não se tinha total clarividência sobre a doença, e onde ainda se acreditava que esta era algo passado somente em relações sexuais entre homossexuais.

    A percepção que está mal faz com que Woodroof apele para o suborno, numa brincadeira do roteiro com o Modelo de Kluber Ross (e seus cinco estágios: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação), mas não tira de si o comportamento machista. Tal postura pode ser encarada como um mecanismo de defesa, uma dificuldade de conviver com sua condição, especialmente no ambiente em que está, e a coisa só piora quando os seus “iguais” o tratam como as “bichas”, que são basicamente o seu objeto de ódio até ali.

    À sua maneira Ron tenta dar a volta por cima de seus problemas, a escolha do ramo de negócio o faz encarar sua condição com muito mais positividade, e aparentemente ele até melhora seu aspecto, tendo poucos ataques. Ele expande suas fronteiras, torna-se cosmopolita, na tentativa de retomar seu destino em suas mãos, mas as medidas não passam de paliativos.

    Os ataques e recaídas, simbolizadas com um zumbido intermitente são uma ótima artimanha para demonstrar o descontrole de Ron, a escolha de Jean Marc Vallée demonstra o quão suscetível ele permanece ao vírus, mas não invalida seu meio de vida marginal, visto a propensão da Doutora Eve Saks (Jennifer Garner) aos resultados que seus pacientes têm ao comprar de Ron seus medicamentos. A filmografia de Vallée costuma se valer de um discurso que aborda temas ligados a minorias secularmente excluídas, mas sem tratá-las como pobres coitadas (como em Lista Negra e Café de Flore). O clube de compras é mais do que uma tola tentativa de lucrar em cima da desgraça alheia – coisa que nem mesmo Ron percebe de início.

    As atuações estão impecáveis, Matthew McConaughey faz um sujeito bronco, preso numa situação calamitosa mas que tem criatividade o suficiente para se reinventar e reconsiderar seus conceitos. Os coadjuvantes também são competentes, Jennifer Garner e Denis O’Hare, mas é Jared Leto que obviamente rouba as atenções, com sua Rayon no começo como uma louca drag queen e ao final na decadência da doença, sem conseguir se livrar de seus vícios e definhando dia a dia. Sua vida afeta diretamente a de Ron e o faz perceber o quanto ele mesmo mudou.

    A discussão ética presente no roteiro é obviamente válida, especialmente quando de pensa na burocracia do sistema médico americano e no intervencionismo do homem comum para corrigir a conformidade que lhe é imposta. A venda ilegal das drogas impingida por Ron Woodroof evolui de estágio, de um simples tratamento próprio passando pelo lucro e desembocando na defesa de um ideal que beneficia uma parcela da sociedade que antes era até perseguida pelo indivíduo em questão, mas que mesmo diante de todas as qualificações honrosas ainda é diminuto se comparado ao poderio dos conglomerados farmacêuticos. A resistência de Ronald tem seus louros ao final e ele se torna um símbolo da luta de muitos doentes por melhores condições ao conselho médico estadunidense, ainda que este reconhecimento só tenha vindo anos após seu falecimento em 1992.

  • Crítica | À Procura do Amor

    Crítica | À Procura do Amor

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    A vida de Eva (Julia Louis-Dreyfus) está um caco, sua rotina no trabalho é mostrada como algo desprazeroso e pesaroso, e sua vida amorosa não tem tido grandes momentos ou empolgações… Até que esta vai a uma festa, e sua perspectiva muda após conhecer Marianne (Catherine Keener), uma mulher resoluta e interessante, e um pouco mais tarde, um sujeito de meia-idade e não muito atraente chamado Albert (James Gandolfini), que mesmo com esses atributos, se destacou da maioria dos homens presentes por seu ar de indiferença.

    Algo incomum ocorre nas relações de Eva, mesmo com os amigos mais íntimos, as conversas não acontecem face a face quando não são necessárias – ela faz largo uso do skype, artifício que poderia ser encarado como um substituto ao telefone, mas que também dá margem para a interpretação disto ser um traço de impessoalidade em sua senda, principalmente se analisados os seus defeitos. Sua insegurança se apresenta sob diferentes formas, seja nas relações distantes já destacadas como também na necessidade de aceitação que tem junto as pessoas, de precisar sempre agradar terceiros para se sentir bem. Isso só parece ser realmente quebrado com a aproximação de Albert.

    Enough Said é uma comédia que se baseia bastante nos constrangimentos inerentes a meia-idade. Eva passa por conflitos comuns, como a falta de atração por seu parceiro sexual, insegurança quanto ao futuro da relação e, levemente, teme o que terceiros poderão achar de uma relação que começa após os 40/50 anos, período em que as “expectativas” (com muitas aspas, para não correr o risco de parecer um comentário preconceituoso) são mais prováveis para a chegada de netos, ao invés de namorados.

    Eva e Albert estão em momentos muito parecidos, são divorciados, sentem-se como almas ao leo, fora de seu lugar de direito, não só quanto ao amor, mas também se enxergam deslocados quando se vêem a frente de suas filhas. O claro choque de gerações os constrange, os hábitos alimentares e sexuais de seus rebentos os deixam admirados de forma negativa, mas eles não precisam fazer grandes dramas em relação a isto, a reação de ambos a isso é de resignação, como quase todas as respostas que dão para as situações corriqueiras.

    A situação constrangedora que chega a Eva a faz mudar ao ponto dela deixar de ser ela mesma, e passa a emular as reclamações e experiências de outrem. Passa a ser taxativa com Albert e o critica de tal forma que ele sente-se magoado. Os remendos que faz tornam sua vida ainda mais difícil que antes, e ela experimentara cada vez mais a rejeição daqueles que importam para ela. Uma postura tão dobre pouco combina com uma pessoa adulta, e Eva abusa disso quando não consegue administrar seus sentimentos. À Procura do Amor trata do medo da criação de expectativas e da permissividade de (re)viver sensações tipicamente juvenis.

    A imaturidade da protagonista é uma demonstração de que a prudência não necessariamente vem acompanhada da idade ou do tempo de vida. A realizadora Nicole Holofcener faz uma direção comedida, dando espaço para as boas atuações de seu elenco. Gandolfini e Dreyfus trabalham bem. O fato de não haver muita química entre os dois é desconfortável e serve a trama, enfatizando o quanto ambos são deslocados e se sentem inadequados. Eles não são um casal típico de filmes açucarados, tanto que o desfecho do filme não se dá com um romântico beijo, e sim com uma piada constrangedora, mais uma vez sobre as expectativas que cada um carrega para si e para os outros.

  • Crítica | Frozen: Uma Aventura Congelante

    Crítica | Frozen: Uma Aventura Congelante

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    Baseado (levemente) no conto Snow Queen do bicentenário escritor dinamarquês Hans Christian Andersen – que escrevera outros muitos clássicos como O Patinho Feio, A Polegarzinha, A Roupa Nova do Rei e A Pequena SereiaFrozen Uma Aventura Congelante é mais um exemplar da retomada que a Disney fez com seus filmes de princesa, mas têm um algo a mais na fórmula já um tanto batida, pois seu roteiro leva os temas subalternos a diversão infantil um pouco mais a sério do que os seus primos.

    A história mostra uma dupla de irmãs, Elsa e Anna, que são muito amigas. A mais velha tem poderes elementais do gelo, o que faz com que a caçula se divirta horrores, até que em determinado momento, um descuido faz com que Anna se fira, e a futura rainha se afasta da própria irmã, temendo machucá-la ainda mais. Isso obviamente gera na moça uma carência pela falta de sua melhor amiga, agravada ainda mais pela solidão, Anna cresce – a partir daí é dublada por Kristen Bell – torna-se ingênua nas tratativas com as pessoas e necessita de contatos sociais, mas mesmo com a solidão que vivera, permanece otimista e propensa a resgatar a boa relação com Elsa, que por sua vez, torna-se mais e mais introspectiva e temerosa de mostrar suas habilidades.

    O receio de ser encarada como uma aberração – ou algo ainda pior – motiva Elsa a querer encurtar a cerimônia de sua coroação, mais uma vez mostrando seu temor em expor seus poderes. Com o decorrer dos fatos seu receio mostra-se correto, pois ao menor sinal de demonstração da sua mágica ela é inquirida como uma bruxa na Idade Média, um dos personagens (o mais patético visualmente, o Duke de Weselton) aponta o dedo em riste e é seguido por uma multidão que mal pensa, ignora a sua própria rainha em nome de um medo infundado. A perseguição impingida a nobre a faz se afastar de seu “mundo” mas também a faz experimentar a liberdade pela primeira vez em muito tempo, seu grito libertário é tocante.

    Como os clássicos Disney, este possui muitos números musicais, e qual não é a surpresa em perceber que estes são muito bem feitos, especialmente quando Elsa canta, interpretada pela atriz Indina Menzel de Rent e Glee. A atriz, com ótima voz e um excessivo carisma, consegue prender a atenção do público, mesmo quando ainda não tem o alívio cômico.

    A superfície gelada e os cristais de gelo fazem com que os efeitos especiais valham muito a pena, seu emprego não é exagerado, acrescenta muito a trama. A cadência e o ritmo são bem executados pelos diretores Chris Buck e Jennifer Lee. Os cenários, alvos, são grandiosos e muito belos. A escolha da paleta de cores é muitíssima acertada e a edição de som é competentíssima, se destacando e muito da maioria das animações.

    O diferencial de Frozen em comparação com o resto da patuleia é o seu tom, apesar de ser um filme infantil, ele traz uma mensagem digerível para o público adulto dando menos atenção a piadinhas de cunho mongoloide ao mesmo tempo em que desenvolve uma história que realmente prende a atenção de um observador mais seletivo, sem é claro descuidar dos infantes, o real público alvo da produção, mostrando imagens extremamente coloridas, personagens carismáticos e com um desfecho interessante para quem gosta do gênero. Não à toa é lembrada como uma das melhores, se não a melhor animação de 2013.

  • Crítica | O Lobo de Wall Street

    Crítica | O Lobo de Wall Street

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    O cinema, como todo tipo de arte, é influenciado pelo contexto político de sua época. No auge da depressão pós-1929, tivemos vários filmes de monstro onde a urgência era o homem comum vencê-lo. Na paranoia da guerra fria, filmes de ficção científica com mutações genéticas causadas por radiação nuclear até invasões alienígenas onde ninguém sabia dizer quem era quem e o inimigo poderia ser qualquer um. Na Guerra do Vietnã, a espetaculização e a brutalidade ao vivo da guerra trouxe uma nova geração de cineastas tanto trazendo a realidade depressiva quanto buscando escapes dela.

    Atualmente, a história se repete no contexto pós 2008, com filmes e documentários a respeito da ganância de Wall Street e as origens e consequências da crise especulativa se proliferam no mercado. Apesar de já termos sintomas em produções anteriores como Wall Street – Poder e Cobiça (Oliver Stone, 1987), Loucuras de Dick e Jane (Dean Parisot, 2005) e Enron – Os Mais Espertos da Sala (Alex Gibney, 2005), somente a partir de 2008 vemos uma produção em massa nesse sentido, tanto condenando quanto imergindo no universo especulativo para compreender seu funcionamento, e é nessa categoria que o novo filme de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street se encaixa.

    Baseado no livro homônimo de Jordan Belfort e com roteiro de Terence Winter (Boardwalk Empire e Família Soprano), o filme conta a história de um corretor de ações fraudulento que ganhou milhões explorando brechas no sistema, além de enganar milhares de pessoas a investirem em ações sem valor e assim lucrar nas comissões. Contando com um elenco afiado, Scorsese imprime uma narrativa aliada a velocidade e a loucura da cocaína tão usada no filme e faz com que os 180 minutos de exibição passem voando, tamanho seu controle da história e dos personagens.

    Interpretando Belfort está Leonardo Dicaprio, em uma atuação que renderá muitos elogios. Também está o excelente Jonah Hill (que aguardamos por um filme onde seja mais do que o coadjuvante engraçado) como seu amigo e braço direito Donnie Azoff, além de pequenas participações de Matthew McConaughey como Mark Hannah, um corretor experiente que dá dicas ao jovem Belfort, Jon Favreau como Manny Riskin, seu advogado, e Jean Dujardin como o banqueiro suíço Jean Jacques Saurel. Também participa do filme Kyle Chandler como o Agente do FBI Patrick Denham, incansável e incorruptível funcionário público dedicado a caçar criminosos financeiros como Belfort.

    O que difere o tom de Scorsese dos filmes anteriores, em especial a Stone e ao cinema político de Costa-Gavras é a clara compreensão de que antes de serem bandidos desalmados e predadores do sistema, os corretores de Wall Street são seres humanos com pai, mãe, filhos e que precisam justificar seu comportamento para si mesmo e para os outros a todo instante a fim de evitar uma possível crise existencial e dar sentido aquilo tudo. Eles precisam se convencer de que estão fazendo algo normal, e que todos ali fariam o mesmo. Ao também usar da narração como metalinguagem e brincar a todo instante com o fato de o próprio Belfort contar sua própria história, o filme ganha uma leveza essencial para manter a atenção do público. Também é um mérito o fato de não se perder tempo em explicar os tortuosos caminhos e práticas financeiras de Wall Street, porque ali não interessa e nem cabe.

    Partindo dessa premissa, Scorsese consegue produzir uma história com conteúdo ao mesmo tempo explanatório sem ser piegas, e crítico sem ser panfletário. A mensagem ali é clara: o sistema está quebrado, e quanto mais antiético e desprovido de qualquer senso de moralidade a pessoa for, melhor ela se dará no mercado financeiro. Mas ao retratar isso de forma frenética como as festas e o consumo de drogas (no que lembra o também excelente Os Bons Companheiros), além de dar um toque de comédia na medida certa, o filme consegue produzir uma narrativa que não emperra e flui naturalmente, conduzindo o espectador a compreender e fenômeno ocorrido e a indagar como, em uma sociedade considerada democrática, pessoas podem jogar com o dinheiro dos outros, ganhar com isso, e ainda saírem impunes. Também é mostrado a todo instante como Belfort é ovacionado por seus pares, pois nenhum ser humano sozinho é capaz de tal feito. Ou seja, toda a sociedade é cúmplice de seus atos.

    Quando Belfort diz que o sonho de começar do nada e vencer na vida é o sonho americano, dizendo isso em uma empresa corrupta, que se utiliza dos vícios do sistema e da desregulamentação do mercado financeiro iniciada por Nixon e aprofundada por Reagan e Clinton, para enriquecer às custas do trabalhador honesto, mas que acredita na mensagem desse sonho, não é pura coincidência. É o que embala o desenvolvimento do país. Mas quando esse desenvolvimento sai das ferrovias e da metalurgia e passa para os escritórios regados a cocaína, a lógica funciona, mas o sonho continua permanecendo um sonho, e os Rockefeller de ontem se tornam os Belfort de hoje, embalando o povo americano em uma cantiga enquanto puxa sua carteira por trás.

    No final, sem abusar do panfletarismo tão batido nos nossos dias, o filme termina com a simples mensagem de que o sistema está pronto e foi feito para enriquecer apenas alguns com o trabalho de outros. O trabalhador honesto não consegue mais uma vida digna enquanto os “1% de cima” fazem exatamente o inverso. O corretor fraudulento tem quadra de tênis na prisão enquanto a população carcerária americana, composta majoritariamente por negros, explode junto ao desemprego e a violência. Mas nada disso é mostrado em tela, porque é desnecessária a superexposição de elementos políticos que fora do filme já são debatidos. Aqui, o que interessa é a face de Jordan Belfort e como ele personificou o sonho americano, enganou e enriqueceu milhões, usou quilos de drogas, foi condenado, preso, e hoje está solto dando palestras motivacionais. Pouco consegue personificar mais o atual estado de decadência moral de uma civilização.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Fonte da Vida

    Crítica | Fonte da Vida

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    Fonte da Vida (The Fountain, 2006), terceiro longa dirigido por Darren Aronofsky, foi um projeto complicado, com orçamento inicial de 75 milhões de dólares, primeiro com Brad Pitt, que abandonou o projeto ainda na pré-produção para fazer o péssimo Troia, culminando também na saída de Cate Blanchett do elenco. Com a perda das duas estrelas principais, o projeto foi inicialmente cancelado, tendo que ser reescrito para uma versão que consumisse metade do orçamento original, agora com Hugh Jackman e Rachel Weisz nos papéis principais.

    O filme tem o roteiro assinado por Aronofsky e Ari Handel e nos conta a história de Tommy Creo (Jackman), um cientista obcecado pela descoberta da cura do câncer, motivado principalmente pelo fato de sua esposa, Izzi Creo (Weisz), sofrer da doença já em estágio avançado. A possibilidade da cura é aventada com uma amostra de uma árvore única, vinda da Guatemala, que não apenas pode curar o câncer, como tem um efeito rejuvenescedor em quem o tratamento é submetido. Em paralelo à isso, temos a história do Conquistador (também Jackman) e da Rainha Isabel da Espanha (também Weisz), fruto de um livro que está sendo escrito por Izzi, em que o Conquistador deve buscar nas florestas da Nova Espanha a Árvore da Vida, para salvar seu reino da tirania de um inquisidor. Por último temos uma história no futuro, de Tommy, já como um astronauta em uma bolha com a Árvore da Vida, a caminho da nebulosa de Xibalba, que no mito de criação Maia é o mundo dos mortos. Esta terceira história é também fruto do livro escrito por Izzi, seu último capítulo, que ela pede para que Tommy escreva.

    Num primeiro olhar, essa não linearidade da narrativa pode parecer um tanto confusa, mas apenas um pouco de atenção por parte do espectador, e o preenchimento das lacunas deixadas meticulosamente em aberto pelo diretor, já são o suficiente para não apenas entender a obra, mas também dar-lhe uma conotação completamente pessoal.

    Com tantas interpretações e subtextos, seria impossível abordar todos, até porque estes incorreriam inevitavelmente na interpretação pessoal, e não apenas na análise da obra, mas alguns destes podem ser destacados, como o assunto central da narrativa, que funciona como uma grande reflexão poética sobre o amor e a morte, sua aceitação e sua condição como algo inexorável da vida, cíclica desde suas origens nas supernovas e poeira estelar, chegando até nós humanos.

    Além disso, outro tema já recorrente da filmografia do diretor também se faz presente, a já citada obsessão dos personagens interpretados por Hugh Jackman, colocando essa atitude como um difusor no olhar do protagonista, em que ele mira para objetivos inalcançáveis ou irreais, disposto a tudo por eles, mas ao mesmo tempo isso faz com que ele se afaste do que realmente importa na sua vida corrente. Como tenta, sem sucesso, lhe mostrar a Dra. Lillian (Ellen Burstyn), dizendo que mais do que a cura para a doença, o que Izzi mais precisa naquele momento é a presença de Tommy. Ideia reforçada também por Izzi, ao tentar fazê-lo enxergar que a tal descoberta de uma cura para tudo, até mesmo para a morte, não era de fato para ela, que se sentia serena e completa em face da fatalidade, mas sim para ele, que não aceitava o curso natural da vida.

    Outro ponto a se notar é a presença dos mitos de criação, mais explicitamente o Cristão e Maia, que servem como ponto de apoio para nos mostrar que a busca do cientista, do astronauta, e do Conquistador, é algo maior do que apenas a vida eterna, ele pretende se tornar algo que não apenas burla o ciclo que nem mesmo as estrelas escapam, mas se tornar tão grande, ou até maior, do que as nossas próprias mitologias.

    Fora toda a filosofia que pode se retirar da obra, as atuações também estão ótimas; Hugh Jackman, que à época do filme ainda não tinha tantos trabalhos de peso dramático em sua carreira, mostrava que era capaz de uma excelente atuação fora dos filmes de super heróis e ação, passando sempre o peso emocional requerido para o personagem, com uma dificuldade a mais para os trechos como astronauta, em que a situação psicológica do personagem varia entre o zen e a loucura rapidamente, além de estar quase o tempo todo sozinho.

    Rachel Weisz, apesar do pouco tempo de tela, também executa brilhantemente seus papéis, principalmente como Izzi, pois ao mesmo tempo que é uma pessoa em estado terminal que aceita sua condição, também tem os medos e inseguranças naturais de uma situação como essa, sem nunca passar do ponto ou com qualquer exagero habitual desse tipo de papel.

    A trilha sonora também merece ser observada, criada por Clint Mansell, repetindo a parceria entre o diretor e o compositor de PiRéquiem Para Um Sonho, ajudam e muito a compor toda a atmosfera que o filme exige, tanto nos trechos em que a dor, emoção, e amor são os temas, quanto aos momentos contemplativos vividos pelo astronauta Nova Era, estes também acompanhados de bons efeitos visuais, principalmente na simbiose entre o personagem e o Cosmo.

    Fonte da Vida é um filme que tem uma mensagem forte o suficiente até para o mais incauto espectador, mas que se torna ainda melhor se embarcarmos na reflexão por ele proposta, preenchendo as lacunas com nossas visões de mundo, crenças (ou falta delas), fazendo com que seja não mais um filme, mas uma verdadeira experiência produtiva e intensa.

    Ouça nosso podcast sobre Darren Aronofsky.

  • Crítica | Busca Implacável

    Crítica | Busca Implacável

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    O filme de Pierre Morel (B-13 – 13° Distrito), com guião de Luc Besson e Robert Mark Kamen (roteirista também das franquias Carga Explosiva e Karatê Kid) começa com uma gravação em Super 8, remetendo a um passado um pouco diferente da realidade contemporânea de Bryan Neills (Liam Neeson). Sua atual situação era a de estar empregado num serviço mecânico e com poucas variantes, é rejeitado pela ex-esposa – o que é ainda mais doloroso se tratando de Famke Janssen. Na primeira oportunidade de ação, Bryan demonstra uma habilidade incomum, não antes avisada, e graças a isso encontra uma alternativa para consertar a ausência que exerceu na vida de sua filha, mas obviamente fracassa.

    A super-proteção que Bryan exerce sobre a filha logo é justificada com a viagem a Paris. A menina é raptada e o filme começa de verdade. O aposentado agente é forçado a voltar a ativa, mas ele é frio, calculista e nada enferrujado. Bryan ouve sucessivas vezes a gravação do antagonista desejando-lhe sorte – tudo para absorver a raiva e maximizá-la.

    A direção de Morel aliada a produção de Besson dá a obra o típico rótulo de action movie francês, com muito mais violência que os últimos exemplares americanos do gênero. As cenas de perseguição lembram muito a câmera na mão de Paul Greengrass nos filmes de Jason Bourne.

    -Estou aposentado, não morto! – Bryan não se sente como um homem velho, apesar do seu “retiro planejado”, quando o chamado à aventura vem, ele está pronto, suas habilidades não são somente o aprimoramento físico, mas também, talentos ligados a atuação, seu cuidado com as testemunhas é notório, restringindo o envolvimento destes a somente o necessário.

    A motivação e as habilidades de Bryan são parecidas com as de John Matrix (herói de Comando para Matar), mas muito de seu comportamento lembra o protagonista de Desejo de Matar, Paul Kersey, tanto no intuito de vingança e perseguição de seus inimigos, quanto na improvisação com objetos caseiros.

    Há até uma inteligência no roteiro, ainda que o foco não seja a discussão, o subtexto cita o tráfico de mulheres e a consequente prostituição das vítimas, além de envolvimento de ex-agentes corruptos, a abordagem aos temas não é suavizada, mas o que importa realmente é ver Bryan Neills em ação, invertendo o discurso presente em O Poderoso Chefão, considerando tudo pessoal.

  • Crítica | Alabama Monroe

    Crítica | Alabama Monroe

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    O sul dos EUA, a parte do racismo, pobreza, fanatismo religioso e outros problemas, possui uma produção cultural riquíssima, digna de atenção do mundo todo, e não são poucos os músicos e outros artistas que foram influenciados por suas invenções, mesclas de cultura dos africanos e europeus, como o blues, country (com todas as suas variações) e depois, o rock. Essa aura musical é pano de fundo para o longa belga The Broken Circle Breakdown (Alabama Monroe), de Felix Van Groeningen, indicado ao Oscar 2014 de Melhor filme estrangeiro.

    O filme conta a história do casal Elise (Veerle Baetens) e Didier (Johan Heldenbergh). Ela, uma tatuadora com toque pin-up e ele um fanático pela cultura hillbilly e bluegrass do sul dos EUA, tendo inclusive um grupo musical que toca músicas do estilo… na Bélgica. Ambos possuem uma filha pequena, Maybelle (Nell Cattrysse) que fica gravemente doente, colocando em risco toda a relação entre eles.

    Uma das razões para o filme funcionar tão bem, e ter a carga dramática, pesada, tão bem medida, é a montagem. Ao alternar cenas fortes como da filha doente com cenas do passado, do casamento, do nascimento de Maybelle e seus pequenos momentos de descoberta, o espectador consegue dosar a brutalidade de uma doença terrível como o câncer infantil e lidar melhor com os sentimentos. Quando Maybelle morre, somos apresentados ao momento em que Didier e Elise se conhecem. Não fosse isso, provavelmente a experiência de ver o filme se tornaria provavelmente insuportável.

    Outro destaque vai para a trilha sonora, composta por canções originais e regravações de clássicos de bluegrass, executadas pelos protagonistas Heldenbergh, Baetens e Bjorn Eriksson no grupo The Broken Circle Breakdown, que dá nome ao filme. As músicas, reconhecidas por melodias simples e muitas vezes melancólicas, conduz a história quase como um personagem a parte, mais ou menos como os irmãos Coen fizeram em E Aí, Meu Irmão, Cadê Você, inclusive com a repetição de uma música já usada no filme protagonizado por Clooney, “Didn’t Leave Nobody But The Baby”, em um belo, mas trágico momento do filme.

    Trágico, inclusive, é o que melhor traduz o avanço da história, ao mostrar como um casal, por mais conectado que seja, dificilmente consegue superar a perda de um filho. E essa dor traduz em agressões verbais entre Didier e Elise, que apesar de se amarem, não sabem o que fazer com aqueles sentimentos, explodindo para fora.

    A trama, pessoal até então, derrapa um pouco ao tornar Didier porta-voz de um discurso político pró-ciência e anti-religião. Ao se passar no momento em que o presidente Bush proibia as pesquisas com células-tronco nos EUA, há uma mudança pouco natural na temática e que torna o sentimento de Didier artificial, apesar de ser clara a tentativa de mostrar um homem racional tentando lidar, a sua forma, com uma dor tão grande.

    O contraponto interessante nessa parte se dá justamente ao colocar uma figura clássica do sul dos EUA, o presidente George W. Bush, notável conservador e representante da ideologia da maior parte da população da região, vai contra uma pesquisa de células-tronco por motivos religiosos, uma pesquisa que, com a contribuição dos EUA poderia estar mais adiantada e ter salvado a filha do casal. Ou seja, a mesma cultura capaz de produzir uma musicalidade tão formidável produz seres como Bush, responsáveis por desgraças imensas. Didier e Elise aprendem, do jeito mais duro, de que a cultura não é inseparável, e que o sul dos EUA trazem uma carga pesada junto a música.

    Essencial também é notar como Didier, ao melhor estilo da música sulista em sua origem, não é um simples produto de consumo como em nossa sociedade, mas sim uma manifestação artística que une pessoas e as ajuda a passar por momentos difíceis, o que a população negra da região sabe muito bem. Portanto, ao utilizar a música nos momentos mais trágicos do filme, há essa lembrança essencial da real função da arte, a de nos trazer uma reflexão sobre as pessoas, o planeta, e principalmente, sobre nós mesmos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Eu e Você

    Crítica | Eu e Você

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    Na ativa desde os anos 1960, o antigo assistente de direção de Pasolini – em Accattone – se vale de seu passado como estudante de literatura moderna para desenvolver o roteiro de Io e Te, um drama que envolve jovens pessoas, a busca pela maturidade ainda longe de ser alcançada e que ainda sim possuem problemas e dramas de gente grande.

    Bernardo Bertolucci já abordara, em episódios anteriores de sua filmografia, as tragédias juvenis, especialmente em dois filmes (estadunidenses) seus, a saber Beleza Roubada (Steeling Beauty) e Os Sonhadores (The Dreamers). Após o longo exílio, Bernardo volta seus olhos novamente para o cinema italiano, e com um conteúdo universalista por essência. Lorenzo (Jacopo Olmi Antinori), o protagonista poderia ser um rapaz de qualquer nacionalidade, muito graças ao conjunto de signos que o acompanha, desde os fones de ouvido que usa, gigantes, e que o isolam do contato humano quando este o quer ou pela confusão mental típica de quem acabara de sair da fase infante da vida, até mesmo tocando levemente numa variação do Complexo de Édipo, claro, de forma jocosa.

    Lorenzo é um rapaz muito parecido com tantos outros de sua geração, sofre bullying na escola, mas não se acha uma enorme vítima graças a isso, o que o diferencia dos demais é a visão que tem dos adultos e sua independência, ele tem qualquer coisa – talvez a indefinição típica da idade – que o incomoda, o faz querer fugir, se sente um intruso dentro de casa e um penetra por onde quer que ande. Ele encara a infância como uma prisão, ao verificar os adultos que os cerca os vê distantes, em pedestais enormes, não como objetos de adoração, mas como seres acima de si – a câmera flagrando um par dançando sobre um teto de vidro enquanto o rapaz observa, flagra isto com maestria. A inferioridade que o rapaz se auto-impige o faz procurar um esconderijo abaixo de todos, no subsolo, no esquecido porão de seus pais. Sua vontade é se isolar, ter espaço para nada fazer, para exercer o ócio e se entupir de seus refrigerantes e comidas gordurosas – mais avatares da adolescência –  até que sua fortaleza é invadida.

    Olivia (executada pela bela Tea Falco) adentra a privacidade do irmão sem mal bater a porta, e tenciona dividir com ele o lugar da fuga, suas motivações são inversas as dele, Lorenzo sente-se sufocado e quer liberdade, enquanto Olivia sente-se só, abandonada pelos seus – ainda que ambos não queiram demonstrar suas fraquezas, vão aos poucos tecendo uma relação simbiótica. O ambiente/cenário quase nunca muda, Bertolucci quer massificar a ideia da rotina imutável, da dificuldade em mudar e de sair do conformismo mesmo que as situações mostradas estejam longe de ser confortáveis.

    Lorenzo se esconde, se esgueira, ainda não tem dimensão ou noção do que ocorre ao seu redor e da gravidade dos fatos rotineiros a sua volta – no entanto, isso não o impede de sentir-se mal com o modo como sua casa é administrada, além da forma como é tratado por seus parentes. Sua pouca maturidade não o permite sequer perceber o drama de sua meia-irmã na plenitude, e isso corrobora para que ela sinta-se mais a vontade, pois não há tratamento misericordioso ou penoso da parte dele consigo. Pouco a pouco, Lorenzo se permite ter uma relação mais sólida com Olivia, enxergando-a não só como uma irmã, mas também como uma semelhante, um ser igual a si.

    Bertolucci conduz um filme monotemático quantos aos cenários, mas muito dúbio em relação aos dramas da juventude. A monotonia domina o período de reencontro entre as duas crianças, que tentam resgatar a rotina, os tempos mais simples e mais tranquilos de quando os dois tinham uma relação muito mais próxima, ainda que, mesmo com a distância, a ligação entre eles não deixou de existir, vide todo o cuidado e ciúme do caçula pela primogênita, aceitando-a mesmo que ela odeie alguns de seus entes queridos. O amor entre os dois transcende o background e as opiniões diversas, mostrando que a infância pode ser uma fase muito menos preconceituosa que a fase adulta. O prolixo roteiro de Bertolucci, Umberto Contarello e Niccolò Ammaniti toca em temas complicados, mas sem ser apelativo em momento nenhum.

  • Crítica | Tarzan: A Evolução da Lenda

    Crítica | Tarzan: A Evolução da Lenda

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    Esta é a “enegésima” adaptação da obra literária de Edgar Rice Burroughs. E, tal como num telefone sem fio, alguns aspectos da história se perderam ou se truncaram durante a “transmissão”. Sabe-se lá em que momento Greystoke e Clayton deixaram de ser a mesma pessoa. Originalmente, John Clayton (o nome “inglês” de Tarzan) é o Visconde – ou Lorde – Greystoke. Em algum ponto, nesse mar de adaptações teatrais, cinematográficas e de animação, John Clayton deixou de ser o nome do mocinho e passou a ser o do vilão. Isso, além de outros elementos, leva-nos a concluir que as versões mais recentes não são uma adaptação da obra de Burroughs, mas sim, uma adaptação de uma das adaptações que (espero) tenha sido bem sucedida. Desse modo, não é possível julgar como um erro de roteiro se essa imprecisão está presente. Infelizmente, outros tantos problemas narrativos impedem o espectador de sair satisfeito da sala de cinema.

    No início do filme, situações improváveis se sucedem numa quantidade surpreendente. Verdade que é um filme voltado ao público infantil, mas isso não justifica que os eventos não precisem fazer sentido. A rota do helicóptero, que ao fazer um trajeto rotineiro passa por um lugar nunca antes avistado; a atitude imprudente e duvidosa primeiro do pai de John – ao resolver explorar o local – e depois da mãe – ao ir, com o filho, em busca do marido; a “reação” inexplicável da montanha; a queda e subsequente explosão do helicóptero, violenta o suficiente para destruir o aparelho, mas não o bastante para causar a morte de todos os passageiros. Apenas para citar alguns exemplos sem contar demais da história.

    Chamar o filme de “A evolução da lenda” é um eufemismo para justificar a adição de elementos estranhos ao original e, a meu ver, totalmente dispensáveis. Qual a necessidade de incluir dinossauros e substâncias alienígenas? Nesse contexto, transformar o vilão no representante de uma corporação em vez de ser apenas um homem ganancioso, talvez seja o menor dos problemas.

    O que provavelmente mais incomoda o público é a tentativa (infrutífera) de copiar alguns elementos da animação da Disney – referência para a maioria dos espectadores. Posicionamentos dos personagens – principalmente do protagonista -, alguns trechos em que Tarzan “cresce” enquanto atravessa a selva, algumas cenas de ação, tudo isso deixa o espectador com aquela sensação de déjà-vu constante e incômoda. Um tiro no pé, nada mais. Além disso, seria ingenuidade acreditar ser possível cativar o público do mesmo modo como o fez a Disney e a trilha sonora de Phil Collins.

    Aliás, na trilha sonora, registra-se mais um ponto falho. No trecho idílico em que Tarzan mostra a selva à sua amada Jane, a música que toca é “Paradise”, do Coldplay. Ok, tem a ver com a situação, já que reflete a percepção dos personagens. Mas incluir uma música que virou marca registrada de um blockbuster recente – As Aventuras de Pi – é, no mínimo, uma escolha equivocada, pois automaticamente o espectador é “levado” ao outro filme pela melodia.

    Sobre a parte técnica, mais especificamente sobre a animação por computador, há pouco a dizer. Não é ruim, mas fica aquém de algumas produções anteriores – Avatar, ou mesmo alguns mais caricatos, tipo Como treinar seu dragão. Os personagens, para um desenho animado, são bem críveis – até abrirem a boca para falar. E se por um lado percebe-se preocupação com pormenores – os cabelos meio “grudados” e a pele do Tarzan, levemente manchada de terra e sujeira – por outro, há detalhes que dariam mais credibilidade ao personagem mas que foram deixados de lado – um homem da selva com unhas limpas e bem aparadas? Não faz sentido. Pode parecer preciosismo, mas se deram atenção à pele ligeiramente suja, por que não fazer o mesmo com as unhas? E sobre o 3D, não há nada a comentar, já que não foi explorado de modo a contribuir com a experiência de assistir ao filme. Um ou outro outro elemento pulando da tela e nada mais.

    Talvez o público infantil curta o filme, pelas cores, pelos animais, pelas cenas de ação. Mas infelizmente o adulto que levar as crianças ao cinema não irá se divertir tanto. Na certa, ao sair da sessão estará saudoso da versão Disney, não vendo a hora de chegar em casa, colocar o blu-ray no player e cantarolar “You’ll be in my heart” junto com Phil Collins.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Esquadrão Classe A

    Crítica | Esquadrão Classe A

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    A introdução dos personagens é perfeita: o Coronel (Neeson), Bosco B. A. (Quinto Jackson), Cara de Pau (Cooper), Murdock (Sharlto Copley), além do furgão é claro – o panteão de personagens é muito bem reprisado e as consequências de ação iniciais são eletrizantes e já mostram a que vieram. A perseguição com helicópteros é muito bem filmada – até o anúncio dos créditos iniciais ambienta o espectador no mundo do A-Team, a aventura a ser mostrada é despretensiosa, escapista e descompromissada com qualquer mensagem mais profunda, o tom leve do seriado oitentista é muitíssimo bem atualizado por Joe Carnahan e seu elenco, muito bem encaixado, peça por peça. Esquadrão Classe A reitera todo o conteúdo humorístico da série original com uma competente aura moderna em torno de si.

    Neeson faz um Hannibbal Smith parecido com o original, mas com um acréscimo de carisma tipico seu, ainda que sua especialização em filmes de ação não o faça repetir o mesmo estereótipo em filmes diferentes. Ele consegue passar a sensação de liderança que um mentor precisa ter, ao mesmo tempo que concentra em si o protagonismo da história – sua liderança se destaca ainda mais em meio a crise que o grupo passa os valores de unidade, amizade e companheirismo são as sensações focadas na fita de Carnahan. O resgate dos membros da equipe é tão eletrizante quanto as outras cenas de ação. A metalinguagem presente na fuga do Capitão Murdock é emocionante para os fãs da série original. As piadas internas, os medos do quarteto a ambientação, tudo é muitíssimo respeitado.

    Até se ensaia uma reflexão mais profunda relativa a real necessidade de violência na resolução de conflitos e a natureza assassina dos homens fardados, mas o enfoque real é no clima de matinê, nos feitos incríveis e situações fantasiosas, com veículos que pesam toneladas transpassando o ar como se fossem feitos de papel ou repousando sobre o mar acompanhados de um para-quedas a tira-colo.

    É lastimável que o filme não tenha ido bem de bilheteria nos Estados Unidos, o que praticamente inviabiliza uma continuação – mesmo com o gancho presente nos últimos minutos de ecrã. As referências, a reverência, as homenagens, tudo que é registrado pela lente de Joe Carnahan é absolutamente respeitoso – especialmente a cena pós-créditos – e atualizado para o novo público amante de filmes de ação, acostumado às fitas com Vin Diesel, Jason Statham e Dwayne Johnsonn. O diretor soube revitalizar o tema sem feri-lo ao ponto de torná-lo indistinguível do original, e o perigo era grande, vide o que ocorreu com a franquia Missão Impossível – e talvez o “erro” cometido por ele para que o filme não fosse sucesso de público, seja o de não incluir em sua fórmula os clichês teen típicos de seus concorrentes blockbusters de 2010, mas Carnahan prosseguiria realizando bons filmes como A Perseguição, além de estar cotado para dirigir o filme baseado no quadrinho de Mark Millar, Nemesis.

  • Crítica | Red: Aposentados e Perigosos

    Crítica | Red: Aposentados e Perigosos

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    A 1ª adaptação para o cinema dos quadrinhos de Warren Ellis, em seus primeiros minutos, se mostra diferentíssima do texto original, a começar pela abordagem, bastante relacionada a comédia romântica – ainda que não tarde a chegar as cenas de ação, com a linda derrubada de uma casa por conta de um tiroteio desvairado.

    Após começar a caça em si, Frank Moses/Bruce Willis no automático, tem de resgatar sua princesa encantada, Sarah (a ainda deliciosa Mary Louise Parker), o que contradiz o perfil do seu personagem, o solitário e auto-suficiente ex-agente da CIA com grandes contatos. Robert Schwentke tenta angariar dois nichos distintos para sua obra, os fanboys e o público feminino, e ao menos nesse quesito, a fórmula é bem executada e equilibrada.

    As cenas de perseguição no píer são tão galhofadas que parecem retiradas de um cartoon do Pernalonga – nenhum filme do Looney Tunes Live Action levou tão a sério o conceito quanto neste Red. A comédia e o humor rasgado predominam em quase toda a trama, o que não empobrece as outras sequências de luta, muito bem filmadas e coreografadas, aliadas a uma fotografia competente. As cores vivas escolhidas pelo realizador remetem ao tom escapista das HQs de super-humanos da DC.

    O roteiro dos irmãos Join e Erich Hoeber (Terror na Antártida) trata da inadequação do bando de agentes aposentados a vida civil (tema retirado da graphic novel, mas ampliado a mais personagens), e da vontade de Frank em finalmente ter uma vida normal, com paixões, uma família, anseios comuns, inerentes a qualquer ser humano comum. A vida amorosa dos super-espiões é mostrado como algo confuso e cheio de contradições, mas é claro, sem jamais se levar a sério.

    A direção de atores exercida por Robert Schwentke é muito boa, pois não atrapalha. Os artistas estão livres para trabalhar: Morgan Freeman, John Malkovich, Bryan Cox, Helen Mirren estão soltos, enquanto Karl Urban faz o antagonista honrado de uma maneira muito lúcida, seu personagem William Cooper é a síntese do quanto o serviço secreto mudou, no que tange aprimoramento físico, se modernizando para suplantar a geração anterior, mas seu código moral é muito semelhante ao de seus antecessores, e ele não se permite mudar de lado, mesmo que seus superiores o tentem impingir a isso.

    Red mantém o tom jocoso o tempo inteiro, e apesar da pouca semelhança com a história em quadrinhos, é um bom exercício de humor. Tem em seu caráter algo parecido com o que foi visto no primeiro Mercenários de Sylvester Stallone, reunindo um elenco veterano para brincar com os clichês dos filmes de ação.

  • Crítica | Como Não Perder Essa Mulher

    Crítica | Como Não Perder Essa Mulher

    Para um espécime do sexo masculino, é natural entender o que move a psiquê do personagem de Joseph Gordon Levitt, chamado de Don Jon por seus amigos devido a sua fama de conquistador. Ele é claramente um ninfomaníaco, porém afirma que não há nada no mundo como a pornografia, nem mesmo o sexo. Sem muitos rodeios, o discurso é proferido pelo protagonista, frustrado por não conseguir na vida real quase nada do gozo idealizado pelos X rate movies.

    Questões como sexo oral e a necessidade de reciprocidade, as posições pouco vantajosas para quem gosta de analisar as curvas femininas durante a transa, entre outros apontamentos, são argumentos válidos se o espectador estiver inserido na mesma linha de pensamento do protagonista. A evolução disto é a constatação da solidão, clichê típico de uma comédia romântica, gênero em que o ator/realizador sente-se muito à vontade. No entanto, neste filme, as regras são levadas ao limite, exageradas propositalmente para alcançar um público pouco usual do filão.

    A quebra de expectativa, quando Jon não conquista o sexo imediato com a nova parceira, funciona para ele, pois desperta curiosidade e consequente idealização que ele não conseguiria sustentar com seus hábitos antigos. Inclusive, a quebra da rotina se torna menos árdua quando o objeto de adoração é Scarlett Johansson (Barbara). Ao contrário dos filmes água-com-açúcar, há um bocado de pimenta nesta película, ainda que seja acompanhada de um irremediável corta-gozo.

    A cena que registra um dos flagras é filmada com a câmera na mão, emulando a improvisação – e com ela a típica desculpa dos parceiros Y a suas cônjuges X de que o flagrante foi um incidente isolado, quando claramente não o é. Demonstra-se, com isso, a obsessão do personagem em encontrar alternativas para consumir vídeos adultos quando não os consegue em sua casa, acompanhado de Barbara.

    Curioso como a Igreja pede uma menor penitência quando a pornografia é interrompida na vida de Johnny, como se  o fato de consumi-la fosse mais culposo que o de ter relações de verdade, o que demonstra como a sociedade culpa o voyeurismo de forma demoníaca. Conviver com os próprios pecados não é um grave problema para Johnny, visto que este administra suas penitências através do treinamento físico, tentando levar o aprimoramento do corpo junto a seu pretenso perdoado espírito, ainda que, em última análise, ele se sinta culpado por tudo.

    A possessividade de sua parceira o faz sentir-se invadido. Ainda que o seu receio seja o de ser descoberto, a preocupação retratada em tela pode ser encarada como metáfora para praticamente qualquer questão de relacionamento vista como empecilho. Há um bocado de crítica à vaidade excessiva e ao narcisismo, ao egocentrismo, e, é claro, à enorme tendência de um relacionamento cair nestas armadilhas, ao invés de ser baseado em trocas – de amor, carinho e respeito –  e tornar-se uma relação de puro interesse mesquinho.

    O sorrisinho sem graça que o personagem sempre carrega quando se retira de sua idílica rotina evidencia que ele se enxerga como o errado. Don Jon é centrado na atuação de Joseph Gordon Levitt e sua direção é um exercício de valorização de seus dotes dramatúrgicos. O filme é um épico sobre um rapaz numa jornada (um tanto tardia) rumo ao amadurecimento e à aceitação que depende de outros seres humanos – no fim ele é só mais uma alma amargurada e carente. E, neste ponto, nada difere dos heróis das comédias cor-de-rosas: o foco no alvo errado, o aprendizado, a mutação do herói, a trajetória edificante.

    Para os mais incautos, Como Não Perder Essa Mulher pode ser um filme tocante – e ele pretende ser, mas não acerta nisso. No entanto, os acertos são maiores que os erros. As atuações são competentes, especialmente a da mentora que Juliane Moore exerce. No entanto, o mérito especial certamente vai para a desconstrução inofensiva dos contos de fadas para o público masculino.

  • Crítica | Sound City

    Crítica | Sound City

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    Dave Grohl é um sujeito inquieto. Ex-baterista do Nirvana e frontman do Foo Fighters, Grohl vive envolvido em projetos paralelos, sendo o mais recente voltado aos cinemas. No documentário Sound City, ele explora um pouco da história do extinto estúdio de gravação Sound City Studios, lançando um olhar nostálgico sobre o lendário estúdio onde foi escrito um pedaço importante da história do rock.

    Criado em 1969, em um canto esquecido dos EUA (Van Nuys, California), por Joe Gottfried e Tom Skeete, e encerrando as atividades em 2011, Sound City foi um reduto de grandes músicos, produtores e gravações de álbuns épicos. O estúdio foi o lugar onde Neil Young gravou o clássico After The Gold Rush em 1970; onde Stevie Nicks e Lindsey Buckingham se juntaram ao Fleetwood Mac e gravaram o álbum homônimo, considerado por muitos um dos melhores álbuns da banda; ou mesmo quando Kurt Cobain, Krist Novoselic e o próprio Grohl decidiram virar o cenário musical do avesso ao gravarem Nevermind, no começo dos anos 90; se isso não for o bastante, em 1996, Johnny Cash, já debilitado, se juntou ao produtor Rick Rubin e gravou Unchained, o que fez sua carreira sair do ostracismo, ganhar o Grammy de Melhor Álbum Country, além de ser indicado como Melhor Vocalista Country pela performance em Rusty Cage; tudo isso ocorreu no lendário Sound City Studios.

    Grohl se faz valer de seu nome na indústria e consegue arrancar diversas histórias de artistas e as experiências dessas gravações. É um deleite para os amantes do rock and roll ouvir histórias de Neil Young, Tom Petty, Lars Ulrich, Rick Rubin, Barry Manilow, Josh Homme e tantos outros.

    A mística que envolve o estúdio é um ponto interessante comentado no documentário. Grohl deixa claro, através das diversas entrevistas, que o diferencial do estúdio era a postura dos profissionais ali presentes, já que Sound City estava bem distante dos grandes estúdios de gravação que possuíam áreas de lazer com banheiras de hidromassagem para os músicas relaxarem, muito diferente do estúdio da Califórnia que tinha seu estacionamento inundando constantemente, que possuía um fétido carpete velho revestido pelas paredes, nada de equipamentos de última gravação, ainda assim, Sound City possuía uma das melhores salas acústicas para se gravar bateria, além, é claro, da lendária mesa de gravação Neve 8078. O diferencial do Sound sempre foi a música, e apenas ela.

    Aliás, a questão analógico x digital é um dos temas centrais do documentário. Grohl deixa claro que não foi a atmosfera de pelúcia dos estúdios atuais, ou mesmo a facilidade de gravação que programas como o pro-tools ou auto-tunes proporcionaram à concepção de grandes álbuns. Ele destaca o elemento humano de tocar e errar junto, gravando quantas vezes forem necessárias para se conseguir o registro ideal. Possibilidades permitidas pelas jam sessions, seja na mudança de arranjos e novas composições, mas substituídas por alguns cliques em poucos minutos. Apesar dos benefícios que a tecnologia trouxe para a música, Grohl afirma que, em maior proporção, que esses fatores foram deixados de lado em função desses meios tecnológicos, e que isso se reflete no cenário musical atual. Até mesmo Trent Reznor, famoso pelo uso de meios digitais em seus trabalhos, destaca que as tecnologias devem ser utilizadas em função da música e nunca substituindo o contrário.

    A hora final do documentário conta um pouco sobre como a era digital acabou com os estúdios analógicos, caso da Sound City, e relata sobre as gravações de um álbum em seu estúdio utilizando a mesa de gravação Neve para capturar a química do lendário estúdio. Os minutos finais reúnem um momento único em que Grohl, Krist Novoselic e Pat Smear (guitarrista de apoio do Nirvana) se juntam a Paul McCartney para uma jam incrível.

    No fim das contas, Sound City é um pedaço de uma importante história da música, e, acima de tudo, deixa claro que em qualquer trabalho, o elemento humano nunca poderá ser substituído.

  • Crítica | Machete Mata

    Crítica | Machete Mata

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    A nova vida do personagem-título já é modificada logo no início da trama. Mais uma vez lançando-o numa caçada de vingança sem muita enrolação, a narrativa mostra-se tão louca e desvairada quanto a do primeiro filme. Machete prossegue com suas execuções, munido de lâminas gigantescas e dilacerando corpos como se fossem de papel, tornando-se um herói ainda mais imune a dor e coisas letais e uma figura imortal enquanto tiver uma missão.

    A abertura com um toque de psicodelismo e silhuetas femininas lembra as sessões de matinê, além de remeter obviamente aos preâmbulos de 007. O herói é obviamente um super agente à maneira mexicana. Nesse mundo exagerado, o presidente americano não poderia ser Obama, mas sim um branquelo, farpador, beberrão e drogado. Carlos Estevez o interpreta muito bem, especialmente quando narra o esdrúxulo plano contra o vilão latino: o discurso contém meia dúzia de frases de efeito, mas ainda assim sensibiliza o paladino xicano.

    O sorriso do Senador John McLaughlin no final do primeiro episódio é justificado. O elevado muro que planejou foi enfim construído, o que ocasionou um aumento substancial da violência nas ruas mexicanas, aumentando o poder dos cartéis. Mendez (Demian Bichir) é um justiceiro/soberano com desvios de comportamento e múltiplas personalidades, que, apesar de seus atos inconsequentes, busca uma alternativa justa para o seu país. O passado do personagem esconde motivações parecidas com as de Machete. Rodriguez usa toda a bagunça visual e os clichês de action movies para mostrar uma triste situação com sua pátria-mãe, e eleva ainda mais o herói mexicano em detrimento dos americanos motherfuckers. A crítica política aos americanos não envolve somente o menosprezo dos estadunidenses perante os mexicanos, contempla também a paranoia de não mais existir nenhum opositor demoníaco desde Bin Laden.

    O desenvolvimento da trama é qualquer coisa. Ao fazer um paralelo com Jack Bauer e 24 Horas, inverte o lado da paranoia terrorista de forma jocosa. Rodriguez não tem receio de abandonar as ideias do primeiro filme e mudar o gênero. Como é prazeroso reassistir Mel Gibson em um papel canastrão por essência, sem que este esteja produzindo/dirigindo um filme. Luther Voz tem o cinismo do Doctor Evil, os olhares e carisma de Martin Riggs, e claro, protagoniza cenas homenageando seus filmes, inclusive dirigindo um carro enferrujado com close nos olhos, à la Road Warrior.

    O ambiente, supostamente hermético onde há a batalha final, é tosco, assim como as produções sci-fi dos anos 50/60. As lutas referenciam Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, Era Uma Vez no México, Kill Bill e até Império Contra-Ataca. Rodriguez põe pra fora todo o seu lado nerd e não se preocupa em ser taxado de presunçoso, em razão de toda a jocosidade do roteiro.

    O fim abre uma brecha enorme para o 3° episódio, uma Space Opera, e é absolutamente condizente com o resto do filme. Apesar do subtexto ser bem menos contestador, Machete Kills cumpre perfeitamente a função de ser uma anedota de um action movie exploitation, com latinos mordedores e clichês milMachete Mata é, sem dúvida, um dos melhores exemplares de ação do ano. Detalhes para todo o carisma de Danny Trejo, para o trailer no começo da exibição e para as cenas pós-créditos com pouco sentido.

  • Crítica | Amor Bandido

    Crítica | Amor Bandido

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    O terceiro longa-metragem de Jeff Nichols começa utilizando a infância como alegoria para o início da existência, mas sem poupar o público, pois a mocidade é retratada sem muitas fantasias ou idealizações. A crise, os amores e relacionamentos mal resolvidos resvalam nos pequenos protagonistas, Ellis (Tye Sheridan) e Neck (Jacob Loflan) – e os influenciam negativamente na puberdade de ambos. O inferno astral a que Ellis é submetido o deixa anestesiado e carente, e por isso ele não estranha a presença de um elemento desconhecido nas redondezas de sua pequena cidade.

    A casa de Galen (Michael Shannon, mais uma vez em um filme de Nichols), tio de Neck, é a representação visual da decadência típica da cidadezinha: um lugar sujo, imoral, hostil, e pervertido. Até o sexo, que poderia ser algo belo, é tratado de forma degradante, sem o mínimo de romantismo ou tato. Os habitantes do lugarejo parecem parados no tempo, estacionados no pior momento de suas vidas.

    O anti-herói, personificado por Matthew McConaugh, está foragido e utiliza a floresta como esconderijo, onde se encontra com a atenção máxima em tempo integral. O único auxilio e as únicas mãos amigas que encontra, até então, partem dos dois meninos. Mesmo sem conhecê-lo, Ellis se doa inteiramente para que o enlameado Mud fique o mais confortável possível – a procura do infante é por alguém do mundo adulto que não o fira sempre que houver uma tentativa de aproximação de sua parte. As tonalidades escolhidas por Nichols para retratar os locais comuns ao menino sintetizam suas sensações: enquanto que em sua casa, o local incômodo, predominam as cores marrom e cinza, as cenas na floresta onde ele está com o seu igual são vivas, prevalecendo o verde e o amarelado da blusa do novo amigo.

    O modo como Mud pensa e desenvolve sua vida demonstra que ele não tem todas as propriedades de raciocínio típicas de um adulto. Apesar de não possuir a inocência dos meninos, seu discernimento é igualmente imaturo e inconsequente, e este é o motivo que o faz se identificar tanto com eles, pois ambos carecem de uma segura figura paterna – o presente do fugitivo poderá vir a ser o futuro do jovem rapaz.

    O ancião Tom, interpretado por Sam Shepard, é uma das poucas vozes lúcidas perto do personagem-título. Suas palavras evidenciam o quão imprudentes e levianas são as motivações de seu antigo protegido, e ao receber a verdade, Ellis nega tudo, como sua contraparte mais velha faz. Mud não consegue mudar, somente se enreda no círculo vicioso em que está. Sua decepção com a rejeição coincidentemente ocorre em paralelo com a bronca do pai em Ellis, e ambos se mostram como excluídos dos sentimentos e relações que tanto apreciavam. A aproximação dos dois serve como uma simbiose.

    Juniper (Reese Witherspoon), a antiga namorada do protagonista, é a representação da covardia humana e da falta de coragem para arcar com os desejos do coração, não só para o homem, mas também para Ellis. O menino se decepciona com tantas rejeições e culpa a si mesmo – no caso, a contraparte do que poderia vir a ser: Mud. Na fuga que tenta fazer de si mesmo, o anti-herói cai num covil de serpentes, onde é envenenado, numa simbologia clara à inexorabilidade do enfrentamento de seus próprios problemas. Fugir, no caso, é a pior das soluções. Ao ver o menino em apuros, o personagem principal larga o arquétipo anti-heroico e veste a capa do clássico salvador. Mal pensando em si, corre para acudir o amigo e se torna visível para aqueles que o procuram, mas, dessa vez, não se preocupa em ser finalmente pego.

    Após todas as reviravoltas, Ellis vê a chance de mudar sua vida. O rapaz, que antes temia o divórcio dos pais, se vê nesta situação e parece não ter mais receio da nova condição. Assim como Mud, ele resolve deixar os medos e o passado de lado para finalmente evoluir e viver a própria vida, ainda que as agruras e os erros futuros estejam garantidos.

    Amor Bandido é um filme sobre deslocamento, sobre a tentativa de encontrar um lugar no mundo. Mensagens presentes também em Shotgun Stories e O Abrigo do mesmo Jeff Nichols, mas que em momento algum são repetitivas, em razão da ótima forma de abordar as necessidades humanas com a qual o realizador exerce em seus roteiros autorais.

  • Crítica | A Trama

    Crítica | A Trama

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    O Senador Charles Carroll, interpretado por William Joyce, é o ideal do político, incorruptível, mas comprometido com o povo do que com um partido… Aos olhos da opinião pública é desenhado como um imponente e onipotente herói, e talvez por isso tenha sido alvejado por um vil assassino, para assim entrar na história, semelhante demais ao paralelo real à execução de JFK. O topo do prédio onde acontece o crime é altíssimo e simboliza o inalcançável posto onde o “semi-divino ser” pereceu, para tornar a sua figura a de um mártir.

    A negligência do jornalista/protagonista Joseph Frady, interpretado por Warren Beatty, é demonstrada em dois momentos importantes, primeiro, o de não ter podido presenciar a morte do Senador Carroll, pois deveria cobrir o evento, mas não fora, e segundo, ignorou o apelo da testemunha (e sua amiga) Lee Carter – Paula Prentiss – que pedia ajuda a ele, por achar que sua vida corria perigo. Frady não se afetou com o pedido e só voltou sua atenção ao seu testemunho após sua morte, o que demonstra sua falta de escrúpulos e falta de sensibilidade, além da clara ausência de culpa em si. No decorrer das investigações, muitas pessoas morrem, inclusive pelas mãos do repórter, que parece ter pouco receio em se envolver nos crimes.

    A conspiração se complica cada vez mais com o decorrer do filme. Os envolvidos no jantar em que o senador morreu vão perecendo um a um. Frady se “alista” em uma organização que prepara homicidas para fazer o trabalho sujo de quem os contrata, o que ia de encontro a sua teoria de assassinato do candidato morto. O modo de preparação dos assassinos é curioso e semelhante à lavagem cerebral, parecido com o tratamento aplicado a Alex em Laranja Mecânica, de 1971, três anos anterior a este A Trama.

    Joseph se enfia em sarilhos atrás de sarilhos, ele passa a executar sem a menor cerimônia aqueles que atravessam os seus planos de alguma forma, mesmo os que pouco interferem. O personagem mergulha fundo demais na situação analisada, tanto que confunde o papel que deveria desempenhar, deixando de ser o portador e comunicador da notícia para se tornar parte dela, vestindo até a máscara do vilão, quando deveria ser o maior exemplo de conduta ética possível – sua ambição desmedida acaba por puni-lo e a ele é atribuída a culpa de crimes que ele sequer cometeu.

    O desfecho não é tão intrigante ou auspicioso quanto o 1° e 2° atos, nem contém em si o mesmo nível de mistério, suspense e conteúdo conspiratório. Pakula ainda era um realizador cru, se comparado aos seus futuros sucessos de carreira, como Todos os Homens do Presidente, Dossiê Pelicano, A Escolha de Sofia, etc, mas, como um todo, contém mais acertos que equívocos por parte de sua produção.

  • Crítica | Os Suspeitos

    Crítica | Os Suspeitos

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    Novo filme do cultuado diretor canadense Dennis Villeneuve, Os Suspeitos é um bom suspense de grande tensão: a procura de um pai por uma filha desaparecida, gerando grande conflito e envolvimento emocional em diferentes escalas dentro de um grupo de pessoas próximas.

    Situado na fria e chuvosa cidade de Boston, Keller Dover (Hugh Jackman) leva uma vida feliz ao lado da esposa Grace (Maria Bello) e os filhos Ralph (Dylan Minnette) e Anna (Erin Gerasimovich). Em visita a casa dos amigos e vizinhos Franklin (Terrence Howard) e Nancy Birch (Viola Davis), sua filha, a pequena Anna (Kyla Drew Simmons), desaparece. As famílias logo procuram a polícia e o caso cai nas mãos do detetive Loki (Jake Gyllenhaal) que prende um suspeito, Alex (Paul Dano), que logo é solto devido à ausência de provas. Alex é um adulto problemático e com sintomas de deficiência cognitiva, mas que parece ser o culpado para Dover, que irá ultrapassar os limites de tudo o que acredita para encontrar sua filha.

    Começando já na escolha do tema (desaparecimento de crianças) o diretor acerta no objetivo de mobilizar uma plateia da mesma forma que qualquer um desses casos mobiliza a opinião pública. O infalível aspecto de pureza e inocência de uma criança torna qualquer ato contra ela abominável e irá aglutinar na comoção e condenação desse ato e seus realizadores grande parcela da sociedade, da mesma forma que acontece com o público do filme, que embarca na história e se pergunta a toda hora se faria algo diferente do que lhe é mostrado.

    Emocionalmente falando, o filme então consegue compreender a dimensão devastadora de um caso como este, que não é incomum em nenhum lugar no mundo, e que mostra como toda a dimensão da tecnologia não é capaz de nos proteger dos terrores da própria humanidade. A sensação de impotência dos protagonistas é destacada a todo instante, assim como as brigas internas dos adultos, evidenciando em todo instante a frustração de não conseguir fazer nada. Também neste aspecto somos apresentados ao detetive Loki, que é deixado claro ser um policial típico de filmes de investigação: solitário, sem vida, obcecado pelo trabalho e empático com as injustiças sofridas pelas vítimas dos crimes que investiga. Loki e Dover são personagens interessantes, que por vezes se antagonizam, mas ambos buscam o mesmo objetivo, um dentro e outro a margem da lei, simbolizando o eterno conflito de “civilização x selva” que sempre vem à tona quando o assunto é a violência humana.

    Também é interessante a construção de Alex, um personagem que é a todo instante tratado como culpado, e que parece culpado realmente. Em todo o calor gerado por comoções públicas, faltou ao diretor movimentar a história mais nesse sentido, e tornar a vingança egoísta e personalista de Dover como também parte da opinião pública, e não só pessoal. No entanto, faltou ao filme um trabalho melhor no que tratou da parte policial e investigativa. Ao contrário de outros clássicos do gênero, como “O Silêncio dos inocentes”, Os Suspeitos em alguns momentos falha em manter a expectativa da resolução do crime, e as pistas oferecidas dão ao espectador a chance de desvendar pedaços da história antes de Loki, enfraquecendo seu personagem, como na cena onde é utilizado o velho clichê da mesa destruída pela frustração e ali uma pista crucial é desvendada, quando um espectador mais atento teria reconhecido aquela pista vários momentos antes.

    O mesmo se repete na cena final, quando detalhes importantes são ignorados a fim de se encerrar a história em um clímax instigante e que deixa no ar o que poderia ter acontecido, mas não a ponto de não responder exatamente isso ao “acostumado às respostas” público americano. Caso não se focasse na investigação policial em si, detalhes como estes poderiam ser relevados (Dover vai a casa da tia de Alex com mala, ferramentas e deixa várias pistas, que são ignoradas pela história quando a casa é invadida e revirada por policiais, e nenhuma resposta a essas pistas é dada), mas nesse caso, enfraquece a narrativa investigativa sob a perspectiva policial.

    Apesar de uma fotografia muito bem construída, e também atuações dignas de grandes atores (talvez a melhor de Jackman), Os Suspeitos se alonga por muito tempo em redemoinhos narrativos (como a tortura de Alex por Dover) e que desgastam o choque inicial, travando o desenvolvimento da história. Quando o filme acaba, sobra uma sensação de “ainda bem” misturada a outra de satisfação com uma história que traz à tona discussões interessantes sobre paternidade, violência e sociedade, mas que poderiam ter sido levadas por um caminho mais ousado, questionando mais o valor da mídia e das decisões pessoais nesses casos, como faz magistralmente o longa dirigido por Ben Affleck, “Medo da Verdade” (Gone Baby Gone).

    Os Suspeitos é capaz de entreter e tem uma crueza e aspereza condizentes com o tema retratado, mas que falha em desenvolver objetivamente seu ritmo e conduzir os protagonistas em um desenvolvimento que justifique o tempo de tela, assim como em produzir pistas e recompensas que causem mais do que um certo “eu já suspeitava” ao seu final, enquanto prometia algo além. É um bom filme, mas que não acrescenta muita coisa ao gênero, recheado de clássicos mais completos.

    * Detalhe para a horrível tradução do título em português. Prisioneiros traduziria perfeitamente o que o filme quer passar, quando pais são prisioneiros dos captores de seus filhos. Os Suspeitos além de genérico e vazio, entrega que já há mais de um suspeito do crime.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | A Grande Beleza

    Crítica | A Grande Beleza

    A Grande Beleza

    A câmera de Paolo Sorrentino viaja pelos arredores dos monumentos. O cenário belíssimo de Roma é elevado às alturas, num tom quase divino, graças ao registro visual do realizador. Tais ângulos são típicos de seus trabalhos, mas em La Grande Bellezza estão a serviço de resumir a viagem, tanto a descrita no início da película quanto a do passeio pelas memórias e reminiscências de Jep Gambardella (Toni Servillo), um escritor que, há muito, largou a pena. Sua velhice é repleta de adjetivos que o público consideraria ideal: badalada, repleta de festas regadas a bebidas e mulheres belíssimas que ainda deseja, mesmo sem a fome de antes, resignado em muitos momentos e em um contentamento (aparentemente) resoluto.

    Sua roda de amigos é formada por outros artistas, mostrados como pessoas idosas, decadentes, que vivem de suas obras passadas. A reflexão é semelhante ao cinema felliniano, variando entre momentos de contemplação e adrenalina extrema. Nos momentos em que a jovialidade é mostrada, a rotação é acelerada, enquanto o registro das ações idosas é vagaroso. Visão direta de Jep, dessa vez julgando seus semelhantes. Um travamento criativo (não escrevia um romance há tempos) garantiu a ele congelamento mental. Gambardella não precisou envelhecer, só experimentou o que quis, e, à sua maneira, despreza quem se entregou à velhice. Seu cinismo o faz desdenhar das pomposas opiniões alheias, reduzindo-as. A ausência de ambição aumentou sua desfaçatez, que, por sua vez, afiou sua crueldade. Seu ímpeto em dias passados era não se tornar um mundano, mas um rei; queria a diferença, e sem perceber, perdeu a distinção.

    Ainda sobre o círculo social de Jep, quase todos são reféns da arte, mesmo os que não a praticam há muito tempo. Os que não são mais criativos a perseguem, tentam reavê-la, e os que ainda a exercem são seus escravos. A busca pela obra perfeita é subjugada pelo anseio de relevância; o reconhecimento os define. É um mal, uma muleta para os artesãos, causa malefícios, simbolizados pelas rugas no rosto, que, por sua vez, são o esconderijo onde o talento se esconde.

    A morte e a perda de pessoas importantes arranham a superfície da cúpula de onipotência do escritor. Aos poucos ele volta a ter as sensações que pensava haver perdido, e o estopim da mudança vem por meio da última pessoa que ele poderia imaginar. Percebe com o tempo – e o público é levado a crer – que a boêmia é como a vida animal. Sem muito sentido, os excessos não trazem todo o gozo desejado.

    A incessante procura pela inspiração – chamada por Sorrentino de Beleza – é encontrada junto à morte. A vida, cheia de falatórios infindáveis, esquece-se do silêncio catalisador dos sentimentos. A miséria, a tristeza, tudo isso pertence à vida, à fantasia, à ilusão…

    “Termina sempre assim. Com a morte. Mas primeiro havia a vida. Escondida sobre o blá, blá, blá. Está tudo sedimentado sob o falatório e os rumores. O silêncio e o sentimento. A emoção e o medo. Os insignificantes, inconstantes lampejos de beleza. Depois a miséria desgraçada e o homem miserável. Tudo sepultado sob a capa do embaraço de estar no mundo. Blá, blá, blá, blá… O outro lado é o outro lado. Eu não vivo do outro lado. Portanto… que este romance comece. No fundo… é apenas uma ilusão. Sim, é apenas uma ilusão”.

     A história trazida por Sorrentino é das mais universais, encaixa-se em praticamente qualquer vida humana, e ainda assim é única. Por sua doce e leve abordagem, pode-se inferir certa emulação de Federico Fellini em seus melhores momentos (La Dolce Vitta, e Amarcord especialmente), mas as reflexões de vida em seu texto são voltadas também para a contemporaneidade. Possui fotografia impecável e roteiro tocante, além da magistral atuação de Toni Servillo. Um dos maiores acertos cinematográficos de 2013.

  • Crítica | Questão de Tempo

    Crítica | Questão de Tempo

    questão de tempo

    A nova comédia romântica de Richard Curtis (Simplesmente Amor) chega sem muito alarde no circuito cultural, e felizmente surpreende até mesmo os mais cínicos, grupo este em que me incluo. Em seu novo filme, Curtis consegue encantar o espectador ao longo de duas horas prazerosas de duração.

    A visão de mundo de Curtis se reflete em seus filmes. O tom otimista do cineasta suaviza boa parte dos golpes que a vida nos aplica. Seu cinema não busca grandes reflexões, é apenas um modo para oferecer algumas desculpas que servem como estopim para encontros entre casais e fazer com que estes lidem com algum tema, na maioria das vezes de maneira superficial.  Já vimos isso em Simplesmente Amor, Um Lugar Chamado Nothing Hill, Quatro Casamentos e Um Funeral, no entanto, verdade seja dita, o diretor sabe fazer isso muito bem, e Questão de Tempo é, sem dúvida, o ponto alto de sua filmografia.

    O longa conta a história de Tim Lake (Domhnal Gleeson), que, aos 21 anos de idade, é informado por seu pai (Bill Nighy) de que todos os homens de sua família têm o poder de viajar no tempo, desde que observadas algumas regras. Esse é o mote para que a história se desenvolva, no entanto não estamos nos referindo a um filme sobre viagens no tempo, visto que serve apenas como recurso narrativo para que se conte a história, propondo algumas discussões. Alguns irão falar de supostos furos de roteiro por não se observar lógica temporal, além de outras bobagens, porém não é sobre isso que o filme quer tratar. O paradoxo espaço-tempo é um mero recurso com pitadas de realismo fantástico.

    Tim é um jovem ingênuo e romântico que, ao saber do seu novo “dom”, faz com que o primeiro passo seja manipular seu amor de infância a se apaixonar por ele. Essa é sua primeira lição: nenhuma viagem no tempo faz alguém amar você. Após seu primeiro fracasso, Tim parte para Londres, onde conhece Mary (Rachel McAdams) e a história dos dois se desenvolve.

    Primeiro ponto a ser observado na filmografia de Curtis é como ele mesmo procurou brincar com os clichês da comédia romântica em Questão de Tempo, das típicas declarações de amor a cenas de casamento. O diretor arruma tempo inclusive para auto-referenciar alguns de seus trabalhos, seja de maneira cômica ou buscando outros fins narrativos.

    Interessante notar como o sentimentalismo excessivo de Curtis é deixado um pouco de lado. O grande interesse de seu protagonista é o amor como um todo, não apenas a afeição romântica entre duas pessoas. O personagem pode parecer antiquado e fora de tempo, e talvez até seja, mas o sentimento apresentado soa extremamente sincero e repleto de sutilezas, tanto pelo texto delicado do roteirista quanto pela excelente interpretação de todo o elenco.

    Domhnall Gleeson, após um grande trabalho de atuação em Anna Karenina, repete o feito em Questão de Tempo. Se nas comédias românticas anteriores de Curtis tínhamos Hugh Grant, agora o cineasta parece querer deixar essa faceta de lado e mostrar o homem comum, tão bem interpretado por Gleeson. O veterano Bill Nighy faz um trabalho impecável de pai e amigo de Tim, roubando a cena sempre que está em cena.

    Richard Curtis perseguiu o tema ao longo dos anos, tentou fazer uma versão definitiva em Simplesmente Amor em 2003, mas apenas dez anos depois, de maneira despretensiosa, conseguiu se fazer ouvido. Contagiante.