Categoria: Cinema

  • Crítica | Rookie: Um Profissional do Perigo

    Crítica | Rookie: Um Profissional do Perigo

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    No início da década de 90, o cinema parecia estar empesteado de “buddy cop movies”, aqueles filmes policiais que mostravam uma parceria improvável entre dois tiras totalmente opostos (ou um tira e um malandro) que terminava por se tornar uma grande e fraterna amizade. Rookie – Um Profissional do Perigo deveria ter sido rodado em 1988 e estrelado por Gene Hackman e Matthew Modine, mas o projeto foi enterrado devido a uma greve do sindicato de atores. Em 1990, o projeto foi ressuscitado e Clint Eastwood topou dirigir em troca do financiamento de O Destemido Senhor da Guerra. Ainda que seja um filme menor e irregular de Clint, Rookie ainda é uma boa diversão.

    Na trama, Eastwood interpreta o veterano. detetive Nick Pulovski. Juntamente com seu parceiro Powell, ele investiga uma quadrilha que rouba e contrabandeia carros de luxo liderada por um criminoso alemão (não é piada, o criminoso é alemão!) vivido por Raúl Juliá. Após um encontro com a quadrilha que culmina em um perseguição automobilística, Powell acaba morto e Pulovski é tirado do caso. Logo depois, o novato David Ackerman, vivido por Charlie Sheen, é designado como seu novo parceiro, e o veterano Nick resolve se aproveitar da situação para continuar investigando a quadrilha, mas sem explicar exatamente ao seu novo colega sobre toda a situação.

    O trabalho de Eastwood na direção não é dos mais brilhantes, porém é competente. O roteiro, idealizado por Boaz Yakin e Scott Spiegel, é interessante e o eterno Dirty Harry orquestra muito bem algumas cenas de ação, principalmente a grande perseguição na rodovia. Com um ótimo uso de efeitos práticos e dublês, Clint consegue imprimir grande realidade à cena. Entretanto, a escolha dele por um casal latino (Raúl Juliá e Sonia Braga) para interpretar criminosos alemães é um tanto quanto inexplicável e acaba por imprimir um aspecto meio trash à fita. A polêmica cena de estupro em que a personagem de Sonia força Clint a manter relações sexuais com ela, apesar de controversa e de até hoje dividir opiniões, foi filmada de uma maneira que não a deixou de mau gosto ou gratuita.

    A interpretação de Clint para o policial Nick Pulovski nada mais é que um eficiente feijão com arroz. O ator/diretor cria um tipo durão e obstinado, bem semelhante a outros papéis de sua extensa filmografia. Já Charlie Sheen cria um tipo bem interessante. Seu David Ackerman começa o filme como um cara mimado e meio abobalhado, além de atormentado por um trauma do passado. Entretanto, o personagem vai evoluindo, se tornando durão e se aproximando muito da persona do personagem de Eastwood. É muito legal observar a relação paterna que vai se desenvolvendo entre os dois policiais, relação essa que extrapolou as telas de cinema, uma vez que Sheen vivia problemas com drogas e bebidas e Clint se tornou uma figura paterna para Charlie, o orientando e disciplinando durante as gravações e no seu dia-a-dia. Apesar da sua escolha equivocada, Raúl Juliá defende com muita dignidade o seu papel e Sonia Braga faz uma femme fatale muito sensual em ótimas cenas de ação.

    Ainda que não seja um dos filmes memoráveis de Clint Eastwood, Rookie é uma ótima diversão que demonstra que um grande diretor consegue bons resultados mesmo quando não está em seus melhores momentos.

  • Crítica | Homem-Aranha

    Crítica | Homem-Aranha

    Homem Aranha - Poster

    Há quase 15 anos, as histórias em quadrinhos eram consideradas um estilo inadaptável para o cinema. Porém, após o tímido sucesso de Blade: O Caçador de Vampiro e uma primeira grande produção de X-Men, com Bryan Singer na direção, um novo caminho foi sendo construído, e este se tornaria parte fundamental no cinema-pipoca atual.

    A vontade dos estúdios em produzir um filme do Homem-Aranha era uma antiga pauta fomentada por boatos e especulações. Somente após o sucesso das produções citadas foi possível um planejamento para que um dos heróis mais populares da Marvel Comics chegasse às telas.

    Com direção de Sam Raimi e roteiro de David Koepp, Homem-Aranha é uma produção bruta, não inserida na fórmula cinematográfica dos super-heróis, em que cada filme é trabalhado com base em um universo interligado. Como não havia nenhum plano a longo prazo com tais personagens, a produção foi uma das pioneiras, como uma espécie de teste para descobrir se a fórmula heroica funcionava.

    A origem do herói e o universo do estudante Peter Parker são apresentados de maneira simples, como o desenvolvimento do longa-metragem em geral. Não havia ainda a intenção de um relato explicitamente realista com uma abordagem mais adulta das personagens. As cores claras ressaltam-se na fotografia, mantendo a aura de ficção sem perder a percepção da realidade. Com uma personalidade semelhante à inicial proposta pelo criador Stan Lee, Peter Parker é um jovem nerd, estudioso, um tipo vivendo um mundo à parte, incapaz de se relacionar com outros além do amigo Harry Osborne. As cenas de origem, com a aranha modificada geneticamente – uma modificação da origem com aranha radioativa – que o morde, além de suas mudanças físicas, são apresentadas rapidamente, bem como a personalidade tímida e o amor pela vizinha Mary Jane Watson (Kirsten Dunst).

    Koepp escolheu como vilão desta primeira história o arqui-inimigo de Homem Aranha, o Duende Verde, incorporado pelo empresário Norman Osbourn após realizar experiências com um soro. Diante de um momento de incerteza dos sucessos de produções de quadrinhos, escolher um grande inimigo foi assertivo. Mesmo que a franquia falhasse, o público teria assistido em tela a um dos maiores embates dos quadrinhos. Ainda que uma das cenas chave entre Duende e Aranha tenha sido levemente modificada, é Mary Jane e não Gwen Stacy, como no original, que é arremessada de uma ponte pelo vilão.

    No papel de Norman Osborn, o ator Willem Dafoe foi uma boa escolha para trazer maior credibilidade ao filme e ao papel. Ainda que o uniforme do duende seja bem diferente do gibi, fato que dificultou qualquer expressão facial além da imposição de voz, Dafoe produz boas cenas demonstrando a loucura da personagem. Em destaque para a cena em que conversa no espelho com o duende, destacando as diferentes personalidades pelos olhos e expressões faciais, intensas, como de costume.

    As mudanças em relação ao quadrinho foram pontuais. Além da troca de Gwen Stacy por Mary Jane e das mudanças de uniforme, Peter Parker produzia teias naturais ao invés das feitas em laboratório. Na época, um dos produtores do longa alegou que esta era a saída mais verossímil para a história, afinal, como um jovem nerd seria capaz de inventar uma espécie de cola que nem mesmo as grandes indústrias haviam conseguido? Verossimilhança ou não, o assunto foi pauta para reclamações dos fãs, ainda que em arcos posteriores ao filme, e o Cabeça-de-Teia dos quadrinhos também começou a produzir teias naturalmente. A essência, porém, permaneceu intocada.

    Mesmo com 27 anos de idade na época, Tobey Maguire foi competente em compor seu personagem adolescente, mantendo a timidez no olhar e as características de Peter, sendo um Parker/Aranha melhor do que seu sucessor, Andrew Garfield. Se o envelhecimento de Maguire não foi um problema, o tempo natural transformou algumas cenas de ação mais precárias. É possível perceber com mais detalhe – ainda mais na edição em alta definição – o uso do CGI em algumas cenas de ação e uma composição mal executada do chroma key. Observações que não tiram o mérito da obra, mas que mostram a evolução da tecnologia nesta última década.

    Sem uma cartilha a seguir, a produção acertou na escolha de um bom roteiro, simples mas correto, para esta primeira aventura, obteve um grandioso resultado nas bilheterias e enfim houve a confirmação de que os heróis eram o novo pote de ouro da indústria cinematográfica. Homem-Aranha, ao lado de X-Men e Blade, marcou o primeiro momento dos heróis no cinema, representando uma linhagem heroica que hoje se tornou um dos lançamentos mais importantes  e esperados do cinema anualmente.

  • Crítica | Respire

    Crítica | Respire

    Respire 1

    Segunda experiência da musa Melanie Laurent na direção solo em longas-metragens, Respire trata da vida de Charlie (Joséphine Japy), uma moça de belas feições que em sua intimidade vive dramas comuns a tantos adolescentes da modernidade, como caos familiar e, claro, a sexualidade em ebulição.

    Apesar da gravidade dos acontecimentos que ocorrem a Charlie, a moça não se furta em permitir experimentar novas sensações, e o roteiro de Laurent e Julien Lambroschini flagra a chegada de uma nova aluna, Sarah (Lou de Laâge), uma moça igualmente bela e bastante curiosa. A amizade entre as duas se dá de modo tão rápido que se confunde com um fórmula instantânea, mas que não soa falsa, uma vez que inter-relações efêmeras e automáticas são bastante comuns nesses estágio da vida.

    Não demora para a amizade das duas evoluir, passando pelo estágio da absoluta cumplicidade, onde segredos e sonhos são compartilhados, habitando questões de pura curtição, com uso indiscriminado de substâncias ilícitas, desembocando enfim em uma intrincada e ambígua fraternidade, que vez por outra se confunde com possibilidades de affair, ainda que não haja nenhuma manifestação mais taxativa de homo afetividade, nem entre ambas tampouco com outras moças num primeiro momento.

    As descobertas e o desabrochar da libido em meio a adolescência são retratadas de modo bem mais discreto do que em Azul é a Cor Mais Quente, ainda que seja mais enérgico que o recente As Vantagens de Ser Invisível. As mudanças na intimidade de Charlie e Sarah revelam surpresas desagradáveis envolvendo ameaças e desprezo, pondo algumas discussões bastante profundas em pauta, ainda que o tom seja leve na primeira camada da abordagem.

    A gravidade dos eventos mostrados é suavizada pela direção sensível de Laurent nos primeiros tomos, o que provoca uma sensação de claro estranhamento, por se tocar de modo tão singelo em questões bastante agressivas e pontuais. O caráter do filme visa demonstrar que a crueldade e a obsessão estão longe de ser exclusividade do convívio adulto apenas, distanciando o conceito da simples descaracterização tola e reducionista que o bullying e o assédio moral são normalmente associados, mostrando-os de modo muito pessoal e normativo, o que torna este Respire bem mais palatável para o grande público do que Depois de Lúcia, por exemplo, já que este é motivado especialmente pelos maus-tratos, muito mais ligados a mente e a moral do que ao físico.

    O formato defendido pela diretora faz Respire se aproximar bastante da recente filmografia de Bernardo Bertolucci, ainda que o registro das obsessões tenha muito mais visceralidade neste do que em Eu e Você. O clamor, que dá nome ao filme, é feito de um modo desesperado, aos soluços, intenso como a inevitabilidade da vida, cru como é a vivência comum, sem medo de revelar a verdade de modo rude e ríspido.

  • Crítica | The Nightmare

    Crítica | The Nightmare

    The Nightmare 1

    Documentário de formato inusual, cuja chancela fica mais popular com o passar dos anos, The Nightmare é uma fita orquestrada por Rodney Ascher, diretor do interessante O Labirinto de Kubrick (ou Room 237) que investiga takes de O Iluminado. A nova empreitada do diretor é focada em oito pessoas que sofrem do mal da insônia, drama este que se alastra pela sociedade moderna.

    O início é filmado a partir de cenas dramatúrgicas, que remetem à infância de um doente anônimo. A universalidade da sequência abarca não só os personagens do filme, mas qualquer ser que consuma a fita, pondo o espectador no papel de personagem também, estabelecendo um contato imediato entre os pares. A identidade dos entrevistados é parcialmente escondida, com menção a poucas letras de seus sobrenomes, que visam tornar a experiência ao espectador muito mais empática, apesar de todo estilismo.

    Os medos e traumas são representados por cenas que beiram a graça, de tão pitorescas. Abduções e temores de figuras monstruosas permeiam o imaginário dos entrevistados, e são representados por pesadelos terríveis, com insinuações bem interpretadas, que valorizam em cada detalhe a terrível sensação de não conseguir descansar, especialmente nas representações de sonhos ruins frequentes.

    Os relatos passam a ser cada vez mais atemorizantes, por incluírem situações limite, que por mais que evoquem questões bizarras, vez por outra incorrem em medos comuns, como impotência sexual, choques e pânicos fálicos. Apesar de pessoais, cada retrato filmado possui um caráter comum, que reflete anseios, animosidades e fobias inexoráveis ao existir do homem, fatores que em sensação desperta, trava o indivíduo, e que, no campo das ideias, faz do homem um alguém ainda mais covarde e debilitado, especialmente por não haver fuga do subconsciente, e tal receio é bem enquadrado, a despeito da repetição de alguns contos, já que a fonte da insônia vez por outra é a mesma.

    A teatralidade do roteiro escancara uma característica que pode ser negativa, já que muitas vezes, o formato do filme supera seu conteúdo. No entanto, por se tratar em essência de algo que faz parte da rotina de muitos, seu caráter é bastante válido, mesmo com o simplismo que insiste em se fazer valer em muitos pontos do longa-metragem, passando a impressão de que o espanto noturno seria a causa da doença em si, quando sua incidência é bem menor do que pressuposto. A curiosidade fica por conta dos medo ufológicos, que habitam os sonhos de vários dos pacientes, e que insistem em habitar o ideário do homem comum, demonstrando que o receio do desconhecido, continua sendo um dos maiores bloqueios do homem, e nesse sentido, The Nightmare funciona prodigamente.

  • Crítica | A Travessia

    Crítica | A Travessia

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    Depois de uma carreira quase toda dedicada a brincar com o imaginário infantil, Robert Zemeckis voltou sua filmografia para dramas mais realistas, cujo caráter era bem mais adulto (a exemplo de O Náufrago e O Voo especialmente), ainda que o cunho de fantástico ainda estivesse presente em todas essas sequências. Em A Travessia, cinebiografia do equilibrista Phillippe Petit, existe uma amálgama destas distintas fases da carreira do cineasta, uma vez que as proezas mostradas em tela, beiram o irreal, graças às belas descrições do próprio.

    Baseado no livro do personagem documentado – To Reach the Clouds – o filme conta a trajetória de Phillippe (Joseph Gordon Levitt) através de uma narração óbvia, que faz mais lembrar as películas de Ron Howard do que as de Zemeckis, ainda que Levitt consiga imprimir muito mais emoção e carisma do que o usual. Cada detalhe é contado com um inedistimo ímpar, desde o deslumbre do biografado enquanto criança, até a ascensão como artista circense.

    Zemeckis orquestras belas cenas filmadas dentro do formato 3D, em um ambiente que propicia uma atmosfera deslumbrante, graças ao comum imaginário infantil e juvenil, que glamouriza demais os artistas de circo. Aos poucos, outros entes se reúnem ao redor do enorme sonho de Phillippe, ditos pelo mesmo como cúmplices, pessoas que em cooperação gratuita e empática fariam ocorrer a difícil execução do que seria o maior feito do homem. A primeira delas é Annie (Charlotte Le Bon), uma bela cantora que o acompanha desde o início em sua obsessão em atravessar através da corda as duas torres do ainda não solidificado Word Trade Center.

    O período de construção do plano engloba a preparação para se tornar cada vez mais exímio, reunindo mentores, abandonos da família e muitos eufemismos franceses. O ethos de Petit é o mesmo de uma artista desbravador, não conhece limites normativos, tampouco se permite deixar de viver seu sonho em tempo integral. A mensagem central do filme é viajandona, flertando até com o anti-capitalismo, resultado especialmente pela recusa tardia de Papa Rudy (Ben Kingsley), que dedica ao seu pupilo seu tempo e segredos, muito além de qualquer interesse monetário.

    Apesar do término bastante piegas – relembrando a tragédia de 11 de setembro, mas ainda assim não tão grave quanto no anterior O Vôo – o diretor consegue amarrar uma história interessante, sentimental e apaixonante, com cenas bonitas que não ousam do ponto de vista de realizador , como é bastante comum na filmografia do diretor. A história presente no roteiro de Zemeckis e Christopher Browne consegue ludibriar a realidade e tocar os sentimentos de plateias adultas e infantis, resgatando uma questão idosa como o mundo, o homem em busca do sonho de sua vida e querendo fugir do ordinário e da mediocridade, com um clima de suspense que fita o espectador em sua cadeira em todo o tempo de duração do filme.

  • Crítica | Peter Pan

    Crítica | Peter Pan

    Peter Pan 1

    A intenção de Joe Wright em refilmar o clássico literário e de animação Peter Pan é bem clara, e muito ligada a sua filmografia, comumente retratando cenários suntuosos e tramas que primam pelo visual. Como em Anna Karenina e no curioso Hanna, este Pan de 2015 consegue exprimir nuances no imaginário do público, distantes demais do que a maioria dos espectadores sabe a respeito do rapaz que não cresce.

    A trama se passa antes da época de As Aventuras de Peter Pan, filme animado premiado de Walt Disney, e se distancia muito da versão em live action da década passada, especialmente pelo esmero de seu diretor em dar ares de grandeza ao conto. Levi Miller dá vida ao personagem-título de uma maneira interessante, apoiado em um roteiro que apela para orfandade, claramente no intuito de universalizar ainda mais sua história. Pecados de clichês à parte, os defeitos do filme passam longe da personificação do ator mirim.

    Os efeitos especiais da trama são ligados às coincidências e às uniões que Pan faz ao chegar a Terra do Nunca. A construção de cenários e atmosferas do lugar mágico são curiosas, misturando pop, anarquia e crossdresser, fatores que fazem do caricato Barba Negra de Hugh Jackman um personagem que não prima pelo conteúdo, mas que funciona em quase todas as vezes em que é acionado, especialmente nos momentos musicais, onde os renegados entoam hinos grunge e punk.

    No entanto, a personificação de James Hook poderia ser melhor trabalhada. Garret Hedlund não tem qualquer carisma – vide Tron O Legado e Na Estrada – a ponto de seu personagem não dizer nada absolutamente ao público. Quando ele não está em tela, quase não se sente sua falta. A ausência de qualquer complexidade em seu comportamento o torna genérico, como qualquer anti-herói que se vira para o “lado do bem” repentinamente. O cuidado em construir um 3D que acrescenta á trama passa longe de ser o mesmo na atmosfera em volta do pretenso Capitão Gancho, pouco fazendo crer que ele se tornaria o antagonista de uma possível continuação.

    Apesar de tropeços na construção de cenários da terra dos nativos, onde habitariam os Garotos Perdidos e onde habitam aves esdrúxulas que mais lembram pokemóns deformados,  não há muito a se lamentar. As escolhas para retratar a matança de seres místicos são tão inocentes que beiram a poesia. Wright mais uma vez abusa das cores, o que faz pensar em certa ambiguidade de seu texto, referenciando não só à psicodelia, como também ao flerte com questões graves, como dislexia infanto-juvenil. Peter Pan não consegue o intento de ser uma obra-prima, em razão de algumas licenças textuais ruins, mas funciona como versão em carne e osso de uma história conhecida por ser animada, especialmente em comparação com as péssimas adaptações recentes, como Branca de Neve e o CaçadorAlice No País Das Maravilhas, Cinderela e o musical Caminhos da Floresta.

  • Crítica | Beatriz

    Crítica | Beatriz

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    Promessa de filme interessante, especialmente graças à curiosa premissa e a sua estrela maior, Beatriz de Alberto Graça (diretor de O Dia da Caça e Memórias do Medo) se perde em sua abordagem, especialmente por um roteiro confuso mexido por seis mãos – além de GraçaMarcos Bernstein e José Carvalho – e que não sobrevive aos maus momentos, mesmo com a inspiração ímpar de Marjorie Estiano.

    A personagem-título contém uma complexidade tão inédita que não encontra eco em qualquer outro ser. Sua personagem se baseia em um romance com Marcelo, executado porcamente por Sergio Guizé, que somente repete lugares comuns, computando a si os piores diálogos e atitudes mais odiosas do argumento.

    A história se passa na Europa, entre Portugal e Espanha basicamente. O casal apaixonado está prestes a ter um filho, e busca manter acesa a chama inicial. Marcelo trabalha escrevendo, entregando contos literários para uma publicação, ofício que garante uma renda que contribui minimamente para o orçamento pensado por sua esposa, para finalmente dar luz à criança.

    O destino de ambos mudam quando o homem decide, unilateralmente, ceder aos encantos de um editor basco, que o convence a produzir um novo romance “baseado”, entre muitas aspas, na própria vivência do casal. O caráter do filme passa por uma tentativa de amadurecimento, que infelizmente não encontra eco no confuso argumento.

    A ideia primária é curiosa e bastante criativa, mas o texto final peca por não saber encaixar os seus eventos chave. A metalinguagem da encenação de uma peça, que adapta o romance original, é piegas e demasiado explicativa, o que emburrece demais o argumento. Apesar do deslumbre visual e dramatúrgico de Estiano, não há mais qualquer atuação que se destaque, ao contrário, todos os personagens parecem alienados, como se o filme só funcionasse para Beatriz, justificando a nomeação do longa.

    A misantropia presente no jogo de cenas entre Marcelo e Beatriz pode fazer o público se confundir, achando que a trama é machista, especialmente por ser a mulher o principal alvo das escoriações físicas e de alma, mas não há exatamente misoginia nas palavras do roteiro, e sim um ódio geral pela humanidade que se manifesta mais na carne de Beatriz, mas que é mal orquestrado dentro do produto final.

    A ideia transgressora tem uma execução moralista, com um texto esquálido e que não entrega o que promete. O que sobra na encenação são vazios de conteúdo, exatamente no personagem que deveria ser o mais profundo e complexo. O personagem de Guizé é certamente o maior equívoco da película, com uma incrível personificação do “intrigante homem desinteressante”, apesar de ser ele o segundo pilar do filme. A fotografia bonita não consegue salvar a sapiência do script, tampouco transforma-o em algo além do ordinário.

  • Crítica | Mia Madre

    Crítica | Mia Madre

    Mia Madre 1

    Usando a metalinguagem da feitoria do cinema como referência maior, Mia Madre é a nova aventura cinematográfica de Nanni Moretti – de Habemos Papam e O Crocodilo – que rege um filme focado na personagem Margheritta (Margheritta Buy), uma diretora de cinema, que divide seu parco tempo em três frentes: a realização de uma nova fita, a temível doença de sua mãe e as dificuldades em criar uma filha adolescente.

    Sem qualquer preâmbulo, as cenas gravadas nas locações servem de paralelo para o eterno caos que habita o cotidiano de Margheritta, dialogando de modo incisivo com o espectador, servindo de atalho para a miscelânea de grandes problemas que insistem em cercá-la. Todo e qualquer evento cotidiano se torna parte de uma intensa epopéia, que faz a mulher demonstrar o sofrimento de baques, ainda que não se permita cair a partir das situações limites.

    A luta da protagonista é vista em suas expressões faciais, completamente distante do furor excitante dos que a cercar, inclusive do recém chegado Barry Huggins – John Turturro, em participação especial – que já demonstra sua boêmia ao chegar no aeroporto italiano, repousando sem qualquer contexto com sua posição de antigo astro de cinema. Aos poucos, a sanidade da personagem vai se esgotando, com questões corriqueiras beirando o absurdo, invadindo o mundo ela considera realista. Mesmo um evento simples como o extenso vazamento de água em seu apartamento, é filmado por Moretti sob um ponto de vista fantástico, repleto de objetos cênicos que poluem o ambiente, e que servem de paralelo a bagunça em que está a psiquê da mulher.

    Grande parte do tempo de Margheritta se passa em translados, tendo que conduzir os entes que habitam a sua vida de um ponto ao outro do micro universo que é “aquela” Roma. Sua disposição para completa independência esbarra na sensação de impotência que tenta tomá-la, especialmente pela questão que envolve o acamar de sua mãe. Muito antes da fúria e do desespero tomá-la, já se nota que suas percepções a empurram para a beira do precipício, resultando num colapso comportamental do qual a mulher se recupera rapidamente, ao menos a olhos nus.

    Mia Madre trata dos fatos e perdas inexoráveis, enlaçando tais sentimentos ruins junto as conquistas diárias, juntando tais experiências de um modo interdependente, como se para vencer alguns obstáculos, fosse necessário ter perdas, como parte da clássica jornada de edificação do homem, em torno da feitoria de uma arte.

    A trajetória de Margheritta apesar de ganhar holofotes cinematográficos, representa dramas reais e comuns, onde a arte mais uma vez emula as questões corriqueiras do existir, se assemelhando ao espírito visto em A Pele de Vênus de Roman Polanski, em uma versão claramente menos inspirada, mas ainda assim, bela em sua execução.

  • Crítica | Sherlock e Eu

    Crítica | Sherlock e Eu

    Sherlock e Eu 1

    Em dois minutos de tela já são apresentados John Clay – um dos maiores vilões do cânone, o 4° homem mais perigoso do mundo -, o oficial Lestrade (Jeffrey Jones), Sherlock (Michael Caine) e Watson (Ben Kingsley), numa cena bastante edificante e cheia de referências as aventuras clássicas. Mas isto não dura muito, pois no terceiro minuto de exibição tudo é desconstruído com uma enorme bronca vinda do médico, seguida de um pedido de desculpas do atrapalhado “investigador”. Without a Clue é uma comédia que apresenta Sherlock Holmes como uma farsa, um detetive perfeito criado por Watson para publicar suas próprias reminiscências provindas de suas deduções e investigações.

    O pastiche, realizado por Tom Eberhardt, mostra que Holmes não era mais que um papel interpretado pelo ator alcoólatra Reginald Kincaid, que fora encontrado na sarjeta pelo autor dos contos da Strand Magazine. Em poucos momentos, a dupla se separa após uma briga, e o doutor acha que pode seguir a frente das investigações sem o alterego famoso, o que se prova um engano dos mais terríveis e ardis, pois sua obra supera em muito o autor em popularidade e notoriedade de forma semelhante ao paralelo real entre Sherlock Holmes e Arthur Conan Doyle, e o argumento metalinguístico é muito bem executado.

    Logo Watson percebe que terá de lançar por terra seu orgulho e recorrer a Kincaid, que também não se mostra muito bem quando está só, visto que é absolutamente inábil em quase todos os seus afazeres e se mete em dívidas de jogo como ninguém, a ponto de não ter capital sequer para arcar com sua bebedeira.

    Quando Watson declara suas próprias deduções, ele é sumariamente ignorado, mas quando as mesmas palavras vêm dos lábios de Sherlock, todos acreditam, numa clara referência ao conceito de placebo. A comédia do roteiro é muito semelhante ao humor presente nas séries televisivas americanas, o que se deve ao background dos dois roteiristas, Gary Murphy e Larry Strawther. A ideia inicial era boa, mas fica presa somente à premissa, pois com o decorrer do tempo a comédia perde o fôlego e só se sustenta graças ao humor pastelão.

    Holmes treme diante da possibilidade de Moriarty (Paul Freeman) estar envolvido, este sim um vilão á altura do intelecto de John Watson. É curioso como neste Sherlock e Eu a figura de bufão e de bobo alegre é de Sherlock, ao contrário dos filmes dos anos 30/40, em que Nigel Bruce e seu médico eram o alívio cômico. O duelo final de esgrima garante a Kincaid um justo momento de honra diante do inimigo mortal, fazendo valer finalmente os louros que receberia. Sua nobreza aumentaria ao dar créditos ao real “resolvedor” de casos, superando assim sua antiga birra e assumindo sua amizade pelo médico. O anúncio de “Caso Encerrado”, revela que mais aventuras dali viriam, e apesar da mensagem final, politicamente correta, esta é uma película eficiente em misturar humor e o universo criado por Arthur Conan Doyle.

  • Crítica | Dark Star

    Crítica | Dark Star

    Dark Star 1
    Fruto do início da trajetória cinematográfica de duas personalidades históricas, Dark Star traz a estreia na direção de John Carpenter, já evocando a claustrofobia através de cenários curtos, que seria a tônica de seus futuros trabalhos, aliado ao roteiro de Dan O’Bannon, que aludiria ao receio e paranoia espacial de encontrar figuras atemorizantes durante a corrida espacial setentista, que resultaria na inspiração – junto a Duna de Jodorowsky – no arquétipo de Alien o Oitavo Passageiro, inclusive no visual.
    A aparência dos astronautas como homens barbudos e de fala simples alude ao grupo de sete tripulantes da Nostromo, ainda que falte entre eles qualquer figura que meramente lembre uma beleza feminina aliviante, ao contrário, como dito no início, não há muito espaço para esperanças dentro do minúsculo compartimento de viagem, que já teve sua primeira baixa antes mesmo de a história começar a rodar.
    A música composta por Carpenter além de servir de recurso narrativo, faz lembrar o quão pessoal é a fita, que conta com a trilha original de seu diretor e com a atuação e supervisão de efeitos especiais de seu roteirista e co criador. O tom de humor reúne elementos tanto de comicidade escrachada quanto de acidez, transitando na linha tênue entre não levar-se a sério e ainda tentar provocar em seu público uma sensação de incômodo. O maior avatar desse aspecto dúbio é a figura do alienígena que Pimback (O’Bannon) trouxe a bordo para ser a mascote da expedição. A composição da criatura não passa de uma bola de gás, pintade de laranja e repleta de manchas arredondadas, com dois pés bem toscos nas extremidades, mas tal figura põe o astronauta em questão em apuros muito sérios.
    A temática mais discutida dentro do roteiro é a loucura provinda do isolamento e do confinamento, tecendo uma crítca séria ao sucateamento das condições humanas de trabalho, claro, com muito mais humor do que no episódio Nostromo, mas ainda assim em uma proposta bastante ousada para o ínfimo preço de toda a produção. Dark Star serve tanto como uma extensão de alguns temas discutidos em 2001, especialmente dos mais superficiais, como o receio de ser tragado pela máquina e medo do inevitável, bem como funciona como uma paródia do clássico de Clarke, já que segue na mesma esteira visual que Kubrick pensou, influindo bastante no conceito imagético escolhido por George Lucas para sua trilogia famosa.
    Apesar das condições precárias, Carpenter e O’Bannon conseguem reverenciar o cinema de ficção científica que os precedeu, prestando louvor mas sem se desapegar da modernidade, ajudando a pavimentar o caminho que as futuras space óperas teriam. A proposta simples aos poucos ganhou ares de grandiloquência, ainda que seja comumente subestimada em sua importância.

  • Crítica | Acossado

    Crítica | Acossado

    Acossado 1

    Ainda em início de experimentações e variações de sua Nouvelle Vaugue, Jean Luc Godard iniciava sua película Acossado resgatando alguns elementos do estilo noir, visto no cinema norte-americano, com a fotografia em preto e branco, que lembrava a neblina dos filmes de detetive, além de resgatar o som e figurino típico deste estilo, contando com metais fortes na trilha sonora e chapéus, que escondiam os rostos de sua personagens, bem como disfarçava as reais intenções das pessoas retratadas pela inquisitiva câmera do realizador e crítico de arte.

    A proposta ensaística se equilibra junto a fluidez narrativa das falas de suas personagens, que abusam da verborragia para mascarar inseguranças, o que claramente faz eco com muitos discursos ligados a moral atual, o curioso é que tal artificio é executado por Michel  Poiccard, um personagem que é um fora da lei, e que tem sua trajetória contada através de uma sequência de cortes de estilos completamente diferentes entre si, referenciando certamente a confusão e contradição mental em que está inserido.

    A correria estilística abarca alguns acontecimentos que parecem ocorrer ao acaso, mas que funcionam mais para flagrar os limites da moralidade do homem comum e até onde o sujeito pode ir em busca de um desejo que se choca com a normalidade tradicional. O Michel Poiccard de Jean-Paul Belmondo é a priori um homem comum, que vê a possibilidade de ascensão social via furtos e assaltos, não hesitando nenhuma vez quando a oportunidade lhe aparece, desmistificando a ideia comum de que o mal brota no coração dos incomuns, elevando o conceito de contravenção ao simples fortúnio de sua possibilidade, além das claras tentações carnais que sobrepõem a sua existência.

    Acossado 4

    As sensações de prazer e desejo pelo perigo se agravam quando Poiccard se encontra com Patrícia Franchini (Jean Seberg), em um movimento que era supostamente por coincidência, mas que se revela profundamente integrado com o destino, já que a apreensão pelo proibido é comum entre ele e ela. Aos poucos, eles formam o casal prefeito, reprisando o amor pelo censurado, ilegal e proibido, utilizando a tela para dar destaque as pulsões previstas em estudos freudianos como inexoráveis a psique do individuo.

     O desfecho tanto do pretenso romance, quanto do filme guardam louvor ao ocaso, valorizando o completo caos de mentes vazias, com uma lente afiada que acompanha a inútil tentativa de fuga do protagonista, um personagem que foge completamente dos arquétipos belos do herói clássico e paladínico. Nem mesmo na despedida entre os entes amorosas há espaço para sentimentalismos bobos e maniqueísmos, fazendo lembrar a face selvagem do homem, que opta por se aproximar daqueles que lhe produzem asco. O máximo de alegoria normativa que Godard permite ao seu filme, é este, de perseguir o párea, ainda que ao final este seja um mártir, o acuado e atormentado homem que dá título ao filme.

  • Crítica | Bata Antes de Entrar

    Crítica | Bata Antes de Entrar

    Bata Antes de Entrar 1

    Após toda a polêmica de Canibais – com a demora de seu lançamento no circuito de cinema dos Estados Unidos –, Eli Roth retorna a direção de longas-metragens, acompanhado do boom de cinco estúdios/produtoras diferentes, no filme que seria o mais palatável até agora de sua curta e prolífica filmografia. Bata Antes de Entrar já se diferencia de seus primos anteriores nas imagens inciais, aludindo ao ponto turístico do letreiro de Hollywood, acompanhado de uma música sentimental, movida pelo piano que introduziria a rotina de Evan Webber (Keanu Reeves) e sua bela família normativa, que em seu micromundo tem uma rotina corriqueira, sem muitas emoções.

    A câmera sobrevoa o subúrbio com o mesmo piano de corda utilizado ao adentrar a casa dos Webber, fomentando a tragicomédia de uma família tradicional e ordeira, que neste filme é o principal alvo do humor ácido da filmografia de Roth. Após uma viagem da bela esposa Karen (Ignacia Allamand) – não sem antes com uma recusa ao sexo, que ativa em Evan todos os seus “instintos” animalescos e libidinais – e seus filhos, o arquiteto e ex-DJ fica solitário em sua residência, tendo que conviver somente consigo em pleno feriado de Dia dos Pais. O chamado da aventura ocorre quando ele atende a porta, e duas belas moças adentram o recinto onde vive sua parentela.

    Após uma longa espera, e um jogo de sedução estabelecido, apesar de muitos pesares, as novas protagonistas Genesis e Bel finalmente conseguem seu tento, fazendo Evan ceder aos seus encantos, algo mais do que natural, uma vez que suas intérpretes, Lorenza Izzo e Ana de Armas têm a figura de sedução extrema, comum nos exemplares normalmente vistos nas fitas do diretor. Mais uma vez o cineasta apela para o sexploitation de estrangeiras, ainda que seja menos expositivo fisicamente e mais focado na discussão da moralidade textual, voltado para temas pesados como pedofilia.

    A abordagem de Genesis e Bel é tratar o sexo como algo vil, resgatando a tradição dos slashers e diversos outros sub-gêneros do terror, que são sempre alvo de reverência da lista de filmes de Roth. Bata Antes de Entrar nada mais é do que outra homenagem aos filmes do cine drive-in estadunidense, onde jovens iam com seus carros unicamente para transar e consumir filmes de orçamento baixo, semelhantes a esta obra produzida em terras chilenas.

    Apesar de toda a pecha de não se levar a sério – especialmente pelos péssimos momentos de atuação de Keanu Reeves –, o roteiro zomba da fragilidade da estrutura familiar do americano médio, ao mesmo tempo que faz troça da arrogância de figuras supra-seguras como o dito “herói” da jornada, fazendo de Evan o exemplo da hipocrisia tipicamente adulta, especialmente em comparação com os juvenis representados na dupla de beldades, debochando principalmente da condição de falsa humildade do homem, que unicamente por seus gostos se julga superior a tudo, estabelecendo assim um curioso diálogo com Alta Fidelidade, de Nick Hornby, que também apresenta esse estereótipo, só que de outro viés.

    O gore do filme é bastante contido, mas ainda assim presente, como inúmeros outros espectros dos horror movies, como citações a personagens importantes que jamais aparecem, armadilhas malfadadas, aparições convenientes de coadjuvantes e muito sadismo nas cenas e falas de sexualidade controversa.

    Os momentos finais são dedicados à desconstrução de todos os arquétipos normativos de seus epílogo, com a destruição de inúmeras peças de arte, bem como de toda a falsidade da estrutura familiar do conservador americano. O texto de Roth, Guillermo Amoedo e Nicolas Lopez é ácido, pontual, repleto de furos propositais e contestação, utilizando mcguffins que envolvem provar ou não um ponto e brincando com temas politicamente incorretos, mostrados de modo estilístico – e que funcionam caso o espectador compre a proposta de seu realizador. Considerando que esses fatores funcionem, Bata Antes de Entrar se torna uma ótima paródia dos filmes de obsessão e romances água com açúcar, tão populares em Hollywood.

  • Crítica | A Possessão do Mal

    Crítica | A Possessão do Mal

    A Possesão do Mal - poster

    Repetindo a mesma estrutura narrativa de outros filmes do gênero, com câmeras filmadas de maneira amadora, estilo found footage, A Possessão do Mal apresenta poucos elementos inéditos mas se destaca pelo personagem central, Michael King, uma figura descrente de qualquer religião e, por consequência, possessões e outras manifestações diabólicas.

    Após perder a esposa em um acidente, King questiona os fatos que levaram à morte da esposa, principalmente devido a um conselho dado por uma cartomante de não realizar uma viagem programada e permanecer na cidade. Questionando-se se existe uma visão superior ou outros planos, a personagem realiza experimentos à procura de contactar espíritos de alguma maneira possível.

    Documentando 24 horas por dia, a personagem vai até especialistas diversos à procura de contato, partindo desde referências visuais de objetos que popularmente configuram como assombrações a possíveis iniciados no ocultismo e necromancia. Após estes contatos, King nota mudanças em sua vida, uma falta de controle que cresce cada vez mais sem explicação.

    A incredulidade é o melhor argumento desta história, produzindo um personagem reticente, tentando lutar contra essas forças e registrando cada sensação nova, como vozes, manifestações sonoras e outros recursos conhecidos dos clichês de terror. Mesmo sem acreditar em possessões, Michael sabe que está sendo afetado por algo inexplicável. A brevidade do filme e a intenção de sempre promover cenas de suspense ou ação mantêm a atenção do telespectador, mesmo que este reconheça que qualquer estilo dessa fita já foi visto em produções anteriores. Como uma história feita, basicamente, por um único personagem, o público se torna o mensageiro de suas gravações e compartilha a aflição de não compreender as manifestações físicas que aumentam cada vez mais, fazendo-o perder o domínio de suas ações e do próprio corpo.

    Não há nenhuma intenção em promover alguma novidade e, talvez pela ausência de tentar qualquer grande narrativa, a história cumpre seu papel com os aspectos primordiais do terror, provocando tensão e susto de maneira eficiente. Não será um filme a ser lembrado a longo prazo, mas ao menos não entrega uma história apática como muitos outros lançamentos do gênero.

  • Crítica | Perdido em Marte

    Crítica | Perdido em Marte

    Perdido Em Marte 1

    Tentativa de seu diretor em retornar aos bons tempos – ou ao menos à seara de filmes passáveis – Perdido em Marte é um esforço conjunto de Ridley Scott e o roteiro do pródigo Drew Goddard, cuja experiência na televisão – especialmente no recente sucesso de Demolidor – o credenciava a criar uma história carismática e interessada, êxito alcançado no argumento que se baseia no livro de Andy Weir.

    Apesar do trabalho recente de produções hediondas, como Êxodo e Conselheiro do Crime, Scott consegue trabalhar bem com os elementos que lhe são postos à frente, se valendo especialmente de dois fatores fundamentais: o carisma de Matt Damon, que funciona de modo perfeito – ao contrário de Terra Prometida de Gus Van Sant – exatamente pela simplicidade de sua forma; e claro, uma trilha sonora incidental maravilhosa, que ajuda a preencher o vazio da solidão de um planeta inóspito.

    Mark Watney (Damon) está junto de seus companheiros, viajando pelo espaço, em um esquema que reúne uma gama de personagens padronizados, que não fogem em nada do que o grande público consideraria palatável. A missão dá errado, e Watney fica para trás, dando vazão à velha história de superação e de resgate do homem abandonado.

    Perdido Em Marte 3

    Apesar de se valer de tecnobables na solução final, o argumento é crível, mesmo quando apela demasiado para a suspensão de descrença, exatamente por, mesmo com pouco tempo de tela, a persona de Watney resultar em algo interessante, otimista e chamativo, sem discrepâncias em relação ao seu passado, fugindo inclusive de velhos bordões, como família desesperada atrás do desaparecido ou cônjuge, à espera da volta.

    Claramente, há no texto do filme um bocado de referências a objetos blockbusters do passado, como um pouco do espírito de Top Gun: Ases Indomáveis, no sentido de retratar a alma de equipe e as grandes mentiras dos “especialistas” – fatos que provavelmente irritam qualquer botânico que vê Watney realizar um sem número de proezas. Outra alegoria é ao óbvio mote de O Resgate do Soldado Ryan, ainda que este seja muito menos cafona e apelativo que o filme de Spielberg.

    Apesar de não possuir cenas tão bem orquestradas do ponto de vista criativo, todo o suspense e claustrofobia funcionam em Perdido Em Marte, reprisando os ótimos momentos de Gravidade, inclusive o plot de desespero em torno da sobrevivência. Embora a carga positiva do filme de Scott seja enorme, este é um dos pontos diferenciais da fita, fato que inclusive insere a obra em um patamar superior ao recente Interestelar, por não encarar seu espectador necessariamente como um neófito.

  • Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Mystic

    Nós somos a nossa infância, e Clint Eastwood quer discutir isso. Mestre em pegar histórias de força descomunal e subverter essa força com sensibilidade à flor da pele, mas diferente de Ang Lee e outros, sabe equilibrar as energias que podem surgir de tramas humanas, investigativas de algum modo, e coloridas por elementos típicos de seu cinema. A paixão por um ideal e o espírito incansável dos lutadores da vida real, no caso, aqui, o esforço imprevisível na neblina de uma morte sem explicação, num mundo de homens, descrença e intolerância, se mostram nesta produção de 2003, uma pérola sobre o que move a espiral no coração de quem faz deste mundo um mundo frio e sem volta nas nossas ações, onde nem a mais antiga e forte amizade sobrevive diante de uma tragédia de proporções gerais, tendo nos enigmas do passado a chave para um futuro mais simples. Há um futuro esperando lá fora ou é a gente que o faz? O dia é da caça, é verdade, mas o predador tem sua hora.

    Quando um dos três amigos, num belo dia, entra num carro de desconhecidos, o estrago é feito. Para sempre. Os três jamais esquecem o momento, seguidos por ele, atormentados em lembranças revividas na prática, tal um carma constante que afeta muitos além do trio que fez assinar seus nomes na calçada de cimento fresco, na rua que nunca abandonaram. Sobre passado e reminiscências, sobre os pregos e acerca dos arames que nos atam e nos fazem ser quem somos, por fim, nas tangentes das relações que também nos constroem nas sarjetas por onde andamos, construímos nosso ser social, e escondemos quem realmente somos, abertos nesse nível apenas entre quatro paredes, nas confissões entre pessoas queridas que conhecem nossas páginas secretas. Um filme de detalhes, closes e olhares que quebram essas paredes e queimam essas páginas ao ar livre, culminando, ainda assim, em mistério traduzido na imagem de um rio, tamanha esperteza de um roteiro de gênero, no caso criminal. Rio escuro e profundo, feito a alma dos envolvidos no crime insondável de uma jovem moça, numa história de gato e rato impossível de desgrudar os olhos, e da suspeita de estar assistindo a um grande filme.

    E de grandes envolvidos. É difícil destacar quem quer que seja e ser justo ao mesmo tempo, a partir de uma atuação coletiva que beira a perfeição, com atores e atrizes num esplendor de sintonia, emaranhados na teia de seus personagens. É incrível como o caldo começa a borbulhar só no olhar, novamente, de Tim Robbins, sentado num bar durante uma partida de beisebol, esporte adorado por boa parte dos americanos. A câmera se aproxima do rosto de quem entrou naquele carro há anos atrás, e na ausência de palavras conseguimos ler na face do homem o universo que este carrega nos ombros, a dar margem ao choque de mundos que se dará logo após os minutos iniciais. Quem matou? E por quê? Tudo parece brotar do nada, num vórtice de consequências onde as causas importam bem mais, na tradição dos suspenses forjados a ferro e fogo que prezam mais a razão do crime que o crime em si, como em Pacto de Sangue (1944), Alma no Lodo (1931), O Falcão Maltês (1941), Sangue de Pantera (1942), A Lei dos Marginais (1961), Fúria Sanguinária (1949) e O Homem Errado (1956), de Hitchcock. Clássicos em que a vibração e atmosfera são muito similares com as de Meninos e Lobos.

    Nota-se, também, a maneira descompromissada e quase natural de como essa atmosfera é cozinhada: como se realizar um filme para Eastwood fosse cozinhar, juntando temperos para a receita ficar no ponto. Ponto de ebulição para a história explodir na tela e no rosto de Sean Penn, o pai da vítima cujo choque do presente releva o passado para construir o amanhã, por mais negro e desumano que hoje possa ser. Na expressão de desespero de Marcia Gay Harden, cúmplice de quem tem as mãos sujas de sangue, e na tensão de Kevin Bacon na busca pelo assassino: todos são interligados numa ciranda em torno da loucura e da lucidez num bairro de classe-média onde nada relevante poderia brotar, e por isso mesmo brota. A receita é simples, e para ser simples o mestre Eastwood traduz em suspense familiar, com suas típicas mãos de seda, a desconstrução de uma amizade, mas sem nos deixar desconfortáveis na remoção das peças do quebra-cabeça, exceto, é claro, quando chega a hora dessas cabeças começarem a rolar.

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  • As Doces e Amargas Vidas de Fellini

    As Doces e Amargas Vidas de Fellini

    Doce Vida 1

    Começando pelos acordes pontuais de Nino Rota, a viagem fantasiosa pela luxúria e usura de A Doce Vida exibe seu caráter seguindo a esteira de estudo dos dramas humanos através da interpretação junguiana, comum nos trabalhos de Federico Fellini. Marcello Mastroiani, fiel companheiro do diretor, dá vida ao jornalista Marcello Rubini, que transita na alta roda italiana, convivendo de modo privilegiado com astros e estrelas, se pondo em níveis acima dos urubus chamados de paparazzi. A trajetória do comunicólogo passa pela poesia e depressão inerente a psiquê do pobre bicho homem, que insiste em se julgar racional, especialmente nos ditames sentimentais.

    Marcello guarda algumas semelhanças com seu criador, servindo como alterego do Fellini jovem, quando ainda era um simples jornalista, e analisava ao longe o glamouroso mundo das estrelas italianas. A futilidade e bajulação as figuras afamadas é flagrado em detalhes sórdidos, ganhando capítulos reais com a personificação de Sylvia (Anita Ekberg), que faz as de figuras bem quistas na época, desde óbvias como Marilyn Monroe, até outras. O factoide da perseguição de Marcello esconde uma relação fracassada, do funcionário de periódico que ignora sua cônjuge para viver um luxo que não é seu e que não lhe cabe.

    Mesmo tentando fugir, Marcello não resiste a comum idolatria ao ícone de beleza feminino, como se existir fosse somente uma desculpa para desfrutar ao longe de algo tão ímpar. A mistura entre um corpo escultural, personalidade magnética e uma desatenção cativante fazem de Sylvia um personagem rico, real e irresistível, tanto no âmbito sexual quanto na figura de inveja e admiração dos que a cercam. O interesse por coisas triviais faz ele se apaixonar ainda mais pela mulher, tornando mesmo questões cotidianas em eventos cósmicos, tornando banhos em chafarizes em eventos mágicos, indiferentes ao tempo e a ebriedade comum de quem vive uma rotina de excessos.

    O protagonista se põe em uma posição de onipresença, como observador universal, mas sem onipotência, já que não lhe é comum interferir muito no operar daquele universo habitado por deuses. A distância do homem com as figuras idolatradas é a mesma entre a Terra e o Sol, e ele só se atreve a ameaçar cobrir esse trajeto, mantendo distância dessa realidade, mantendo-a em uma respeitosa longitude dos astros que conhece, aceitando humildemente até seus insultos.

    A realidade de Marcello não demora a chegar, através do comum vitimismo de Emma (Yvonne Furneaux), uma namorada desconsolada, que se lamenta por não estar presente na maioria das aventuras de seu pretenso par, se tornando uma pessoa que claramente não está no mesmo momento amoroso que o homem. É da parte desta contraditória pessoa que surge a alcunha de hiena, dita aos fotógrafos sensacionalistas que seguem os entes notórios, mostrando os dotes que a fazem ser o álibi amoroso do jornalista, ainda que seu papel seja, na maior parte dos dias, decorativo.

    Doce Vida 7

    A reflexão de Marcello sobre o que faz no presente e o que pretende fazer no futuro é parte do ensaio ideológico de muitos dos que se dedicam a crítica ou a comunicação, fruto do desejo de estar perto da arte que ainda não se sentem prontos a exercer. Ao mesmo tempo que as palavras revelam um sentimento que pode ser encarado como pretensão, há também a conexão com dois fatores simples, com os sons comuns da natureza e a presença infantil, que faz alegoria à ingenuidade apaixonante dos não corrompidos pelas ambições dos adultos. O mesmo ambiente que produz essas sensações é a casa onde se discute a dignidade entre agir como analista de arte e a boa remuneração dos que reproduzem o discurso midiático fascista.

    A jornada humana e profissional descrita na fita, os detalhes sórdidos da exploração da cena mainstream, elevam Roma a um epicentro cultural europeu e mundial, como era na época de seu Império. Fellini demonstra seu amor pela cidade e, sempre que podia, fazia de sua obra uma ode ao lugar que lhe presenteou com tantas histórias, a fonte de suas grande mentiras. O repertório felliniano era tão vasto que grande parte de seu texto era dedicado a desenhar uma análise dos tempos posteriores, o que o qualifica como figura premonitória, capacidade rara entre cineastas de toda história.

    A melancolia, assinalada entre os momentos de pausa de Marcello, resulta em uma contemplação da depressão, comumente escondida entre os momentos de farra e excesso de bebidas e fumo. Não há tristeza que consiga manter-se incógnita pela eternidade, sequer por uma longa extensão de tempo.

    Fellini consegue mostrar que a distância entre o depressivo e o apaixonado pode ser ínfima, praticamente irrisória quando ocorre a corrida pelo coração daqueles que Marcello ama. O personagem serve também como uma tela branca, onde experimentações a respeito da retórica sentimental são testadas, onde se exemplifica o abismo entre o discurso pretensamente desapegado da dura verdade que demonstra o vazio de quem não tem no amor o centro emocional de seu ser.

    Marcello é um sujeito falho, humano na concepção mais íntima da palavra, capaz de atos belos e covardes, capaz também das maiores decepções, especialmente a respeito dos que ele achava ter uma vida perfeita, mas que acaba por ceder a uma tragédia pessoal, que se anunciava a despeito da falta de percepção do óbvio, provinda do homem que deveria analisar o cotidiano.

    O desfecho inclui mais uma festa exagerada, onde lança mão de substâncias inebriantes que simbolizam as milhares de maneiras de fugir de si e dos dramas diários e recorrentes da intimidade humana. Nenhuma depravação, exagero ou escândalo é capaz de esconder a miséria presente no ideário de Marcello, assim como do sujeito ordinário que busca eternamente meios de se entorpecer e enganar suas próprias percepções de mundo, e esse é um dos múltiplos motes explorados no roteiro de Fellini, Enio Flaiani e Tulio Pinelli servindo como um belo estudo da perspectiva psíquica humana, passando por Jung, Lacan e Freud, sendo talvez o filme mais profundo em temas psicológicos não necessariamente ligados a paralelos junguianos, ainda que trate de arquétipos. A influência talvez tenha vindo do escritor não creditado Pier Paolo Pasolini, já que A Doce Vida possui um burlesco fantasioso voltado um pouco para o grotesco, abraçando a realidade. Ainda assim, usa a rotina para pavimentar o caminho até o âmago dos sentimentos do proto-artista, estudando a mente e a possibilidade de um Fellini no pretérito, ainda em formação, na fita que talvez seja a jornada mais pessoal de sua filmografia.

  • Crítica | A Dama de Ferro

    Crítica | A Dama de Ferro

    A Dama de Ferro - poster

    A figura da política britânica e primeira-ministra Margareth Thatcher sempre foi polêmica e divida entre apoiadores e detratores. Por 11 anos foi chefe de governo do Reino Unido, realizando severas modificações na estrutura econômica do país. Popularmente, ficou conhecida como Dama de Ferro, alcunha que demonstrava sua imposição diante de questões difíceis e dotada de certa teimosia, com a qual gerenciava a nação.

    Lançado em 2012, A Dama de Ferro é a biografia cinematográfica desta figura controversa. O grande triunfo da produção é escolher Meryl Streep para interpretar a personagem principal, uma atuação que lhe valeu, com razão, o Oscar, Globo de Ouro e o Bafta de Melhor atriz em 2012.

    É perceptível uma tendência de extremo realismo na composição biográfica no cinema. Tais histórias não só são mais acessíveis ao público em geral do que biografias literárias como parte da história de um povo. Mesmo que certas tramas possam ser tendenciosas, cabe ao público observar este aspecto e compreender a interpretação dos realizadores.

    No roteiro de Abi Morgan, a trama segue a estrutura tradicional de transitar entre o presente e o passado da vida da Baronesa Thatcher. Neste caso, há um interessante dado biográfico que justifica algumas transições de cena e tempo: Lady Thatcher estava senil, apresentando sinais de demência nos últimos anos. A primeira cena do longa-metragem apresenta um idosa de lenço na cabeça comprando uma garrafa de leite, caminhando por uma Inglaterra que ela desconhece, em um misto de confusão mental e de um país que não mais lhe pertence. A imagem pontua bem o distanciamento da primeira-ministra nos últimos anos de vida.

    A trama retrocede para a juventude e segue a biografia desde o início de sua carreira enquanto apresenta breves momentos de sua vida contemporânea como uma senhora aposentada que precisa de cuidados constantes. As pontes entre passado e presente são feitas pelos objetos em sua casa. Histórias que voltam sobre uma trajetória iluminada.  Devido a sua doença, há um bonito recurso teatral que traz à tona seu falecido marido, Denis, em diálogos fictícios que retomam acontecimentos e se mantêm no limite entre um estilo narrativo e a saudade daquele que a acompanhou em boa parte da vida.

    Neste cenário, a velha Thatcher revê partes de sua vida em cenas que trazem o passado pelos pensamentos presentes. A vida política é apresentada desde o início quando entrou no Partido Conservador até o ápice como primeira-ministra, vista por uns como grande salvadora e outras como um demônio local.

    É nas idas e vindas entre passado e presente que Meryl Streep e Jim Broadbent brilham. Mesmo em poucas cenas, o velhinho Denis conquista pelo carisma, demonstrando o companheirismo da relação com Thatcher e, em nenhum momento é eclipsado pelo talento de Steep, sem dúvida a grande estrela que brilha neste filme.

    Parte do sucesso desta interpretação se deve à maquiagem esmerada da também vencedora do Bafta e Oscar, Marese Langan, que não só transformou-a em uma Thatcher mais jovem como desenvolveu uma maquiagem realista para a velhice, dando total credibilidade física à personagem. Enquanto Streep compõe a personagem desde sua postura, na velhice curvada e com dificuldades de andar, para a forte senhora de passos firmes do parlamento.

    Além da composição corporal e da dentadura que a ajudavam a parecer Thatcher e que, com certeza, dificultavam sua interpretação, ainda havia a mudança do sotaque de seu inglês americano para a pronúncia britânica. Mesmo diante de todos esses desafios, a atriz faz uma grande interpretação que corrompe a barreira entre ator e personalidade real. As semelhanças entre ambas são incríveis e essa credibilidade faz o público perceber com melhor qualidade as nuances da personagem. Uma mulher de um partido conservador que não desejava ser uma mera dona de casa, focada em um plano maior, para a senhora que tudo conquistou e enfrenta uma velhice insegura e com medos internos.

    Parte da controvérsia de Thatcher é representada por sua própria trajetória pessoal, além dos erros e acertos na política. Margaret foi uma personalidade feminina em um meio altamente masculino e, mesmo que o filme exclua outras mulheres para dar destaque pleno a ela, a primeira-ministra foi um símbolo feminista, e talvez hoje não seja tratada como tal devido ao contraste contemporâneo de que o feminismo é sempre representado por um símbolo progressista, enquanto Thatcher era uma conversadora ferrenha. Mesmo que se apontem contradições a este respeito, a força de uma mulher de seguir em frente em meio a uma população extremamente machista, revelava a potência feminina de não se submeter ao sistema tradicional de sua sociedade. Talvez por tentar se impor dentro deste universo, sua alcunha de Dama de Ferro foi ainda melhor forjada.

    A produção gera simpatia e raiva desta personagem real e não tem medo de apresentar sua fragilidade no final da vida, explorando-a além da vida política, no interior de sua casa e nos conflitos naturais para outros, como aceitar perdas e memórias carregadas por quem já se foi. Como qualquer obra cinematográfica, a história parte de uma visão específica que seleciona acontecimentos e, eventualmente, oculta o que não é interessante. De qualquer maneira, o filme é um bonito drama que equilibra bem o passado e presente de uma grande figura política do século anterior e que se destaca pela verve poética e teatral que o atravessa, como a linda cena simbólica do desfecho de uma velha senhora lavando a própria louça e saindo de cena. Uma metáfora deixada ao público como se a própria Baronesa dialogasse conosco e, em uma ação silenciosa, confirmasse sua chama diminuta diante de um passado exuberante que, mesmo na velhice, não será apagado pela história.

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  • Crítica | Duna de Jodorowsky

    Crítica | Duna de Jodorowsky

    Duna de Jodorowsky 1

    Focado em uma das figuras que tencionavam deixar claro que o cinema é muito mais arte do que indústria, o documentário de Frank Pavich retrata as inspiradas falas de Alejandro Jodorowsky, a respeito do que seria a sua versão do clássico de Frank Herbert. Duna de Jodorowsky tenta em um esforço hercúleo retratar como teria sido o tal filme, que apesar de jamais ter visto a luz do dia e não ter chegado a grande tela, influenciou praticamente todo o cenário cinematográfico de sci-fi dos anos sessenta e posteriores.

    Reverenciando o artista, o documentário passa rapidamente pelo fenômeno que ocorreu nos cinemas pelas madrugadas’ com o western El Topo, além de louvar também Montanha Mágica, que por si só é bastante psicodélico. A trajetória inclui também o conhecimento do realizador junto ao quadrinista Moebius, que passou a sonhar com ele a feitoria do que seria o seu “pessoal” Duna, exibindo uma face ainda mais ácida do que a vista na versão de Lynch. A remontagem das artes conceituais em movimento revelam uma adoração a Moebius e Jodorowsky, além de contemplar belamente o que deveria ter sido, tangendo o que podia ter sido algo mágico.

    A personalidade de Alejandro era única, e seu domínio deveria ser pleno, o que impediu até o aporte do especialista em efeitos especiais Doug Trumbull, que havia trabalhado com Kubrick em 2001. Os detalhes vão desde esta recusa até a aproximação de Dan O’Bannon, que acabava de estrelar e escrever Dark Star. O processo de formação do filme começava a tomar forma, juntando-se ao time a estrela em ascensão David Carradine, que tinha em seu Kung Fu uma porção de influências de El Topo. O conjunto de texto e visual do filme tinha um caráter messiânico, transparecendo desde a construção dos desenhos que seria um divisor de águas, mesmo antes do advento dos blockbusters.

    Jodorowsky tinha poesia até em suas explicações, falando de maneira apaixonada sobre as semelhanças entre os clássicos de ficção científica espaciais e o teatro, tornando o conceito de space opera em algo ainda mais literal. O design de roupas e máquinas, as cores saturadas que predominariam até sobre o ambiente desértico, compunham um quadro de qualidade abordagem ímpar.

    As influências de Dali, vistas em porções inteiras da arte conceitual tomou forma carnal no desejo de Alejandro em incluí-lo no elenco, mesmo sabendo que seria difícil fazer ele aceitar. A mistura de elementos envolveu também H R Giger, muito antes de sua concepção mais famosa, em Alien, o Oitavo Passageiro, dali sairia o início do tom gótico dos Hakkonen, os vilões daquele universo. O conjunto de personalidades de campos completamente diversos incluiria a banda gótica Magma, Mick Jagger no auge da carreira e Orson Welles, quando já era mal visto por Hollywood, enquanto só fazia beber e comer, mas ainda considerado um gênio por Alejandro.

    A raiva passada nas palavras do realizador, revela o cansaço não só pela não execução de seu filme, mas também pelo desastre decadente em que o formato de arte se inseria, uma vez que foi o fator monetário que o manietou e o impediu de seguir em frente em sua proposta surrealista, o que resultou na “retirada”, através de um parente de Dino de Laurentis que entregou a David Lynch, que por sua vez também teve seu filme retalhado pelos produtores.

    A direção e escolha de ângulos e cenários feitos por Pavich é belíssima, e emula em grande parte a genialidade de Jodorowsky em conceber seu projeto, que apesar de não ter ganho as telas, influenciou dezenas de filmes, desde bombas como Mestres do Universo, Flash Gordon de 1980 e Prometheus até clássicos comerciais e cults, como Star Wars, Caçadores da Arca Perdida, O Exterminador do Futuro, Contato, entre outros, herdeiros morais daquele Duna, alguns filhos que provocam orgulho e outros que fazem rir e sentir vergonha, mostrando neste “clã” um paralelo com qualquer família comum e ordinária.

    Duna de Jodorowsky serviu especialmente para reunir novamente o cineasta autor de seu comparsa de longa data Michel Seydoux, que jamais haviam se encontrado até então, depois da não realização do filme, o que gerou uma série de conversas e a parceria em A Dança da Realidade, exibido em Cannes em 2013, treze anos depois de O Ladrão do Arco-Íris, último filme de Alejandro. Não bastasse o reencontro cósmico, o documentário possui um classicismo mágico, capaz de fazer sua plateia viajar sonhar com o que poderia ser este Duna, além de louvar o legado e a obra posterior dos envolvidos.

  • Crítica | Jersey Boys: Em Busca da Música

    Crítica | Jersey Boys: Em Busca da Música

    cartaz

    O poder da música, como nenhum musical americano não mostrava desde… Muito tempo. A música cura, liberta, ela expande, ela cobra preços, devoção, custa sua liberdade, suas amizades, na vontade de vencer na vida com o talento que existe em si. Porque o poder da música não vem do glamour das apresentações do MTV Movie Awards, e o veterano Clint Eastwood, cobrindo aqui três décadas do cenário radiofônico da América, volta ao pré-MTV e conscientiza o fato que ainda se encontrava puro e confiante nos tempos de Inside Llewyn Davis, dos irmãos Coen, para as novas plateias, para a geração 2000 que prefere assistir a videoclipes no Youtube a ver um musical de primeiríssima linha, à moda antiga, com duas horas sobre a história e o ar que entra nos pulmões de quem respira, e vive, cada acorde e cada nota, no grande shopping center chamado América.

    É notório como a escolha perfeita de cada ator representa a alma do filme, como ela é precisa para garantir a nossa identificação com o exibido e o ouvido, nosso sorriso ao ver Christopher Walken, o sério e discreto Rei de Nova York, de Abel Ferrara, dançando What a Night, clássico pop dos Four Seasons. É através do exercício de acompanhar os caminhos da banda dos anos 50 aos 70 que o filme se apropria do espírito Beatles de outrora para investigar, uma vez mais, o que faz da América a América. O Eastwood de Menina de Ouro (o cineasta que no fundo se pergunta se vale a pena amar seu país), retoma o gingado de Bird e seus documentários sobre jazz e blues sendo tradicional, sem jamais ser conservador. Jersey Boys nos faz refletir, no inconsciente, através dos conflitos e fases do Four Seasons, grupo talentoso mas inconstante e frágil, o que essa América, tanto a de ontem quanto a de hoje, enxerga no espelho depois do banho: O Superman, ou um soldado forte por fora e fraco por dentro esperando um super-herói pra lhe salvar.

    “Volta quando for preto!”

    Quando a câmera sobe, por fora de um prédio de largas janelas abertas, e andar por andar vai revelando a diversidade e a variedade de ritmos cantados, em cada piso de uma gravadora cheia de talentos, negros, gays e fechaduras (e aonde a clássica frase acima é dita por um produtor, antes de bater a porta na cara da banda), o fantástico Jersey Boys justifica seus elogios e se confirma como uma adaptação primorosa da Broadway, lendária casa teatral, com essa e outras inúmeras cenas inesquecíveis, talvez até com um potencial a mais no Cinema, como a crise (e a tensão) enfrentada pelos entusiastas musicais na sala de um mafioso para debater uma dívida da banda. São tantas emoções ao longo do filme que um soneto não daria conta do recado, ainda que a sensação, muito bem pensada, é que os Goodfellas de Scorsese entraram de vez na aura de um musical, e o perigoso Henry Hill, de Ray Liotta, trocou as armas pelo microfone e virou o Frankie Valli, cantor inocente e cheio das melhores intenções, ainda entre gangsteres, mas preferindo depender dos palcos.

    Como se não bastasse os passos de Walken e a ambiguidade da obra, Eastwood resgata o espírito descompromissado e puro de musicais como West Side Story e Grease, e nos faz voltar no tempo, numa era perfeitamente bem recomposta além da tela, nos energizando com o espírito de uma época ainda recorrente nas entrelinhas do que move a produção cultural do Ocidente – e de boa parte do mundo. Jersey Boys carrega mensagens universais, ainda que nos mesmos ombros seja um belo, carismático e tragicômico retrato da sociedade de um país, tudo junto e misturado, no auge e na plenitude serena da carreira de um cineasta, livre da preocupação de produzir filmes grandes e antológicos (e talvez, por isso, produzindo.). E tem o sério Walken soltando a franga no meio da rua de terno e gravata, já avisei isso? Vale cada minuto. E que se dane a quarta parede, aqui.

    Compre: Jersey Boys – Em Busca da Música

  • Crítica | Mansome

    Crítica | Mansome

    Mansome 1

    Mansome é um filme cuja produção executiva estava a cabo dos atores protagonistas em Arrested Devolopment, Jason Bateman e Will Arnet. Grande parte do humor presente no seriado retorna ao documentário de Morgan Spurlock, que investiga jocosamente a aparência e comportamento masculino, analisando elementos genéricos, a partir de barba, cabelo e bigode. Depois de fazer um trabalho controverso, acusativo e de denúncia em Super Size Me – A Dieta do Palhaço, o alvo seria uma faceta mais leve da humanidade, tratado com normalmente com uma severidade desnecessária.

    O entrevistado que primeiro dedica um tempo minimamente exigido para Spurlock é o diretor John Waters, um homossexual assumido conhecido por seu bigode fino a la Clark Gable. Curioso é que o estereótipo de homem que cuida de sua aparência com tratamentos especiais e afins é ocasionado por espécimes teatrais, por Arnet e Bateman, que interpretam a si mesmos, homens heterossexuais, longe de qualquer estereotipo prévio e preconceituoso que associa o homem cuidadoso com sua estética com um efeminado.

    Paralelo a isto, exibe-se um estilo de vida totalmente baseado em pelos faciais, com sujeitos que cuidam de suas barbas como muitas mulheres costumam cuidar de seus cabelos, cultivando-as para entrar em competições ao redor do globo. Os Estados Unidos começariam a se valer de conceitos comuns a África, de que o homem não “deixaria de ser” homem por começar a decorar a si mesmo, com sprays, tintas, spas, tratamentos de pele, com o uso contínuo além do mainstream do showbusiness. As razões são diversas, desde medo de envelhecer até queda de cabelos e receio de ser menos atraente em relação a caça do belo sexo.

    A busca por entender a mente repleta de testosterona passa por conceitos conservadores e regulares, até a mentalidade puramente misógina, que impede muitos homens de se cuidar mesmo que queiram, por medo de serem associados ao “ser inferior feminino”, resultado da perseguição propagada secularmente e reforçada pelo mercado de trabalho e pelas parcelas mais antigas da sociedade medíocre ao redor do globo.

    Os closes rápidos projetam opiniões diversificadas, de pessoas cujo repertório é completamente diferente, onde o conjunto de impressões visa representar a opinião publica e relacioná-la as práticas de auto-cuidado, feitas pelos homens, desde as mais comuns até as mais esmeradas. A miscelânea de falas distintas exibe uma multiplicidade de pensar e julgar, tanto o homem quanto as mulheres que os desejariam, no caso do heterossexual, sem abandonar o quanto a aparência influencia no cotidiano humano, sejam quais esferas seriam.

    A proposta de Spurlock investiga a superfície do comportamento masculino, não se aprofunda, até por ter na estética seu alicerce, a camada menos profunda da pele e do corpo humano é o alvo. No entanto, os panoramas e assuntos discutidos de modo leve servem bem ao entretenimento e promovem uma discussão, que por sua vez faz o espectador refletir sobre suas próprias ações, além de promover uma avalição de como o público enxerga o papel do homem na comunidade, o que faz colaborar para a análise mundana, especialmente ao focar

  • Crítica | Orgulho e Preconceito

    Crítica | Orgulho e Preconceito

    Orgulho e Preconceito - poster

    Nascida e criada no interior da Inglaterra, a escritora Jane Austen produziu narrativas que analisavam com ironia refinada os costumes de sua época, transformando suas personagens femininas em representantes que se diferenciavam pela inteligência e percepção. Uma de suas obras mais lidas, Orgulho e Preconceito, ressurgiu nas telas em 2005 em nova adaptação marcando a estreia de Joe Wright em longas-metragens e o início de sua parceria com a atriz Keira Knightley.

    A narrativa de Orgulho e Preconceito poderia ser confundida com um romance histórico, não fossem suas personagens bem delineadas. Aliado a elas, o estilo de Austen promoveu elogiados romances. A adaptação de Deborah Moggach para as telas mantém a vivacidade das personagens, abrangendo com qualidade as aproximadas 400 páginas do romance e alinhando-o a um estilo cinematográfico. A passagem de tempo é feita de maneira natural e implícita, modificando uma das bases do romance moderno, a dilatação temporal, em uma linguagem visualmente acessível, ainda mais quando o tempo é primordial para a história.

    A estética escolhida nas cenas visam demonstrar o núcleo familiar, e Wright faz bom uso de cenas filmadas em steadycam, dando agilidade – e certa euforia – a uma casa formada por seis mulheres. O tempo e o espaço são primordiais para representar a espera das personagens e a composição do ambiente. O título da obra revela a estrutura básica das personagens que transitam no romance central, sem saber definidamente de quem é o orgulho ou o preconceito. Elizabeth Bennet é a mais lúcida das irmãs da família, ao mesmo tempo que sua inteligência é uma armadilha para o preconceito. Enquanto Sr. Darcy, um dos personagens mais cativantes e cultuados da literatura, é dúbia e charmosa, sem sabermos de antemão se sua atração pela garota é refreada por não estarem na mesma camada social ou por um orgulho interno.

    Sem sombra de dúvida, trata-se de uma história de amor. Conduzida pela pena de Austen, a história não só faz da época um pano de fundo como transforma-a em um personagem coletivo representado pelas irmãs desenfreadas, a matriarca preocupada com o futuro das filhas à procura de bons partidos e outros tipos que personificam uma imagem assertiva e impositiva do século XIX.

    Em cena, Knightley demonstra amadurecimento neste papel dramático e um physique du rôle que a fez se dedicar a diversos papéis de época após esta interpretação, e se tornar estrela de outras produções posteriores de Wright. Seu carisma é fundamental para dar credibilidade aos conflitos de Elizabeth e ao embate amoroso desenvolvido durante a narrativa.

    A personagem Lisbeth é uma libertária por definição. Deseja sair das amarras obrigatórias do casamento arranjado para procurar a liberdade de escolher quem deseja. O amor é uma transgressão, e a união de um casal improvável também representa uma ruptura para a época. Não à toa ela é o enfoque da história, e não suas irmãs, representadas como mais frívolas e despreocupadas com o amor como liberdade.

    O estilo de Austen, mantido nas cenas, demonstra a excelência desta adaptação em não desfigurar a base do romance ao mesmo tempo que estrutura uma linguagem cinematográfica apurada. Uma obra que, devido à sua qualidade, também merece destaque como exemplo de versão definitiva de uma grande composição literária.

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