Categoria: Cinema

  • Crítica | Lugares Escuros

    Crítica | Lugares Escuros

    lugares escuros 1

    Adaptação da obra de Gillian Flynn, Lugares Escuros é o sétimo filme do francês Gilles Paquet-Brenner, e tenta de maneira nada sutil emular as características do outro filme adaptado do romance da autora, passando longe de todas as qualidades positivas vistas em Garota Exemplar.

    O roteiro, assinado pelo próprio Paquete-Brenner, é bastante didático, mas não compreende as etapas interessantes do romance original, já que todo o arquétipo de moça traumatizada, presente no ideário de Libby Day, é discutido de modo bastante rápido. O passado da personagem de Charlize Theron mostra-se por meio de flashbacks que desenham um background profundo, ao menos em comparação com todo o restante da construção do seu ethos. O grave problema do roteiro é não oferecer ao público o interesse na realidade de Libby, já que ela não é uma figura charmosa, do alto de sua misantropia idealizada; pelo contrário: somente lembra uma mulher sem carisma, tanto na falta do usual quanto nas versões alternativas, como em sua fascinação pelo insociável.

    A aura do filme é bastante semelhante ao de outro filme de David Fincher, Zodíaco, especialmente pela fotografia de Barry Ackroyd, que emula genericamente os bons momentos de Harrys Savides. Os pedaços abordam o passado envolvendo Ben Day – vivido na fase adulta por Corey Stoll e na juventude por Tye Sheridan, já demonstrando fisicamente a diferença de ideários entre as encarnações – e seu suposto culto satânico, que revelaria aos poucos a realidade a respeito do crime.

    Outro fator errático é a falta de suspense em relação à autoria do massacre dos Day, explicitando de modo óbvio que o homem preso não é exatamente a figura que é pintada como o culpado-mor. O ódio do sujeito conservador é observado em discussão com a futilidade juvenil e rebeldia sem causa, mostrados ambos aspectos como fatores primos, com as faces da mesma moeda e partes inexoráveis do mesmo universo.

    No entanto, todo o entorno da personagem principal é demasiado sensacionalista e não consegue repetir os bons argumentos de Garota Exemplar. Lugares Escuros tinha tudo para ser o que Medo da Verdade foi para Sobre Meninos e Lobos, mas se perde em meio a uma condução confusa, que torna a história em uma busca frenética, desesperada e cafona por redenção e que usa o perdão como alicerce para um drama fraco. Um filme que serve para louvar ainda mais os méritos de Fincher, que conseguiu adaptar melhor a literatura de Flynn.

  • Crítica | Divertida Mente

    Crítica | Divertida Mente

    Tomando como base a irresistível jornada que é o processo de crescimento, Divertida Mente ultrapassa o infeliz trocadilho de sua tradução para apresentar uma trama adulta, apesar da premissa de ser um filme para crianças. O filme de Pete Docter relembra muitos dos aspectos profundos de UP: Altas Aventuras e Monstros S.A. através de um panorama maduro sobre a psique humana concentrando-se na mente de Rilley (Kaitlyn Dias), uma menina de onze anos, às portas da adolescência e com uma intensa trajetória para começar.

    A história é narrada a partir dos conflitantes sentimentos e sensações que predominam na cabeça da menina que são liderados pelo aspecto da Alegria (Amy Poehler), da Tristeza (Phyllis Smith), Medo (Bill Hader), Raiva (Lewis Black) e do Nojinho (Mindy Kaling), o que já demonstra a escola de humor a que o filme se refere, como uma alegoria à versão americana de The Office e seus spin-offs. A trama é basicamente uma bela busca por identidade ainda na fase infantil.

    Apesar do flerte com o psicologismo barato, e da dublagem brasileira, que utiliza-se excessivamente de gírias atuais, a mensagem de que a base de uma vida saudável é a família é importante, por ser uma fita destinada ao espectador infantil. O campo de memórias tona-se a base do cenário e das desventuras, graças a uma sequências de trapalhadas típicas de uma odisseia de sensibilidade: no caso, uma mente conturbada por uma crescente injeção de hormônios, típicos desta fase da vida.

    É curioso notar como funciona o comando sentimental na cabeça de tantos outros personagens. A matriarca da família é passiva e comandada a priori pela Tristeza, enquanto o despreocupado e às vezes relapso pai – fruto, em geral, da criação do americano médio – é operado pela Raiva, o que causa um desequilíbrio interessante no cerne da família, garantindo uma diversidade que faz eco com a rebeldia sem causa da menina.

    Após algumas desventuras envolvendo as personagens centrais, Alegria e Tristeza, que viajam pela mente da Riley fora da sala de comando (a zona de conforto de ambas), a atmosfera muda, da extrema felicidade para tons mais agridoces. A viagem pela psique revela um acinzamento das memórias e do caráter, consequência da maturação de sua mentalidade. O equilíbrio entre alegria e tristeza se faz fundamental.

    O modo de retratar o subconsciente é interessantíssimo. Um lugar recôndito, escuro, em breu absoluto, que piora a sensação do processo difícil que é o crescer. A personagem de Philly Smith tem o estranho poder de tudo parar, modificar os paradigmas mesmo quando a esperança acaba. A Tristeza é entendida por sua contraparte como um aspecto de suma importância, e não mais algo a ser ignorado, já que é ela que serve de catalisadora da mudança.

    A mensagem final do roteiro de Docter, Josh Cooley e Meg LeFauve mostra a fugaz retirada da ingenuidade e o tímido começo da construção de caráter e do ethos, de maneira tocante e até profunda. Divertida Mente é uma metáfora para as inexoráveis agruras da vida, e o realizador conduz tudo de modo bem urdido e repleto de ternura, aludindo ao público mais adulto sem se descuidar do infanto-juvenil, abrangendo ambas as plateias, como na maioria dos clássicos da Pixar.

  • A Gastronomia e o Cinema

    A Gastronomia e o Cinema

    Cinema e a Gastronomia - destaque - chocolate

    Ao longo da História, as refeições e o ritual que as cerca vieram se estabelecendo como representações de estratificação social e de relações de poder. Além de servirem como ponto de intermediação para propostas ou fechamentos de muitos negócios, este ritual está também muito ligado ao caráter de confraternizações afetivas, e mesmo quando, se situa na rotina do dia a dia, há na refeição um sentido simbólico de repartir e de expressar valores culturais.

    Portanto, as refeições constituem-se também, e talvez principalmente, em momentos construtores e comemorativos de memórias afetivas. A sua força está, outrossim, ligada aos dois sentidos que compõem as capacidades mais primitivas do Sistema Nervoso Central: o paladar e o olfato. Os dois interagem e se complementam. Você sabia que o gosto da canela, sem a atuação do olfato, seria totalmente diferente daquele que imaginamos?

    Os alimentos, a forma como são preparados e a “cerimônia” que envolve a sua degustação, constroem memórias indeléveis na história da vida de cada um!

    Por isso, escolhi algumas belíssimas histórias captadas pela câmera e projetadas na telona, onde o alimento é protagonista de momentos marcantes que desencadeiam, dialogam ou comemoram grandes mudanças.

    Quando penso na sétima arte como testemunho de uma mudança significativa das percepções afetivas (antes aprisionadas a paradigmas culturais e religiosos), através de todas as sensações que são desencadeadas na aceitação do prazer proporcionado pelo paladar… Quando penso na sétima arte trazendo um desfile de alimentos preparados com a minuciosa delicadeza de um ourives, e servidos como rimas épicas de um poema que transborda a alma…

    Quando penso no lento e profundo despertar de expressões, recebendo do líquido que escorre pelas taças de cristal, o beijo da liberdade de espírito, ainda sob a lente da sétima arte… Eu suspiro e me entrego ao dinamarquês A Festa de Babette (1987), com a brilhante direção de Gabriel Axel, primorosa atuação de Stéphane Audran, fotografia impecável e roteiro adaptado de um dos contos do livro Anedotas do Destino (1958), da inspirada escritora Karen Blixen, de quem uma das obras já havia sido adaptada para Entre Dois Amores (1985, Sidney Pollack).

    Babette chega a um vilarejo, na Noruega, fugindo de uma guerra civil na França, e se aloja na casa das duas filhas de um pastor. Solteironas e ligadas a padrões de conduta que têm como alicerces dogmas religiosos fortemente aprisionadores dos prazeres a vida (assim como o resto da comunidade), elas vão provocando em Babette uma imensa vontade de ampliar certas convicções, e abrir os olhares para a liberdade de todos os sentidos. Como ex-chef de um grande restaurante parisiense (fato até então desconhecido para todos), alguns anos após sua chegada, Babette toma conhecimento de ter ganho na loteria, e resolve investir todo o seu prêmio na elaboração de um banquete. Na modesta sala de jantar das filhas do pastor, inicia-se um ode à arte, à cultura e ao paladar!

    À arte porque, além de o diretor Axel ter conseguido uma magnífica composição entre os gestos, a música e a fotografia, a mesa encontra-se arrumada como o cenário do mais esplendoroso espetáculo, onde cada peça é uma obra de arte, desde a toalha, aos copos, porcelanas e talheres, e os pratos… Ah, os pratos são verdadeiras pinturas e esculturas!

    À cultura, porque o general francês vai descrevendo os alimentos e sua harmonização com a carta primorosa dos vinhos que os acompanham, ao mesmo tempo que tece uma ponte entre as duas culturas ali presentes.

    Ao paladar… (é incrível como alguns sabores e aromas quase rompem a tela, nos tocando os sentidos e a alma)… porque é sedutora a onda de vapor que se desprende do consumê servido inicialmente, uma sopa de tartaruga onde a carne da mesma mergulha num caldo de legumes, cortado levemente pela acidez do limão siciliano e fortificado pela redução do vinho madeira. Em seguida, uma massa fermentada e dourada na manteiga, forando pequenas panquecas (blinis), é coberta com creme azedo e caviar de Esturjão, para formar a receita da culinária russa, Blinis Demidoff. E eis que chega a grande estrela do jantar (se é que a algum dos pratos caberia um papel secundário)! Digo “estrela”, porque toda a refeição é minuciosamente planejada numa afinada curva de sabores, textura e aromas, em cujo centro se encontra o pico das nuances marcantes, por sua complexidade profunda. O Cailles en Sarcophage apresenta a refinada e amanteigada crocância de um pequeno ninho de massa folhada, onde descansa o dourado da codorna, desossada, adormecida no Cognac e recheada com foi gras.

    Assim como a cereja dá o toque final ao bolo, este soberbo presente à visão e desafiador do olfato, vem coroado com uma redução e vinho branco, trufa preta e chapéu de champignon. Há ainda o toque do óleo do amendoim, do salsão e da pimenta-do-reino, suspirando em meio a todos os ingredientes. Então Babette atenua a exaltação do paladar, servindo uma refrescante salada de endívias, envoltas no equilíbrio das nozes picadas, molho de mel e aceto balsâmico. O doce que aqui já começa a ser sugerido, explora a sua plenitude na sobremesa Baba au Rhum, que se trata nada mais nada menos de um Savarin (um bolo simples) coberto com uma calda onde a casca ralada da laranja e do limão, o pau de canela, o rum, o açúcar e o licor de laranja, formam deliciosa ciranda de sabores.

    A Festa de Babette

    Babette sabe, como poucos, preparar um espetáculo que desperta todos os sentidos e provoca o desabrochar das mais profundas emoções, adormecidas num canto da alma! É preciso conhecer os segredos contidos na alquimia de cada ingrediente, cada tempero! E Papus Vassilis (Ieroklis Michaelidis) é um mestre no uso dos temperos e no conhecimento sobre o que estes podem amenizar ou enfatizar no comportamento do ser humano. Ele é um filósofo da culinária, construtor de metáforas que despertam a curiosidade e paixão de seu neto Fanis (Georges Corraface), quando faz analogia entre a importância dos astros (Fanis adora astronomia) e os elementos que os constituem, com a função de cada tempero dentro de um prato.

    Tassos Boulmetis, em O Tempero da Vida (2003) fala dos conflitos geopolíticos (Fanis e seus pais, acabam sendo deportados da Turquia, terra natal de seu avô, com quem vivem em Istambul), das relações humanas (há uma profusão de cenas em volta de encontro e reencontros familiares e afetivos) e, como coluna vertebral e simbólica de todo o enredo, da gastronomia, levando-nos, desde a escolha dos ingredientes, a sua preparação e o ato que finaliza este processo, numa confraternização que desperta os sentidos do corpo e as emoções da alma.

    O filme peca em momentos que a dinâmica se perde na repetição de ideias, deixando de explorar alguns pontos que, sem dúvida, lhe imprimiriam mais graça e profundidade. No entanto, se você puder relevar algumas sequências e se concentrar nas cenas poéticas e pertinentes que permeiam a história, encontrará neste longa algumas inspirações, como por exemplo as conversas entre Fanis e seu avô.

    Vassilis conta que: o sal é essencial à vida e à comida; a pimenta é quente e queima como o sol, e por isso vai bem em todas as comidas; o leite e o açúcar são os primeiros alimentos da vida… de alguma forma, ele coloca a canela como protagonista neste diálogo de temperos e emoções, quando explica que, por ser um tempero muito forte e deixar as pessoas introspectivas, o cominho não deve ser usado num almoço de família, mas substituído por canela, que é doce e amarga como as mulheres e que faz as pessoas olharem umas nos olhos das outras. É exatamente a canela que faz toda a diferença no preparo dos keftedes (versão grega das almôndegas) quando Vassilis propõe que ela seja adicionada às bolinhas de carne moída, misturadas a um pouco de miolo de pão, alho, salsa e outros ingredientes. E os molhos? Ah… “os molhos suavizam qualquer receita! Quando não usam molhos na comida, sempre exageram nas conversas.”

    tempero_vida05

    Mas não são apenas os ingredientes (em especial os temperos) que têm a capacidade de criar caminhos em nossa alma! Também os sentimentos que os conduzem no momento do preparo parecem transpor qualquer barreira física, e invadem o estado de espírito de quem saboreia o alimento.

    Sim, é sobre isso que nos fala Laura Esquivel, em seu romance Como Água para Chocolate, o qual foi transformado num filme homônimo, em 1992, com direção de seu marido, Alfonso Arau!

    Tita (Lumi Cavazos) cresce em meio à panelas, e entrega-se a estes momentos de uma forma tão intensa quanto ao amor que sente por Pedro (Marco Leonardi). Apesar de correspondido, viver este amor lhe é negado, pois Tita, por ser a mais nova das três filhas de uma viúva, numa pequena fazenda mexicana do século XX, se vê obrigada a seguir a tradição de cuiar de sua mãe até a morte. Assim, combina-se o casamento de Pedro com Rosaura (Yareli Arizmendi), sua irmã, e ele aceita, por ver nisso a única possibilidade de permanecer perto de sua amada. Acontece que o coração de algumas pessoas estabelece um pacto, imune ao tempo e às circunstâncias, por isso o amor entre Tita e Pedro permanece intato, não obstante o casamento dele com Rosaura, e um dia o rapaz leva rosas para a moça de coração apaixonado.

    É a inabalável força desta paixão e o intenso desejo pelo homem da sua vida, que Tita coloca no preparo das codornas ao molho de pétalas de rosa. Note-se que ao recebê-las, as flores têm uma coloração rosa, que se transforma num intenso vermelho, quando Tita vai usá-las no prato. É servida uma fantástica composição do amanteigado dourado da pequena ave, beijando o carmim das pétalas dispostas sobre a porcelana, junto ao purê de castanhas portuguesas, adocicado pelo mel e pelo anis estrelado, com um leve e acalorado toque de pimenta. E então… quando este alimento é levado à boca e abraçado pelo paladar, uma onda de voluptuosa sensualidade toma conta do espírito e do corpo daqueles que o experimentam!

    tita

    Envolvendo também valores familiares e tradições, além de outros elementos, é a trama do filme Comer, Beber, Viver (1994), da primeira fase do diretor Ang Lee. E mais uma vez a comida aparece como fonte inspiradora e celebradora das relações, atuando como linguagem da alma, código de sentimentos ofertados e compartilhados.

    É assim que o alquimista culinário Chef Chu (Sihung Lung) lida com a arte na cozinha: com a mesma entrega e sensibilidade que se constitui condição sine qua non para a arte de viver!

    As três filhas de Chu enfrentam conflitos existenciais em Taipé, capital de Taiwan, e Chu lhes oferece todo o acolhimento de um coração fraterno, nas refeições que prepara aos domingos, quando a família se reúne em torno da mesa, entregando-se ao mágico prazer dos ingredientes que este poeta da gastronomia manuseia e mistura com sublime inspiração.

    Entre os pratos que dispõe sobre a mesa farta, convidativa e representativa da cultura chinesa, destampa-se a cesta que havia cozinhado, no vapor, a fina massa dos guioza, cujo recheio de carne de porco murmura a conversa entre o gengibre, o alho, a cebolinha, o óleo de gergelim, o vinagre de arroz e o molho de soja, com que fora temperada.

    ang lee

    Ang Lee, um ano antes, já ensaiara a sua devoção à arte da gastronomia e sua sabedoria em captar o mágico sentido do alimento, em O Banquete de Casamento.

    banquete de casamento

    A propósito daqueles que possuem o gosto e a sensibilidade em dirigir cenas cuja áurea se intensifica de tal forma, que nos sentimos tocados pela comoção dos personagens e invadidos pelos aromas e sabores, não poderia deixar de citar Lasse Hallstrom e seu envolvente A 100 Passos de um Sonho (2014), cujo protagonista, o jovem Hassan (Manish Dayal) cria diálogos entre o requinte da culinária francesa e a explosão dos temperos indianos.

    100 passos de um sonho

    Hallstrom, em 2000, coroara o chocolate com toda a magnitude que lhe é legítima, ao conceber Vianne Rocher (Juliette Binoche) como a mulher que se muda, com sua filha, para um fictício lugarejo na França, e desperta o aconchegante afeto e a estimulante libido de seus moradores, através do encantamento que coloca no manuseio deste ingrediente, trabalhando sua textura, temperatura e nuances de sabor.

    Em Chocolate, há cenas em que a tela quase se derrete e nos toca os lábios, transportando-nos ao deleite do paladar e à liberdade dos prazeres, antes aprisionados em algum canto de nossos medos. A estrela das estrelas é o chocolate quente, saboreado, entre outras pessoas, pela doce e melancólica Armande (Judi Dench), desabrochando a intensa paixão pela vida.

    chocolate 2

    No filme não é possível seguir, passo a passo, a elaboração desta bebida sublime, mas como costumo prepará-la em momentos de um libertador recolhimento comigo mesma, ou naqueles em que me entrego por inteiro a deliciosas companhias, deixo aqui, para você, a minha receita.

    No entanto, antes de fechar com chave de ouro (ou de chocolate), em meio a dezenas de obras cinematográficas que, de alguma forma, têm a gastronomia em seu enredo, preciso citar como imperdíveis (correndo o risco de faltar com alguns) Vatel, O Jantar, A Grande Noite, Simplesmente Marta, Ratattouile, Toast, Julie & Julia, Tomates Verdes Fritos, O Segredo do Grão, Tampopo, Volver

    Eu não disse que a lista é interminável?

    Mas vou parar por aqui, para que você possa ir para a cozinha, juntar 1l de leite com 400gr de chocolate em pó (costumo usar aquela caixinha que tem dois frades), um pau de canela, casca de uma laranja (cuidado para não ir além da camada branca), um tiquinho (tiquinho mesmo) de noz-moscada ralada, e a ponta de uma pimenta malagueta (do tamanho de uma cabeça de fósforo). Leve ao fogo até ferver, e depois, em fogo baixo, vá mexendo até que adquira uma consistência cremosa. (A receita dá para 4 pessoas).

    Agora entregue-se, de corpo e alma, à aveludada textura do chocolate, visitada, aqui e ali, pelo perfumado e instigante nuance de cada um dos outros complementos!

    Depois… depois passeie por todos estes filmes e infiltre em sua cozinhas!

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Bikes Vs. Carros

    Crítica | Bikes Vs. Carros

    bikes

    O título em questão dá margem a uma interpretação imediata: É guerra? Não, apesar que para a maioria dos motoristas e ciclistas de caos urbanos como São Paulo, possa ser. Nas cidades além da capital paulista onde todos lutam pelo mesmo espaço, a selva exige o preço e, vira e mexe, uma bike vai parar debaixo do busão na rota da avenida. Quando as duas rodas pedem tolerância e respeito as quatro motorizadas, a lei do mais forte encontra espaço pra se valer e é difícil isso não acontecer – pelo menos, no mundo real. Todavia, em recantos de gente aberta as alternativas e possibilidades de uma metrópole onde os cidadãos ditam as regras da mobilidade, é cada vez mais difícil achar uma bike disponível em bicicletários públicos espalhados ao redor, como mostra a iniciativa sustentável (e capitalista, heh) do Banco Itaú, com o Bike Sampa, que desde 2012 disponibiliza as “laranjinhas” para uma parcela crescente do povo, essa que não aguenta mais xingar atrás do volante. Seja na realidade brasileira, em cidades como Los Angeles nos EUA, ou no pulsar (nem) tão ímpar de Copenhague, na Dinamarca, o documentário Bikes vs. Carros aponta, sob o título contraditório, num belo equilíbrio (sem trocadilhos) de argumentos, as condições da mobilidade urbana ocidental, e o que faz a diferença num mundo baseado em conflitos de interesse. Afinal, é preciso esse embate?

    Sim, e não – como se fosse fácil de alegar. Mas é entre as estatísticas da indústria automobilística, claramente predatória desde a propaganda que fomenta seu lucro, a poluição resultante de suas máquinas, e construir um mural de depoimentos lúcidos e presentes em função do que pensam ciclistas e taxistas, por exemplo, entre tais paralelos, se constrói na tela algo maior: A opinião do espectador, seja ele amante do dirigir, do pedalar ou do caminhar, diário. Somos todos um, não apenas se o cenário é uma grande cidade e o problema envolve a todos nós; fugir da palavra não afasta a tribuna, como já diria o cronista do periódico de jornal. E enquanto esses jornais notificam a morte de pessoas que tentaram fazer a diferença, tornando real o conceito de sustentabilidade e respirando dióxido de carbono enquanto isso, o documentário ativista e parcial de Fredrik Gertten evita apologias no traço de políticas e fatos pertinentes, no mínimo alarmantes e convidativas a participação social, ao contexto cultural que vivemos. Não eu, ou só você: Todos.

    Bike vs. Carros resgata e conduz ao real o drama do clássico espanhol A Morte de um Ciclista, sendo o retrato fiel e livre de quem vive a causa, dos pés a cabeça, na ótica por inteiro de um quadro atual. A pergunta, a direção lógica que o título não desvia de nossa atenção mas tampouco aponta, talvez não seja nem precise ser “De que lado você está?”, mas “Porque você não está no lado que gostaria de estar?” Comodismo? É a história do barato que sai caro? É certo medir a qualidade de vida de acordo com o tamanho de gordura alojada na bunda do indivíduo? Uma abundância de questões que a militância, de acordo com a visão de motoristas estressadinhos por ai, sem dúvida traz à tona, como se fossem dilemas e não problemas inevitáveis, dramáticos a vida em sociedade. Não é preciso haver drama, afinal, se houver uma boa vontade e inclusão generalizadas, já que tudo envolve a inclusão. E dinheiro, pois encontrar alguém que não sabe disso é procurar jegue em ciclovia, símbolo talvez da maior polêmica da gestão do atual prefeito de São Paulo.

    Na maior megalópole latina, o discurso acaba por ser mais do mesmo se comparado com o de um morador de um bairro em L.A.: “Gostaria de ser mais representado pelos milagres da engenharia como são as rodovias para carros”, desabafa quem enxerga a mobilidade com outros olhos, um modo de vida captado de perto por Gertten, assumindo a alma do gênero ao transmitir, na lente acoplada a bike, a coragem de cruzar um trânsito disputado metro por metro, entre carros e caminhões nervosos. É na transgressão de pontos de vista que se faz (e enriquece) o panorama em prol de uma diversidade de opiniões, muito bem dispostas na projeção, para fazer pensar a questão arbitrária dos lados. Com tanta gente morrendo para exercer a cidadania, é justo ficar neutro e fingir não ser com você? Blowing in the Wind, canção de Bob Dylan, parecer surgir do nada. Mas nada vem do nada, e o futuro vem chegando, a galope e a partir do conflito de quem passa na avenida – e samba, sem medo de ser feliz.

  • Crítica | Dragon Ball Z: O Renascimento de Freeza

    Crítica | Dragon Ball Z: O Renascimento de Freeza

    DBZ Renascimento de Freeza 1

    Inserindo o público no inferno do planeta Terra, o roteiro escrito pelo próprio Akira Toriyama mostra um ambiente repleto de fofura, com o vilão Freeza preso em um casulo, em sua própria versão de tortura do além-vida. Em paralelo, um de seus capangas, o Senhor Sorbet, faz uma excursão a Terra, após o insucesso em encontrar Namekusei para usar as esferas do dragão e reviver o antigo déspota. Ao chegar ao planeta, ele encontra Pilaf, sem qualquer preâmbulo ou nota de introdução, e ambos unem forças para fazer os novos pedidos.

    A frase “Traga o Mestre Freeza de volta a vida“, deveria causar um alívio nos fãs da franquia, já bastante carente de bons vilões desde a saga do vilão citado no título. Mas o que se vê é algo ligeiramente diferente das expectativas. Shenlong tem agora uma carga maior de humor do que em A Batalha dos Deuses, além de garantir um upgrade para si mesmo, já que pode realizar dois desejos.

    O malfeitor retorna ainda mais arrogante e consome um tempo demasiado de tela, quase se passando como protagonista. Freeza então assume que jamais treinou, e que se o fizesse poderia – supostamente – vencer os saiyajins, aumentando ainda mais os seus dons naturais. O retorno do vilão fez abarcar outras personagens de Toriyama, como Jaco, o Patrulheiro das Galáxias, que sequer tem clarividência sobre a real existência de Bills, dando mostras de ser um personagem bastante atrapalhado e jocoso, como os primeiros mangás de Dragon Ball.

    O traço estilístico do desenho mudou bastante. Bulma e Gohan parecem mais novos e esguios do que nas outras aparições. Quanto aos heróis, Vegeta e Goku – felizmente dublados pelo estúdio de Wendel Bezerra, ao contrário da versão em DVD do filme anterior – treinam em um planeta remoto com Whis, que, além de se mostrar um guerreiro muito mais ágil, mostra-se um moralista de marca maior ao comprovar o óbvio: ambos deveriam juntar as forças e Vegeta deveria deixar de ser tão orgulhoso, enquanto Goku não poderia ser tão relaxado. Outro conceito interessante, visto no game Dragonball Xenoverse, é que Whis consegue controlar o tempo, a despeito das leis galáticas, facilmente infringidas por um ser divino. Um factoide que seria usado num futuro breve pela figura controversa e facilmente manipulada por comida.

    Na Terra, os Guerreiros Z se mostram passivos. Gohan, Picollo e Tenshinran não fazem nada para impedir o ataque de Freeza a uma cidade, mesmo que qualquer um deles fosse mais forte que aquele estágio do vilão. A ausência de atitude faz eco com o que Zack Snyder pensou para o seu Superman, com as referências de O Homem de Aço ao mangá de Toriyama. Até mesmo o Mestre Kame luta, e habilmente, mostrando que escondeu suas reais capacidades durante toda a parte Z da saga. O mesmo faz Jaco, provando que possui uma habilidade sobre-humana.  As cenas de luta incluem artes marciais interessantes, especialmente Tenshin, que aplica exímios golpes de Kung Fu.

    No entanto, todos os combates são obviamente subalternos diante da luta contra o imperador. Apesar dos momentos nos quais se valoriza a participação dos outros guerreiros, a batalha contra o vilão-mor volta a polarizar as frentes, com o inacreditável momento em que Vegeta assiste a Kakaroto e Freeza se encarando fixamente, em mais uma das licenças poéticas bobas vistas nos novos filmes. O orgulho do príncipe saiyajin parece ter sido extinto após os conselho de Whis. O papel de “contenção” está longe de combinar com um guerreiro tão exímio, mesmo que o combinado fosse que a luta acontecesse em turnos, revezando quem bateria no destruidor do planeta e escravizador da raça SJ.

    Ao adentrar sua nova forma, Freeza revela que foi ele mesmo quem escolheu sua nova cor, aludindo, talvez, à diferença física entre ele e seu irmão Cooler no último estágio – e dali começa a batalha com Goku em sua mais nova transformação divina.

    A empolgação do público japonês é natural, já que o clima aventureiro retornou, apesar dos muitos retcons torpes, especialmente os que abrangem o nível de poder de Freeza. Esse estigma muda um pouco diante do péssimo deus ex machina, uma adaptação à nova forma do antagonista, que mais uma vez se enfurece ao perceber-se mais fraco e ingênuo.

    A luta com Goku encerra-se de modo covarde, mesmo para os padrões de um homem vil, dado o ethos de trapaça e humilhação em açoitar um adversário no chão. A oferta da reabilitação de Vegeta, dedicando um cargo de supremo comando da tropa, é obviamente recusada pelo príncipe da raça de guerreiros. Tudo graças à destruição do planeta Vegeta, mas também a uma possível evolução de maturidade da personagem.

    Se não bastassem os aspectos anteriores de interferência metalinguística, ainda há mais uma solução mirabolante, uma manobra inspirada em Superman, de Richard Donner. A banalização da vida é ratificada pela segurança e tranquilidade dos personagens que não são lutadores ao demonstrar que as mortes seriam consertadas novamente pelo efeito das dragon balls, ainda que supostamente demorasse um tempo para que pudessem fazer novos pedidos. Ainda assim, é um fato discutível em razão dos aumentos dos poderes dos artefatos.

    O grave erro de Dragon Ball Z: O Renascimento de Freeza é querer se levar a sério, ainda que seu roteiro seja muito mais eficiente que os médio e longas-metragens que não fazem parte da cronologia. Ainda assim, o texto perde em qualidade para o jocoso texto do mangá, além de apresentar lutas que prometem ser memoráveis, mas que se encerram de modo muito genérico. Infelizmente.

  • Crítica | A Incrível História de Adeline

    Crítica | A Incrível História de Adeline

    246010

    Adeline (Blake Lively) é um fenômeno inexorável de origem puramente estatística, bem como todos o habitantes deste planeta. Cada nascimento específico tem uma probabilidade de cerca de 1 em 300 milhões, ou 0,0000003% de ocorrer, traduzindo-se em um fenômeno extremamente raro, e que a despeito desta raridade ocorre todos os dias. Adeline, uma mulher independente nascida no século XIX vive hoje como fruto de um fenômeno fabular apresentado pelo narrador que foi capaz de tornar cada uma de suas células indiferente à passagem do tempo. E assim, sem envelhecer, vê o tempo passar e destruir seus sonhos, mantendo existência, fazendo-a se reinventar a cada ponto de cisão de sua vida ou sempre que alguém percebe sua condição especial.

    O tempo físico se constitui de uma variável com sentido bem definido, representado no conceito de Seta do Tempo que diz que processos físicos seguem um sentido prioritário, não havendo a reversibilidade destes mesmos processos. Era, anteriormente à Teoria da Relatividade, um conceito absoluto. Hoje se sabe que é relativo, bem como o espaço trazendo consigo a ideia de que é de alguma forma possível agir sobre o tempo, lhe dando o status de fenômeno físico.

    Os ecos filosóficos de tais elaborações alcançam o imaginário popular, e este objeto de fascínio humano desde sempre vai se transformando como uma forma de protesto ao poderoso efeito do passar dos anos. Nietzsche com sua concepção do “Eterno Retorno” indica que estaríamos presos à uma série sucessiva de eventos fadados à repetição, que se repetiram no passado, ocorrem no presente e se repetem no futuro, tal como guerras ou acontecimentos históricos. Assim é A Incrível História de Adeline, uma repetição de muito do que se viu ou sabe-se sobre fábulas ou romances no cinema.

    Na era da ciência, o ser humano se tornou aquele que seria tratado como demônio, como anunciado por Nietzsche, que surgiria como portador da verdade sobre o tempo, ou que seria tratado como ser dividido caso esta verdade lhe tocasse. Não a toa a fábula de Adeline tem todo um verniz científico, atribuindo dados estatísticos, um contexto histórico tratado como fenômeno determinístico, e uns pequenos falsos fatos para a verossimilhança da trama. Não a toa, também, Adeline vê em conflito moral ao se apaixonar por um cientista sonhador às vésperas de sua próxima mudança de vida para fugir de seu futuro de questionamentos sobre o que ela é. Seu sofrimento consiste em aceitar ou não o demônio citado pelo filósofo, é a decisão entre escolher reviver sua vida ou reiniciar sua existência sem passado.

    Apesar do conceito interessante, o filme sofre de problemas narrativos sérios como, por exemplo, lançar mão da narração em off para toda e qualquer grande resolução. Tal conceito soa normalmente preguiçoso, e o espectador percebe que o recurso será recorrente e constante. Estatisticamente previsível para aquele que já viu algum outro romance, a película se recusa a fugir de estereótipos mesmo que queira dar a entender que sua visão é diferente e eventualmente mais moderna do que seus pares.

    Um bom divertimento, aquém do que poderia ser, não funciona tão bem como fábula e nem como romance, mas é bem mantido pelo bom elenco que conta com surpresas e faz daqueles acontecimentos óbvios algo, ao menos divertido de se ver, novamente.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | O Mundo Perdido (1925)

    Crítica | O Mundo Perdido (1925)

    Mundo perdido 25 1

    Quase quinze anos antes dos filmes de Sherlock Holmes com Basil Rathbone, o autor Sir Arthur Conan Doyle já era adaptado para as grandes telas com um clássico do cinema mudo, em 1925. O Mundo Perdido conta a estranha história do desbravador Challenger (Wallace Beery), um professor que lidera uma expedição britânica até a “longínqua” América do Sul, atrás do lugar em que ele acreditava viver criaturas pré-históricas, em pleno mundo urbanizado.

    Os exploradores rumam em direção a um planalto amazônico, sem delongas, numa trama de arrogância e total desconhecimento por parte dos europeus poderosos que enxergam em tudo o que é “não branco” algo necessariamente primitivo. Mesmo deixando de lado a xenofobia que compunha o conhecimento popular da época, há pouco de pensamento substancial, mesmo em nome dos que se dizem defensores da ciência. Mesmo Challenger parece um devoto que não dedica a sua vida a crença religiosa, mas que faz de sua obsessão um artifício tão maniqueísta quanto.

    Um tempo demasiado é gasto na preparação da força-tarefa da viagem, estabelecendo-se que aquela era na verdade uma expedição de resgate, visto que já haviam incursionado àquelas terras distantes anteriormente. A formação dos bravos inclui caçadores, membros da imprensa e uma mulher apaixonada, conduzindo a equipe ao máximo de heterogeneidade possível, fator completamente irrelevante diante dos perigos que supostamente enfrentariam.

    A condução de Harry O. Hoyt é amadora se comparada às produções de hoje, mas consegue equilibrar de modo não assustador as cenas com atores reais e as criaturas digitais, inserindo pela primeira vez em larga escala a tecnologia de stop motion. A primeira criatura do filme é um pterodáctilo, dinossauro voador que se assemelha a uma ave e que alimenta seus filhotes em um ninho. Fora a aparição do animal, ainda surge um símio, cuja caracterização não passa de um homem fantasiado, o que se faz perguntar se ele corresponde a um macaco ou um elo perdido entre os seres pré-históricos e o homo sapiens.

    É curioso notar como a exploração da atmosfera da Terra mudou. Ao exibir uma luta, que deveria ser emocionante, entre um tiranossauro e um alossauro – ambos carnívoros gigantescos –, não há mudança na trilha sonora, que faz menção ao otimismo ao invés de focar os acordes na temível batalha a qual os pobres homens assistem. O conceito de usar a música como elemento narrativo de suspense ainda não era tão claro, apesar das óbvias exceções vistas no Nosferatu de F.W. Murnau e em seus pares do expressionismo alemão e do movimento Kammerspiel.

    Os erros e indiscrições provenientes da louca batalha pela cadeia alimentar são passíveis de perdão pela obra se passar em uma época que a paleontologia passava longe de ser uma ciência acessível – piorando e muito na época que Conan Doyle escreveu sua novela. O Mundo Perdido consegue, apesar de muitos pesares, manter um clima de escapismo ímpar, típico do cinema de sua época, sobrevivendo ao tempo, sendo apreciado por muitos e servindo de inspiração para obras posteriores, como os filmes de King Kong, suas continuações (e remakes), além de alimentar o imaginário de Steven Spielberg rumo ao clássico Jurassic Park – O Parque dos Dinossauros.

    As influências, tanto no filme de Merian Caldwell Cooper Ernest B. Schoedsack quanto no segundo volume de Jurassic Park, O Mundo Perdido: Jurassic Park, são vistas através da tentativa de trazer uma das criaturas monstruosas para o convívio urbano, transportando um braquiossauro (chamado de brontossauro, à época) para a capital inglesa, o que obviamente deu errado e fez causar um sem número de problemas à metrópole londrina. O alvoroço fez com que as pessoas corressem para os subterrâneos, agindo como manada e fazendo se perguntar qual dos seres possuía comportamento animalesco. Ao final, abate-se o animal irracional, deixando a questão de quem seria a fera ainda mais viva do que o óbvio diálogo ao final de King Kong de 1933. O argumento abre um precedente para uma discussão maior, fazendo de Mundo Perdido uma pérola não tão valorizada quanto deveria ser.

  • Crítica | Arte, Amor e Ilusão

    Crítica | Arte, Amor e Ilusão

    Arte Amor e Ilusão

    Lançado em maio de 2003, ele é um grande contraponto a quantidade excessiva de romances tanto adolescentes quanto os simplesmente açucarados que tomaram conta das produções americanas durante os anos 90. Ele é adaptado de uma peça de teatro escrita e dirigida pelo próprio Neil Labute, que inclusive já foi interpretada no Brasil. The Shape of Things, ou Arte, Amor e Ilusão, traz o elenco original da peça (Rachel Weisz, Paul Rudd, Frederick Weller e Gretchen Mol) para uma produção de cinema que imita o teatro com grandes tomadas de diálogos que abrem espaço para aqueles quatro atores mostrarem diferentes facetas de seus personagens enquanto a trilha do britânico Elvis Costello ilustra toda a película.

    O filme começa com uma mensagem de aviso na música Lovers Walk de Elvis Costello, mas que não está sendo ouvida pelo protagonista. A partir dela acompanhamos Adam (Rudd), um funcionário de um Museu de Artes próximo à faculdade que conhece Evelyn (Weisz), uma estudante que está começando seu mestrado em artes e por algum motivo se interessa pelo jovem completamente desinteressante. Os diálogos entre todos os personagens nos indicam que existe uma passagem de tempo de meses entre muitas das cenas do filme. Vemos isso mais claramente no físico de Rudd, que acaba emagrecendo muito durante essas passagens.

    Em todos os arcos dramáticos do filme é a transformação que dirige o espectador a pensar sobre os assuntos debatidos entre o casal de Rudd e Weisz. A insegurança que guia a vida de Adam o deixou com um casulo fixo nas costas, impedindo-o de sair ou de se aproximar de outras pessoas. Evelyn não só o arranca de lá, mas questiona o valor real das coisas. Tanto na arte quando na primeira cena do filme ela picha um pênis na estátua de Fornicelli, na vida de plástico dos seus amigos, na sua moral e em seu medo em relações, que o tornaram na pessoa que ela conheceu.

    Como o título nacional sugere, existem algumas discussões sobre arte contemporânea (performances, esculturas conceituais e vídeos), mas que só servem para abrir uma lacuna que só será preenchida ao final da história. Os amigos de Adam, Jenny e Phillip, são os primeiros a questionar a relação instantânea e fora de nexo dos dois, reforçando a falta de algo que pudesse atrair uma mulher à personalidade e aparência do amigo. Seu visual, suas roupas e até sua postura com as pessoas muda por pura influência de Evelyn.

    Assim como Alfred Hitchcock, guiar o espectador para o desfecho e manipular as cordas que dão vida à trama fazem parte de um excelente método de narrativa que guiam o espectador até o fim do filme. E é dessa manipulação narrativa que surge o ar de pequena joia que o filme possui. Neil LabuteRachel Weisz são dois Hitchcocks trabalhando juntos, até o fim que chega silencioso, chocante, humilhante e terrível.

    O diálogo final fala mais do que é um filme do que daqueles personagens, além do momento Encontros e Desencontros (que, apesar de provavelmente não ser referência, foi lançado no mesmo ano). Somos apenas Adams de muitas Evelyns que nos encontram aleatoriamente em nossas casas e nos cinemas, e acredito que é um dos poucos romances que exibe um metacomentário sobre a sétima arte.

    O filme traz um contraponto interessante do papel de manipulador ao primeiro filme de Labute, Na Companhia de Homens, o qual o papel de Evelyn era interpretado por Aaron Eckhart e Matt Malloy, e Adam era uma inocente moça interpretada por Stacy Edwards. Não só o papel dos gêneros foram trocados, mas o ponto de vista também. Fica a mensagem que tudo é relativo, transformações são perigosas… E confiar em mulheres também.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Top 10 | Filmes para o Dia dos Namorados

    Top 10 | Filmes para o Dia dos Namorados

    Uma das forças de movimento do ser humano, o amor é um dos sentimentos mais arrebatadores e controversos que existe, principalmente, por conta de sua potência e de limites naturais que podem transforma-lo em passado e bruma. Presente na maioria das narrativas, os amantes são figuras primordiais e estão presentes no imaginário popular desde a composição do livro da criação, representados por Adão e Eva. Independentemente de seu fruto, os amantes são sempre um tema rico explorado pela sétima arte e, neste dia dedicado aos enamorados, Marcos Paulo, Doug Olive, Filipe Pereira, o recém-chegado Halan Everson e Thiago Augusto Corrêa se reuniram para compor mais uma lista, dessa vez, direcionada a pares unidos pela ficção (Em tempo, a última vez que a equipe se reuniu para o assunto foi no sexto Vortcast, “Ahhhh, O Amor…“. Porém, até mesmo no imaginário, o amor não é eterno posto que é chama. Uma justificativa que explica porque, dentre a lista desenvolvida, algumas obras são um misto de felicidade e tristeza simultânea. Ainda assim, a aventura de um amor é um dos grandes prazeres humanos. Não a toa a canção do quarteto de Liverpool assume que tudo que precisamos é de amor.

    Ela (Spike Jonze, 2013) – Por Marcos Paulo

    Filme de destaque no ano de 2013, conta com um Joaquin Phoenix irreconhecivelmente frágil no papel de Theodore e Scarlett Johansson como Samantha, sua sedutora assistente virtual. Em um mundo surreal, pessoas criam laços profundos com seres virtuais como solução para perda do sentido de contato e afeição em seu mundo físico. Questões sobre amor, necessidades e aquilo que nos faz humanos, são parte desta fábula criada por Spike Jonze refletindo aquilo que um relacionamento, seja como for, traz de mais especial: pertencer a algo maior.

    Azul é a Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche, 2013) – Por Doug Olive

    Uma grande brincadeira (levada a sério por parte do público) com o atual cinema francês. Um filme onde se opta por esquecer trilha sonora, montagem americana ou a tentação de muitos em definir essa “nova” geração. Ao invés disso, Azul é a Cor Mais Quente nos conquista substituindo o ritmo narrativo oriundo dos quadrinhos pelo nível excepcional de todas as atuações; em especial da protagonista, com seus inúmeros monólogos sem palavras. Cada gemido ou sugada de espaguete é sinal verde para a próxima cena, às vésperas de um novo riso ou choro para nos deixar órfãos da insensibilidade – tudo aflora! No universo sem contexto ou decretos de Adéle, nua do começo ao fim, nada é, mas tudo pode ser intencional transvestido de inofensivo. Um furacão que arrasou Cannes em 2012, e um arco-íris de sensações, pintado no limite entre a lucidez e a explosão emocional; uma homenagem crônica, afinal, à liberdade – la voie, la vérité, la vie, o lema político da França e das democracias pertinentes.

    Amor (Michael Haneke, 2013) – Por Filipe Pereira

    Evocando a fase adulta da terceira idade, como pano de fundo, Michael Haneke faz um verdadeiro filme de horror, exibindo as agruras da vida a dois através do drama de Amor. A história é contada a partir dos olhos de Georges, vivido pelo veterano Jean-Louis Trintignant, que assiste a degradação mental de seu par, Anne ( com a inspirada Emmanuelle Riva) que aos poucos perde a consciência e o controle de seus movimentos e de sua consciência mental, graças a uma variação rara de uma doença mental, além de fazer fortes alusões a proximidade da morte. O começo do filme já revela os momentos do último ato, com a decomposição corporal da pessoa do belo sexo, ainda que o ponto de vista seja absolutamente diferente da ideia “romântica” do que é um namoro/casamento. O modo como Georges trata sua combalida companheira passa por todos os estágios inerentes a uma junção de duas pessoas, mortificando qualquer fetiche de que a vida de um casal é repleta de sexo e desejo carnal mútuo, indo desde o carinho extremo a impaciência e esgotamento emocional, em uma monta russa emocional que não deixa qualquer espectador incólume.

    Essa Noite Você é Minha (David Mackenzie, 2011) – Por Halan Everson

    Tonight-youre-minejpg

    Quando a música é parte essencial da trama de um romance, me soa muito mais agradável querer acompanhar esse tipo de filme porque certamente a música será utilizada além dos mesmos recursos batidos algo diferente do usual. E é nessa pequena pretensão de ser algo diferente que Essa Noite Você é Minha faz uso da fórmula sem ficar engessada nos clichês dela. Dirigido por David Mackenzie (do excelente Sentidos do Amor, também de 2011), acompanhamos uma fábula de romance acontecendo durante um festival de música, que não existem de hoje, mas acredito ser um dos poucos filmes dedicado a ficar exclusivamente nesse mesmo ambiente espiritual do inicio ao fim. Na trama, um líder de uma banda famosa do evento (Adam, Luke Treadaway) é algemado á uma vocalista de outra banda (Morello, Natalia Teña), que está tentando ganhar seu reconhecimento. Simples assim, essa premissa acontece derrepente e você vai junto ou não engole todo o resto. Geralmente esse tipo de filme está relacionado ao ambiente urbano fazendo essa experiência algo diferente. A música é personagem integrante da trama e realça muito dos momentos mais interessantes do filme, tanto de fundo como cantadas incluindo um incrível duo de Tainted Love feito por Teña e Treadaway. É uma excelente forma de fugir da cidade e viver um conto jovial e musical.

    A Bela e a Fera (Gary Trousdale e Kirk Wise, 1991) – Por Thiago Augusto Corrêa

    Bela e a Fera

    Considerado um dos clássicos supremos da Walt Disney Pictures, A Bela e a Fera dá continuidade as histórias adaptadas de fábulas e a trajetória de personagens femininas denominadas popularmente de princesas Disney. Composta por uma bela e simples história, a narrativa tem alcance em adultos e crianças, cada um lendo a obra de maneira diferente, conforme sua experiência. Como fábula, a história é conduzida pelo contraponto entre virtudes e vícios, deixando explícito a moral de nunca julgar pela aparência. A sensibilidade da trama e o crescimento da relação entre as personagens centrais é o principal enlace com o público, uma relação que se modifica na magnífica – e perfeitamente produzida – cena do salão de dança enquanto a canção A Bela e a Fera (Tale As Old As Time) é entoada.

    Namorados Para Sempre (Derek Cianfrance, 2010) – Por Marcos Paulo

    blue_valentine

    Embora seu título original, Blue Valentine, pareça distante de sua tradução, o título é bastante adequado à este anti romance estrelado por Ryan Gosling e Michelle Williams, como o casal Cindy e Dean. Unidos por um acaso, a paixão do amor desintegram-se num relacionamento incapaz de se doar e amadurecer para além de um namoro juvenil, tornando os para sempre namorados. A falta de perspectiva, cobranças ocultas e a insatisfação os tornam amargurados e perdidos entre o que foram e o que gostariam de ser.

    Desencanto (David Lean, 1945) – Por Doug Olive

    desencanto

    Em 2015, o diamante em estado bruto de David Lean completa setenta anos, com o tempo o fazendo cada vez melhor, e mais relevante que nunca, no Olimpo do gênero que representa fácil e esplendorosamente bem, a medida que é lapidado pela evolução do Cinema. A fumaça do trem separando um casal, porém, ainda não abaixou na estação, enquanto os olhos de lua da atriz Celia Johnson aguardam para sempre o eterno amor do passado, naquela mesa de bar, sozinha. Mesmo com Lawrence da Arábia e A Ponte do Rio Kwai, épicos devido a escala de produção, é o sentido mais puro e cru de épico, do tipo que chega a tocar na perfeição, que torna Desencanto, primo tímido de Casablanca, um dos mais sensíveis e amargos romances da Era de Ouro em Hollywood, o testamento supremo de Lean. Chico Buarque, no álbum de 1968, canta no hino. Desencontro a definição perfeita a um dos mais doces e fatalistas romances, onde o preço do amor é cobrado a partir de suas polaridades, valor e capacidade de colorir vidas condenadas ao mundo preto e branco dos desejos não-correspondidos.

    Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2014) – Por Filipe Pereira

    A singela historieta pensada por Daniel Ribeiro, primeiro em seu curta Eu Não Quero Voltar Sozinho, ganha ares de maturidade no belo longa Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, contando a história do duplamente excluído Leonardo (Guilherme Lobo) que, além de cego, começa a explorar vagarosamente sua sexualidade, no apogeu de sua puberdade, eclodindo uma paixão improvável com seu novo amigo, Gabriel (Fabio Audi), que também passa a descobrir os próprios desejo e pulsões de paixão e sexo na prática. A condução de atores tão jovens é belíssima, dá ainda mais sentido para a trama, relembrando filmes semelhantes de descoberta das manifestações de amor, com a obra que alude ao quadrinho de Julie Maroh, Azul é a Cor Mais Quente, ainda que a identidade da fita de Ribeiro seja carregada de brasilidade e identidade visual típica do país, unindo o formato bem urdido com um drama interessante e sensível ao extremo.

    Romances e Cigarros (John Turturro, 2005) – Por Halan Everson

    romances e cigarros

    John Turturro é um cara que é muito mais lembrado por ser coadjuvante. Pode ser por uma dessas que quando ele resolve tomar as rédeas de um projeto saiam peças tão únicas quanto esse belo romance/musical produzido com a ajuda dos Irmãos CoenJames Gandolfini vive o marido infiel de Susan Sarandon que tem um caso com Kate Winslet. É nessa simples trama de adultério que temos excelentes performances musicais dos protagonistas e dos coadjuvantes usando de uma sutil sincronia com as músicas originais enquanto cantam. Obviamente uma ideia que quebra toda a seriedade de uma discussão ou uma briga não poderia se levar a sério, e Turturro faz questão de brincar com o surreal de maneira agradável com aparição de mortos que quebram a quarta parede, conversas aleatórias numa obra e montagens de videoclipe dão o tom mais que divertido para o filme. Ele não perde o compasso entre a seriedade e os momentos de comédia em nenhuma das suas passagens, sabendo dosar cada uma da melhor forma o possível até o final.  Certamente um filme para rever varias vezes.

    Casablanca (Michael Curtiz, 1942) – Por Thiago Augusto Corrêa

    Image: FILE PHOTO: 70 Years Since The Casablanca World Premiere Casablanca

    Presente nas listas de Melhores Filmes de Todos os Tempos, Casablanca também é uma grande história de amor explorando, com a ironia característica de  Rick Blane, a beleza e a amargura de uma relação. O roteiro de Julius J. EpsteinPhilip G. EpsteinHoward Koch é uma das composições mais perfeitas da sétima arte, construindo uma gama de temas profundos sem desequilibrar nenhum aspecto narrativo. A guerra se contrapõe ao amor como metáfora fatalista de afastamento, o par central que se enlaça e se afasta representa a potência da união em contrapartida ao repertório interno de cada ser amado. A personagem de Bogart é tão miserável que é quase impossível não se identificar simultaneamente.

  • Crítica | Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Impossível

    Crítica | Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Impossível

    Tomorrowland - poster br

    A ficção científica como narrativa especulativa atravessa reflexões contemporâneas como base para projetar o futuro. No período da Segunda Guerra Mundial, obras distópicas como 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury focavam em um futuro totalitário e na completa ausência do indivíduo. O estudo da Cosmologia através dos tempos transformou seres de outro planeta em prováveis inimigos para estabelecer uma análise da evolução humana em várias obras, como O Jogo do Exterminador de Orson Scott Card e Contato de Carl Sagan.

    Tais cenários são utilizados frequentemente em narrativas como o futuro totalitário presente nos juvenis Jogos Vorazes ou na saga Divergente. São tendências que surgem como reflexo de cada tempo, conforme o contexto dos autores.

    Com este argumento em voga, é perceptível um crescimento de conceitos que questionam o futuro da Terra e suas transformações climáticas devido a ação humana. No cinema-catástrofe, o hiperbólico Roland Emmerich explorou o assunto em 2012 e, mais próximo do cenário de ficção científica, Danny Boyle dirigiu o eficiente Sunshine – Alerta Solar. Bem como Interstellar de Christopher Nolan também discutiu a sobrevivência da espécie à procura de outros habitats. A destruição futura do planeta também é tema de Tomorrowland – Um Lugar Onde Nada é Impossível, produção dirigida por Brad Bird em sua segunda incursão fora da animação, e obra cuja bilheteria tem sido aquém da esperada pela Walt Disney Pictures. Estrelado por George Clooney, o projeto de Bird, que também assina o roteiro ao lado de Damon Lindelof e Jeff Jensen, era aguardado com expectativa e, diante de uma história simples, e a esperança de uma grande obra de ficção científica foi deixada de lado.

    Grande parte da ficção científica trabalha com duas histórias dentro de sua narrativa, projetando um futuro provável para analisar o próprio ser humano. Muitas tramas são metáforas simbólicas para reflexões profundas e metafísicas de nossa própria evolução. A necessidade de produzir um filme familiar gerou um desafio natural para os roteiristas que precisavam equilibrar uma boa trama sem perder o escopo reflexivo. A solução foi transformar a história em uma aventura semelhante às da década de oitenta, evocando personagens juvenis como centro e lhes dando o poder para transformar sua trajetória, mantendo a fantasia dentro do enredo.

    Na década de 60, o pequeno Frank Walker é um inventor prodígio que participa de uma feira de invenções com um protótipo de um propulsor a jato. Mesmo o aparelho não empolgando Nix, um dos jurados do local, sua filha Athena confia na inteligência do garoto e convida-o para embarcar em uma aventura em uma cidade situada no mesmo espaço que a Terra, mas em outra dimensão. Habitado por cientistas, professores e intelectuais em geral, Tomorrowland é composto somente por mentes pensantes que desejam um futuro melhor sem os vícios do planeta Terra.

    A origem do garoto é apenas um preâmbulo para equiparar a história de Case Newton, uma adolescente que, como também o jovem Walker, acreditava ser capaz de modificar o mundo ao seu redor com a potência da imaginação e criação inventiva. Convocadas pela mesma Athena, as personagens devem salvar o planeta de uma iminente catástrofe.

    A aventura de fantasia é definida em um logo primeiro ato com uma hora de duração, firmando a parceria entre Casey e um velho Walker, interpretado pelo sempre galã George Clooney. O longo ato inicial evidencia a intenção de evocar a narrativa de outras décadas, tanto pela condução mais lenta como também na evocação de um universo inocente, conduzido por uma pureza juvenil. Ao contrário de obras como Os Goonies e E. T. – O Extraterestre a presença deste elemento puro não parece natural, mas inserida no contexto para ampliar o público e a bilheteria.

    Nestes dois exemplos de produções oitentistas, entre outras que poderiam ser citadas, os dramas envolvidos em cena eram densos, apesar da história simples. Principalmente, devido a uma época em que não havia amenidades nos conflitos em histórias infantis. Personagens lidavam com a morte e a perda como adultos também lidam com tais situações. Compondo sua base apenas com cores vibrantes, Tomorrowland evita, por consequência, um conflito, nem que seja o tradicional embate de mocinhos e vilões.

    A Disney vem tentando modificar o paradigma de suas histórias mas ainda não encontra uma maneira adequada de acrescentar novas camadas a sua outrora simplicidade bem equilibrada. Vê-se uma tendência em trabalhar argumentos em pares, utilizando em tramas diferentes as mesmas soluções narrativas. Assim como Frozen – Uma Aventura Congelante e Malévola compartilhavam o mesmo efeito moralizante do amor fraternal, essa produção se assemelha com o futuro colorido de Operação Big Hero: um local evoluído tecnologicamente em uma Terra desgastada em que personagens se destacam pelo caráter e a inocência – bem como a criatividade – e são inspiração para mudanças. Além da impressão de um reconhecimento prévio de um conflito visto em um recente filme do estúdio, a trajetória das personagens não parece urgente nem mesmo conflituosa como deveria, retirando qualquer potencial destrutivo do vilão interpretado por Hugh Laurie. Mesmo seu discurso megalomaníaco não parece ameaçador.

    Esteticamente a obra tem muita beleza, principalmente nos claros cenários do futuro e nos enquadramentos que demonstram um início de estilo na câmera de Bird. Porém, a falta de densidade retira a potência base de uma ficção científica projetada antecipadamente durante a divulgação do filme. Mesmo sendo apenas uma obra familiar entre aventura e fantasia, a intenção de ampliar o público impede que a história atinja com eficiência um desses gêneros e, diante disso, falta-lhe fôlego em qualquer uma de suas vertentes.

  • Crítica | Quase Samba

    Crítica | Quase Samba

    quase samba 2

    A bifurcação dicotômica presente na antiga discussão sobre ideologia é vista no drama de Teresa, ao se deparar com dois paradigmas sérios em sua vida: o fim do carnaval, e a paternidade do seu filho que está prestes a vir ao mundo. A bela pele negra, garante uma identidade tipicamente brasileira, além de traços comuns, que não inviabilizam a beleza real e comum de sua intérprete Mariene de Castro, que transborda sinceridade e veracidade.

    A escolha de Ricardo Targino em retratar uma mulher rotunda como um ser sexualizado é corajosa, quebrando a pecha conservadora que tenta enquadrar a mulher em invólucros de objetificação, que restringe o conceito de bonito a uma padrão estético cruel, que só engloba mulheres magras e que atendam aos padrões falocêntricos sociais. O entorno de Teresa, é repleto de figuras controversas, ao menos para os mesmos olhos do público médio, incluindo a trans Shirley (Cadu Fávero), fiel companheiro da brava mulher, servindo de âncora para a difícil vida de Teresa, que emula a rotina de muitos brasileiros da classe c.

    A baiana prossegue em sua invulnerabilidade, trabalhando intensamente, pondo sua voz na noite e nas exibições do rádio, compensando a dificuldade que tem em não saber qual seria a identidade do pai de sua criança, compreendendo de um lado, o desprezo do um dos “candidatos”, o policial Fernando (Otto), e por outro, os cuidados até excessivos do técnico João (Charles Baldessairini). Os dois homens são a antítese um do outro, o que faz duvidar ainda mais a combalida mente da moça, aumentando as dificuldades entre escolher lutar por um e aceitar os gracejos do outro.

    O drama em relação a “posse” do coração de Teresa, se acirra, ainda que a disputa não seja exatamente declarada, entre as duas contrapartes masculinas. A posição de macho alfa é travada de modo velado, com a ocupação terminando por ficar a partir da posse da própria mãe do bebê, que em momento algum arreda seu pé da posição de mãe e pai do feto que, sequer havia visto a luz do dia.

    Tardiamente, duas das figuras de mulo se degladiam, não exatamente pela atenção amorosa da mulher solteira, mas sim pela paternidade dos infantes, curiosamente do ponto menos provável do roteiro. O desenrolar dos fatos tem uma trágica conclusão, que lança até as personagens que o espectador escolheu desde o começo para torcer, em um lodo de alma tremendo, sem quaisquer chances de redenção ou austeridade, rasgando mais uma vez com qualquer protocolo de tranquilidade, bondade ou altruísmo, mostrando que mesmo a preocupação com outrem pode simbolizar a vaidade, além de claramente aludir ao pedido pela tragédia.

    Quase Samba é simples, mas poderosíssimo em sua proposta, entregando um conto de fadas invertido e pervertido, levantando questões como romantismo exacerbado, busca por sonho e demais padrões de fantasia como aspectos datados e não condizentes com a realidade, através de uma homenagem a rotina do brasileiro comum, sem medo de assumir o seu lado xucro e popular.

  • Crítica | Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros

    Crítica | Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros

    Jurassic World 1

    Os acordes de John Williams são lembrados em estilo diversificado, agora com a batuta de Michael Giacchino, seguido de uma cena de ovos eclodindo, dando prosseguimento ao processo chamado vida. O diretor e roteirista Colin Trevorrow faz em Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros uma homenagem ao trilogia original e ao filme Mundo Perdido de 1925, ao mesmo tempo em que situa o público no universo estabelecido que pressupõe a abertura do dantesco parque temático Mundo Jurássico, na mesma Costa Rica onde aconteceram os eventos de Jurassic Park e de  Jurassic Park: Mundo Perdido e Jurassic Park III da franquia. O encanto do menino Gray (Ty Simpkis) relembra o quão era bela a expectativa do público, em 1993, por ver os seres pré-históricos revividos e convivendo com a humanidade.

    Nos primeiros minutos da produção, há uma clara crítica ao excessivo gasto para produzir a estrutura artificial do Parque dos Dinossauros,  aludindo aos preços de naming rights (diretos reservado de nome) da nova criatura geneticamente criada, Indominus Rex. Como um magnata entediado, que faz as vezes de John Hammond, Masrani (Irrfan Khan) é o responsável por injetar dinheiro no Parque e também por financiar as atividaded de Claire (Bryce Dallas Howard), uma executiva de sucesso que graças a sua dedicação a carreira é uma parente relapsa.

    Na introdução da personagem de Chris Pratt, Owen Grady, descobrimos seu ofício como adestrador de velociraptores. Owen é o típico herói arquetípico, belo, audaz, corajoso, tendencioso e desbravador, seu modus operandi é intervencionista, como o de um exímio caçador, parecido demais com seu Starlord de Os Guardiões da Galáxia, um perfil que se torna irresistível para a quadrada Claire que tenta em vão esconder sua rendição amorosa.

    Ao menos na esfera de expectativas, o filme entrega bem seus préstimos, mantendo um suspense que encontra no público uma boa resposta. Mantém-se uma leve excitação sobre o visual de Indominus, com a sábia decisão de não escancarar sua aparência no primeiro ataque. A primeira intervenção entre o monstro e homens é breve, mas guarda uma dose de violência grande, cuidadosamente feita para não chocar as plateias conservadoras e famílias, parte do público alvo. Enquanto esse dinossauro impacta pela violência, os velociraptores estabelecem uma forte crítica a manipulação genética e a produção de híbridos com a possibilidade de se tornarem uma arma bélica, uma análise incomum para um filme para as massas.

    Os clichês seguem firmes e mais repetidos do que as histórias anteriores, curiosamente reprisando arquétipos dos filmes passados como a versão do CEO intervencionista, piloto de aeronaves como o presidente de Bill Pullman em Independence Day, (ainda que seu desfecho seja muito mais realista do que a vista no filme de Rolland Emerich).

    Os personagens centrais evoluem durante a história, principalmente Claire que deixa a pompa de lado, agindo de modo mais enérgico, provando que sua corrupção era fruto da falta de tempo e que a negligência não fazia parte de sua índole e caráter. Apesar de não apresentar nada que seja realmente inédito – ainda mais com trailers bastante reveladores – o roteiro mantém interessante viradas.

    A personagem de Pratt é superexposta e cada aparição o amplia como uma espécie de mito, ampliando as habilidades e capacidades sobre-humanas, seja no adestramento dos animais, como também nos atos heroicos, estilo sempre em voga em Hollywood, como também visto na persona de The Rock em Terremoto: A Falha de San Andreas, ainda que Owen Grady seja uma figura muito mais aceitável e carismática do que os heróis genéricos dos subprodutos de ação do cinema blockbuster.

    Os momentos finais aludem ao desfecho do primeiro filme, reprisando os mesmos heróis. Apesar de não apresentar uma obra prima, Trevorrow resgata parcialmente a aura do original, baseado nos livros de Michael Crichton, lembrando o espírito presente no reboot da franquia Planeta dos Macacos. Ainda assim peca ao repetir os mesmos erros de um sem número de filmes de aventura atuais, principalmente por não ousar em quase nada e reforçar a exaustão todo o conjunto de clichês de ação e aventura.

  • Crítica | Kung Fury

    Crítica | Kung Fury

    kftop

    Desde o lançamento do trailer em dezembro de 2013, Kung Fury mobilizou a internet. O projeto do sueco David Sandberg era produzir um curta-metragem de trinta minutos e disponibilizá-lo gratuitamente no YouTube, tudo financiado pelo kickstarter. Se as contribuições atingissem um milhão de dólares, seria produzido um longa. Infelizmente esta meta não foi atingida, apesar de o projeto ter arrecadado 630 mil dólares com mais de 17 mil colaboradores, algo impressionante para uma produção trash independente.

    O pequeno filme conta a história de Kung Fury, um policial mestre em kung fu numa jornada pelo tempo em busca de Adolf Hitler. A história parece nonsense e babaca, e realmente é. Bem-vindo a Miami, 1985! Trata-se de uma homenagem às coisas esdrúxulas dos anos 1980, regadas com exagero, canastrice e produção barata. O protagonista que dá nome ao filme, interpretado pelo próprio Sandberg, reúne o máximo de clichês possível: policial que trabalha sozinho porque seu parceiro, considerado um pai, foi assassinado, e agora utiliza suas habilidades de luta adquiridas do nada para combater o crime. A origem dos poderes de Kung Fury é a coisa mais ridícula do mundo, uma caricatura sublime dos anos 1980.

    O filme inteiro utiliza a grande técnica do chroma key e foi gravado no escritório/porão de Sandberg. As limitações técnicas e financeiras contribuíram para que o diretor utilizasse seus recursos da melhor forma possível, liberando sua criatividade de forma eficaz. A proposta foi apresentar um curta de aventura anos 80 com o máximo de exageros possíveis. O resultado final é espetacular. A estética oitentista aliada a alguns artifícios nostálgicos (tracking e imagem de VHS, música repleta de sintetizadores, frases de efeito babacas, só para citar alguns exemplos) criaram uma obra original abarrotada de clichês. Por mais paradoxal que possa soar, essa mistureba gerou algo com personalidade.

    Pouco antes do lançamento do curta, o mundo foi brindado com uma agradável surpresa: o videoclipe de True Survivor, música-tema do filme cantada pelo inigualável David Hasselhoff. O ator/cantor foi até a casa de Sandberg na Suécia para gravar o clipe e se deparou com uma pessoa tímida, mas dedicada àquilo que fazia. A namorada de Sandberg, ao ver o astro, caiu em lágrimas, dizendo ser inimaginável que aquela ideia nascida na garagem tenha ganhado vida. Hasselhoff gravou suas aparições do clipe naquele mesmo chroma key, e todos esses detalhes foram comentados pelo próprio ator neste vídeo. Ele gostou de participar do projeto e teceu diversos elogios a Sandberg.

    Kung Fury mostrou ao mundo que um bom projeto pode ser realizado com a ajuda da internet. O kickstarter, apesar de ser deturpado por inúmeros oportunistas, ainda é uma ferramenta poderosa para a criação de conteúdo independente, desde filmes até jogos. Sandberg deu à luz uma obra extremamente divertida que virou um fenômeno. O diretor/ator sueco mostrou uma grande dedicação e competência na produção deste curta, tanto que acreditou no projeto e tirou 5 mil dólares do próprio bolso para gravar aquele trailer. Reserve trinta minutos de sua vida para conferir esta pérola trash da atualidade, mas por favor, assista ao trailer e ao clipe de Hasselhoff antes. Há um joguinho bem legal para celulares e PC, também vale a pena conferir.

  • Crítica | Sob o Mesmo Céu

    Crítica | Sob o Mesmo Céu

    SOB O MESMO CÉU 1

    O começo da nova obra de Cameron Crowe, Sob o Mesmo Céu, remete a cenas gravadas por cinegrafistas amadores, revelando momentos de descontração na ilha do Havaí no descanso de férias, bem como a interação dos nativos com o belo lugar. O efeito seria de comoção e nostalgia, não fosse o tom exageradamente caricato piorado em muitos níveis pela narração intrepidamente óbvia, que discorre sobre a tardia corrida espacial dos anos 2010.

    O roteiro de Crowe apresenta uma quantidade enorme de clichês, desde a construção dos personagens até as situações comuns que vivem. Bradley Cooper vive o oficial Carson Welch, que vive sua rotina medíocre vendendo um estilo de vida essencialmente capitalista, negociando possíveis localidades para testes espaciais e já em uma fase decadente de sua carreira. Designada para “vigiar” Welch, a Capitã Ng (Emma Stone) exibe sua feminilidade jovial, escondida sob uma capa de militarismo poser, falsa em cada mínimo aspecto. Inicia-se, assim, uma interação romântica na qual a falta de química prevalece.

    A chegada à ilha paradisíaca faz lembrar o drama vivido em Os Descendentes, reprisando inclusive a questão da vivência dramática em um lugar onde memórias boas são geradas por turistas. Carson reencontra um grande amor, e se vê em uma posição espinhosa, mas toda a problemática sentimental apresentada é pobre e sem conteúdo, mesmo que a atmosfera construída seja a de um lar de rancores, tristezas, abandonos e ressentimentos. Falta alma e verve ao roteiro, que destoa de todo o panorama mostrado em tela, diferenciando-se até da bela fotografia de Eric Gautier, que consegue ser bela apesar da paleta de cores completamente tresloucada.

    Toda a questão ideológica relacionada ao engano aos nativos e os argumentos pró-armamentistas impulsionados por bilionários ficam em um plano subalterno para explorar o rocambole novelesco do trio (quarteto, se contar a personagem de Stone) entre Carson, Tracy (Rachel McAdams) e o atual marido desta, Woody (John Krasinski). Este último, curiosamente, é a personagem mais bem trabalhada e com nuances: não possuindo muitas falas, sua comunicação quase sempre é realizada através de gestos e olhares. Mesmo com todo o aspecto curioso, as situações são bastante frívolas e sem substância. Uma mensagem democrata barata, que acaba sendo apenas ideologicamente banal. Até se destacam momentos nobres, como a luta contra o avanço imperialista, mas estes se perdem por completo diante da barata tentativa de redenção moral de Sob o Mesmo Céu.

  • Crítica | O Riso Dos Outros

    Crítica | O Riso Dos Outros

    O Riso dos Outros 1

    O começo do documentário de Pedro Arantes remete a uma famosa fala de Goethe: “Nada descreve melhor o caráter dos homens do que aquilo que eles acham ridículo”. Logo depois, o realizador começa a provar seu ponto, exibindo um Stand Up Comedy com um número bobo, argumentando sobre tipos de risadas, ao mesmo tempo, que brinca com estereótipos de sorrisos.

    Em meio ao relato de muitos humoristas brasileiros, há uma exemplificação do porquê uma piada funciona e quais são os fatores que fazem a plateia rir. A conclusão chegada pelo montante de falas é que a vida do homem comum é tediosa, ao passo que o humor libera endorfinas, faz a existência ser menos dramática. Ver a tragédia sem se compadecer só acontece porque o trapalhão não teve uma morte ou sofrimento, é sobre esta égide que se posiciona a zombaria

    Da multiplicidade de discursos, retira-se uma outra conclusão, a de que o humor é matemático, calculável, portanto tendo linhas claras do que funciona num palco de comédia em pé e que alguns desses pontos não necessariamente agradariam em televisão ou cinema. O gênero Stand Up Comedy conta a com a facilidade e espontaneidade do texto próprio e figura própria, sem maquiagem ou máscara.

    Mas a discussão é o cerne do filme, que põe no centro do diálogo a necessidade do estereotipo para a realização das piadas. Estereotipo normalmente é usado pelos comediantes como uma muleta, serve para fazer o público rir, ao menos para começar o burburinho, dialogando com o preconceito alheio. O humor carrega uma dose de crueldade, busca o defeito, o pior, a caricatura baseado em uma característica que até determina identidade, mas reverbera o “ruim”, onde o desrespeito é comum.

    Alguns dos entrevistados relembram que os humoristas não são os responsáveis pelas mazelas sociais. No entanto, a leviandade da piada há que ser vista, especialmente pelo fato justificado pelo deputado e ativista gay Jean Willys, que destaca que o homem q faz a piada homofóbica é hetero. Mas é possível argumentar sem reforçar o preconceito.

    O cartunista André Dahmer é um dos poucos que vão na contramão das falas de Danilo Gentilli e companhia, de que o importante é avacalhar. Dahmer assume que em uma piada há sempre uma vítima, mas destaca que se é pra bater é melhor bater em quem merece, mulher e negro sempre foram perseguidos.

    O lado escolhido pelo documentarista é de que o motivo que faz a piada machista ser proferida é a clara tentativa de naturalizar a inferioridade da mulher ao homem, em um argumento claramente misógino. O sexismo reforça o lado oposto a luta do feminismo, na busca por respeito. Apelar pro lugar comum só retorna ao público o que possivelmente pensa, que além de não combater o preconceito, reforça a pensamento baixo do homem comum, reverberando o comodismo de ser conservador e opressor.

    Os depoimentos põem dois lados distintos, a manutenção do status quo, com piadas que mantém tudo igual, do outro lado, a defesa do politicamente correto, que por sua vez é taxado de careta. A questão é que o reforço da desigualdade seria mesmo o símbolo de caretice? A opressão é absolutamente invertida, pondo a intolerância na parte que costuma reforçar arquétipos tolos. A chamada “patrulha” é ambígua, se é chamada assim somente por discordância de ideia, o que normalmente se lê como o combate a desqualificação de grupos sociais.

    A comédia é politica, defende ponto de vistas e ideologias. O discurso de O Riso dos Outros reforça a pecha de que o humor real e positivista é o irônico, que bate no carrasco e não na vítima, rindo do patético comum ao conservador, que faz o senso comum bobo rir, normalmente por consenso do público, normalmente pouco exigente e pouco afeito a transgressões. A busca eterna pelo riso da plateia é um exercício fútil aos olhos de Arantes, e completamente anacrônico, fora de qualquer escopo de modernidade, destacado pelo som característico das primeiras fitas do cinema mudo.

  • Crítica | Sono de Inverno

    Crítica | Sono de Inverno

    sono

    Na segurança de um(a) cineasta que sabe o que precisa enquadrar, e o que não precisa estar num plano para contar a história, que nascem filmes como Sono de Inverno, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, edição 2014. Nuri Bilge Ceylan reproduz a mesma essência do Cinema que Glauber Rocha e Alberto Cavalcanti rodaram no saudoso nordeste do Brasil, e que Ingmar Bergman registrou em preto e branco na lenitiva ilha de Fårö, na Europa: um cinema de regiões, voltado a expor o que de melhor e pior as veredas de um lugar escondem, incluindo seus habitantes. Desses personagens, o mais indispensável é o ambiente onde a aventura se configura, o “ao redor” feito de panela de pressão ao povo que lá está inserido, vivendo ou morrendo.

    Seja no visceral Deus e o Diabo na Terra do Sol ou no soberbo O Canto do Mar, duas esferas que resumem historicamente o que é o conceito de qualidade de vida para grande parte dos brasileiros, ou ainda em Persona, suspense metido a drama, sente-se à flor da pele o apuro da poesia visual, da natureza que compõe o quadro, da linguagem que despreza as palavras para obter o que é necessário, e da maestria que faz com que um bando de imagens aleatórias se juntem, formem um sentido, e bem diante de nós, nos encantem – nos impressionem. Tudo isso é Cinema, foi Era Uma Vez em Anatólia, e é o que Ceylan faz como poucos hoje em dia.

    Uma câmera não fala sozinha: é preciso dar-lhe voz e injetar-lhe narrativa. Uma montanha tampouco se expressa, senão no espaço entre suas mudanças geológicas quando deixa, ainda, como prova temporal, seus fósseis, pó e outros sinais de outros tempos. Congelar um pôr do sol reafirma a fé entre o natural e a tecnologia, sem jamais o primeiro depender da segunda para ser lembrado; o próprio natural crava sua relevância no amanhã com ou sem o advento da fotografia, mas Ceylan pouco se importa: faz da região seu livro de memórias, como Sebastião Salgado fez do mundo uma coleção de cliques em O Sal da Terra, em paralelo exato com a história de uma sociedade específica, como se as pessoas de Sono de Inverno vivessem num outro universo, em um clima frio e violento, onde o calor humano, como um sorriso, custa ser honesto nas relações de amigos e família. Tudo é tenso, denso, glacial, petrificado, definições típicas de um brasileiro acostumado ao caos emocional de um cenário tropical.

    Traduzir os valores e o ambiente que os influencia é uma tarefa digna de aplausos, mas nada arrebata uma reflexão maior que atestar como esse ambiente – um mundo tão gelado, tão emocionalmente abissal – e quem vive lá, seres à beira da rivalidade ética, com suas emoções perdidas e caladas nessa profundidade moral que suas tradições sustentam desde sempre, são conectados e equilibrados para compor um longo mural de três horas, repleto de contradições propositais que gritam, no silêncio e na licença poética, para se fazer valer, num tempo e espaço melancólico muito bem construído e explorado, aberto a divagações brilhantes e contextuais sobre como a vida é afetada pelo local onde floresce, se constrói e decai.

    Nos temas mais diversos, como poder, riqueza, casamento, sociologia e religião, o ser humano e o chão onde pisa viram um só a favor de nossa interpretação artística, adaptada em partes do tenso conto A Esposa, do escritor Anton Tchecov. Tudo o que Ceylan não consegue falar da obra, usando aspectos teatrais mais compatíveis às cenas, ou nos diálogos íntimos e filosóficos da dialética, joga o dever para a imagem dos vales cobertos da neve que preenche a tela passiva, em panorâmicas de cair o queixo, onde a trilha-sonora é o vento, e o sol cortando a neblina o alento para almas condenadas à desolação ambiental e individual – o externo e o interno num furacão existencial, afinal, assistir a Sono de Inverno é mergulhar com paciência nesse vendaval.

    Um filme de mensagens universais, seja nas relações do ser com o âmbito onde sobrevive, seja ao expor, leve e amplamente, nos confins da floresta emocional de cada um, boa parte do que lá se esconde. Ceylan já tinha feito isso em Anatólia, tinha ensaiado essa maturidade em Nuvens de Maio, mas devido a sua segurança no desenvolver de Sono de Inverno, parece ter descoberto o esquema para desbravar essa mata e fotografar tudo como se fosse Cinema, ou melhor, Cinemão de grande escala. Por isso mesmo, numa tática de mestre, o artista turco não procura escanear e aproveitar toda a enorme dimensão que seu filme poderia ter, economizando potencial na tela para ser imaginado depois pelo público – lição de casa. Mata que é desbravada perde seus mitos.

  • Crítica | Caça aos Gângsteres

    Crítica | Caça aos Gângsteres

    caca_aos_gangsteres

    Imagine-se em um bar. Daí aparece aquela mulher linda e maravilhosa. Você fica olhando de longe, admirando seu charme, seu sorriso, sua beleza estonteante e começa a achar que ela é especial. Única. Então você se aproxima e começa a conversar com ela. Em poucos minutos percebe que ela é superficial e comum. Essa é a sensação provocada por Caça aos Gângsteres. O filme tem muito estilo e apresentação pra pouco conteúdo.

    Passado em 1949, o impiedoso mafioso nova iorquino Mickey Cohen, vivido por Sean Penn, comanda com braço de ferro o crime organizado na cidade de Los Angeles. Sua influência vai além dos criminosos comuns, chegando ao escalão da polícia e aos políticos da região. Porém, um pequeno grupo de policiais liderados pelos sargentos John O’Mara e Jerry Wooters, vividos respectivamente por Josh Brolin e Ryan Gosling, resolve desmantelar a organização de Cohen.

    A trama é um completo decalque de Os Intocáveis, o já clássico filme dirigido por Brian De Palma. Porém, as semelhanças param por aí. Não vou comparar os dois filmes, vou apenas estabelecer alguns paralelos. Enquanto Eliot Ness e seus companheiros eram personagens bem delineados, com motivações profundas e críveis, nesse aqui as motivações são as mais mundanas possíveis. Um não quer que o filho ache que ele não fez nada enquanto a máfia dominava, o outro é o detetive que reluta em entrar no grupo e por aí a banda segue.

    O elenco estelar encabeçado por Gosling e Brolin tem atuações rasas, ainda que existam alguns breves momentos inspirados, mas nada além disso. Em nenhum momento o espectador consegue sentir empatia pelos heróis, chegando até mesmo a uma certa indiferença ser despertada.  É possível que os personagens profundos como um pires tenham influenciado nesse aspecto. Nem Sean Penn se destaca em meio às interpretações desfiladas na tela. Aliás, chega a dar pena a sequência em que o oscarizado ex-marido da Madonna tenta emular o icônico Tony Montana (Al Pacino em Scarface, outro filme do Brian De Palma). O diretor Ruben Fleischer não soube aproveitar o material humano que tinha em mãos. As cenas de ação são genéricas e não empolgam. Fora que a trilha sonora é completamente equivocada. Em vez de elevar a tensão da cena, dá nos nervos do espectador.

    O ritmo do filme é até interessante, sem muita enrolação, indo direto ao ponto. O diretor faz um uso interessante da câmera lenta em algumas cenas. Porém, os clichês vão se amontoando pelo caminho. Um fato é intrigante: os personagens são policiais, estão trabalhando à margem da lei, são conhecidos pelos bandidos da cidade, não usam máscaras pra fazer as batidas nos locais “secretos” onde a bandidagem opera, e custam a ser identificados mesmo frequentando bares e restaurantes apinhados de meliantes. É algo que não faz muito sentido e acaba passando batido no roteiro. Como ponto positivo, temos a impecável ambientação de época. A Los Angeles recriada é maravilhosa e os  figurinos são de encher os olhos. A direção de arte, de efeitos especiais e a cenografia merecem parabéns.

    Caça aos Gângsteres poderia ter sido um filmaço. Só conseguiu ser esteticamente lindo. Faltou cérebro nele. Cultuaram demais o corpo e esqueceram da mente.

    Compre aqui: DVD | Blu Ray

  • Crítica | Qualquer Gato Vira-Lata

    Crítica | Qualquer Gato Vira-Lata

    Qualquer Gato Vira-Lata

    Um dos muitos sucessos da Globo Filmes, capitaneada pela dupla Daniela de Carlo e Tomas PortellaQualquer Gato Vira Lata é uma velha comédia romântica que se baseia na insegurança da mulher, desesperada por atenção, através da personagem Tati. Interpretada pela belíssima Cléo Pires, a personagem não teria qualquer dificuldade em fisgar o homem que ama, mas, ainda assim, insiste em basear sua autoestima em dizeres de revistas adolescentes, de conteúdo adocicado e pautado em autoajuda barata. Seu namorado Marcelo, vivido por Dudu Azevedo, é um terrível companheiro, relapso e insensível, que logo pede para “dar um tempo” na relação, logo quando a bela lhe faz uma surpresa com flores.

    Em outro hemisfério ideológico está o professor Conrado (Malvino Salvador), que prega que o sentimentalismo é um sentimento tipicamente feminino, pregando que o ideal é a dominância masculina sem maiores ressentimentos. Um discurso fraco e inseguro, inclusive por sua repetição e gagueira em aula. O discurso idiotizado é discutido pelas alunas, que o acusam de chauvinismo, mas sem qualquer conclusão edificante contra a docência.

    A indagação de Tati tem zero eloquência, se resumindo a um “não” mal dado, fruto da fossa em que está e que até suas amigas chamam de dramalhão. A pobreza do script é observada claramente tanto na carência latente de Tati como também em sua ingenuidade, vacilando em desculpas esfarrapadas e clichês. Da parte de Conrado, há também uma enorme falta de congruência, com um caráter repleto de banalidades e obviedades, revelando um casamento fracassado, culpa, entre outros fatores, de sua tese mal feita, que revela egoísmo e exacerbo de individualidade.

    Logo, os destinos de Conrado e Tati se cruzam, com direito a plano detalhe no lado posterior do corpo de Malvino Salvador. Logo, a moça se lança nos braços do mestre, para ser a testificação em carne e osso da tese do homem e para enfim começar uma interação ímpar, baseada na teoria do mentor.

    O desenrolar da conversa revela uma ânsia da moça por aprovação, com faniquitos desesperados e reclames que imploram pela atenção do rapaz, resultado da vontade que possui de reatar a relação com seu ex-namorado. No primeiro reencontro do antigo casal, mais uma vez Tatiana dá seus ataques tresloucados e violentos, revelando que também sente ciúmes em relação a si.

    A pesquisa prossegue usando a “pista” como laboratório, um lugar onde o inadequado é Conrado, que se mantém imóvel, mesmo diante da música alta e do ambiente favorável a sedução. Aos poucos, a aluna passa a envolver o pesquisador em sua rede, como era provável e mostrado desde o início da trama. A sucessão de diálogos somente piora com o transcorrer da fita, revelando uma futilidade abismal onde sequer há espaço para rir.

     Compre aqui: Qualquer Gato Vira-Lata (Dvd)

  • Crítica | Jurassic Park III

    Crítica | Jurassic Park III

    Jurassic_Park_III_Poster

    Dando sequência ao universo imaginado por Steven Spielberg a partir da obra de Michael Crichton, Jurassic Park III utiliza a grife estabelecida pelo diretor em uma trama inferior aos dois movimentos iniciais. Spielberg deixou a direção a cargo de John Johnston, o qual já havia demonstrado interesse em realizar O Mundo Perdido: Jurassic Park mas fora relegado a uma possível segunda sequência.

    Mesmo responsável por dois bons projetos familiares, Querida, Encolhi as Crianças e Jumanji, Johnston não possui a mesma capacidade técnica de seu mentor e, além das limitações artísticas, tinha em mãos um roteiro mal executado. A trama utiliza apenas algumas cenas das obras de Crichton e desenvolve um argumento inédito. Entretanto, os possíveis roteiros desagradaram a produção e, apenas cinco semanas antes do início das gravações, uma nova história foi desenvolvida. O curto espaço de tempo para a composição bem delineada de um roteiro deixa a impressão de que assistimos a um esboço inicial que precisaria de ajustes para ser eficiente.

    Jurassic Park – O Parque Dos Dinossauros e O Mundo Perdido fundamentavam e desenvolviam o universo que inseria dinossauros no mundo contemporâneo. Sem nenhuma novidade aparente, essa continuação retoma o personagem de Alan Grant (Sam Neil) – que não participa do acidente em San Diego – como um ponto forte para o público. O enredo parece fora de tom, sem a mesma visão estética e narrativa dos anteriores. Além de uma metragem enxuta, a necessidade explícita de novidades modificou os dinossauros mais conhecidos da franquia: velociraptor e T-Rex são deixados de lado para dar lugar a duas novas espécies: o gigantesco Spinossauro – cujo esqueleto substitui Rex até mesmo no pôster – e o voador Pteranodone (em tempo, os raptores ainda se destacam em parte da história mas, devido a estudos lançados na época, ganharam penas na cabeça, parecendo topetes irados que destoavam da concepção dos outros longas).

    O núcleo central de personagens, representados por uma família que vai até a ilha com auxílio de Grant para resgatar um filho desaparecido, não possui o carisma necessário e não transparece a urgência da perda. Sem nenhuma sintonia, William H. Macy e Tea Leoni são o elemento cômico da trama, tanto em momentos propositais como em situações involuntárias. Nem mesmo o apelo infantil do garoto desaparecido – o infante em perigo, recurso clássico das obras de Spielberg – é bem executado.

    O maior orçamento da trilogia não impediu que as cenas de ação parecessem simuladas em um cenário cenográfico. Os ataques de dinossauros aleatórios não produzem medo aparente e são ineficazes diante de uma trama irregular. A obrigatoriedade de inserir novas espécies leva as personagens a locais não explorados anteriormente, como uma travessia pelo mar somente como pretexto para a cena de ação com o dinossauro voador. Cenas episódicas que tentam pelo impacto esconder a trama sem emoção.

    A sensação de uma obra inacabada é ainda mais evidente quando a trama se encerra de maneira breve, sem um terceiro ato dramático. Um anti-clímax que parece finalizar antecipadamente a história por falta de tempo em desenvolver um roteiro adequado. Nem mesmo a cena final é inédita, se assemelhando ao final do primeiro filme, com os personagens saindo da ilha, com direito à música original de John Williams como lembrete ao público de que essa trama fez parte de uma trilogia. De qualquer maneira, ainda é uma cópia pálida que pouco lembra as divertidas e familiares aventuras anteriores.

    Compre aqui: DVD | Blu Ray

  • Crítica | Qualquer Gato Vira-Lata 2

    Crítica | Qualquer Gato Vira-Lata 2

    CARTAZ QGVL2

    Após uma péssima realização no primeiro episódio da franquia, Qualquer Gato Vira Lata 2 teve uma troca na dupla de diretores, saindo Tomas Portella e Daniela De Carlo para a entrada de Marcelo Antunes e Roberto Santucci. A produção se assemelha às obras anteriores do segundo diretor citado, já que a continuação, assim como havia ocorrido em De Pernas Pro Ar e Até Que a Sorte nos Separe, também serve de propaganda a agências de turismo e outros, e utilizando-se de locações mexicanas.

    O roteiro de Paulo Cursino inicia-se ainda mais nefasto que o anterior, com uma absurda variedade de piadas anti-feministas, uma vez que Conrado (Malvino Salvador) tinha uma excursão marcada para um debate com uma escritora pseudo-feminista que viria a desbravar suas falas. Convenientemente, essa pessoa era a sua ex-mulher, Ângela (Rita Guedes), que também se tornou escritora, a despeito disso jamais ser citado no filme anterior.

    Partindo deste conceito, Conrado decide viajar com Tatiana (Cleo Pires), sua namorada desde o encerramento da primeira parte da franquia. A romântica menina decide então inverter os papéis comuns da sociedade normativa – um pecado mortal, segundo o livro do professor/cientista – convidando-o a um novo passo de intimidade, propondo-lhe casamento, com direito a transmissão via internet para todos os amigos e familiares. Tais fatos são exibidos ainda no trailer e, sem qualquer exagero de análise, correspondem à metade de todo o plot do filme, ocupando um tempo demasiado em tela.

    A virada acontece no arrependimento do ex-namorado de Tati, Marcelo, vivido pelo ator e agora produtor do filme Dudu Azevedo, que percebe estar ainda apaixonado por seu antigo par e decide se juntar ao jocoso Magrão (Álamo Facó) para intervir no relacionamento. A crescente de suas discussões é pautada na estupidez, ainda que sua postura seja claramente menos egoísta. A imaturidade do personagem é tanta que ele decide participar de uma mirabolante plano fingindo que possui uma filha.

    Após algumas recusas e desventuras, Tati resolve dar ouvidos a sua rival, exibindo o mesmo plot tedioso do primeiro filme, mas invertendo o papel de mentor. A partir daí, inicia-se uma versão juvenil da guerra de sexos, com direito a um docente com complexo de Terry Crews, trabalhos detetivescos de personagens fúteis e sem profundidade, sempre valorizando que, em última instância, a única sabedoria valiosa é a provinda do homem.

    Apesar do pequeno avanço visual e de um maior entrosamento dos atores – fruto possivelmente da experiência maior de Santucci em comparação com Portella – o filme consegue ser ainda mais agressivo na redução do discurso feminista, igualando por vezes todo o conteúdo da discussão a um simples recalque, no sentido mais popular e tosco da palavra. O empobrecimento do discurso produz algo ainda pior do que o original, ainda que seja claramente mais maduro cinematograficamente.

  • Crítica | Segunda Chance

    Crítica | Segunda Chance

    Segunda Chance 1

    A reabilitação anunciada no título do filme de Susanne Bier se perde diante da imundície do apartamento investigado pelo detetive policial Andreas (Nikolaj Coster-Waldau), que adentra a casa do junk Tristan (Nikolaj Lie Kaas), que vive junto a sua parceira Sanne (May Andersen). A vida degradante dos personagens se resume a práticas sexuais na sujeira típica daquele micro universo, regada a muita bebida e heroína. A condição se agrava quando Andreas percebe a presença do recém-nascido Sofus, que chafurda em uma fralda imunda, e que claramente estranha toda a agitação no apartamento, derramando lágrimas e gritos. A partir daí, nota-se que a história será narrada a partir do choro de bebês.

    Na intimidade, o protagonista chega a um lar igualmente perturbado, ainda que a sujeira não impere no lugar. O cuidado paterno dele e – supostamente – o de sua esposa Anna (Maria Bonnevie) com seu pequeno rebento, Alexander. O altruísmo proveniente do cuidado com a criança serve de resposta e contra-ataque à melancolia do começo da fita, assinalando ainda mais o abismo entre o comportamento dos dois núcleos familiares.

    O primeiro aspecto comum entre os modos do clã é a dependência mútua de drogas, ainda que as intenções sejam completamente diferentes. Anna sofre distúrbios mentais, e lança mão de produtos tarja preta, algo originário do desespero diante de mais um trauma, beirando mais um descontrole emocional. Anna ultrapassa uma linha que mesmo a desequilibrada Sanne não cruza, e tal arremedo serve como o primeiro de muitos twists do roteiro de Anders Tomas Jensen.

    Em determinado ponto, a adoção vira a alternativa mais lógica, ainda que seja moral e eticamente discutível, para dizer o mínimo. A árdua “tarefa” mostra-se em uma cena angustiante e bem urdida, que consegue até fugir da aura comumente sensacionalista que o espírito pedia. Andreas, ao cometer sua “indiscrição”, não consegue segurar seu ímpeto, e corajosamente, não nega seu pecado a sua parceira. O vômito de Anna serve de avatar ao asco pelo “roubo”, e, claro, vira também um paralelo com a resposta física ao duro golpe de ter perdido seu filhote.

    De um lado, há a clara preocupação de manter princípios básicos e espirituais, do outro o receio de ser encarcerado, conceitos separados por uma divisa familiar liderada por Andreas e Tristan. Claro, em lados opostos, o que dá forças para o fácil discurso proveniente da mentalidade pseudo meritocrática em relação à paternidade.

    O roteiro não aborda nada novo, de fato, só torce a realidade para uma discussão bem antiga, atualizando a questão para plateias mais moças, ávidas por uma estilização mais categórica e condizente com plateias jovens.

    Os elementos visuais dizem muito, compondo o quadro geral de modo singelo. Como as paredes de vidro, tentam emular uma falsa transparência. O argumento dos junks é refutado, mas o contraponto é pontual e presente na relação de Andreas com seu parceiro Simon (Ulrich Thomsen), que varia entre o arquétipo de mentor falido e companheiro. O segundo twist também é igualmente bem executado em relação a discussão de paradigmas, transformando os dramas em aspectos ainda mais humanos.

    A consciência de Andreas passa a assombrá-lo, assim como a culpa, que insiste em ocupar sua mente e alma apesar de sua recusa. A resiliência toma o espectador de assalto, ao se perceber que não há qualquer personagem a se agarrar, uma vez que o final revela o real caráter de cada um, repleto de crimes e imoralidades indiscutíveis.

    A dolorida verdade faz o personagem principal sentir remorso e retornar ao estado de justiça inicial. Ainda que não haja uma entrega plena, ocorre um abandono da vida pregressa. O inexorável, de que o paraíso não existe e que tampouco cabem finais felizes, é cruel, porém realista, sobrando então a rendição a um destino agridoce e levemente menos culposo, fruto de um roteiro que beira o sensacionalismo, mas entrega uma história congruente.