Categoria: Cinema

  • Crítica | Timbuktu

    Crítica | Timbuktu

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    Um filme-ponte. Uma travessia cultural entre nós e eles. Uma cultura de extremos e fanatismos traduzida em filme por um viajante meditativo, na leveza à beira do cinismo com que a história é tratada e conduzida num cangaço sem dono, onde quem late mais alto dita as regras forjadas à bala de rifle traficado. A realidade de Mali, oeste da África, e das situações no eloquente Timbuktu traz à tona sua comparação válida com a brasileira, em lugares onde o toque de recolher e a especulação imobiliária forçam as famílias ao equívoco de ocupar lugares perigosos, e ainda sob a insegura proteção de facções criminosas, dependentes do véu de uma comunidade dócil, que diante do perigo já se adianta: “Aqui só tem trabalhador!”, garantindo assim, em troca, a proteção das milícias. Da falta de educação a incentivos à valorização igualitária na qualidade de vida de um bairro, ou cidade, surge, em qualquer país, estado ou vilarejo, o relevo perfeito para a alienação tomar conta de um social inteiro.

    Predatória por excelência, a manipulação de um senso comum traz consigo um poder de ilusão muito semelhante àquele que o cinema usa para outros fins, por outros meios: o da desconstrução da realidade a favor de tornar real uma ilusão, mediada por doutrinas pré-estabelecidas antes, com essa inversão de visões geralmente posta acima do bem e do mal. Em doses simpáticas, isso é arte. Em outras, é religião. Esvaziando a garrafa, a alienação sobe e vira miragem, passando a visar a salvação e a segurança que o poder de fato usa para se manter, feito obelisco, em tempos de protestos que não acabam mais.

    O poder de reinvenção e o poder da alegria podem ser naturais ao brasileiro, roubado e masturbado ao mesmo tempo pelo seu Governo. Mas são avanços culturais de qualquer raça que, graças ao registro justo e realista (ainda que a favor da ficção) de uma câmera de Cinema, nota-se em Timbuktu que aprendeu a ser feliz apesar de tudo. Um todo resumido a condições e desafios limites, tanto ambientais quanto os impostos por quem transforma esse ambiente numa peleja de convivência selvagem, numa crise ao homem atenuada senão por sua família – só por ela, e no máximo por seus conterrâneos quando o assunto é regional, afinal. Herdeiros de seus abraços e companheiros de seus passos. Estamos falando de um Cinema de calor humano, que parte da essência para chegar na estética, e não o contrário, sendo essa uma estética naturalista ao contexto africano onde seu apelo universal começa, termina e se desenvolve no seio da Terra.

    Mas protesto só existe em democracia. Só não ocorre quando não há um cano gelado mirando a bandeira, quando cães e seus rifles absolutos só respeitam a casa de Deus, os templos enquanto símbolo, e não os cidadãos, temerosos até o espírito. A ponte entre esse temor e nós, o público, na nossa contemplação passiva de quem não conhece as rotinas da extrema opressão espalhada pelo mundo, é senão um trecho, percalço de uma jornada longa, mas livre o bastante para poder nos impressionar e informar. De fato, não há mesmice ou drama o suficiente para ilustrar as histórias que o deserto abriga, na narrativa de destinos conjuntos, e na sobrevivência de nômades que só não abandonam suas tradições, pois foi só o que lhes sobrou para se apegar, sem contar a fé em si mesmo.

    No que é elo e comparativo, o filme de Abderrahmane Sissako prova que a consciência pessoal é mais poderosa que as crenças coletivas, submetendo o indivíduo e uma comunidade inteira a proibições éticas baseadas em uma moral imbecil e abusiva (líderes religiosos cagando regras e fazendo valer suas leis num cangaço islâmico), alegando que a integridade de um pode representar a liberdade e a reputação de todos que se opõe a essa alienação autoritária. Quando dois homens brigam por uma vaca, um morre e a vida do outro gira de ponta-cabeça junto do destino de sua família, nada está perdido, pois tudo ainda está para ser ganho, incluindo a liberdade de expressão. E aí entra o Cinema, veja só: catalisador da imagem em movimento, dando dinamismo a um mundo onde os direitos humanos só existem na doce ficção. Mágico.

    A arte não consegue desorientar ainda mais o que o real já torna desorientado. Assim sendo, é como se o terceiro mundo, tão festejado por Glauber Rocha e estudado por Kiarostami, fosse o único cosmo que existe abaixo do manto terrestre, e o filme certamente não poderia acertar mais em sua perspectiva, nos tornando assim, e só assim, reféns da ótica de limitações culturais que um povo pode-se ver obrigado a exaltar, sem jamais conseguir abandonar essas restrições, por gerações a fio. “Se não o agrada, não olhe”, diz a mulher ao homem que a manda cobrir seu rosto, e é isso que o mundo faz a essa gente sem paz: Não olha, ignora, exceto e pelo menos quando expostos numa tela de Cinema, numa recriação de sensações.

    Em certo momento de Timbuktu, nome da cidade sitiada por meia-dúzia de extremistas em nome do deus Alá, a meditação sobre as injustiças sociais dá lugar a perícia sobre o que move uma gente esquecida, nascida numa terra maldita que parece ser, eternamente, palco de conflitos em ciclos de catástrofe, secando as lágrimas daquela gente que a ONU gosta de falar que ajuda, buscando sozinhos um futuro melhor – quem sabe, com o direito de cantar. Não há denúncia, nem apologia, mas tem a investigação da ética do poder (no caso, o poder municipal), e da aceitação dessa ética por aqueles a quem foi dito, desde sempre, a aceitar os abusos desse poder (no caso, o povo da cidade).

    E tal como em Onde Sonham as Formigas Verdes, de Werner Herzog, filme cujos ecos soam graves em Timbuktu, tudo muda e passa sobre a face da Terra neste conto moderno e universal, com leve indícios de evolução e fortes traços de retrocesso social – por mais que saibamos que a balança é injusta. Mas nem mesmo a arte, nem a tecnologia, a violência, as leis ou a religião salvam quem não vê a salvação em si mesmo, como bem atestam algumas atitudes do filme, como no ímpeto de uma garota correndo nas dunas do deserto para matar a sede de calor humano nos braços da mãe, numa tenda, no meio do dia, naquela desolação e pobreza; essa dívida da humanidade consigo mesma, que se traduzida em mar, amanhã, será mar doce dessas lágrimas tristes e alegres que hão de transbordar, e brilhar, feito o sol a meia-noite: O impossível há de chegar.

  • Crítica | A Lei da Água: Novo Código Florestal

    Crítica | A Lei da Água: Novo Código Florestal

    A Lei da Água 1

    A começar pela fala do deputado do PSOL – SP Ivan Valente, o documentário de André D’Élia busca explicitar como funciona o novo Código Florestal implantado no Brasil através de um viés positivo, tocando em questões fundamentais a respeito da preservação das matas e, especialmente, do tratamento da água em território tupiniquim.

    Didático, o filme se assemelha bastante aos reclames informativos, ainda que contenha depoimentos emotivos e emocionados, desde os mais antigos, que narram as primeiras medidas para preservação florestal assinadas por Assis Chateubriand e depois por Juscelino Kubistchek, e claro, nos tempos de hoje, mostrando como o proceder ecológico é tratado pelos atuais governantes, traçando um histórico interessantíssimo do ponto de vista de estudo de causa.

    A reunião de falas incorre sobre parlamentares de ambos os lados, tantos os políticos de esquerda quanto os de direita, inclusive sobre ativistas das causa ambiental e os opositores desta. A fala da atual ministra Kátia Abreu, enquanto Senadora pelo seu partido anterior, o Democratas, é pontual ao exibir sua inadequação ao posto que atualmente ocupa, sem muita propriedade para discutir sobre os assuntos da cadeira ministerial. Todos os dados mostrados após sua fala exibem a quantidade de latifúndios mal utilizados para a prática agrícola e pecuária.

    A edição utiliza um bom tempo da película sobre o Veta Dilma!, um abaixo assinado que colheu milhões de assinaturas contra o Código Florestal, que legitimava grande parte das ações do agro-negócio, o que comprometeria, e muito, a questão da preservação, para favorecer o Ministério do Desenvolvimento. Uma denúncia de que a base governista até então não tinha um discurso uníssono, graças à quantidade de aliados que puxavam a discussão sempre para o lado que lhe é mais conveniente.

    O caráter elucidativo do filme compete com o espirito de denúncia, contendo informações aceitáveis, mesmo ao espectador menos informado sobre a área. A transposição de ideias é bem simples, pondo o conteúdo em uma posição privilegiada, claro, sem perder a força do discurso com termos tecnobables. A fala é certeira, não faz concessões a quaisquer lados de interesse político e autoritários, evocando principalmente a popularidade da causa e a vontade do povo, que vai completamente contra os interesses dos barões da indústria.

    Um pequeno alarde é feito ao demonstrar que a Constituição é modificada pouco a pouco, graças aos remendos da lei pela bancada ruralista, que fomenta o desequilíbrio ambiental, influindo não só na ecologia, mas também na óbvia questão da convivência humana e no consumo natural da matéria-prima e dispêndio da água. As soluções propostas no filme são as mais óbvias e incrivelmente as menos adotadas, como a restauração dos processos ecológicos fundamentais, já que estes são deveres do Estado brasileiro. Depende-se fundamentalmente da implantação do Novo Código Florestal para que este funcione como prevê a lei, e comece-se a reparar os danos já implantados no país.

  • Crítica | The Culture High

    Crítica | The Culture High

    Culture High 1

    A despeito de toda a tranquilidade proveniente do uso da cannabis sativa, o filme de Brett Harvey começa violento ao mostrar uma incursão policial na casa de um possível traficante, truculento como se espera do braço duro da lei, abraçado o comportamento hostil pela parcela mais conservadora, que não teme em se desinformar e veicular mensagens sem qualquer cunho verídico ou embasamento científico. O tema central de Culture High é discutir a demonização da maconha, analisando a propaganda anti-drogas dos EUA que, em essência, não é muito diferente da vista no Brasil.

    O caráter do filme não é escondido em momento algum. Logo se abre uma discussão aberta, exacerbadamente didática, com números, demonstrações de inverdades ditas tradicionalmente e, claro, através exposição do sofisma inserido na discussão entre saúde e drogas legalizadas e não legalizadas, mostrando que o discurso lúcido passa longe de ser o principal fator na discussão. Principalmente da parte de quem condena o uso pela simples fama do que representa um “baseado”.

    Não há qualquer cerimônia para execrar o sistema autoritário de fiscalização dos EUA, além da completa ignorância por parte dos políticos responsáveis, tanto sobre os efeitos das drogas – especialmente a maconha – como  com a quantidade de dinheiro que o tráfico ilegal levanta. A força das autoridades, que punem severamente qualquer participação dentro do processo de chegada das substâncias no país. O aumento da violência não dá qualquer garantia de diminuição, tanto em lucro quanto em quantidade de material interceptado. O único fator realmente alcançado é o temor total de quem é policiado por quem o policia.

    A análise prossegue revelando a mercantilização da vida, mostrando não em números, mas em exemplos práticos, como funciona o mercado de encarceramento de pessoas, e como uma parte substancial do orçamento governamental, e que é o dinheiro do contribuinte, que mantém isto vivo. Por precisar de pessoas na cadeia que mesmo pequenas posses são tratadas como pecadores demoníacos, para justificar um sistema falido, que destrói exclusivamente os mais carentes, os que não podem pagar altas fortunas para se defender.

    Mas é o aspecto médico o mais lamentado ao longo da fita, uma vez que o uso da sativa seria muito mais barato que a enorme fama de produtos farmacêuticos que substituiria. Uma opção de Harvey em mostrar a história de um menino epiléptico, que viveu seus primeiros cinco anos tomando toda sorte de remédios, 25 mil ao todo, sem perder os tremores, contrações e alucinação. Jayden só melhorou ao usar maconha medicinal ainda em testes iniciais, com o sonho de seu pai de que se desenvolvam maiores avanços para solucionar não só o agravo de seu filho, mas também o de muitas outras crianças.

    Como em Sicko: S.O.S. Saúde de Michael Moore, há uma forte denúncia tanto da propaganda da indústria farmacêutica quanto do apoio incondicional das autoridades, demonstrando um círculo vicioso, de tráfico de influência mais escuso que qualquer uma das contraindicações. A cortina de fumaça montada em torno da bifurcação política no país piora tudo isso, fazendo com que pautas de legalizações sejam sempre postas de lado em nome de um jogo antigo, que em nada acrescenta tanto em discussões sobre rumos políticos, interna e externamente, quanto na desmoralização da face farmacêutica, por exemplo. A administração de Barack Obama, que supostamente jogaria uma luz sobre a questão por ser esta uma das plataformas de sua campanha, reverteu-se por completo e provou-se uma enorme decepção. Um governo ainda mais perseguidor que nas épocas de George W. Bush e Bill Clinton, que, mesmo em suas hipocrisias de ex-usuários, não faziam tanta força para perseguir os estudiosos da maconha medicinal.

    A realização opta por focar seus últimos momentos para glorificar a alternativa de informação e base de dados presente na internet, onde ainda não há uma presença tão forte de selecionador de audiência ou conteúdo, adotando-se o inverso da coação através da popularidade e a larga exploração na atualidade e pela tradição.

    Segundo os entrevistados, é uma questão de tempo para ocorrer a legalização. Para alguns, o otimismo não é grande, pois há o conhecimento das forças que controlam este tipo de comércio. Mas a palavra unânime é a de apelo ao término da vergonha da proibição e da completa ignorância das vidas alheias, que sofrem todos os dias com o drama da “vida bandida” causada pelo consumo da droga.

  • Crítica | Metanoia

    Crítica | Metanoia

    Metanoia 1

    Evocando um sensacionalismo abissal, usando a questão do vício em crack, o filme de Miguel Nagle se inicia com narrações em off em áudios de pessoas depondo sobre a condição dos adictos no tóxico. De nome grego, a origem da palavra Metanoia se faz no sentido de “mudança de pensamento” de seu cerne, e o termo é utilizado por muitos segmentos da igreja evangélica brasileira.

    O roteiro é narrado em primeira pessoa pelo personagem Dudu, vivido na fase adulta por Caique Oliveira e na infância/adolescência por um menino bastante diferente, sem qualquer preocupação da produção com a clara mudança de etnia entre um ator e outro. O pouco compromisso com a congruência visual é assistida nas outras personificações de pessoas em passagens de tempo. A continuidade é nula, assim como a esdrúxula troca de atores em períodos longos de tempo. Desde cedo, o rapaz sofre com sonhos e alucinações bizarras, que associam a simples desobediência infantil ao contato com demônios e figuras monstruosas.

    Produzido pela Companhia Jeová Nissi, o argumento até tenta ganhar alguma sobriedade com a presença de atores famosos, como Caio Blat, Silvio Guindane e Solange Couto. No entanto, nem a presença de profissionais gabaritados consegue salvar o texto da mediocridade. A adição aos entorpecentes é completamente demonizada, filmada em condições toscas, com situações forçadas e convenientes, a fim de fazer um discurso vazio anti-drogas.

    A cena em que Jeffe – personagem de Caio Blat  é introduzido caracteriza a síntese da má construção da fita. Jeff oferece um baseado enorme, sem qualquer cerimônia, para o pobre Dudu, volúvel e suscetível à pressão exercida por seus malvados amigos. O torpor da erva faz enxergar as pessoas sem rosto, como o sonho de outrora, como se sub-consciente o alertasse do que ocorreria com ele no futuro. Sua condição de não usuário para internado em uma clínica de reabilitação é automática. Não há qualquer construção mínima até então, somente uma estrada curta, retilínea e ordinária.

    Mesmo os dramas terríveis, de agressão dos viciados aos seus familiares, são conduzidos de modo torto, estúpido e gratuitamente chocante. As reações de ataques tanto de abstinência às substâncias quanto aos excessos do uso são constrangedoras, mesmo para os astros conhecidos.

    Mesmo o bom desempenho de Silvio Guindane, especialmente quando através do contato com Solange Couto, que interpreta sua mãe, é interessante como o viciado vivido pelo ator consegue manter uma barba retilínea e muitíssimo bem aparada, mesmo morando na rua por quatro anos, vestido em trapos e com os pés sujos e maltratados pelo contato direto com o asfalto. Os elementos visuais pesam contra as sequências, banalizando os takes que deveriam ser as melhores de toda a duração da fita, excessiva aliás, beirando os cento e vinte minutos.

    As intenções do produtor, roteirista e protagonista Caique Oliveira são ótimas, mas a tentativa de valer a palavra cristã acima dos problemas de um toxicômano se perde em meio a uma história mal contada e confusa, tropeçando normalmente nas próprias pernas, corrida por uma narração tola que só faz idiotizar o argumento que já não era forte. A direção de Nagle até tenta em vão salvar algumas sequências, com ângulos panorâmicos, mostrando a desgraça em que Eduardo se metia ao afundar no consumo do crack.

    A segunda hora é dedicada ao assistencialismo e a tentativas de reabilitação. As passagens de tempo são confusas, emulando a perda de noção de hora que Eduardo tem ao fumar. Nota-se uma gama enorme de vícios de linguagem teatral na produção do filme, especialmente nos repentes que ocorrem, mudando posturas de personagens sem qualquer construção e deixando de fazer qualquer sentido na proposta fílmica.

    Talvez, as sequências sem amarras cronológicas mostradas em Metanoia, “poderiam” (muitas aspas) funcionar em uma humilde peça de igreja evangélica, onde o crivo não é grande e a exigência é nula. Mas, em meio a um circuito de cinema tão seletivo e difícil, é um verdadeiro abuso que o longa consiga ser distribuído para as salas comerciais.

    O último ato da peça/filme revela de maneira sepulcral a condição do homem, no caso, através do causo de Eduardo, um ser diminuto e ínfimo diante do Divino, sem direito sequer ao livre arbítrio, mesmo que esta condição seja um evento garantido até mesmo nas sagradas escrituras. Os sonhos que tinha quando criança denotam que toda a derrocada que sofreria quando adulto já era prevista, e mesmo próximo de muitas pessoas ligadas à religião, nem ele, nem os fiéis tiveram a clarividência do que ocorreria.

    As intenções de Caique Oliveira ao produzir tal texto são claramente positivas, mas o viés que escolheu para apresentar o drama é equivocado ao extremo, tornando uma situação grave e clamorosa em motivo de piada e propaganda religiosa barata. Um desperdício tanto em relação ao potencial da Companhia Jeová Nissi quanto em relação ao cenário cinematográfico brasileiro mainstream. A falha de Metanoia talvez faça seus produtores amadurecerem, mas possivelmente fechará outras tantas portas para o mercado de vídeo cristão.

  • Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Precisamos falar sobre tantos Kevin, para tentar entender como se forma sua complexa personalidade. Mas que precisamos, acima de qualquer coisa, “falar com o Kevin”, talvez a principal mensagem deste filme (We Need to Talk About Kevin, 2011), cuja trama é um constante provocar de questionamentos, sem respostas conclusivas, sem vereditos sobre culpados ou inocentes.

    Os créditos finais já haviam terminado, mas a película parecia permanecer intensa e dinâmica na minha mente, até que o latido do meu cachorro me trouxe de volta à realidade. Não que a história não estivesse, indissociavelmente comprometida com tantas realidades, em seu foco estrutural, e nas ramificações sugeridas subjetivamente. Mas até então eu continuava sentindo o peso e o cansaço de limpar “paredes” sujas de tinta vermelha, e percorrer o silêncio dos “corredores”.

    Percebi que a análise a ser feita precisa abranger dois vieses distintos. E acabei percebendo também que os mesmos acabam se tornando complementares, uníssonos na composição da narrativa cinematográfica.

    A diretora Lynne Ramsay fez um brilhante trabalho ao filmar uma adaptação do livro de Lionel Shriver, cujo roteiro foi escrito a quatro mãos (Ramsay e Rory Kinear). O filme recebeu várias indicações pelas organizações que premiam o cinema, ganhou o Festival de Londres e a Menção Especial ao Mérito Técnico no Festival de Cannes.

    O romance em si, publicado em 2003, é uma narração, em primeira pessoa, de Eva Khatchadourian, a qual desabafa nas cartas para o marido a luta travada entre a liberdade desejada e a maternidade imposta, assim como a angústia sobre a origem dos comportamentos que tiveram como desfecho a tragédia que caiu sobre sua família.

    A cineasta, embora mantendo o olhar de Eva como lente narrativa, preferiu poupar na oralidade e “desenhar” este suspense psicológico através da inteligente montagem de Joe Bini, da belíssima fotografia de Seamus McGarvey, e da adequadíssima trilha de Jonny Greenwood. Bini usa cortes secos para intercalar as transições cronológicas e, artisticamente, cria um painel de semelhanças subjetivas entre mãe e filho, proposto pela cineasta, como por exemplo na cena em que Eva mergulha o rosto na água, e ele se transforma, enquanto emerge, no rosto de Kevin.

    McGarvey sabe dar a a fluidez certa (ou a falta desta) e a intensidade vibrante (ou opaca) ao vermelho que permeia os 110 minutos de imagens, assim como sugere as recordações que vão sendo apagadas por outra realidade, quando altera o foco daquelas. Greenwood intensifica tudo isto com uma trilha que caminha paralela à angustia que cobre todo o enredo, com acordes que chegam a nos causar desconforto. Por último, e acima de tudo, há a impecável atuação de Tilda Swinton (Eva), indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz (2012) e premiada pelo Cinema Europeu, na mesma categoria. Temos ainda a qualidade do desempenho de John C. Reilly (Franklin, o marido) e Ezra Miller (Kevin na segunda fase).

    Ramsay recorre, sabiamente, à identificação da angústia (ou sentimento de culpa) de Eva através do vermelho que, além de ser constante, inicia o filme, mostrando a protagonista mergulhada nele, e aparece em repetidas cenas (que servem de ponto de transição entre o pós tragédia e as lembranças) onde a mãe de Kevin limpa as paredes (pintadas por outras pessoas, numa manifestação de vandalismo), desesperadamente, como se isso pudesse limpar também tudo o que tivesse levado ao trágico desfecho.

    Nos momentos de negligência, de irritação, e até mesmo de tentativas em ser amável com Kevin, o desconforto de Eva é quase palpável, e a cineasta nos sugere que isso talvez seja a curva crescente de uma revolta que se originou numa gravidez não desejada. O bebê parece ter sentido toda a rejeição, e se manifesta em incessantes choros, os quais provocam uma das cenas mais marcantes do filme: quando Eva para o carrinho em frente a um canteiro de obras, quase em estado de êxtase pelo som da britadeira, pelo fato de este se sobrepor ao choro.

    A relação mãe/filho mergulha na dualidade do frágil e do intenso, na ação e reação, sem que fique claro de quem vem uma ou outra.

    Mas a única coisa que a diretora nos deixa clara é que o filme não pretende definir vítimas ou culpados, não tem a intenção de promover um juízo de valores, não permite a simples observação da superfície das personagens. O filme envolve-nos numa busca por um olhar mais profundo, num emaranhado de perguntas, e mesmo que pensemos ter encontrado algumas respostas, em algum momento, o que teremos ao final da película será um ótimo tema para reflexão. E a reflexão consiste em quê? Em mais questionamentos.

    Contar mais alguma coisa sobre a obra, (já que se trata de um suspense, meticulosamente elaborado para que nada seja explicitamente revelado ou explicado), me tornaria spoiler. No entanto, preciso falar da questão central da trama e, assim como a autora ou a diretora, não expor diagnósticos, mas criar pontos de reflexão.

    A família é o primeiro grupo com que a criança interage, e do qual ela extrai os mais básicos modelos de comportamento, partindo para a construção de seus valores. No entanto, outros fatores, como o meio externo, também terão uma grande influência nas suas escolhas e na sua conduta, além de que devemos também contar com o subjetivo de cada um. A diversidade de características pessoais é imensurável, é isso que torna o ser humano apaixonante, em sua complexidade.

    Mas é irrefutável que certas atitudes se constroem através da prática, dos conceitos internalizados, da compreensão do outro e de si mesmo e dos diálogos estabelecidos. Pois bem, o que menos se percebe nesta família, são exatamente os diálogos, quer seja entre Kevin e qualquer outro dos membros, quer seja entre os pais, sobre as variáveis do misterioso comportamento que o mesmo vem apresentando desde criança.

    Não se trata de buscar um culpado para a violenta conduta de Kevin. Trata-se de estar atento para as suas linguagens, e aprender a decifrá-las, inclusive nas entrelinhas (nem que para isso seja necessária a ajuda de um terapeuta). Trata-se de não ver apenas aquilo que se quer ver porque é mais confortável ou, quando se enxerga, não tentar “consertar”, com comportamentos autopunitivos, num esforço de enfatizar a presença através de uma pressuposta atenção, quase mecânica. Trata-se de procurar desde sempre, um equilíbrio no cuidar, sem tender à autoridade ou à permissividade, exercendo um controle e estabelecendo regras, mas oferecendo um apoio suficiente para a construção da autonomia.

    Não existe uma fórmula! Pais não estão isentos de falhas, e filhos nem sempre aprendem o que ensinamos, da forma como ensinamos! Mas temos o compromisso de zelar pelo clima emocional em que a criança cresce, promovendo um desenvolvimento saudável.

    Um comportamento antissocial é inato ao ser humano ou decorre do ambiente?

    Mais uma pergunta que permanecerá sem resposta, como tantas outras!

    Precisamos Falar Sobre o Kevin é um filme imperdível, por sua qualidade cinematográfica, por toda a reflexão a que a trama nos conduz, e pela mensagem que ele nos deixa: precisamos falar com Kevin, com Eva, com Franklin!

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Mad Max: Estrada da Fúria

    Crítica | Mad Max: Estrada da Fúria

    Tomando como base uma ordem mundial diferenciada, pautada no exacerbo do capitalismo e exibindo uma face ainda mais selvagem dos escritos de Marx e Engels, Mad Max: Estrada da Fúria resgata o cinema de George Miller, refundando a franquia que o fez famoso, renovando-a para uma nova geração de aficionados, mas sem ignorar os fanáticos pela antiga trilogia.

    A primeira cena inicia-se com um discurso inflamado de Max Rockatansky (Tom Hardy), lembrando-se de sua condição de cavaleiro solitário, como na outra encarnação de Mel Gibson, intensificada ainda por um trauma que proporciona a si um fantasma, seu tormento, recaindo sobre sua cabeça como uma cachoeira que lava seus pensamentos, inundando sua mente de culpas. A adrenalina destas sensações ataca-o de modo irônico, deixando-o mais uma vez desatento, a ponto de ser capturado, ficando uma boa parte dos primeiros momentos sem sequer ser citado.

    Miller mostra um novo fôlego em sua direção, se distanciando do que fizera na franquia Happy Feet: O Pinguim, apresentando o universo que estreou em 1979 no primeiro capítulo, e fundamentado em 1982 com A Caçada Continua, acrescendo, claro, a estética videoclíptica, não deixando dever nada à direção de realizadores “massavéio”, mas abordando de modo adulto a fita. As cenas de ação têm uma continuidade em estrada impressionante, não devendo em nada tanto aos recentes À Prova de Morte de Quentin Tarantino, quanto a Bullit. As cenas e câmera retrasada têm muito mais significado que os takes adorados por Zack Snyder, remontando a influência de Sam Peckinpah, tanto no ritmo quanto na visceralidade dos momentos violentos do filme.

    A abordagem lembra a de um road movie, por apresentar cenas titânicas– e em sequência – sobre quatro ou duas rodas, em terrenos arenosos, relembrando o eco da predação humana em relação ao seu próprio habitat. As conclusões e reflexões estão espalhadas pelos cenários, e servem a uma análise mais profunda por parte do público, que ainda tem uma miscelânea de sequências interessantíssimas, incrivelmente agressivas, mas sem tanta profusão de sangue ou gore.

    Outro aspecto interessante é a ausência de verborragia, fazendo do roteiro algo sucinto em matéria de falas. Estrada da Fúria é um filme essencialmente visual, seja pelas planícies belas, pelas falésias ou pelo visual grotesco dos antagonistas. O fetiche, tanto das personagens belas, como das parideiras que sofrem a ação de um déspota tirânico trazendo o sex appeal para uma figura grávida, contrasta com a beleza quase infinita de Charlize Theron, que mesmo masculinizada em sua Imperator Furiosa, consegue arrancar um misto de força e sensualidade, concentrando em si quase todo o conteúdo homoafetivo de todos os episódios da cinessérie, sem ter nada de caricatural. A riqueza dos personagens periféricos consegue compensar – mais uma vez – o fato de Max ser um coadjuvante de luxo, na fita.

    A trajetória de Rockatansky é mais uma vez de subida, passando da eterna solidão para a solidariedade capaz de gerar nele um complexo suicida. Max prossegue um pária, possivelmente por ainda não ter superado a perda dos seus no filme setentista, algo agravado, é claro, pelos espectros que o perseguem. O deslocamento dele é notado a todo momento, mesmo quando encontra sobreviventes, pessoas que estariam próximas de sua condição singular, inclusive quando os aventureiros retornam ao lugar onde foram oprimidos.

    A solução final abarca uma mensagem de compartilhamento, que, em análises mais conservadoras, pode ser associada à mensagem de Jesus, que exigia a divisão de riquezas dos que pediam para segui-lo, assim como também abraça uma prática mais socialista, acenando até para alegorias ao texto de Gene Rondenberry na franquia Star Trek. Miller apresenta um blockbuster maduro, inteligente, cuja trilha sonora e edição de som são absurdas e acrescentam demais à trama, ajudando a construir a atmosfera de pavor e enigma. Estrada da Fúria possivelmente abrirá uma sangria com novos rumos para a franquia, apresentando um mundo rico, cujas aventuras e desventuras têm tudo para captar a atenção de espectadores pelo mundo inteiro, e com um protagonista que não deixa nada a desejar à abordagem que Gibson havia inaugurado.

    Ouça nosso podcast sobre a série Mad Max.

  • Crítica | O Sal da Terra (2014)

    Crítica | O Sal da Terra (2014)

    O Sal da Terra 1

    Focado na experiência artística do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, Win Wenders apresenta um filme que se inicia poético, com a pretensão de reverenciar a obra do artista através de relatos narrados a partir de seus mais belos materiais. As imagens remetem à reflexão do homem que retira seu sustento do registro visual da vida, optando por ângulos diversos, sempre em busca de uma visão não óbvia do que a natureza proporciona ao homem e a todas as criaturas.

    A direção compartilhada com Juliano Ribeiro Salgado, herdeiro do biografado, ajuda Wenders a mergulhar ainda mais fundo na intimidade de Sebastião. A intenção do artista é, por meio das imagens congeladas, retratar os sentimentos e um fragmento da vida das pessoas que clica, tornando físico e eterno o momento em que a máquina fotográfica dispara.

    Mesmo diante de aspectos desfavoráveis à narrativa fotográfica, Salgado mostra uma habilidade ímpar em montar suas histórias, além de um esmero essencial para que suas reflexões façam sentido. O documentarista permanece ao lado do personagem principal, acompanhando cada agrura e manobra do retratista. No entanto, as sequências carecem de dinamismo, ficando em grande parte focando momentos demorados e/ou parados, gerando um certo enfado no espectador que se incomoda com tramas vagarosas.

    As belas imagens tomam de assalto a tela, algumas vezes compensando a forma gradativa de contar a história. Mas não conseguem esconder o principal defeito do filme, com o estilo e formato superando o conteúdo. As belas fotos são méritos de Sebastião, não de Wenders e Ribeiro, que tiveram, é claro, o trabalho de pinçar as melhores gravuras, cujo acervo era riquíssimo.

    O grafismo da morte chega a chocar mais que qualquer outra estética, exibindo o genocídio, assassinato e extrema miséria dos desabrigados e desalojados que sobreviveram à crueldade da guerra. Impressionante e sensacional é notar como as crianças se adaptam ao ambiente hostil, por vezes ainda resistindo à ingenuidade e inocência em seus olhares, pedaços de suas almas que não conseguem negar o que sentem, sem qualquer restrição das ações adultas.

    O tributo ao brasileiro torna-se mais intenso ao analisar a obra Gênesis, que envolveu  uma viagem ao redor do mundo, onde os registros abarcavam paisagens imensas. A contemplação da natureza inclui o registro da nudez de tribos indígenas, cujas cores eram cortadas pelo preto e branco da revelação, em um contraste interessante de como as sociedades humanas vivem diversamente, mesmo que jamais se toquem. O viés ecológico é valorizado, mas ganha ares de panfletarismo bobo que tenta comover de forma barata seu público, abordagem em nada parecida nem com a obra de Sebastião Salgado, nem com a de Win Wenders. Por mais improvável que seja, faltou inspiração aos dois realizadores do filme, que até conseguem superar documentários anteriores a respeito da personagem, mas que não têm qualquer mérito nisso.

  • Crítica | Entre Abelhas

    Crítica | Entre Abelhas

    Entre abelhas 1

    Unindo grande parte dos que produzem o conteúdo para o canal de vídeos Porta dos Fundos, incluindo entre eles o diretor e corroteirista Ian SBF, além de grande parte do elenco, o longa Entre Abelhas remonta uma tragicômica jornada que discute causas sérias, apesar da face jocosa de seu principal astro, Fábio Porchat. O ator/comediante apresenta uma afetação poucas vezes vistas em sua extensa carreira, interpretando o melancólico – ao menos por momento – editor de vídeo Bruno, reforçando a aura de metalinguagem que permeia o roteiro.

    Bruno se vê em uma situação calamitosa com o fim de seu casamento com Regina (Giovana Lancellotti) e a recente mudança para o quartinho no apartamento de sua mãe (Irene Ravache), tendo toda a configuração de sua rotina mudada, apesar dos esforços contínuos de seus amigos mais próximos. Para piorar a situação, sua contraparte semi-fraterna é vivida por Marcos Veras, que interpreta Davi, uma figura quase tão pedante quanto a carreira do assistente de palco de Encontro.

    Em meio ao cenário caótico e depressivo que se tornou seu cotidiano, ocorrem eventos entrópicos, com lampejos de possíveis alucinações no dia a dia do rapaz. A câmera SBF o persegue, servindo como um stalker da situação, antevendo a questão que só seria revelada após muito tempo de tela, remetendo à solidão em que Bruno se meteria.

    Porchat consegue imprimir uma atuação inspirada, sendo vívida dentro das limitações do próprio artista, que se vale dos próprios esforços no roteiro para não se expor além do devido. Sua persona invoca um homem comum, que se vê em uma situação estranhíssima, fazendo alusão a alguns maus modernos, entre eles a depressão, a sensação de isolamento e agorafobia. Aos poucos, o profissional de áudio visual vê as pessoas sumindo com uma incidência cada vez maior, e isso faz com que entre em pânico, lançando mão de uma gama de prováveis soluções, alternativas das mais esdrúxulas.

    Os elementos visuais do roteiro ajudam a compor o belo quadro que se pinta. O uso contínuo do transporte público por parte do personagem, mesmo tendo ele um veículo, remete ao desespero por uma coletividade, o completo inverso da solidão que vive e que foi agravada pela nova “condição”. A sensação de que está em uma eterna transição também se manifesta através das caixas que ocupam a casa de sua mãe, nunca desfeitas, fruto da necessidade que têm de não aceitar seu novo estado conjugal.

    O desespero de Bruno é tanto que ele faz algo impensável, e começa a se consultar com um psicanalista, com o qual trata de contar cada possível trauma de sua vida, tudo obviamente em vão. A negação do óbvio não garante qualquer alívio a sua alma, pelo contrário, só piora o teatro agridoce a que se submete, fazendo de seu oikos um palco para figuras bizarras e grotescas, mesmo aqueles que o cercaram a vida inteira.

    Apesar da narrativa não usual, especialmente se comparada à carreira dos artistas, o filme corre bem. É curto e grosso em sua abordagem, mas transborda riqueza de detalhes em relação aos sentimentos, dissabores e emoções nele compreendidos. O final beira o inconclusivo. Mesmo diante da possibilidade de cura, o desfecho não consegue ser otimista, uma vez que a mostra de que alguma recuperação pode ocorrer se manifesta em uma pessoa que vende afeto, demonstrando a fala do psiquiatra de que o subconsciente de Bruno é quem escolhe quem some e quem fica, zerando todos os que não conseguem resolver sua carência. Diante das teorias, Entre Abelhas consegue ser cativante, empático e moderno, sem apelar para piadas fracas, nem pra maneirismos exagerados. Uma história tão comum que poderia ser verdadeira.

  • Crítica | Mad Max: Estrada da Fúria

    Crítica | Mad Max: Estrada da Fúria

    Mad Max surgiu na década de 1980 como um representante dos filmes de baixo orçamento australianos, em específico o clássico O Menino e seu Cachorro. Tornou-se um western moderno em sua continuação (Mad Max: A Caçada Continua), e posteriormente garantiu traços mais claros de sci-fi no terceiro, Mad Max: Além da Cúpula do Trovão, que, apesar de mais heterogêneo e desconjuntado, é também o maior sucesso da franquia até então. Quando lançado, este filme alçou Mel Gibson ao status de estrela e redefiniu o cinema de ação e o futuro distópico no cinema.

    Em Mad Max: Estrada da Fúria, Max Rockatansky (Tom Hardy) é um ex-policial rodoviário que tem sua família assassinada e se vê às voltas de um mundo onde a água e o combustível são escassos, fazendo das estradas locais dominados por gangues de todo tipo. Acidentes nucleares mutantes são comuns, a terra é árida e infértil, e o mar é apenas sal. Nesta espécie de reboot (O filme se localiza entre o segundo e o terceiro Mad Max, ficando na penumbra da classificação), pode-se ver o quanto a mitologia compreendida neste universo solidifica-se e personifica essas três vertentes pelas quais passou George Miller, diretor dos quatro filmes da franquia, para estabelecer seu mundo pós-apocalíptico durante sua, até então, trilogia. É salientado aqui a tradição western do herói sem passado e sem nome vivido por Clint Eastwood na Trilogia dos Dólares, com sua moral ambígua e egocêntrica, destinado a lutar contra seu próprio caminho em uma jornada de destino exploratório, onde as leis são forjadas ao sabor das necessidades e desta moral de quem é sobrevivente. Este anti-herói define-se na busca por redenção, e a redenção neste caso resume-se na busca de um futuro que antes precisa credenciar-se como digno de tão escassa esperança.

    Dentre todos os aspectos de um filme, a narrativa é seu recurso mais poderoso, e o único essencialmente cinematográfico. Sem narrativa não há cinema. Extremamente visual, não há trama a que se ater em Mad Max, sendo possível contar quantas palavras Tom Hardy recita durante os 121 minutos de projeção. Nada mais natural, já que a solidão do isolamento e da culpa torna palavras amargas, e assim Max grunhe os primeiros verbos após diversos minutos de muita areia e vento.

    Ideologicamente atrelado às suas raízes em filmes de baixo orçamento, o diretor filma seus acidentes como quem pinta uma obra de arte, abusando de quadros abertos, para que a audiência aprecie e se deixe levar pela diagramação bem pensada de cada uma das cenas. Sendo assim, Mad Max é, antes de tudo, um exercício extremo de narrativa. Detentor deste poder, George Miller preocupa-se em contar sua história através de olhares, ritmos e a inserção do espectador para dentro da corrida a qual o personagem Max assume ao lado da Imperatriz Furiosa (Charlize Theron), a fim de levar um grupo de mulheres, “As Parideiras”, para longe do julgo violento do líder Inmortal Joe (Hugh Keays-Byrne, ator que viveu o vilão Toecutter do filme original). Outrora imperatriz de um pedaço odioso de mundo, Furiosa assume a missão quando, durante sua fuga dos “Meninos da Guerra”  os servos de Joe , seu caminho cruza com o de Max.

    Como todo bom sci-fi, Mad Max olha clinicamente para o presente, e dele extrai o futuro. Peça ímpar da cultura pop, é possível observar como a construção daquele mundo remete à composição de nossa cultura atual, onde palavras que hoje são veladamente adoradas tornam-se símbolo divino por comparação à nossa própria cultura, e a cultura passada deturpa-se para formar a próxima, como numa representante rococó do passado. “Divindades” de hoje, como o automóvel, o McDonald’s, a Coca-Cola, ou peças de mitologias nórdicas, tornam-se o portfólio cultural do mundo de Mad Max, e essa mistura é o toque de genialidade de Miller ao usar da bagagem comum do espectador para inseri-lo naquele ambiente de maneira familiar, mas sem abandonar a estranheza que um representante das culturas desérticas que deram origem à civilização cristã teria ao ver o mundo de hoje.

    A religião atua como aspecto importante aqui, e assim como nas religiões desérticas (Cristã, Islâmica e Judaica), a solidão e aridez do deserto levam à busca por atenção e perdão divinos, salientando que só há vida gloriosa se for destinada ao paraíso, já que a vida em carne e osso resume-se à penitência. Para salientar este aspecto como crítica, a religião é o destino e forma de vida dos Meninos da Guerra, especialmente do personagem de Nicholas Hoult, tornando-os capazes de qualquer tipo de ato para galgar sua busca sagrada. Na contrapartida, personagens oram diante do medo, unindo diversos gestos ritualísticos das religiões atuais. Quando uma das parideiras é perguntada sobre para quem rezava, denuncia: “Para seja lá quem estiver ouvindo.”

    Ainda em seu papel como produto da cultura pop, Mad Max é o “Transformers que deu certo”, pois é capaz de relacionar cenas de ação grandiosas e montá-las de maneira a ir além de um simples filme, originando uma experiência sensorial. Conhecedor do cinema, George Miller usa inclusive recursos cinematográficos pouco considerados pela crítica no intuito de fazer de seu filme algo inenarrável, como o recurso informal conhecido por Rule of Cool. Normalmente exemplificada nos verbetes de dicionários cinematográficos como “uma caveira tocando guitarra no topo de uma montanha”, a expressão justifica o fato de algo ser considerado legal, como uma peça de enfeite estilístico que vale por si só. Em suas alucinações com a filha falecida, Max visualiza um ambiente de loucura e aspecto visual propositadamente datado e que remete a peças de filmes B.

    A decisão pelo uso de efeitos práticos torna cada frame da película inacreditável, fazendo surgir a dúvida sobre quantas pessoas morreram durante as gravações. Tal coragem é capaz de demonstrar o pleno domínio e lucidez da produção sobre aquilo que é visto em tela, tornando capaz a realização de um filme de 1980 nos dias de hoje. Apesar de truculentas, as cenas de perseguição estão lá não apenas para dar ao filme a pecha de blockbuster ou para atrair o público de maneira fácil, mas sim para interceder pela narrativa. No cinema de ação, os diálogos são traçados com socos, explosões e pela necessidade da perfeição dos gestos. O cinema de ação baseia-se na ideia de domínio sobre o espaço e o tempo; o vencedor é aquele que atira primeiro, alcança mais longe, corre mais rápido e atinge o alvo, ou seja, aquele que melhor controla estas duas variáveis físicas. Nenhuma cena de ação seria relevante sem trazer consigo a significância correta, e pelo domínio do espaço-tempo, Mad Max está entre os melhores representantes do gênero no cinema.

    Atualizado e representante de seu tempo, talvez por algumas gerações de filmes, George Miller reconhece o alcance da ficção científica e traz questões sobre o feminismo e o papel da mulher na sociedade, fazendo da Imperatriz Furiosa a verdadeira protagonista do filme, sendo ela que garante o mote e o desenrolar da trama (e quem dá nome ao subtítulo do filme). Num visual poderoso, é uma personagem que carrega a amargura de uma vida de violência e privações, resumidas em mutilações corporais, na habilidade em sobreviver e na profunda necessidade de redenção. Este poder de síntese pode soar raso numa primeira análise, ou para quem necessite de diálogos mais expositivos, mas é mais do que o necessário para representar neste personagem o estado da arte daquela sociedade.

    Já Max é a própria paisagem. Tão lacônico quanto o próprio deserto, a falta de comunicação reflete um ambiente onde não há espaço para o diálogo na resolução dos conflitos. Embora não seja o protagonista clássico, Max é a balança daquele mundo, é um agente do destino fatalista da Terra pós-apocalíptica, que transforma pessoas em aberrações sociais, incapazes de garantir valor à vida. Essa balança não é justa e sua moral é maquiavélica, mas é a estrada que resta para seguir.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

    Ouça nosso podcast sobre a série Mad Max.

  • Crítica | Cinderela (2015)

    Crítica | Cinderela (2015)

    cind

    E viveram felizes para sempre (Ninguém precisa saber o que vem depois, porque o depois existe tanto quanto Branca de Neve e Aladdin). Porque viver nas “delícias da incerteza” para sempre é o melhor ponto final que um filme poderia ter, sendo que, mesmo a um esquizofrênico, a vida não acolhe infinitos. Mas no cinema, num livro, na arte, querer saber o depois é demais, não interessa. Perde-se a elegância, e o sonho já começa a virar real. Perde-se a graça, indo embora o que faz do sonho um sonho – nada mais, nada menos. E sabe quando você assiste a um filme e dois minutos depois do início você sabe perfeitamente como tudo vai ser? Essa obviedade de sentidos é o grande trunfo de Cinderela, a melhor e mais serena releitura do filme que salvou os estúdios Disney em 1950, fato. Um bom exercício de interpretação é assistir a esse encantador manifesto de Kenneth Branagh e emendar com a versão Romero Britto de Alice, de Tim Burton. O que há de diferente e qual proposta (intenção) combina e enriquece mais a abordagem (realização)? É tudo apenas uma questão de estilo e gosto? Perguntas que convido o leitor a responder.

    Um manifesto a favor do que de melhor o Cinema pode oferecer a um material caído no colo da cultura popular – a jovem borralheira de madrasta má, blábláblá –, e que por isso não carece de cópia ou desconstrução da mitologia original. Um manifesto pelo direito de dar continuidade à magia sem vomitar regras, e principalmente, de seduzir o público pelo resgate dessa magia em tempos tão realistas quanto o nosso. Choram as rosas, poesia é o que não falta, e cor, clareza nas ideias e olhos nos olhos, dança e sorrisos, lágrimas e trilha sonora num filme-spoiler assumido e orgulhoso por ser assim: deliciosamente previsível. Um filme renascentista, no melhor uso do termo, em que a harmonia entre os conflitos é inquebrável, como nas peças de Shakespeare, e o luto do erudito é incabível como nos poemas de Florbela.

    Tudo parece tão frágil e tão quebradiço que o respeito e admiração ao universo da gata borralheira são inevitáveis. A própria construção do caráter amargo da madrasta gira em torno da magia: é simplesmente uma mulher enterrada numa realidade burguesa de aparências e que não pertence ao mundo de emoções puras de nossa princesa, num belíssimo jogo de figurinos que parecem disputar na tela, senão pelo ótimo equilíbrio presente entre os elementos visuais, a quem isso possa interessar, qual o mais belo. O cineasta e romântico Branagh (o professor Lockhart do segundo Harry Potter) faz de Cinderela uma alternativa dialética à celebração vazia do novo, e uma ovação declarada às glórias indiferentes às mudanças do tempo. A história é contada como se fosse da primeira vez, exaltando e promovendo mitologias na pegada mais deslumbrante e direta possível, com o gato da malvada perseguindo os ratos tratados com amor pelo coração inocente, por exemplo, numa clara metáfora dos abusos a ser cometidos ao longo do conto.

    Entre cenas criativas (a transformação da abóbora em carruagem e da carruagem em abóbora são extraordinárias) e a preservação da elegância da história refletida na fluidez dos planos, a Disney finalmente combina, aqui, a evolução do Cinema com a necessidade do espetáculo para assegurar uma bilheteria alta, sem esquecer-se do seu próprio estilo de criação épica. A vontade não era essa, mas a fábula humilha quaisquer outras versões recentes do lendário estúdio americano, entre juízos de fato e valores que mais remetem a Princesa Kaguya, animação sublime dos estúdios Ghibli, de Hayao Miyazaki.

    Era uma vez uma comparação válida, tamanho o esmero concedido e júbilos derivados, inclusive, de atores inspirados em condições que favorecem suas presenças. E assim como a antiga releitura francesa de Jean Cocteau para o clássico A Bela e a Fera de 1946, em 2015, com Cinderela a nos encantar, temos uma obra ciente do que pode ser e do que não precisa ser, e que por isso se compromete a honrar o passado sem deixar de conseguir novas opções, para que as visões e os vastos compromissos da arte possam ser, felizmente para sempre, recriados a partir de suas fundações.

  • Crítica | Jogada de Mestre

    Crítica | Jogada de Mestre

    Jogada de Mestre - poster
    Diretor responsável pelas duas partes finais da trilogia sueca Millennium, William Brookfield retoma um fato real acontecido em 1983, quando um dos presidentes da companhia Heineken foi sequestrado por um grupo de amigos, sucedendo uma ação destacada na imprensa como um dos resgates mais caros da história.

    Jim Sturgess, Sam Worthington e Ryan Kwante estrelam Jogada de Mestre, produção que parece testar a popularidade destes atores ainda em início de carreira com apoio de Anthony Hopkins como coadjuvante, um nome de peso para dar credibilidade à trama. Vivendo um momento delicado em um empreendimento realizado em conjunto, os amigos decidem mudar de vida após um empréstimo negado pelo banco. Diante desta adversidade natural, evitam qualquer conceito moral e escolhem o sequestro de um homem rico como a maneira de lhes salvar.

    A situação crítica vivida pelo grupo se apresenta nos primeiros momentos da produção, mas sem a carga dramática necessária que justifique uma transgressão deste porte. O grupo arquiteta o sequestro com detalhes, realizando o assalto a um banco para construir, dentro de um galpão, o cativeiro no qual ficará o homem. Enquanto aguardam a resposta para o pedido de resgate, o tempo da ação se torna maior do que o esperado, e embates começam a surgir no grupo.

    O roteiro escrito por William Brookfield se baseia no livro de Peter R.  de Vries, que também assina o roteiro,  o qual é desenvolvido a partir de depoimentos que apresentam a visão de um dos sequestradores. No filme, porém, a história transcorre de maneira linear, apresentando um grupo como um todo. A ausência de um ponto específico não traz nenhuma particularidade para a narrativa. Os atores centrais, que sempre representaram personagens carismáticas em outros filmes, não desenvolvem nenhum aspecto que faça o público ao menos torcer temporariamente por eles. Assim como o veterano Hopkins faz uma interpretação no automático representando o personagem rico que parece não se importar com o sequestro, sentindo falta apenas do ambiente de conforto onde normalmente vive.

    Permanece a impressão de que a trama deseja apenas uma apresentação e dramatização dos fatos, sem nenhuma profundidade ou empatia com personagens e dramas envolvidos em um sequestro. O resultado é uma história comum e apática que nem mesmo o prestígio do nome de Hopkins faz valer a exibição.

  • Crítica | O Irmão Mais Esperto de Sherlock Holmes

    Crítica | O Irmão Mais Esperto de Sherlock Holmes

    irmão mais esperto de Sherlock Holmes 1

    A comédia de Gene Wilder, escrita, dirigida e protagonizada pelo artista, começa numa atrapalhada cena do servil homem no Palácio de Buckingham, em 1891, ano em que o “detetive imortal” pereceu segundo o original O Problema Final. Como o detetive de Baker Street (Douglas Wilmer) – apresentado numa cena hilária, para logo após sair do filme travestido de mulher –, tem de se ausentar, encarrega seu irmão mais moço de resolver os casos mais urgentes. Sigerson Holmes sempre vivera à sombra do irmão mais famoso.

    O 1° longa dirigido por Wilder traz uma versão jocosa do mito Sherlock Holmes, com pastiches à maneira da sua comédia, tomando emprestado o humor típico de sua filmografia, especialmente nas parcerias com Mel Brooks. O teatro de absurdos presentes no filme é vasto: uma máquina de esgrima que é acionada com o pedalar da bicicleta; trechos inteiros cantados como em um musical; um padre eletrônico no covil do vilão movido a moedas; uma batalha acima de uma carruagem onde os agressores se municiam de luvas e sapatos gigantes etc. A forma do comicidade é notadamente a tentativa de um norte-americano emular o nonsense do humor inglês.

    Sigerson tem o seu próprio Watson, o Sg. Orville Stanley, maravilhosamente executado por Marty Feldman, e também possui uma Irene Adler às avessas, com Madeline Kahn fazendo sua Jenny Hill. As piadas do roteiro são pontuais e fazem muito sentido para quem conhece a história do detetive e a obra de A. Conan Doyle, inclusive no comportamento do protagonista, completamente desligado, só encontrando as pistas quando elas lhe caem no colo – o total avesso do investigador completo que é o Holmes clássico. Sigerson é um Sherlock cru, impulsivo e desatento ao extremo, ignora o óbvio de uma forma extremamente atrapalhada, quase sempre sendo superado por seu auxiliar Mr. Stanley. O humor físico de Gene Wilder cabe muito bem à trama e maximiza a inabilidade do caçula Holmes.

    A meia hora final perde um pouco do ritmo: as piadas se repetem muito e parecem estar na esteira das primeiras. O quadro melhora substancialmente com as reaparições de Madeline Kahn e seu belíssimo semblante, além, é claro, de sua portentosa voz. Os momentos de perseguição em meio à execução de uma ópera tem um tom de inacreditável e inescrutável absurdo, e mesmo com tudo isso o show não para.

    O quarto onde se armazenam os manequins, bonecos e apetrechos do teatro é por si só um lugar amedrontador, e o duelo de espadas entre Sigerson e Moriarty (Leo McKern) é bem filmada, emulando os duelos dos filmes de Errol Flynn de uma forma debochada. O irmão famoso estava o tempo todo à espreita, incógnito, auxiliando o protagonista, prestando a ele uma distração em seu momento de maior melancolia. Apesar da crueza na direção – a qual melhoraria com o passar dos anos –, Gene Wilder tem uma atuação bastante à vontade, sem amarra nenhuma. Seu talento humorístico funciona muito mais assim. A medida entre a liberdade artística e o respeito à obra original é perfeita, pois não há nenhum excesso na película absolutamente execrável, pelo contrário, esta obra só enriquece o mito de Doyle.

  • Crítica | Velozes e Furiosos: Desafio em Tóquio

    Crítica | Velozes e Furiosos: Desafio em Tóquio

     Velozes e Furiosos Desafio em Toquio 1

    Sean Boswell (Lucas Black) nem precisa sair de seu país para demonstrar o quanto é deslocado. Nas primeiras cenas, no trabalho que ocupa como mecânico de carros, ele olha impassível para um ato de bullying, mas é incapaz de agir contra aquilo, como se não houvesse em seus atos força de caráter o suficiente para estabelecer a justiça. Seu ânimo é mostrado antes da primeira corrida, ao aceitar as provocações de um valentão, que além de o agredir, ainda põe a própria namorada como prêmio pela disputa.

    Os prejuízos à propriedade pública fazem o garoto problema viajar para o outro lado do mundo, no filme mais difuso da franquia Velozes e Furiosos, sem qualquer dos personagens antes mostrados. A rebeldia de Sean é um pouco explicada pela presença de sua voluptuosa mãe, que usa da própria sensualidade para aplacar os erros do filho. Cansada de tentar mudá-lo sempre, é ela quem decide enviar o rapaz para Tóquio para morar com seu pai, sendo assim transferido o problema para o pai relapso, que o esquece no aeroporto.

    Não demora muito para Sean encontrar problemas, se afeiçoando pelos poucos personagens não asiáticos presentes em tela, como o negro falastrão e muambeiro Twinkie (Bow Bow) além da bela Neela (Nathalie Kelley), que namora outro superficial garoto problema, D.K. (Brian Tee), que teria envolvimento com a Yakuza. Para que haja uma disputa de egos machões, há uma outra intervenção, do único oriental que não é retratado de modo xenofóbico. Han é um rapaz comedido e sábio, afeito a paz mesmo sendo um contraventor, o que faria do seu intérprete Sung Sang, uma persona frequente na franquia.

    É o carro de Han que Sean usa para disputar seu primeiro drift, e, ao ser derrotado, o americano é cooptado pela lábia do rapaz, semelhante à relação em VF 1, de Dom e Brian. A partir daí, Boswell começa a dever favores, fazendo um sem número de deveres esquisitos, como ser o seu chofer, e ser expulso de uma sauna vestindo roupas, mesmo que em poucos instantes estivesse semi-nu.

    Ainda que o roteiro de Chris Morgan seja ruim e apesar de Sean não ter metade do carisma ou talento com o carro dos outros protagonistas, é neste filme em que é apresentado o primeiro personagem tridimensional da franquia. Han não é puro magnetismo visual, tanto é verdade essa afirmação que é a partir dele que Sean começa a mudar seu ímpeto e enxergar no seu pai semelhanças consigo, como o amor pelos carros. Boswell vai morar com seu mestre para aprender melhor a arte do drift, tornando o que antes era só entusiasmo em algum tipo de evolução, tanto de conduta quanto de corrida.

    Ao menos em adrenalina e edição, Desafio em Tóquio retoma o que deu certo em Velozes e Furiosos, muito por mérito de Justin Lin, que mesmo à frente do mais diferenciado espécime da franquia, conseguiu ser o diretor dos próximos três filmes, sendo o mais frequente e único cineasta que repetiu o feito, até então.

    Após o “acidente” que encerrou os dias de Han, Sean busca força no que lhe restou de família, em seu pai e nos remanescentes da oficina de seu antigo mestre. Mesmo com as sabotagens e a aparente rejeição da donzela que o acompanhava, o garoto prossegue trabalhando, para poder desafiar D.K. na frente do seu tio mafioso, a bordo do seu Ford Mustang. A vitória do herói restabelece a honra e o eleva a um novo nível, sendo assim apto a disputar um pega com o Dodge Charger dos personagens mais marcante da franquia, na maior inserção possível dentro daquele universo, o que reafirma a necessidade da presença de Vin Diesel.

  • Crítica | Kingsman: Serviço Secreto

    Crítica | Kingsman: Serviço Secreto

    Kingsman - Serviço Secreto

    A semelhança estabelecida entre Kingsman, a história em quadrinhos, e o filme, é parcial. Há um mote fundamental e cada desenvolvimento é feito à sua maneira, levando-se em consideração as diferentes mídias abordadas. Evitando apropriações indevidas, quadrinhos e cinema dialogam de maneira sincronizada, sem que um exagero de recurso de um ou de outro destoe da história.

    A narrativa de um grupo especial focado em operações especiais sigilosas surgiu durante a parceria do diretor Matthew Vaughn e o roteirista Mark Millar na adaptação de Kick Ass – Quebrando Tudo. Dessa maneira, cada um trabalhou com o mesmo ponto de partida, mantendo certa originalidade nesta obra, que é uma homenagem explícita aos filmes de espionagem antigos que apresentavam um mundo mais polarizado entre bem e mal.

    A referência quadrinesca do longa se mantém nas cenas de ação impossível, mas o foco principal é a paródia dos cinemas de espionagem. Mantêm-se, assim, as referências conhecidas pelo público, modificadas por uma visão que demonstra o quanto tais personagens são anacrônicas e estereotipadas.

    Vaughn continua seguindo em sua carreira uma tendência mista de adaptar quadrinhos mantendo o estilo de cada um mas trabalhando simultaneamente com a linguagem do cinema. As cenas de ação são bem compostas e evitam as câmeras lentas – usadas somente em uma cena de alto impacto –, preservando a referência contemporânea de filmes de ação com cenas ágeis ou brutas.

    Samuel L. Jackson interpreta outro personagem coadjuvante interessante, outra tipificação após o papel de velho escravo em Django Livre. Dessa maneira, o habitual excesso interpretativo do ator (conhecido como o motherfucker Jackson ou o massavéio dos massavéios) é deixado de lado para dar vida a um vilão bobo, um plano maligno e megalomaníaco como de costume, e uma língua presa que explicita sua caracterização de bobo.

    Na fronte dos mocinhos, representando um dos agentes Kinsgman, está Colin Firth como o tradicional britânico educado. O ator evidencia conforto nesse papel de ação e comprova estar sempre coerente em sua interpretação sendo, sem dúvida, um dos britânicos em atividade com maior habilidade em sustentar uma gama de personagens diferentes.

    Exagerando na metalinguagem, com personagens que falam sobre a própria impossibilidade dos filmes de espionagem, Kingsman ri do gênero como Kick-Ass riu dos super-heróis, uma replicação de um conceito realista que, mesmo parecendo cópia, foi bem-sucedida. Como roteirista, Millar demonstra talento em criar narrativas do zero, sem personagem pré-fabricados do eixo DC/Marvel. Ainda que uma parcela de seus leitores aponte-o hoje como um escritor que compõe suas tramas pensando na futura adaptação cinematográfica, o sucesso da produção confirma que o gênero quadrinhos é hoje uma das fontes de inspiração do cinema, tanto como novo argumento quanto como reciclagem de novas maneiras de narrar velhas histórias.

  • Crítica | Super Velozes, Mega Furiosos

    Crítica | Super Velozes, Mega Furiosos

    Super velozes 1

    Se valendo da trama (já idiotizada) de Velozes e Furiosos, mas com o timing do humor, Super Fast 8, ou Super Velozes, Mega Furiosos é uma paródia estúpida da franquia de carros super-poderosos, organizada  pelos mesmos realizadores de Espartalhões, Deu a Louca em Hollywood e Os Vampiros que se Mordam, e dirigida e escrita por Aaron Seltzer e Jason Friedberg.

    O bate-bumbum comum aos sete filmes da franquia Velozes e Furiosos está presente já nas primeiras cenas, assim como em todas as presepadas dos corredores sem personalidade, ainda que este seja ainda mais irritante e repleto de piadas óbvias, com alguns personagens amalgamados para ocupar menos tempo em tela do que o script julga necessário.

    Os primeiros filmes da cinessérie Todo Mundo em Pânico, escritos pela dupla de cineastas, não eram brilhantes, mas garantiam muito mais gargalhadas do que os de Seltzer e Friedberger. A falta de um diretor mais experiente causou na montagem final de praticamente todos os espécimes da filmografia dos dois, enquanto realizadores, uma dificuldade imensa em entreter ou distrair o público. Escolher entre a desculpa de os dois perderem inspiração de outros tempos, ou não haver outros roteiristas com ideias de gags cômicas não tão óbvias, chega a ser um pensamento enfadonho, dada a completa falta de qualidade dos escroques em reprisar o excesso de testosterona dos filmes originais, exagerando e muito na acefalia do texto.

    As aventuras dos personagens compreendem alguns momentos de Mais Velozes e Mais Furiosos, do reboot/remake e até de Operação Rio, fazendo referência a uma fuga que envolveria um grupo de elite, especialista em assaltos e em fugas super velozes. No entanto, não há qualquer cena de corrida que seja feita ao menos em um nível aceitável, ou comparável com os filmes do John Sigleton, Rob Cohen, Justin Lin e James Wan. As referências a Toretto e Brian são meramente de se aproveitar do sucesso de suas fitas, sem qualquer compromisso em imitá-los de maneira satisfatória.

    Talvez a única imitação realmente semelhante seja a performance tola de Dio Johnsson, que emula as características de Dwayne “The Rock” Johnson e sua mania de exibição, utilizando óleo de bebê para maximizar seus músculos bombados. No entanto, a aura de bobeira barata segue tanto no seu operar quanto em todos os outros personagens, exibindo um resultado final frívolo, com piadas que em maioria absoluta não funcionam em nada. As partes que conseguem fazer rir somente incluem (algumas) cenas pós-créditos, de erros de gravação, mas pouco barulho fazem. Super Velozes, Mega Furiosos é um absoluto desperdício de dinheiro, sem ao menos contar com qualquer sub-celebridade que topasse a empreitada fracassada.

  • Crítica | Vingadores: Era de Ultron

    Crítica | Vingadores: Era de Ultron

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    Fechando a Fase Dois dos filmes da Marvel, passando por qualquer expectativa ao filme de 2012, Joss Whedon finalmente se despede dos filmes da Marvel Studios, utilizando uma desculpa até hoje mal contada, mas que não o impediu de produzir um filme que atingisse todos os requisitos de uma boa sequência, ainda que sua produção tenha alguns defeitos pontuais.

    O início da trama é frenético, com sequências de ação desenfreadas que fazem o filme se assemelhar à fita de Simon West, Os Mercenários 2. Não perdendo qualquer segundo com explicações, o filme já demonstra como os heróis agem em grupo e o quão coesa é aquela união, mais intensa graças à queda do sigilo e das operações da antiga S.H.I.E.L.D, como mostrado em Capitão América 2 – O Soldado Invernal. Os opositores seguem como os membros da HYDRA, ainda que toda a confecção dos vilões seja um óbvio MacGuffin, como Hitchcock adorava fazer, um despiste que não consegue ludibriar qualquer espectador mais experiente.

    Tal artifício cobre seus efeitos, já que toda a construção prévia rui em questão de minutos, mesmo com toda a crescente de importância dos até então vilões. O fato do roteiro se basear em uma história recente de sucesso por um lado compromete a cena pós-créditos de Vingadores, mas consegue manter o clima de escapismo, equilibrando pontuais questões sérias, adicionando cor e docilidade, com cenas de ação ainda mais bem orquestradas – marca forte de Whedon enquanto diretor – mesmo que o exército dos inimigos seja absolutamente descartável, como tantos capangas acéfalos dos tokusatsus famosos, equiparando a antiga tropa de Tony Stark (Robert Downey Junior) aos esquálidos bonecos de massa que enfrentavam os Power Rangers.

    A ideia de explorar as diferenças entre os membros do grupo segue concentrando um enorme pedaço do desenvolvimento do roteiro.  Não há nisto qualquer novidade, mesmo o acréscimo dos novos personagens – os gêmeos Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) e Mercúrio (Aaron Taylor-Johnson) – já era esperado, por ser um clichê de filme de equipe. O fato de não precisar mais contar qualquer origem gera no público uma avidez por mais aspectos novos, que não são plenamente cumpridos, ainda que o excesso de adrenalina quase chegue a cumprir essa expectativa.

    A discussão a respeito da antiga questão da supervisão do vigilantismo beira o brilhantismo. Diferente do executado por Zack Snyder em Watchmen, a indagação do “quem vigiará os vigilantes” não é tratada de modo pasteurizado, ao contrário, pois os pecados de Banner/Hulk (Mark Ruffalo) e do Homem de Ferro são cobrados com os próprios em vida, sem qualquer tentativa de fuga da responsabilidade ou de complacência dos seus atos impensados. Ultron é fruto do medo da humanidade de ser perseguida, e toda a sua arrogância – unida ao potente trabalho vocal de James Spader – faz com que todo o pânico inerente aos homens de sangue quente se fortifique, manifestando-se através de uma liderança insensível e absolutista, referência claras à tirania de personagens históricos, tradicionalmente trazendo a ideia de arquétipo vilanesco.

    O ritmo veloz quase faz com que se esqueçam os problemas pontuais do argumento, como a troca de interpretação do androide Ultron, relegando a Hank Pym um papel absolutamente subalterno, já definido como coadjuvante de “seu” futuro filme solo. Outro aspecto que não fica exatamente claro é até onde o filme do gigante esmeralda protagonizado por Norton foi descontinuado, já que não há qualquer referência à vida – ou não – de Betty Ross, mesmo sendo este um dos pilares do personagem.

    Apesar das reprimendas, o background do Hulk é o aspecto mais rico e melhor trabalhado, além, é claro, da acessória questão da humanizada Natasha Romannoff, além de fazer uso – finalmente – dos dotes dramáticos de Scarlett Johansson, afora suas já tão conhecidas curvas. Sua importância no filme é magnânima, cabendo a Viúva restaurar o equilíbrio do grupo, tanto no proceder com o Monstro – em outra referência ótima ao canône do personagem – quanto no importante lembrete de que, além de todo o poder e destruição potencial dos heróis, e com toda a magnitude dos semi deuses, ainda sobravam nos personagens aspectos humanos que fazem emocionar, unindo personagens e público no mesmo invólucro de emoções.

    Apesar de ter conceitos pouco explorados, graças à pressa dos produtores do filme – como a absoluta e interessante ação dos gêmeos, ou o sub-aproveitamento do Falcão no filme – há mais a se destacar positivamente do operar dos Vingadores do que reclamações. Thor (Chris Hemsworth) segue no automático, assim como Stark, apesar de neste filme o filantropo se achar muito mais vulnerável, assim como em Homem de Ferro 3. Mas é o acréscimo do conceito de evolução que mais se destaca, usando como avatar a figura do Visão, de Paul Bettany, que cumpre todos os papéis que deveriam ser do Ultron perfeito, reunindo aspectos de onisciência e onipotência, com uma destacável questão pretensamente filosófica. De modo bem pragmático, o filme salienta que o complexo do Doutor Manhattan não precisava ser tão ligado ao autismo, como no filme de Snyder de 2008.

    Mesmo que a cena pós-créditos seja bem menos empolgante do que se imaginava – ainda mais em comparação com a suposta cena do Cabeça-de-Teia, vazada há pouco tempo – o desfecho do filme remete à esperança da humanidade no panteão de heróis liderados por um Capitão América (Chris Evans) bem mais inspirado que anteriormente. Um filme que organiza elementos dissonantes de modo harmônico e coeso, sem fazer perder o fôlego em momento algum. Que não supera seu antecessor em termos de qualidade, mas que entrega o esperado de modo idôneo, sem apelar para fórmulas batidas em detrimento de conteúdo.

  • Crítica | Velozes e Furiosos 4

    Crítica | Velozes e Furiosos 4

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    Surgido da experiência internacional de Dominic Toretto (Vin Diesel) em terras estrangeiras, com sua amada Letty (Michelle Rodriguez), Velozes e Furiosos 4 retorna finalmente ao sub-gênero de filmes de assalto, pondo a dicotomia entre ser fora da lei e o modo assertivo de vida mais uma vez em pauta, com cenas estapafúrdias que aumentam exponencialmente o escapismo, capaz de mostrar um caminhoneiro pular de um veículo em alta velocidade e sair sem um arranhão, ao mesmo tempo que encerra a participação de um dos heróis da jornada já no início.

    O recém viúvo Dom não consegue lidar bem com sua perda. Mesmo nas cenas antes da perda de sua amada, já parece resignado, arrependido por não dar ouvidos à companheira, que queria ir para o Rio de Janeiro. Paralelamente, Brian O’Conner, vestindo trajes sociais, corre atrás de um bandido, utilizando todo seu talento em parkour, mais tarde visto em 13º Distrito. Seu retorno à ação policial praticamente ignora Mais Velozes e Mais Furiosos, já que lá o personagem não mais trabalha como tira.

    O reencontro dos dois aliados quase ocorre quando no sepultamento de Letty, mas estão longe pelos lados distintos da lei e por alguns quilômetros de moral. A fila de carros coloridos quase quebra o clima de luto que as personagens tentam preservar. De volta ao território estadunidense, Toretto vai atrás de quem possivelmente tem informações sobre o assassinato de sua amada, buscando vingança. No mesmo encalço, Dom e Brian vão servir Braga, acompanhados por sua assistente Gisele (Gal Gadot), que os instrui nos diversos serviços que prestam.

    Justin Lin acaba abusando demais das cenas em CGI, especialmente nas subterrâneas, onde já em 2009 notava-se uma abrupta diferença, uma tecnologia ultrapassada atualmente. Outro defeito latente é o ritmo do filme. Há uma gigantesca falha de roteiro que faz denegrir muito o resultado final da película. Em alguns pontos, parece que o foco narrativo se confunde, como se emulasse a dificuldade de O’Conner em finalmente se definir e assumir a sua tomada de decisão, sem temer mais nada.

    O vagar do vilão pelas sombras também atrapalha a empatia do público com os personagens. A unidade existente em Velozes e Furiosos não habita nesse. Como se cada um dos personagens vivesse em seu microuniverso, e esses lugares tornam-se intocáveis, graças ao distanciamento que cada um deles permitiu, problemas causados especialmente pela fuga de Toretto e pela saída de Brian do oikos familiar. Aos poucos, os mundos se aproximam para causar finalmente a interseção que fariam do grupo unido novamente, e isso tudo começa com a lenta reconciliação dos dois personagens masculinos, que não conseguem ficar separados um do outro por muito tempo.

    As perseguições finais sempre garantiam bons momentos aos filmes da franquia, mas a repetição do pior cenário possível de Velozes e Furiosos denigre seu resultado final. Com ares de refilmagem de Velozes e Furiosos, claro, se levando bem mais a sério, quase logra êxito ao mostrar um final mais condizente com o real, onde os personagens são julgados finalmente pelas leis que quebraram, além de retornar a jornada ao estado original da Califórnia, explorando seus meandros.

    O recomeço seria bem mais sóbrio do que anteriormente. Conduzido pela dupla Justin Lin e Chris Morgan – que retorna aos roteiros – e reativando rivalidades e amores antigos, o filme faz uma espécie de reboot sem descontinuar todos os eventos anteriores. O tom sério não fica tão caricato quanto se previa, mas os pecados da edição não permitem ao filme cumprir todo o seu potencial positivo, ficando apenas no quase.

  • Crítica | As Pontes de Madison

    Crítica | As Pontes de Madison

    As Pontes de Madison - Dvd - Capa

    Não é de hoje que atores são também diretores, e muitas vezes acabam dirigindo a si mesmos, como é o caso de Woody Allen, premiado roteirista de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Hannah e suas Irmãs (1986) e Meia Noite em Paris, além do recente Blue Jasmine, cujo roteiro original também foi indicado ao Oscar, mas apenas Cate Blanchett recebeu o prêmio de Melhor Atriz, pela interpretação de Jasmine.

    Em As Pontes de Madison, baseado no romance homônimo de Robert James Waller, e dirigido por Clint Eastwood, um trecho de um poema do irlandês W. B. Yeats, “Quando as mariposas alçarem voo…”, é usado poeticamente num bilhete que Francesca deixa para Robert, para designar o anoitecer, já que a maioria das mariposas só voa à noite. Yeats é citado algumas vezes pelo par romântico ao longo da história, agregando-se a toda a poesia que permeia a película, declamada nas paisagens, nos blues que vestem a trilha, nas falas cuidadosamente escolhidas e interpretadas com brilhantismo, mais precisamente por Meryl Streep. Com relação a Clint, há dois aspectos a serem considerados: seu trabalho na direção e seu desempenho como ator.

    Não sei qual teria sido o resultado da direção se Steven Spielberg ou Synney Pollack assumissem o projeto (possibilidades cogitadas anteriormente), mas não há muito a dizer sobre o trabalho de Eastwood, positiva ou negativamente, já que o filme é sustentado pelo cenário/fotografia (Jennine Oppewal/Jack N. Green), roteiro (Richard LaGravenese) e a atuação de Meryl Streep, pela qual foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz.

    Fica ainda mais difícil tecer elogios à mão que dirigiu As Pontes de Madison, se lembrarmos a eficiência de Eastwood em Os Imperdoáveis ou Menina de Ouro, os quais arrebataram o Oscar de Melhor Filme e Melhor Direção, e até mesmo Bird e Sobre Meninos e Lobos, que receberam, respectivamente, Globo de Ouro e Cannes, de Melhor Direção.

    Como ator, colocando de lado o fato de sua expressão carrancuda ter sido estigmatizada, é inegável que os papéis que lhe caem melhor são aqueles em que o personagem é um homem mais bruto. Apesar de não ter conseguido, ao longo de sua carreira, qualquer Oscar como Melhor Ator (foi indicado em Os Imperdoáveis e Menina de Ouro), considero, sim, que Eastwood teve algumas atuações de grande peso, e ressalto, aqui, Walt Kowalski em Gran Torino (em 2009, a National Board of Review concedeu-lhe o prêmio de melhor ator). Seu primeiro desempenho de destaque foi na trilogia de Sergio Leone (onde destaco Três Homens em Conflito), mas ele também convence em outros filmes como O Estranho sem Nome e Alcatraz.

    Já como o fotógrafo Robert Kincaid, Clint é totalmente ofuscado por Streep e, para mim, a única cena em que imprimiu um pouco mais de força foi no final do filme, quando anseia por uma resposta positiva de Francesca, no meio da rua, sob a chuva. Mesmo assim, nesta mesma cena, é Francesca quem rouba as atenções e nos provoca um certa inquietação compartilhada, quando sua expressão corporal e facial transbordam todo o dilema vivido pela personagem.

    Não é à toa que Meryl Streep foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz, perdendo para Susan Sarandon por sua atuação com Irmã Helen em Os Últimos Passos de um Homem. São incríveis a veracidade e intensidade que ela imprime à apagada dona de casa dos anos 1960, na pacata cidade de Madison, Iowa, transitando pela mulher que se descobre sensual e apaixonada, até à amadurecida e consciente mãe e esposa que abdica de um grande amor, exatamente para preservá-lo. Isabella Rossellini, Cher, Susan Sarandon, Jessica Lange e Anjelica Huston estavam na lista para o papel de Francesca, mas Eastwood desde o início preferiu Streep, a qual teve que engordar alguns quilos para encarná-la, o que fez de corpo e alma.

    Aclamada como uma grande atriz, tanto pelo público quanto pela crítica, sendo que esta já reconhecia seu talento pelos três filmes, lançados em 1979 (Manhattan, Julia e Kramer vs. Kramer), nos quais atuou como coadjuvante, e levou o Oscar e o Globo de Ouro, nesta categoria, pelo terceiro. São inúmeros os troféus que Streep recebeu de várias organizações voltadas para a premiação do cinema, e entre elas podemos contar 15 indicações a Melhor Atriz, das quais ganhou duas (A Escolha de Sofia e A Dama de Ferro).

    Com tantos filmes no currículo, um grande número de indicações e premiações, e uma incrível diversidade de personalidades interpretadas, Meryl Streep ainda canta (a exemplo de Mamma Mia!), e apresenta uma impecável mimetização de sotaques, como o inglês britânico (A Dama de Ferro e outros), o polonês (A Escolha de Sofia), o dinamarquês (Entre Dois Amores), o irlandês em Ironweed, e o italiano em As Pontes de Madison.

    Depois de uma viagem no tempo pelas obras, desempenhos e premiações dos atores que protagonizam este drama romântico, volto agora ao filme em si, e convido você a vir comigo, num passeio pela história, pelos cenários, pelas falas deste longa que, se não entra para a lista das obras-primas cinematográficas é, com certeza uma proposta de mais de duas horas agradáveis. Concordo que haja alguns momentos um tanto açucarados, mas há também aqueles que se envolvem de sensualidade, de beleza singela ou de reflexão.

    A história toda nos é contada pela visão da protagonista Francesca (Meryl Streep), em flashback, a partir do momento em que seus filhos, Carolyn (Annie Corley) e Michael (Victor Slezac) surpresos com o pedido de cremação, começam a revirar um baú, e encontram um diário e uma carta destinada a eles.

    É então que eles tomam conhecimento da existência, na vida da mãe, do fotógrafo Robert Kincaid. A princípio resistentes a aceitar o romance vivido por Francesca, aos poucos vão se deixando envolver por toda a paixão que transpira em seu relato, até que acabam revendo seus conceitos morais e repensam seus casamentos.

    Logo no início da carta há uma frase de Francesca (“quando ficamos velhos perdemos nossos medos”), cuja essência se mostra como pilar para a revolução, interna e externa, que acontece em sua vida desde o momento em que, numa tarde de 1965, um fotógrafo da National Geographic, em busca das famosas pontes do condado, estaciona à sua porta pedindo-lhe informações, e esta se dispõe a acompanhá-lo até a Roseman Bridge.

    Ainda que você não seja fotógrafo(a), atrevo-me a suspeitar que, assim como eu, tenha se sentido com uma câmera na mão, querendo registrar, num click, a beleza que a paisagem deste momento inspira. Não há cenários montados, as locações são autênticas e a ponte realmente existe, apenas tendo passado por um envelhecimento e a retirada de algumas tábuas laterais. Mas não é só a ponte, as plantas silvestres ou a luz do sol mesclando-se a tudo, que queremos fotografar. Há também a sutileza do interesse que Robert desperta em Francesca, através do olhar da mesma.

    A linguagem corporal de Meryl Streep é impecável, envolvente (eu cheguei a me contorcer, invadida por cada sentimento que a personagem experimentava), e empresta uma beleza de sublime erotismo a momentos como quando Francesca, sozinha na varanda da sua casa (esta casa estava abandonada havia 30 nos, e foi restaurada pela equipe de arte), abre o penhoar e se entrega à brisa da noite, ou quando, preparando-se para o segundo jantar com Robert (o que de fato inicia o romance), a dona de casa até então tão adormecida sente despertar sua sensualidade, numa banheira, sob a percepção de que, minutos antes, aquele homem estivera nu, naquele mesmo lugar.

    Mas talvez o ápice do filme esteja na cena em que, na cidade, sob o cair da chuva, Francesca e Robert se veem pela última vez. Após esperar, no meio da rua, em sua mudez e imobilidade por uma resposta, Robert entra em sua caminhonete. Francesca tenta conter um explosão de choro, e se debate entre as duas possíveis decisões (fugir com o grande amor de sua vida, ou permanecer cuidando de seu marido e filhos). Johnson (Jim Hayne), o marido, ocupa o banco do motorista, ao seu lado, e percebe que algo não está bem, mas ela não lhe responde.

    A tomada da câmera sobre a mão de Francesca segurando, inquietamente, a maçaneta da porta, entre o ir e o ficar, é tão forte que quase nos afoga em expectativa, e faz com que nos sintamos impulsionados a decidir por ela.

    Talvez pareça um exagero dizer que, tendo Clint, o cenário e o roteiro como coadjuvantes, Meryl Streep é o filme, mas… ainda estou sob o efeito desta magnífica atuação. Então… assista e confira o grau dos meus exageros (se é que os há, mesmo)!

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2009)

    Crítica | Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2009)

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    O mundo é um lugar terrivelmente perigoso para aquele que não detém poder, seja do domínio físico, financeiro ou social. Dentre todas as minorias, a adição de um cromossomo X é capaz de tornar o indivíduo ainda mais propenso a toda sorte de violências, físicas e morais. O principal olhar a que o diretor Daniel Alfredson se volta é o da mulher como objeto dos desejos do mundo, e coloca o homem como potencial causador de danos. Isso é claro e reflete boa parte da realidade, onde a violência doméstica é uma realidade na vida de tantas meninas, e onde o assassinato é “uma consequência natural do estupro”.

    Baseado na obra literária de Stieg LarssonOs Homens que não Amavam Mulheres (de Niels Arden Oplev) é o primeiro de uma trilogia de filmes policiais muito bem-sucedidos em amarrar as vidas de seus dois protagonistas, Lisbeth Salander (Noomi Rapace) e Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), em uma trama de mistérios e dramas do passado sem jamais sugerir um abuso de coincidências, ou carregar um excesso de bagagem. A obra desenvolve seus personagens secundários em cima de estereótipos conhecidos e, mesmo aqueles que pouco aparecem, quando surgem, motivam o desenvolvimento da história.

    Traumas do passado são estabelecidos em flashbacks inseridos de forma inteligente para que o espectador conheça Lisbeth apenas o quanto Mikael a conhece, e apresentando a quem assiste as mesmas conexões emocionais que o jornalista tem com a hacker: a paixão. O repórter idealista é fascinado por seu trabalho e sua função na sociedade, e desta forma aceita ajudar o industriário Vanger a encontrar sua sobrinha Harriet, morta há mais de 40 anos, em meio a uma trama de conspiração e abusos. Inicialmente relutante, o mistério o provoca e convida Lisbeth para uma parceria, bem como ao envolvimento emocional. Enquanto isso, a hacker Lisbeth torna-se a representante máxima das mudanças de um mundo complexo e objetificante, pois ela é antes de tudo uma apaixonada. De acordo com Aristóteles, paixão é a falta daquilo que se quer, pois logo que se tem não há mais espaço para a paixão, apenas para o dia a dia e para a monotonia. E desta forma Lisbeth interessa-se mais por mistérios do que por pessoas, abandonando ambos assim que sejam dissolvidos ou saciados.

    É um filme sintético em todas suas características, e usa-se disso para resolver de forma coerente o desfecho do repórter Mikael e do mistério, que para muitos pode soar menos impactante do que deveria. Falta, porém, um fechamento melhor para Lisbeth Salander que, apesar de ser o real fio condutor e a síntese de toda trama, sai assim como veio. O motivo disso é a forma como o filme se monta sobre uma trilogia, esperando para desenvolver outros aspectos da personagem em algum outro momento. Neste ponto, a versão americana, de David Fincher, se mostra melhor sucedida no retrato dos dois protagonistas, fazendo com que as pequenas mudanças da trama ou detalhes de suas jornadas trabalhem mais em função de Lisbeth e seu arco-íris de emoções, tão complexo em sua formação, mas primário na forma como se expõe.

    Com uma fotografia mais quente do que se poderia esperar, o longa prefere utilizar-se da cenografia para dar às paisagens suecas o tom inóspito e potencialmente perigoso que a narrativa exige. Em Estocolmo, personagens são sufocados pela simples proximidade de pessoas; já na ilha onde ocorre boa parte da trama, a solidão é desoladora, e mesmo a mínima cabana que age de quartel general para as investigações da dupla mostra-se maior em seu interior do que exteriormente. Ao olhar em volta, tudo parecerá longínquo, trabalhoso e misterioso demais. Esta cidade fantasma ressalta a ideia de que somente pessoas com motivações prioritariamente introspectivas seriam capazes de se atrair por qualquer coisa que resida sob aquela neve e segredos.

    Reprimida por aqueles que a rodeiam, Lisbeth torna-se uma pessoa agressiva e de difícil convivência, e encontra em seus processos mentais um ponto de fuga para a gigantesca pressão do mundo em lhe frustrar e machucar. Eis que então o sexo é outra constante na trama, especialmente por ser um ato polissêmico, de natureza complexa, porém de fácil aplicação, capaz de atuar como barganha, método coercivo e compensação afetiva, que exemplifica a forma como age o sexo na mente daquele que é violentado.

    Enquanto para o autor da violência o ato não passa de alguns segundos dentre toda uma vida, para quem sofre da violência é um ato que persegue e assombra. Não à toa, vítimas de estupro relatam duvidar da veracidade do ato, colocando a violência para dentro de suas mentes, aceitando posições de inferioridade e trazendo pra dentro de si dragões que lhes rasgam ao sair.

    Velado, latente e introspectivo, o machismo é uma condição não aparente que desperta uma forma corrosiva de convivência onde a moral está no centro do jogo. É permitida a quebra da moral (resumida naquilo que se faz em seus porões, longe da vigilância do mundo), não a quebra da aparência, pois a aparência é essencial para o prejulgamento social. Enquanto emoldura o violento em um quadro como uma caricatura fascista, ajuda a esconder os demônios pessoais que a sociedade compartilha ao fomentar, mesmo que com palavras, todo tipo de misoginia, discriminação e violência.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Tempos Modernos

    Crítica | Tempos Modernos

    Lançado em 1936, após três anos de produção, Tempos Modernos é uma das grandes obras de Charlie Chaplin, densa como arte e significativa como retrato de uma época, sobre a potência do capitalismo e as forças opostas entre trabalhadores e donos dos meios de produção. Estruturas criticadas pela narrativa que ainda reflete movimentos vividos no presente.

    Antes do lançamento de O Artista, a produção era considerada o último filme mudo americano. Uma escolha narrativa proposital de Chaplin, que utiliza habilmente a voz somente através de objetos eletrônicos, representando o avanço tecnológico. Seria também o último filme com a marcante personagem de Carlitos, o vagabundo mambembe que, de maneira bem-humorada, representava um tipo marginalizado que sobrevivia por suas peripécias. Um ícone que se confunde com o seu criador, sendo uma das maiores figuras do cinema, sem dúvida. Reconhecendo que a personagem era uma clássica representação do humor físico, o vagabundo perderia a eloquência dos gestos apurados pela interpretação física do ator. Assim, o vagabundo sai de cena em um grande retrato crítico.

    O tema de Tempos Modernos é introduzido por uma frase exibida em cena, configurando a relação analítica entre a sociedade e a indústria, e estabelecendo a análise da importância do indivíduo diante do mundo capitalista. Um mote representando a história que seria apresentada e bem justificada na primeira cena do longa, com ovelhas correndo por um corredor estreito para, em seguida, um corte de cena mostrar um grande grupo de trabalhadores saindo de um metrô. Em ambas a cenas, é possível notar, além do simbolismo óbvio, um único personagem destoante: uma ovelha negra e um homem trajando chapéu preto, respectivamente. Uma primeira provocação de Chaplin sobre o individualismo na sociedade que, em ambas cenas, não parece ter nenhum significado diante da multidão coletiva.

    A obra é uma das mais poéticas e críticas do autor, e se vale da narrativa pela imagem do cinema mudo como ênfase para retratar acontecimentos envolvendo o vagabundo. Atos que podem ser vistos como episódios, desenvolvidos em pequenas partes, que poderiam figurar em curtas-metragens mas que, formatados sob um mesmo tema, estabelecem uma crítica contra a Revolução Industrial e a Grande Depressão americana.

    A habilidade narrativa de Chaplin, responsável pela direção e roteiro, é impressionante. O domínio da técnica gera uma multiplicidade narrativa para diversas cenas, mantendo o cômico como toante ao mesmo tempo em que a crítica é interpretada pelo público. A imagem mais icônica desta obra, o homem sendo engolido pela máquina, é um exemplo de sua genialidade. De maneira quase infantil, mantendo a vertente do riso, o público compreende a crítica sobre a modificação estrutural da sociedade, na qual o homem não é maior do que o império do capitalismo industrial.

    O vagabundo é um personagem de humor inserido em um difícil contexto da história da América. Chaplin equilibra com perfeição a marginalidade dramática e mantém a comédia em cenas bem delineadas e simples, e com significado. A imagem era a única – ou maior – forma de mensagem dos filmes mudos. Em comparação a filmes contemporâneos – principalmente os lançamentos de verão –, há muito mais uso de cenas simbólicas e interpretativas, que evitam o óbvio mas retratam com eficiência como o trabalho era visto na época.
    Os excessos da jornada de trabalho geram uma das primeiras cenas cômicas. Trabalhando na linha de produção em um trabalho de repetição contínua de movimentos, o vagabundo se condiciona ao esforço manual e enlouquece, vendo em qualquer lugar parafusos para apertar. A comédia adquire o ar crítico sem precisar ser agressiva. A mensagem é recebida claramente pelo público, e o riso se estabelece de maneira fácil.

    Em seus longas-metragens envolvendo a personagem, Chaplin sempre narrava uma história múltipla, dando vazão ao elemento dramático sem perder o cômico. Além disso, explorava personagens femininos que estabeleciam uma jornada em paralelo a do vagabundo para, posteriormente, instaurar um caminho mútuo. Como a vendedora de flores em Luzes da Cidade, uma órfã representa outro tipo marginalizado pela sociedade, a menor cujo pai está desempregado e vaga pela cidade à procura de alimento. O pai da garota se torna uma baixa em um protesto por melhores salários. Mesmo que esta morte não seja explícita, reconhecemos dois tipos em cena: o grupo que luta por maiores direitos e outro que reprime com violência este grupo.

    Como engrenagens de uma máquina, o roteiro se articula com perfeição entre ambas protagonistas e suas peripécias para continuar vivendo. O vagabundo como operário, a órfã como ladra; cada um sobrevivendo como pode. Chaplin produz candura no encontro das personagens, que reconhecem sua marginalidade, sem retirar as gags cômicas, mantendo a firmeza nos dois frontes: drama e comédia, sem perder força em nenhum dos dois, mesmo após 79 anos.

    Além do retrato urbano, o filme é lembrado por sua canções também compostas por Chaplin, um talento múltiplo do artista que se dedicava também às trilhas de suas produções. A Canção Sem Sentido, cantada pelo personagem em seu trabalho como garçom, é o momento mais cênico da produção e, novamente, varia drama e comédia. O público sabe que é necessário para o vagabundo cantar em seu emprego, uma exigência para ser contratado. Diante da necessidade, a personagem realiza uma apresentação quase circense, como um palhaço em frente às câmeras apresentando um número. Mesmo sem compreendermos a canção inteligível feita com partes em italiano e francês, o gestual de Chaplin narra uma história e, novamente, sua precisão de humor físico e pantomima transformam a cena em um dos grandes momentos da película.

    A canção Smile, inicialmente concebida como instrumental e, décadas depois, acrescida de uma bonita letra, é um dos temas que se apresentam no decorrer do longa, e resume melodiosamente a mensagem de esperança por detrás de toda frieza mecânica da sociedade. Mesmo com todas as peripécias vistas em cena, as personagens voltam ao ponto de partida como dois vagabundos desempregados, mas reconfigurados em outra situação: estão unidos. Chaplin deixa uma mensagem poética simples e precisa sobre a necessidade de enfrentar as adversidades de frente e, mesmo em momentos ruins, sorrir. Ao lado da garota, sai de cena rumo a lugar algum, um momento presente em obras anteriores mas, dessa vez, carregado de poesia e melancolia: a despedida de um grande personagem em um grande filme crítico.

  • Crítica | Quando Meus Pais Não Estão Em Casa

    Crítica | Quando Meus Pais Não Estão Em Casa

    Quando Meus Pais Não Estão Em Casa 1

    Apesar do título em português remeter a uma trama simples, o filme de Antony Chen mostra um panorama complicado, ligado à crise financeira que acometeu a Ásia nos anos noventa. O conto é narrado através da visão ingênua e infantil de uma criança disciplinada no ambiente escolar.

    A trama se passa em Singapura, e mostra uma tradicional família convivendo com a chegada de um elemento externo, uma empregada filipina que vai trabalhar na residência em virtude dos graves problemas financeiros de seu país. Teresa (ou Terry, interpretada por Angeli Bayani) é uma mulher de simplicidade inegável, que sofre o choque cultural já na chegada ao país, com a rejeição do pequeno Jiale (Koh Jia Ler) e problemas relacionados a sua religião, que parece não incomodar seus novos patrões, mas que a faz se destacar enormemente destes.

    Pouco a pouco, Terry e Jiale se aproximam e se afeiçoam um ao outro, fazendo da dupla um oásis de tranquilidade em comparação com a caótica situação em que estão os outros membros do clã. A adversidade e o aperto não determinam somente as finanças dos familiares, mas também suas relações internas, cada vez mais difíceis em virtude da gravidez em péssima hora e da completa falta de paciência e comunicação do casal, onde a sonegação de informações ocorre até mesmo quando nos vícios do patriarca.

    A rivalidade entre patroa e empregada torna-se um evento inevitável, especialmente por Jiale confiar mais em sua cuidadora do que em sua mãe. Hwee Leng (Yann Yann Yeo) faz questão de deixar bem clara a posição subalterna da filipina, para que não haja qualquer possibilidade de motim ou de confusão hierárquica. Além disso, apresenta sinais claro de ciúmes e inveja, por ser ela mais digna de confiança dos dois homens da casa. De semblante baixo, Teresa aguarda, submissa, tentando em vão ser invisível no processo de educação do menino.

    O roteiro de Chen consegue sem alarde ou escândalo apresentar uma história simples e tocante, transpirando singeleza em cada momento. A obra mostra o ruir da célula familiar de um ponto de vista frio, com a câmera estática, como em um documentário, sem trilha ou qualquer artifício de comoção automática. As sensações que o espectador usufrui vêm das ações do belo elenco, que imprime um conjunto de sentimentos reais, inexoráveis diante da existência humana e situações limite que insistem em esmagar o homem diante do mundo. Uma obra que analisa como o fracasso do capitalismo influi nas vidas humanas.