The Rover: A Caçada, trabalho mais recente do cineasta australiano David Michôd, se debruça novamente sobre a violência e a degradação de uma sociedade como tema principal, da mesma forma com que realizou anteriormente Reino Animal, de 2010.
A trama aqui desenvolvida é construída de forma crua e fria, seja nas atuações, fotografia ou na própria direção. O cenário utilizado só reforça essa temática: extremamente desolador, empoeirado e vazio. Apenas a miséria tem espaço na trama. Michôd reforça isso paulatinamente na tela, assim como o roteiro nos apresenta um mundo que passou por alguma espécie de cataclisma econômico ou ambiental, e o transforma num cenário pós-apocalíptico que ainda respira por aparelhos até o seu derradeiro fim. O mesmo vale para o desenvolvimento dessa história, que se dá de maneira lenta, com ritmo próprio. O que temos é um fim gradual, lento e doloroso.
A trama inicia-se em algum lugar de um inóspito deserto australiano, onde a lei deu lugar apenas a um estado de violência latente. Neste cenário, somos apresentados a Eric (Guy Pearce), que, após ter seu carro roubado por três homens, decide segui-los para recuperar o veículo. Em sua busca encontra Rey (Robert Pattinson), irmão de um dos assaltantes que roubou o carro de Eric, e havia sido deixado pelo grupo após ser ferido em um assalto. Eric vê em Rey a oportunidade de recuperar o automóvel, enquanto Rey encontra a chance de se vingar por ter sido deixado para trás por seus companheiros.
Interessante notar como a química entre os dois atores funcionam bem. Pearce novamente entrega uma performance bastante comedida, de poucas palavras, mas repleta de nuances que se desenvolvem ao longo da trama. Pattinson, por sua vez, procura se desvencilhar de seu passado na série Crepúsculo, e assim como já havia sido feito em Cosmopolis, de David Cronenberg, o ator confere uma boa caracterização de um personagem com certa dose de loucura e forte inclinação para a violência. Um belo trabalho do ator que a princípio se esconde atrás de tiques, distúrbio de temporalização da fala e uma prótese dentária, para escancarar um estudo de personagem comovente, voltado ao desespero e à violência contidos dentro de todos nós.
Michôd parece evocar os trabalhos iniciais de John Hillcoat, A Proposta e A Estrada, além do próprio cenário desolador de Mad Max, para evidenciar sua visão em The Rover. O road movie distópico do diretor expõe uma violência gráfica, e por vezes fetichista, ao longo da trama, reforçada pela visão de mundo cético de suas personagens, com auxílio da fotografia, sempre saturada pelo sol escaldante do deserto ou do próprio cenário poeirento deste mundo.
The Rover – A Caçada é construído de forma lenta, utilizando o silêncio como método narrativo. Longe de ser um filme óbvio, embora a própria personagem de Pattinson relate em dado momento da trama que “nem tudo precisa ter um significado”, o longa traz importantes reflexões para quem estiver disposto a fazer esses questionamentos.
Em plena audiência, diante do juiz e sob o olhar atento dos jurados, uma mulher vai deslizando seu pincel pela tela, imprimindo no espaço em branco traços de melancolia que transbordam dos grandes olhos de um rosto de criança!
Parece cena de um filme, e o é, na verdade! Mas é também uma cena que retrata a realidade da vida de uma mulher dos anos 50, e marca o emergir de sua liberdade. No entanto, tanto quanto um discurso feminista ou uma evidência de como o papel da mulher, fora dos afazeres domésticos, nada mais era do que uma apagada sombra do marido, Grandes Olhos é quase uma metalinguagem. É uma criação visual (paleta de cores que sussurram e que gritam), orquestrada com sensibilidade, onde o diretor expõe a dualidade de Margaret (silêncio e voz), a qual, por sua vez, se mostra através das expressões dela mesma e do que nos falam os grandes olhos das suas obras.
Em sua segunda cinebiografia (a primeira foi Ed Wood, de 1994), Tim Burton conta a história da artista plástica Margaret Keane, cujos quadros, com nuances peculiarmente perturbadores, representavam o conjunto de obras mais rentáveis comercialmente das décadas de 1950 e 1960. Ainda que ela e sua filha pudessem usufruir do conforto proporcionado pela venda dos quadros, e das cópias impressas que os popularizaram, era Walter Keane, seu marido, quem recebia os holofotes da fama pelo sucesso das obras, já que induzira sua mulher a assinar com o sobrenome comum aos dois.
Trancada em seu estúdio, escondida do mundo e mesmo da filha, era no movimento do pincel e no preencher da tela, que Margaret (Amy Adams) desabafava sua frustração e melancolia. A sociedade estabelecia as regras! Artistas do sexo feminino eram colocados à margem, ou sequer percebidos! E Walter (Christoph Waltz), que não mostrava qualquer talento para a pintura, o tinha de sobra para convencer a esposa a curvar-se diante das normas. Mas não para sempre! A angústia que se contorcia em sua alma, ao perceber que lhe eram roubadas suas sensações mais íntimas, refletidas na pintura, resolve rasgar as amarras da submissão, e enfrentar um tribunal para legitimar a autoria das obras.
Christoph Waltz tem em seu histórico dois brilhantes desempenhos, os quais, sob a direção de Quentin Tarantino, lhe renderam dois troféus no Oscar (e outras premiações) como Melhor Ator Coadjuvante. Quem não se lembra do incrível personagem Landa, em Bastardos Inglórios, e do Dr. King Schultz em Django Livre? Mas permita-me confessar que, ainda que alguns tenham ovacionado a atuação de Waltz em Grandes Olhos, destacando a cena do tribunal, eu o vejo uma tanto caricato, e é inegável que perde a cena para Adams.
Amy Adams incorporou, com intensidade, uma mulher dos anos 50, cuja alma de artista lhe dá a capacidade de tecer traduções sobre os códigos da vida, mas que se vê transitando entre a coragem em romper padrões sociais e a coragem (sim, eu escrevi “coragem”) em se curvar a eles.
Não é por acaso que esta atuação lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Filme Musical ou Comédia. No ano anterior, havia ganho também por Trapaça, filme pelo qual também recebeu uma indicação ao Oscar, após outras nomeações ao prêmio da Academia como Melhor Atriz Coadjuvante em Retratos da Vida, Dúvida, O Lutador e O Mestre.
Talvez, numa primeira impressão, você não reconheça a assinatura de Burton em razão do realismo do filme, em contraste com o tema fantasioso do envolvente Edward Mãos de Tesoura, Batman: O Retorno e Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, entre outros. Mas perceba como Tim deixa as suas digitais! Se não por outros aspectos, pincelados aqui e ali, elas estão visualmente traçadas nas olheiras escuras das crianças, pintadas por Margaret, numa incrível identificação com a mesma característica constante em tantos outros personagens do diretor, como o tímido Edward, o barbeiro Benjamin Baker, o corajoso Jack Sparrow… Seria isto apenas uma coincidência? E coincidências existem, principalmente em um universo onde cada detalhe, sob a lente da câmera, é minuciosamente escolhido?
O conceito de re-conto permeia toda a produção do filme da Disney encabeçado por Tim Burton, não só pelas dezenas de outras adaptações do romance de Lewis Carroll, mas também por apresentar a personagem-título vivendo outros paradigmas, que não só os de discutir os devaneios que teve ao ter contato com o mágico mundo visitado em sua infância. Aproximadamente dez anos após os eventos do livro, Alice (Mia Wasikowska) não se lembra da viagem ácida que fez no passado, sempre relegando estes eventos a lembranças de sonhos, destacando um ou outro elemento enquanto frequenta uma festa pomposa, repleta de socialites.
Já próxima da fase adulta, Alice vê em si a responsabilidade de salvar sua família da crise financeira que a acometeu desde que sua mãe (Lindsay Duncan) ficou viúva, restando à garota um casamento forçado com uma figura efeminada, que certamente não supriria quaisquer de suas necessidades maritais, factoide este aplacado, claro, pelo fato desta obra ser uma fábula infantil.
Para Alice, mais interessante é dar vazão à perseguição ao Coelho. A busca pela clarividência dos fatos esquecidos pela personagem principal ocorre em meio a um grotesco cenário, com uma paleta de cores que não tem identidade, nem ser clara o suficiente para remeter aos desenhos animados dos tempos áureos de Walt Disney, mas não tão escura o suficiente para reproduzir o barroco comum da filmografia de Burton. É curioso como a completa falta de espírito alastra-se na fita tanto quanto com a representação de sua heroína, fazendo se perguntar se o erro não é proposital, desconsiderando a costumeira incompetência do diretor em apresentar histórias simples.
Os desencontros seguem com uma enorme gama de personagens descartáveis e sem carisma, praticamente proibindo qualquer rastro de empatia com a jornada. O script de Linda Woolverton é banguela, sem qualquer possibilidade de uma digestão saudável por parte do público. Tudo é motivado pelo péssimo e enorme conjunto de falhas e incongruências que fazem discutir a culpabilidade da ruim qualidade da obra, se da roteirista ou do diretor. Burton costuma transformar bons textos em apresentações demasiadamente incongruentes, fator que faz pesar a responsabilidade, uma vez que Woolverton coleciona muito menos pecados filmográficos que o cineasta.
O Chapeleiro Louco de Johnny Depp nem é tão irritante se comparado ao pastiche do ator através dos anos com a saturação de Jack Sparrow, Tonto, seu personagem em Sombras da Noite – também de Burton –, e, claro, se confrontado com o porre causado pela Rainha de Copas de Helena Bonham Carter. O grotesco da maquiagem e as colocações verbais não conseguem ofuscar todo o equívoco que é sua performance dramática, certamente um dos mais lamentáveis aspectos do já combalido filme.
Outra infeliz coincidência de erro dentro da trama é a aleatoriedade do tamanho de Alice, que em muitos momentos tomava algum tipo de poção que a fazia aumentar e diminuir de tamanho, uma tentativa óbvia de exibir que, para uma adulta, aquele mundo louco já não era cabível, tornando a inadequação o ponto máximo do incômodo que é terminar de assistir à película. Evidencia-se, assim, o quão banal é toda aquela caracterização grotesca e descabida, que serve quase que somente para desvirtuar os rumos dos personagens clássicos de Lewis Carroll. A falta de resolução de tamanhos também remete à dificuldade de propor uma identidade do filme, que demonstra problemas em demonstrar o variável entre pesado e/ou infantil, sendo enfadonho em ambos os aspectos.
O ponto de partida, onde o roteiro poderia finalmente ser maduro, é completamente ignorado, dando lugar a uma pífia batalha épica, que seria comum no futuro em outros filmes semelhantes – a lembrar-se de Branca de Neve e o Caçador – jogando por terra qualquer possibilidade de discussão minimamente interessante, tudo para apelar ao óbvio hype de Game of Thrones que tomava as noites da HBO.
De todas as criaturas birutas que habitam aquele cenário, Absolem (voz de Alan Rickman), que, assim como Alice, também está em fase de maturação, tornando física – também igual à personagem-título – sua transformação em algo maior. A máscara de mentor lhe serve perfeitamente, pois é no drama que Alice perceberá que são necessários uma movimentação maior e um desprendimento das certezas pseudo-amadurecidas que tem, tendo no encontro com a forma em casulo do seu mestre a ciência de tudo que viveu quando ainda era muito jovem.
Basicamente, o roteiro demoniza os deformados, mostrando-os como seres ressentidos e amargurados, que têm sua dor causada pela rejeição, uma vez que a tirania é vazada a partir de um deles. O pretenso crescimento espiritual da protagonista é interrompida por dancinhas constrangedoras com a intenção de quebrar o decoro da forçada cordialidade dos nobres presentes no mundo real, mas que, em essência, só ridicularizam a nova postura da personagem. Mia Wasokwska, aliás, não parece inspiradora mesmo quando consegue vencer os preconceitos que a cercam. A versão de Burton acerta em poucos aspectos, tendo uma trilha sonora acertada, mas que nem incorre como deveria. A sensação da análise final é de que Alice no País das Maravilhas é um equívoco completo: bobo, patético e deslocado.
De começo intimista, focando uma conversa do personagem de Jason Statham, Deckard Shaw – finalmente nominado depois da cena pós-crédito do capítulo seis – ao visitar seu irmão no hospital já demonstra seu potencial incendiário, o mesmo ímpeto de violência extrema visto no incidente da última cena pós-crédito da franquia. Logo após o acontecido, ocorre uma corrida ao estilo do filme original, inclusive com resgate a personagens chave do início da jornada, como Letty (Michelle Rodriguez), que finalmente retorna à sua rotina de adrenalina e perigo em alta velocidade. Após vencer o certame, diante dos olhos de seu amado Dominic Toretto (Vin Diesel), ela surta, pondo à prova sua recuperação pós-trauma. É nesta tônica em que a direção de James Wan se baseia, rediscutindo toda a trama da franquia Velozes e Furiosos com um estilo mais certeiro e visualmente mais belo.
Mesmo ao retratar as cenas com certo exagero visual, há um refino bem mais extenso do que o da quadrilogia de Justin Lin. É na alteração da rotina que se concentra a maior mudança dramática, concentrada em demasia na nova trajetória de Brian, transformado no pacato motorista de seu filho. Mais uma ação terrorista de Shaw interrompe sua rotina, consistindo basicamente em um chamado à aventura, não só dele e de Torretto, mas também do ferido Hobbs (Dwayne Johnson). Em um hospital, Dom e Hobbsem se encontram, mais uma mostra de como os paradigmas estão diferentes, já que os antes inalcançáveis super-heróis já não são mais tão indestrutíveis. A partir deste momento, hematomas e ferimentos ficariam em suas carnes, músculos, ferindo tendões e especialmente seus orgulhos.
O cuidado em reunir os laços de uma franquia de seis filmes é muito bem executado, com retornos de quase todos os aventureiros que acrescentaram qualquer aspecto minimamente interessante à longa estrada percorrida pelos membros da família, com austeridade suficiente de um diretor que até então não tinha participado da série de filmes, sob os cuidados do escritor Chris Morgan. A atmosfera mais séria não invalida qualquer possibilidade de escapismo visual, unindo verossimilhança pautada na sobriedade e manifestada na personagem de Kurt Russell, Mr. Nobody, designado para apontar possíveis alvos e aliados de Shaw, sendo o novo contato deste com a lei. Hobbs permanece hospitalizado, servindo como orelha ao explanar os outros contatos terroristas.
Através de seus contatos, Shaw reúne o resto do time – Tej (Ludacris), Roman (Tyrese Gibson) e, claro, Brian e até Letty – sem que Dom soubesse, unindo-os sob sua tutela em uma repaginada fase, baseada agora na lei, pervertendo ainda mais o código ético anti-heroico. O tom não é exatamente de sobriedade, mesmo porque nos trailers já se revelava que o céu seria o lugar de onde muitos carros brotariam, como em pancadas de chuva, causando um temporal metálico no Azerbaijão. No entanto, mesmo os arroubos e falácias visuais servem melhor aos esforços da trupe de velocistas.
Qualquer construção de realidade é prontamente debochada pelo exacerbado escapismo da fita, em cenas em que carros atravessam três prédios, entre janelas e buracos onde armazenam-se aparelhos de ar condicionado, destruindo pilastras e artefatos artísticos antigos. Uma metalinguística mensagem de Wan, que tenta superar a pretensa falta de valor artístico de blockbusters como os da franquia, convencendo os críticos ranzinzas, seja pelo amor ou pela dor.
Brian volta a ter uma importância indispensável na trama, justificando todo o seu treinamento como agente do FBI ao ser o responsável pelo resgate da misteriosa Ramsey (Nathalie Emmanuel), enfrentando o personagem de Tony Jaa em uma curta porém interessante luta, mais bem construída do que todas as porradarias anteriores. Ainda que prossiga relegado a ser um coadjuvante de luxo, seu papel no enredo acaba bastante valorizado, mesmo em comparação com Dominic.
Velozes e Furiosos 7 é um capítulo bastante diferente de seus antecessores, deixando o conceito de filme de assalto de lado para se tornar um filme de super agente, como na Trilogia Bourne, especialmente as películas de Paul Greeengrass. A qualidade das sequências de ação evoluiu de uma forma absurda, com uma crescente de qualidade e conseguindo quebrar o estigma de involução em continuações, fazendo deste o melhor da franquia, semelhança vista nos clássicos de James Cameron: Exterminador do Futuro 1 e 2.
Mesmo com um elenco enorme e recheado de personas famosas, com celebridades que teriam segundos em tela, há um equilíbrio narrativo, sem desperdícios de talentos. A obra pontua o epitáfio de Paul Walker, equilibrando emoção, sentimento e lágrimas contidas. Por mais que sobre pieguice, a decisão do roteiro foi a mais acertada possível, especialmente ao dedicar o filme à memória e fechar o sétimo episódio em uma estrada bifurcada, que honraria a trajetória de ambos os personagens, os quais seguiriam em frente diante da irônica tragédia que tirou Paul Walker de cena. Velozes 7 consegue elevar o nível da franquia, aumentando qualquer expectativa do futuro. Tudo graças à direção de James Wan, que superou o receito de mudar da praça dos filmes de terror para os de ação desenfreada.
Mad Max tem possivelmente duas das cenas que mais me marcaram em toda a minha vida. Ficou gravada em minha mente a primeira sequência em que o maluco que se auto intitula Nightrider parte em uma louca escapada pelas rodovias australianas berrando seu próprio nome e provocando o caos. Seu olhar de insanidade é substituído por um de pavor quando o bandido avista o Interceptor pilotado pelo policial Max Rockatansky no seu encalço. É simplesmente sensacional toda a sequência que culmina em um espetacular acidente com um trailer que pertencia ao próprio diretor George Miller. A outra sequência marcante ocorre quando a gangue à qual Nightrider pertencia mata a esposa e o filho de Max. Após uma longa sequência de tortura psicológica, a mulher escapa do cativeiro com a criança e uma amiga idosa. Porém, a fuga acaba frustrada quando o carro deles quebra e ela foge com a criança nos braços. Enquanto ela corre, os motoqueiros avançam alucinadamente em seu encalço. Um rápido corte, e a morte dos dois fica somente representada pelo sapatinho da criança e um brinquedinho caindo no asfalto.
A trama estabelecida pelo diretor/roteirista George Miller em conjunto com Byron Kennedy mostra um distópico e pós-apocalíptico futuro em que combustível é o principal estopim para disputas e crimes. O policial “Mad” Max Rockatansky patrulha as estradas combatendo implacavelmente os criminosos. Porém, ao acabar com a vida de Nightrider durante uma perseguição, acaba vendo seu mundo ruir ao passo que os companheiros do criminoso empreendem vingança contra sua família e amigos.
George Miller, a despeito de todas as restrições orçamentárias, se esmerou em fazer algo memorável. As sequências de perseguição são incrivelmente bem orquestradas, com tomadas bem ousadas para a época. Talvez por serem mais cruas e não usarem nenhum tipo de efeito especial, elas acabam sendo muito mais vertiginosas do que as de qualquer filme sobre carros lançado recentemente (saga Velozes e Furiosos, eu estou falando com você). Mais interessante ainda de reparar é o excelente uso que o diretor faz das paisagens da Austrália. A aridez e o calor expressos na tela só tornam os eventos apresentados na tela ainda mais chocantes para o espectador.
O diretor e o corroteirista Byron Kennedy criaram um roteiro bem amarrado e coerente, que flui naturalmente retratando toda a trama de vingança que se inicia com a morte de Nightrider e que muda de foco com o assassinato da família de Mad Max. Além do mais, conseguem estruturar bem os personagens centrais da trama, mesmo os membros da gangue de Nightrider que têm suas motivações muito bem delineadas, ainda que simples. Max poderia ser um simples herói unidimensional tal e qual vários outros da história do cinema, mas, favorecido pela sensacional atuação de um jovem Mel Gibson e pela idealização dos roteiristas, acabou se tornando um personagem cativante e, mais importante, marcante. Os vilões Johnny “The Boy” e Toecutter, interpretados respectivamente pelos desconhecidos Tim Burns e Hugh Keays-Byrne (que estará em Mad Max: Estrada da Fúria como Immortan Joe) também tem um ótimo desempenho em cena. Já Joanne Samuel, a esposa de Max, atua em um nível muito abaixo do restante.
Talvez o grande ponto dissonante em todo o filme seja a trilha sonora, que em nenhum momento empolga ou magnifica o que acontece em tela. Porém, o conjunto figurino/fotografia/sequências de ação/bons personagens acaba suprindo esse defeito, e a música mal faz falta durante a duração da fita. Creio que George Miller não esperava, mas o diretor acabou criando uma obra-prima que entrou para a história do cinema e até hoje serve como referência para novas obras do gênero.
É cruel afirmar que só quem aprecia documentários carrega em si uma alma investigativa, mas é a verdade. Em 1991, Francis Ford Coppola foi a estrela do longo registro Francis Ford Coppola – O Apocalipse de um Cineasta, cuja existência prova, por A+B, a insanidade que foi filmar qualquer cena de Apocalypse Now, uma das super produções mais árduas e custosas a quem se propôs a realizá-la, tamanha foi a escala épica do projeto, junto a Fitzcarraldo e A Montanha Sagrada, só pra ficar com os épicos dos anos 70, década de grande expansão tecnológica. Na verdade, a simples intenção de pegar uma câmera e fazer Cinema é sinal da mais pura megalomania e complexo divino, essa coisa de brincar de Deus e criar o próprio mundinho controlado por poucos, vide Jacques Tati e o próprio George Clouzot, que comandavam a experiência tão bem. Cada um em seu gênero – Tati como o rei da comédia francesa, Clouzot, o conde do suspense française. Seu mais famoso clássico impermeável ao tempo, O Salário do Medo, colocou em 1953 o cinema criticando o espírito capitalista pós-moderno, mesmo que de forma abstrata, o que geralmente produz filmes arrebatadores como esse, da série “digno de revisões eternas”, sem sombra de dúvida. Um filme implacável e forte como qualquer atestado de nobreza por parte de Clouzot, que em companhia de Jacques Tourneur, o mestre das sombras, é orgulho nacional e artístico indiscutível.
O elegante O Inferno de Henri-Georges Clouzot mostra o outro lado da moeda que quase todo cineasta enfrenta: o querer fazer e não conseguir por qualquer motivo inerente à necessidade de ter sua arte concluída na realidade. Kubrick morreu antes de A.I. – Inteligência Artificial ganhar vida (e excesso de emoções que faria o diretor de Laranja Mecânica vomitar), porém seu intuito de reescrever nas telas com o mesmo fascínio estético de Barry Lyndon a vida e o caráter do imperador Napoleão Bonaparte nunca foi possível devido, mais uma vez, à impensável escala e ambição da ideia cujas dimensões nenhum estúdio quis carregar nas costas. E não é preciso ir longe: cinema no Brasil com um circuito dominado por super-heróis americanos é como puxar um navio de 160 toneladas morro acima em plena Amazônia. Menções a Herzog à parte, Inferno, o sonho não realizado da vida de Clouzot, tinha um roteiro de 300 páginas, e a devoção de um pai louco para ver seu filho à luz pela primeira vez. Isso nunca aconteceu.
A partir do som da câmera a registrar partes de um todo inconcebível, o documentário destrincha o que seria o filme a partir de contatos próximos à razão da maior frustração do artista, cultuado por meia dúzia de obras-primas. É possível imaginar o que poderia ser o almejado Inferno, romance de experimentos de linguagem, talvez o maior feito de Clouzot, de fato se assim a história tivesse caminhado em prol de um deleite. Todavia, o filme de grandioso não tinha nada, senão o que ele significava com storyboards, elenco e locações muito referente à rica obra do italiano MichelangeloAntonioni (A Aventura). Um provável fracasso, ou uma provável revolução: dois dos potenciais que consistem qualquer imagem e som. O foco poético frustrado pela rota turva da realidade dura. O documentário consegue dar água na boca a quem se interessa pelo provável ópio de um artista, e esse é um feito mais raro que o próprio tipo de Cinema que só Clouzot, em sua identidade, sabia manter em nossa memória. Para alguém que adapta Edgar Allan Poe, tudo é plausível, certo?
“Quando as pessoas não entendem, elas preferem ironizar a situação.” – Clouzot, o incompreendido.
O filme não seria um filme, mas tinha tudo pra ser um grande experimento, em plena Nouvelle Vague: o som conduzindo à imagem e o calor da discussão, um surreal acoplado à essência de um filme e outros indícios do gênio pulsante de Clouzot são os destaque graduais de um documentário excelente para estudiosos ou simpatizantes do fazer artístico, aqui valorizado desde a ideia até a a concepção, que por motivos óbvios não chega a ser final (de acordo com suas imagens divulgadas, o filme seria um ótimo expoente do moderno estilo pop art, sem qualquer indício do popular e influente estilo Art Noveau do século XIX). Sugestivo no ponto certo e concreto quando precisa ser, O Inferno de Clouzot é a exposição do making of de algo possível, habitando o rol do “quase”, onde o Napoleão de Kubrick e o Dom Quixote de Terry Gilliam, outro projeto maldito, tomam chá além de restrições ou orçamento disponível. A toca do coelho é profunda aonde só o Cinema, a mais completa das artes, consegue ir quando deseja.
A trilha característica pontua o início do longa-metragem premiado de Camilo Cavalcante, referenciando o mestre Dominguinhos num de seus últimos trabalhos antes de morrer. A História da Eternidade começa como uma ode aos tantos sertões presentes na região Nordeste do Brasil, analisando através da perícia da câmera uma importante face do povo brasileiro, mostrando já na primeira cena uma procissão religiosa, prenunciando o enterro de um pequenino.
As primeiras cenas não têm falas, basicamente mostram paisagens, vistas por uma pessoa saudosista que observa as fotos de praias em sua parede de muro chapiscado, usufruindo da pouca liberdade e luxo que tem. Alfonsina (Debora Ingrid) é a única mulher em uma casa em que habitam outros três homens, e para si sobra todo o trabalho doméstico do terreno, exibindo o tacanho e comum agir machista do retrógrado interior brasileiro. O alento da menina são os contos de seu tio, o artista Joo (Irandhir Santos), o qual, entre a preparação de uma apresentação e outra, poetiza à frente de sua devotada pupila que não tem qualquer perspectiva de ver algo além da areia sertaneja, quanto mais o amor.
Joo vive de favor na casa de Nataniel (Claudio Jaborandy), seu irmão mais velho, sendo constantemente cobrado por ele, sem qualquer possibilidade de perdão da dívida ou de alívio nos vexatórios avisos e lembranças, do favor que lhe é atribuído. A rotina do homem é composta por viagens para fora da cidade, sempre com sua concha levada ao ouvido, que o faz lembrar do som do mar, o mesmo que sua sobrinha faz questão de ouvir sobre, caracterizando nele um oásis de uma boa vida, até então inalcançável, agravado pela secura que predomina em seu território e lar.
A plataforma onde pousa o roteiro de Camilo exibe três histórias de amor, que não são exatamente indistintas e que aos poucos exibem uma revolução sentimental na aldeia. A simplicidade tanto das falas quanto das atitudes dá mostras de representatividade e voz aos excluídos, tendo em troca o tratamento da violência típica da misoginia impregnada no comportamento e mentalidade do cidadão médio. O pedantismo e servilidade alheios a Joo garantem cenas de extrema agressividade, interrompendo o que deveria ser um belo ato artístico, violentado por palavras insensíveis que ferem mais do que qualquer ato físico de violência.
As tramas paralelas servem como crítica à religião e à desinformação, elementos típicos de um povo que não tem acesso ao conhecimento, tampouco alternativas para a moralidade exacerbada que permeia o pensamento e viés de santificação exagerada. Um entendimento obsoleto e punitivo somente pela punição, sem produção de um pensamento mais profundo.
O choro ou o sofrimento consomem cada um dos homens protagonistas, apresentando a faceta mais frágil diante das mulheres a quem eles se dedicam, fazendo um trio de louvores a suas musas a transgressão das barreiras do politicamente correto, transcendendo a tradição com a rara chuva, que finalmente gratifica o sertão.
Mas o universo contemplado em A História da Eternidade é agridoce, agressivo com os que buscam a simplicidade sentimental, levando para longe a possibilidade de pleno bem estar ou de mínimo alívio, elevando o torpor da hostilidade a patamares superiores aos ditos de ternura; a ferocidade não é exclusividade da cidade grande e também habita a realidade do roceiro. O final intimista flerta com um otimismo improvável, que mais parece um sopro de esperança dos personagens carismáticos mostrados em tela, que em toda a sua terna descomplicação só buscam se ater a possibilidade de serem felizes.
Manoel de Oliveira está morto. Nada se leva, portanto resolveu deixar seus filmes para trás – para nossa sorte, claro. Sendo Aniki Bóbó meu primeiro filme do mestre (o cúmulo da doçura, uma ode irresistível à infância, e não somente a inocência, mas como um período encantador e transitório de seres ainda em evolução geral que o filme faz questão de enfatizar sem destilar), o secular Oliveira viu o mundo mudar, viu a inocência de Bóbó perder lugar para outras tangentes ao longo do tempo, tempo registrado pela câmera, seus inúmeros personagens e cenários que os abrigam e abrigaram o próprio artista por tantos, tantos anos. Anos que pesam agora, e sempre, em qualquer análise de qualquer testamento com seu selo de qualidade.
O cinema de Oliveira reconheceu vários expoentes, afinal só faltou registrar o mundo virando ao contrário. Dos anos 30 a 2014 (!), vários modelos de percepção, muitos exemplos da visão do artista para cada fase transitada sob estímulo e coragem naturais; a astúcia e a audácia de um principiante; e a experiência de um perito cavalgando cada filme tal qual o próximo desafio de sua vida. Vida de cineasta é assim, devoção, alma e dinheiro, então o que os motiva a dar o sangue? Na pintura, o surrealismo escrachava a importância do inconsciente na criatividade do artista. Na música, ritmos feito o funk sofrem várias adaptações culturais pra refletir cada grupo, fielmente. Mas percorrer o Eldorado é pavimentar uma carreira centenária. Uma missão olímpica de 62 filmes em míseros 106 anos.
Oliveira, de sobrenome tão comum e talento inaudito, é um caçador de fantasmas, entre tantos outros atributos, e Sempre Bela parece resumir o que isso significa num convite do futuro ao passado convidativo de uma relação. O que permite passar os sinais verde e vermelho que guiam os carros é o destino, um espectro de casaco negro, alheio à cidade que o rodeia em um ambiente frio por natureza – ou pela falta dela, curvo em direção de lugar algum na Paris noturna dos filmes romancistas. Mas a aparente distância sentimental do homem logo é quebrada por sua admiração ao feminino, manequins ou bonecas de carne, a chegar em sua amada nem tão são e nem tão salvo, mas agoniado por querer retomar agruras e falácias de idos remotos.
Um embate existencial onde o que prevalece é a luta de uma inteligência emocional frágil contra as tentações do destino que comanda os faróis da cidade – esqueça o monitoramento de trânsito, isso é poesia ou era pra ser. Sempre Bela não é o sensível guiado pelo intelecto, o retrato da não-coerção entre a paixão (talvez culpada por quem a tem) e a razão (talvez culpada por quem não a detém).
Do surrealismo espanhol de Luis Buñuel ao realismo transcendente do mestre português, Oliveira traduz o propósito de revitalizar o pós “felizes para sempre” do marido traído e sua esposa meretriz de A Bela da Tarde, em forma e nostalgia, nos convencendo de que uma segunda conclusão ao clássico filme de 1967 merece uma adaptação alternativa aos moldes de uma época diferente e moderna, o que nada afeta nenhum dos dois filmes e suas escavações pelo jardim do Éden afora. O que levou Eva e Adão às suas práticas é o gênese da exploração filmada em esmero, paciência e mãos de seda.
Sobretudo, ao filme não interessa os moldes do tempo – afinal aqui consta a busca atemporal a uma eterna beleza ex-conjugal –, e sim os porquês do velho Husson precisar ou simplesmente querer resgatar a atenção de Serizy, num jogo de gato e rato onde o detetive de seus passos na cidade luz é cultuado por uma câmera elegante e áudio espanhol para remeter à linguagem do cineasta. Mas nada aqui remete a continuidade: pura apropriação respeitosa, respeitável e criativa de uma ideia-prisma, cheia de observações possíveis (e diálogos de literatura europeia). Surrealismo? O quão surreal é a busca pelo amor não correspondido? Não mais que os feitos de Salvador Dalí, Ingmar Bergman, Alan Resnais, Luis Buñuel, ou do maior portuga do Cinema. Estamos pisando no salão das lendas, é bom saber. Elas estão mais vivas do que nunca.
O início do filme de Henrike Ruben Genz (Dias Melhores e Desculpe Incomodar) é silencioso, remetendo ao repertório típico dos thrillers europeus recentes que fogem da estética americana de pontuar cada sentimento com uma música. A perturbadora calmaria proveniente da ausência de som esconde as intenções sombrias dos personagens retratados, diferentes demais do termo do título original, Good People.
Em um mundo onde predomina a extrema violência urbana, o casal Tom (James Franco) e Anna Reed (Kate Hudson) veem sua rotina oprimi-los. Cheios de dívidas, o par ainda tem de denunciar a estranha morte de um vizinho, que apodrecia na casa ao lado e acumulava moscas à sua volta. Após a retirada do cadáver, a dupla limpa o apartamento onde ocorreu o óbito e encontra uma mala com duzentas e vinte mil libras, acima do assoalho. A quantia seria o ideal para acertar os débitos da família, mas usufruir do dinheiro parecia além de um movimento antiético, mas bastante perigoso.
Enquanto Tom e Anna balanceiam as decisões sobre o que fazer com a quantia que encontraram, um grupo de malfeitores segue no encalço do dinheiro, exibindo uma violência gráfica típica dos filmes de Guy Ritchie e dos irmãos McDonagh, mas sem o exagero gráfico dionisíaco destas referências. Logo, os dois mundos distintos colidem, com a visita de contraventores violentos e torturadores, salvos por pouco pela ação do agente da lei John Halden (Tom Wilkinson), que tenta ajudá-los a fugir após o ato estúpido de Tom em gastar o dinheiro ilícito que achou.
O suspense predomina sobre o texto de Kelly Masterson por apresentar uma intercessão de realidades onde a violência extrema e proximidade da morte dão a tônica. Após infrutíferas tentativas de redenção, o casal se vê com baixas possibilidades de sobrevivência, mostrando seus arquétipos de previsíveis e ordinários homens comuns que, diante da possibilidade de usufruir da fortuna alheia, acabam caindo em tentação. Essa atitude contraria o clichê da máxima popular que afirma que o povo é honesto e oprimido pelos poderosos, e apresenta uma faceta corrupta que levanta questões morais mas que não demoniza os que praticam atos (ditos) maus por necessidade: a motivação dos protagonistas está longe de passar pela ganância e volúpia por dinheiro. No entanto, a nobreza prévia é atrapalhada pelas direções opostas de Franco e Hudson, que não conseguem imprimir qualquer química enquanto par romântico.
O filme, apesar de conter bons momentos, passa a não se levar a sério, especialmente após o começo da segunda metade. A curta duração de noventa minutos não permite que haja muito mais viradas do que já era esperado. Cenas em que sentenças são dadas a partir de armadilhas caseiras, ao melhor estilo de Charles Bronson em Desejo de Matar 3, sepultam toda a aura misteriosa dos primeiros minutos, passando a mostrar uma caça frenética com direito a dilacerações e corpos ensanguentados típicos de filmes B, nos quais qualquer verossimilhança é imediatamente afastada pela sobrevivência do mais fraco e mais inapto.
A diferenciação internacional criada no começo da película é abandonada com o final repleto de bordões e clichês visuais, com “ressurreições” acontecendo a todo momento e exemplos de superação de cunho bastante vulgar e barato. Risco Imediato tenciona ser algo diferenciado por sua fórmula inicial, mas não demora a exibir uma trama genérica, com personagens cuja profundidade não ultrapassa a dos arquétipos comuns de filmes de ação, tendo nas cenas de violência gratuita o seu ponto mais forte, mostradas com um grafismo invejável.
Grandes Olhos, novo filme de Tim Burton, é uma autobiografia velada do diretor e ao mesmo tempo o filme com a assinatura menos marcante de Burton. O cineasta, outrora tão profícuo, é frequentemente visto como alguém que se tornou refém de si mesmo e da marca que ele mesmo criou. Desde as participações de Johnny Deep e Helena Bonham Carter em seus filmes, até o uso que faz da estética padrão, tudo é apontado como mais do mesmo, como uma caricatura de si. Sendo assim, a obra nasce com duas grandes oportunidades: discutir o lugar da arte e do artista, e agarrar com unhas e dentes sua assinatura de diretor. Infelizmente, desperdiça ambas cena por cena.
O filme baseia-se na vida da pintora Margaret Keane (Amy Adams – aqui, subaproveitada) e seu marido, o falso pintor Walter Keane (Chistopher Waltz – magnético como sempre), e na vida daqueles que redefiniram o mercado da arte durante a década de 1950 ao licenciarem seus produtos para estampar todo tipo de coisa. Negados em galerias de arte, e como artistas pela crítica, argumentam em certo momento que a arte não precisa ser elaborada ou sequer ser chamada de arte. Só precisa impactar.
Um dos pontos mais marcantes de uma obra de sucesso não são suas qualidades, mas sim seu apelo popular. A reação da academia e da crítica profissional então é rapidamente rejeitar aquela obra como arte, aplicando então o rótulo de obra comercial. Não é incomum que esta seja a crítica máxima a uma obra quando esta suscita alguma emoção mais passional. A grande dificuldade de entender o lugar da arte atualmente é que “contemporânea” é um termo esgarçado, pois é capaz de aceitar tudo. Neste ponto, mesmo o pior artista irá tornar-se um grande artista caso explique suas motivações artísticas com argumentos convincentes. Esta situação não é ruim ou degradadora da “verdadeira arte”, mas deixa as coisas mais confusas para aquele que buscar encaixar tudo em gavetas.
É inevitável neste ponto pensarmos em artistas como Romero Britto e outros que são abominados por chamarem-se artistas, mas estampam mais produtos licenciados do que galerias. Claro que há como defender Britto como artista, mas ele não parece se importar muito com isso, e se mostra feliz nas caixas de lenço de papel. Burton, aqui, assume a mesma postura, já que a forma que encontrou para defender a arte de Margaret não é através de argumentos, mas sim pela exploração de sua meiguice e a contraposição desse seu predicado com a maledicência de seu marido, tão atraente e maldoso quanto o mercado artístico. Sem conseguir comunicar algo de relevante, a película vende a artista sob o mesmo pretexto de suas obras, que é sua fofura, o que acaba por tornar a narrativa um exercício de futilidade. Não à toa, embora a simpatia com a personagem formulada por Adams seja imediata, o que atrai realmente no filme é seu marido. Como grande vendedor que é, vende sua persona falsificada para todos, com eficiência e elegância. E talvez este seja mais um dos pontos fracos do filme, pois escanteia sua Margaret fazendo dela uma mera espectadora de sua própria vida.
Nos poucos momentos em que foi possível tratar o assunto de forma producente, Burton se desloca do projeto e insere cenas constrangedoramente inverossímeis que acabam por destoar de todo o resto do projeto, como quando um crítico de arte interpretado por Terrence Stamp se digladia com Keane em um jantar, chegando a assumir habilidades sobre-humanas. Outro desperdício foi a tentativa de relacionar suas figuras de grandes olhos com o estado mental de Margaret − que só vale por ser um dos poucos momentos em que vemos características de Burton no filme −, que por não conduzir a narrativa, ou exigir demasiada boa vontade do espectador em buscar o conteúdo semiótico das cenas onde isso ocorre, novamente soa gratuito e fútil, exatamente como tenta negar ser.
A humilde produção dirigida por Augusto Sevá se passa numa cidade interiorana da Bahia, e antes de iniciar a narrativa há um aviso de que o filme é feito com um elenco formado por atores não profissionais, patrocinado com dinheiro público. Apesar do adjetivo presente no título, não há como levar a sério a trama adolescente do mesmo estilo de Malhação.
A sinopse divulgada resume a trama de um grupo de adolescentes formado quase que exclusivamente por meninas, ao menos no protagonismo dos causos, mostrando a descoberta da sexualidade típica da puberdade de uma maneira que equilibra o escracho com a timidez comum de meninas em idade escolar. Com uma sapiência de roteiro semelhante ao conteúdo visto em teatros escolares, os dramas são vividos de modo superficial, sem ritmo ou apreço por uma dramaturgia minimamente interessante.
Há um bom motivo para o filme, finalizado somente em 2011, ter sido lançado em circuito quatro anos após sua pós-produção. Cada aspecto do filme remete a uma história mal contada em que mesmo os movimentos mais óbvios são tratados de modo estúpido e esdrúxulo. Le (Luciana Louvadini), Daia (Naiara Carvalho) e Mônica (Mônica de Oliveira) vivem sua vidas à beira da praia, ao som de música de mau gosto, dando passos largos rumo a uma trajetória cafona, repleta de gírias mal concebidas e olhares desencontrados, sem qualquer profundidade maior. Em resumo, efêmero como as férias de verão, onde moços da cidade grande vêm e usufruem das chamadas “minhocas da terra”, sem grandes consequências ainda que diante de tabus, como a gravidez indesejada.
A vontade de viver um grande amor faz com que cada um dos membros do trio tente, ao seu modo, lidar com a precoce vida adulta, sendo que uma delas, grávida, ingere cápsulas e remédios na tentativa de parar o processo de gestação. Utilizando uma produção deficiente em qualidade, a direção de arte falha ao usar em cena embalagens de remédios comuns para dor de cabeça, sem sequer produzir uma drágea decente que deveria ser ilícita.
Apesar de introduzir pateticamente os causos de uma maternidade antecipada, o roteiro ainda insiste em tocar em questões delicadas, como o desprezo por parte dos pais das crianças, ainda que os comportamentos não se diferenciem em nada dos arquétipos que mais se aproximam de vilões. As músicas escolhidas para a trilha não combinam com a juventude das mães, que levam seus bebês para brincarem com o trio. Enquanto elas improvisam um número de karaokê usando uma embalagem de desodorante como microfone, revela-se um anacronismo digno de um script que teve zero pesquisa de produção.
A última meia hora é dedicada à exploração barata dos dramas pós-divórcio, repletos de traição e troca de acusações que em nada acrescentam, apenas banalizam questões sérias e atuais, como a precocidade dos dramas adultos e temas espinhosos como o aborto. Tudo de um modo bem ordinário.
O fato das personagens terem seus caminhos atravessados pela obrigação de crescer não garante a elas qualquer demonstração de amadurecimento, e elas são atraídas sempre por qualquer fala boba ou cantada barata, demonstrando que as experiências anteriores em nada acrescentaram ao ideário fútil, brincando num eterno vai e vem emocional. A irreal realidade exibida no município baiano de Trancoso é semelhante demais a de muitas cidades pequenas e zonas carentes das metrópoles. Mas o pior dos muitos pecados da fita é não produzir a mínima reflexão diante dos corriqueiros fatos mostrados em tela, apresentando um pastiche debochado que representa o drama de muitas famílias brasileiras.
Fundamentado em um discurso bastante constrangedor que visa trazer a “America” – somente o país do norte, com a bandeira azul, branca e vermelha – para as mãos de Cristo, o documentário de Heidi Ewing e Rachel Grady mostra em seu começo a multiplicidade do pensamento cristão protestante, distinguindo, em um programa de rádio, duas linhas de pensar a função do evangelho dentro da sociedade secular. Em meio a essa afronta, investiga-se um local específico, onde crianças de idades variadas aparecem em um peça teatral, trajando farda e camuflagem diante dos pais e responsáveis.
O Jesus Camp é um espaço pensado a partir da mentalidade batista, inspirada no testemunho do conhecido pregador Billy Graham. O objetivo do acampamento é isolar as crianças dentro de um ambiente onde sua atenção, seus corações e mentes poderiam proliferar e cultivar a mensagem cristã. Aos mancebos é dada a mensagem de que seria a função deles mudar o mundo externo, recebendo uma educação específica, repetindo frases feitas cujo efeito reflete em suas almas, voltando-as para um estado de transe em que os pequeninos começam a falar uma língua indistinguível. A questão de ser esta uma viagem é logo refutada pela líder do culto, Becky Fisher, que é filha de um pastor e responsável por ministrar as palestras às crianças.
Logo, o discurso pacífico e conciliador é posto de lado, com Fisher declarando abertamente que seu objetivo em passar a “Palavra” aos infantes é estratégico, o que em si contém uma declaração de guerra. Seu discurso é repleto da retórica do medo. Segundo sua fala, a religião e modo de viver correriam risco de se extinguir caso não se esforçassem em evangelizar o maior número de meninos possíveis, uma vez que os palestinos fazem o mesmo esforço, assim como todo o Islã. Para vencer seu opositor, os “justos” precisariam se valer das mesmas armas, que ao ver dos cristãos são fajutas, mas quando são usadas por si tornam-se somente uma arma de salvação de almas.
Mesmo as mães, ao travar conversas com seus herdeiros, transparecem um preconceito desmedido, diminuindo o pensar científico, indicando aos pequeninos que respondam à altura caso o criacionismo sofra qualquer impropério. O pensamento falacioso e sofista é plantado desde cedo no ideário dos pré-adolescentes, para que, ao crescer, eles respondam do mesmo modo, rejeitando qualquer argumento educacional, fortalecendo o ideário bélico que complementa a aversão islamofóbica. Sem perceber, tornam seus filhos e filhas em selvagens.
A mensagem que Jesus deixou no evangelho de Mateus é sumariamente ignorada. Em troca do sujeito humanista, preocupado com o ambiente social e perseguido por esses ideais, entra uma figura fascista que tem interesse na mentalidade alienada de seus devotos e massifica uma mensagem excludente de que somente os que seguem “seus” preceitos arcaicos têm direito à felicidade e a uma boa vida. Os pequenos são teleguiados a não viver mais suas vontades, tendo em suas palavras e atos o resumo dos dizeres religiosos incontestáveis, fáceis de desbaratar mesmo com a eterna negação de sua fraqueza de consistência.
Fisher, em um novo ambiente chamado “Kids on Fire” – fogo é um termo cristão que denota o poder de Deus –, pede “autorização” para, em uma pregação, falar sobre Harry Potter, declarando que os magos são inimigos do Divino, portanto indignos, e caso fosse na saudosa época do Velho Testamento ele seria morto, como castigo carnal, e teria a eternidade no fogo do inferno para repensar seus atos. A crença da punição é passada sem qualquer receio às mentes ainda em formação.
O objetivo dos documentaristas não é produzir uma versão caricata do modus operandi dos evangélicos, e sim exibir uma faceta mentirosa da conversão cristã, em que o mais importante é manter as mentes dos adeptos presas a um ideal inalcançável, para basicamente fazer deles soldados que trabalhem em prol dos interesses mesquinhos e preconceituosos de seus patriarcas e dos pregadores, aprendendo desde cedo a diferenciar pejorativamente os membros de sua família em deus dos ditos anormais, a saber: sodomitas, homossexuais e demais pessoas ignoradas pela Graça.
Uma das meninas entrevistadas declara achar “legal” (very cool) morrer por sua fé sob os gritos de “mártir”. A câmera de Grady e Ewing somente observa a vida selvagem e o discurso se alastrando. Não julga seus analisados, somente os expõe em posições constrangedoras para que o veredito final seja dado pelo público. O lado escolhido é claramente discutir a validade do discurso fundamentalista, pouco diferente do de crianças islâmicas que portam metralhadoras e fuzis. Uma arma ideológica que ignora completamente o estado democrático e a distinção do arquétipo religioso.
O máximo de conflito presente na fita é a fala do advogado e radialista Mike Papantonio, que não suporta os desmandos de tais cristãos. Antes de subirem os créditos finais, Becky Fischer dá seu último suspiro, mais uma vez esbravejando contra seus inimigos, para então entrar em um lava a jato e aumentar o som de sua pregação, abafando qualquer palavra externa. A água avermelhada caindo sobre seu para-brisa associa seu estilo de vida irresistivelmente ao sangue e a transferência pura e simples do radicalismo às crianças. A conduta extremamente condenatória parecia mesmo estar enraizada na mentalidade dos infantes, que precisariam de muita ajuda externa para sair desta situação.
Apelando para a dubiedade do espírito humano, Paul Schrader adapta o texto original de Nikos Kazantzakis, que por sua vez desvirtua e se desvincula de qualquer história contada nos evangelhos. Mesmo com o aviso, enquanto a trilha incidental ainda apresentava a abertura do filme, A Última Tentação de Cristo não conseguiu fugir das polêmicas, sendo constantemente censurado, editado e proibido em diversos períodos e países ao redor do globo.
A proposta intimista exibe por quase três horas a história do carpinteiro Jesus, interpretado pelo jovem Willem Dafoe, que em seus dias sofre uma perseguição pontual de um homem ruivo e agressivo, o ativista anti-romano chamado Judas Iscariotes (Harvey Keitel). Em todas as oportunidades, humilha o protagonista da jornada, criticando-o pela letargia de trabalhar fabricando cruzes, que, em essência, é a maior arma que os romanos usam para humilhar os judeus, já que tradicionalmente a cruz simboliza maldição, sendo proibido sentenciar um cidadão romano à crucificação.
Já nos primeiros momentos de exibição, há uma dupla inversão de valores, com a representativa caminhada de Jesus carregando a parte superior das cruzes, debochando de antemão da via crucis, tornando física a revolta anunciada por Iscariotes e a violência física contra a conhecida meretriz Maria Madalena (Barbara Hershey), agindo de modo tão sensacionalista quanto o militante arruivado, levando as joias que carrega sobre o rosto para cuspir em sua face.
A face patética de Jesus esconde algo fundamental, tendo neste paradigma o ponto em comum com o texto bíblico, demonstrando que o Chamado Divino é o seu fardo, como espíritos amaldiçoados que vagam ao seu redor produzindo um tormento sem precedentes. A peregrinação pelo deserto emula a mesma viagem que o escritor original da Torah, Moisés, fez para ter também com Jeová. Ainda que a intenção de Jesus fosse outra, a de se livrar do pesado jugo proposto a ele, pôde-se enfim dar vazão às suas necessidades, indo de encontro a Madalena.
Paciente, ele aguarda vendo todos os homens ao seu redor deitarem-se com sua amada, demonstrando a mesma letargia de outrora, uma dificuldade em assumir o que queria, tomado por um temor de não ser bom o bastante para nenhuma das tarefas a que foi designado, desde as que jamais escolheu até as que naturalmente assumiu. O medo é fruto do sagrado, receio de quebrar promessas a um ser invisível e supremo que determina o destino de todos os que estão sob a jurisdição terrestre, sentimento comum a muitos fiéis e devotos do cristianismo pós anos 2000.
Aos poucos, o eremita aceita seu chamado, ainda que sua postura seja cautelosa, fruto de uma rejeição tipicamente teatral que exibe grande parte das incertezas humanas, aproximando o anunciado arquétipo, demonstrado por Nietzsche, do homem perfeito perante o homem comum, medroso, repleto de falhas e com coragem moderada, quase nula. Mesmo o “aceitar” de seu fardo não é pleno; o reconhecimento é gradativo. Enquanto outros servos trabalham durante toda uma vida para se aproximar do criador, o personagem biografado tem livre acesso às palavras do alto, chegando ao ponto de subvalorizar sua própria interferência e seus talentos.
Logo, os caminhos de Judas e Jesus mais uma vez se cruzam, sob a pena de o militante político assassinar o nazareno. Antes de se cumprir o sacrifício voluntário do “cristo”, Judas percebe a mudança postural do seu conhecido, ainda que de forma mínima. A volta à terra de Jerusalém pontua-se pela Palavra de Conhecimento – termo que designa um dom, no livro de Atos – onde Jesus provoca o primeiro milagre político, tendo total ciência da intimidade do respeitado Zebedeu (Irvin Kershner, diretor de O Império Contra-Ataca), e o freia em sua fúria assassina e machista. Após o fato, o carpinteiro lança mão de sua origem agrícola e humilde para falar diretamente ao povo, conseguindo um alcance popular que nenhum político catedrático conseguira antes, repetindo palavras otimistas que incrivelmente fugiam do lugar comum em tempos de escravidão, e que faziam confundir a incauta plebe, a qual achava que o discurso do homem era para enfrentar os opressores.
Nadando na contramão do óbvio, o resignado Messias faz lavar os pés da mulher que se deitou com milhares de homens, citando passagens canônicas do judaísmo e do cristianismo, mas em uma ordem conveniente à versão mais humanizada do conto. O homem do campo passa a ser chamado de Rabi, mesmo pelo sujeito que quis matá-lo, e começa a formar seguidores, homens que dependem de seus discípulos para viver, e que não tem qualquer alento ou esperança fora os seus mandamentos inseguros. A certeza de caráter cresce em uma subida íngreme, que se fortifica à medida que o caminho é traçado. No entanto, a ordem dos zelotes ainda perturba Judas, apesar de sua crença no messianismo de Jesus se manifestar cada vez mais frequentemente.
A mais brilhante faceta da realização de MartinScorsese é mostrada antes mesmo da obra completar uma hora de duração, quando os Pentecostes pós-Evangelhos se amalgamam com ao batismo do profeta e anunciador da vinda do Salvador, João, o Batista (Andre Gregory), um homem de aparência e vestes grotescas, que comanda um culto onde mulheres nuas batem cabeça como se estivessem possuídas por algo maior, pela mesma manifestação comum aos terreiros de religiões de matiz africana que cristãos fundamentalistas demonizam, mas que visualmente nada diferem das manifestações alegadas à ação do Espírito Santo, que na Bíblia seria o substituto físico do Deus Filho. O batismo aquático seria o carimbo, o primeiro passo da comprovação da missão de resgate aos homens confiado ao corpo do Cristo, a testificação, chamada Rhema (palavra falada e direta), que se insere no interior emocional do iluminado em ascensão.
As visões a que o personagem título é submetido se confundem com devaneios, fazendo alegoria ao autoengano, algo muito comum em alguns dos que professam uma fé recalcante e excludente, que está mais disposta a acusar do que acolher. A diferença básica é que, como nos escritos sagrados, Jesus repele tais indicações e tentações, não cedendo a qualquer julgamento prévio, pautando seu agir e julgar na verdade, e não em ditos sofistas.
O imprescindível realismo do script revela um Lázaro (Tomas Arana) ressuscitado não da forma conveniente como os filmes bíblico convencionais, mas sim como um moribundo, um morto andante que guarda semelhanças enormes com as criaturas ressuscitadas nos apocalípticos filmes de George A. Romero, exibindo a contrapartida dos milagres jesuínos, nem sempre maravilhosos, algumas vezes macabros e inconvenientes. A carne putrefata de Lázaro exala um odor forte, e serve basicamente para demonstrar o poder do Cristo encarnado, já que, daquela sub-vida, nada novo surgiria, nada proveitoso seria estabelecido, além da óbvia referência miraculosa que chegaria aos ouvidos dos poderosos romanos.
O auge do orgulho inflamado de Jesus se dá após um justificado ataque de raiva. Sua ira e violência imperam despejando-se sobre os comerciantes, que fazem do templo sua feira, uma rajada de impropérios, xingamentos que atingem a moral daqueles homens, denunciando todos os maus atos e a banalização do santificado que fazem. Em defesa do povo, há os doutores da lei, que usam o pretexto do câmbio da moeda para exercer a prática lucrativa na casa que deveria ser de deus, usando do poder sacerdotal para enriquecer levianamente. Sempre aos olhos da multidão, que nada faz além de consumir e financiar a vergonha lucrativa.
É para destituir o sistema corrupto dos romanos, e escancarar a hipocrisia dos fariseus e saduceus, que Jesus permite a Judas se “corromper”, entregando-o ao destino cruel que sofreria, para então fechar a esfera da cruz. O viés pensado para justificara traição é mais plausível, política e verossímil do que os livros de Mateus, Marcos, Lucas e João, além de retratar melhor a contemporaneidade de Jesus e a atualidade.
A partir da segunda hora de exibição da obra é que mora a principal polêmica do filme, com a saída do crucificado antes do estabelecimento da condição de cadáver. Ele é visitado por um infante querubim de formas humanas, o símbolo da inocência que o livra do fardo desnecessário, como em Abraão e Isaque, no Gênesis. A partir deste ponto, o Messias pode seguir sua vida normativa, sofrendo perdas e ganhos como qualquer reles mortal. A tratativa de sua rotina é muito mais calcada no “se fazer carne” do que no conteúdo das escrituras sagradas.
Já na velhice, Jesus recebe a visita de seus seguidores do passado, revelando o infortúnio causado a Israel desde a aposentadoria do Messias, que decidiu não morrer, mostrando que a celeuma e a rendição à mediocridade foram os fatores que primordialmente perverteram os rumos históricos da região, devendo ser consumada sua morte para que o seu povo – e não a humanidade – tivesse qualquer chance de salvação, fazendo dele uma criatura muito mais política do que um baluarte de religiosidade.
Apesar das muitas acusações de sacrilégio, usando-se de passagens isoladas e fora de contexto para justificar as negativas falas, A Última Tentação de Cristo cumpre um importante papel de reflexão, a despeito da moral encontrada na Bíblia Sagrada, exemplificando de maneira bem didática o viés revolucionário da figura messiânica, afastando de si a possibilidade de ser o incentivo e inspiração para o mote do fundamentalismo religioso em voga no discurso de tantos sacerdotes e líderes ditos religiosos. O Cristo de Scorsese, Kazantzakis e Schrader habitou a humanidade, viveu seus pecados e seus medos, e a humanidade habitou em si, se fazendo carne na figura que devia ser deus, aproximando divindade do humano. Como uma singela e sincera ponte para o Divino.
O veterano diretor Barry Levinson dá prosseguimento a sua parceria com Al Pacino, muito bem-sucedida em Você Não Conhece o Jack, para dar vazão ao metalinguístico O Último Ato, filme que conta a história de Simon Axler, um ator de teatro reconhecido por seu méritos dramáticos que de repente percebe-se do lado de fora do teatro, um pesadelo comum de qualquer ator. Na verdade, este é somente o primeiro aspecto de sua tragédia pessoal.
O arroubo emocional em que Axler está metido faz com que ele tenha atitudes drásticas, impingindo a si uma dor tremenda na tentativa de sentir algo sob a própria pele, no desespero de não conseguir mais exercer seu talento. Os takes em lugares bastante distintos remetem à dificuldade que Simon possui em atuar por diversos cenários, tendo como constante o terrível temor de não conseguir mais pôr em prática os ensinamentos que propaga em palestras a seus alunos. A perda de sua essência enquanto artista invade inclusive sua perspectiva de identidade.
Em meio a sua crise existencial, buscando fugir de sua depressão habitual, Simon prossegue seus dias, até receber a visita da filha de amigos de longa data: Peggen Mike Stapleford, mais um papel forte de Greta Gerwig. Peggen é uma jovem lésbica, de bela aparência, que fantasiava casar-se com o astro desde que era apenas uma garotinha. Após tomar bastante vinho, a moça inicia uma interação sexual com o homem, em um flerte que só ocorre em virtude das atitudes da moça, muito por causa da completa inadimplência emocional e sexual que o ator geriátrico vive em sua rotina.
A apresentação dessa nova relação abre mais possibilidades de conflito, combalindo ainda mais a mente do artista, já em degradação, com novos paradigmas de brigas e disputas, a começar pelos antigos affairs de Peggen. Deparar-se com a amante de sua parceira faz Simon ter ainda mais dúvidas, principalmente sobre os motivos que a fizeram trocar a antiga rotina para estar com ele, sendo assim incapaz de enxergar o óbvio, que envolve a proximidade causada pela admiração do passado entre ambos.
Da maneira mais patética possível, os pais de Peggen chegam ao lar de Simon para indagá-lo a respeito dos desejos e atos lascivos do padrinho com sua afilhada. Mesmo tendo vivido sua rotina de modo dionisíaco até então, o artista começa a se perguntar sobre a moralidade, ou a falta dela, de seus atos, assim como a posição de conviver entre seres completamente insanos, que lhe pedem favores nefastos baseados na ilógica, tão tresloucados que fazem duvidar qual é o nível de realidade em que vivem.
Toda a dimensão do trabalho de imersão de Simon Axler é duramente analisada sob os olhos atentos da câmera de Levinson, dionisíaca como todo o esforço de exercer atuação sobre material e texto alheio. A preparação e energia que deviam ser empregadas para fazer Rei Lear são gastas em discussões e na resolução das vicissitudes inerentes à vida do adulto, fruto da mesma rotina que lutou tanto para apagar ou fugir; o cotidiano que refutou graças à dedicação ao seu próprio, que, vez ou outra, contemplava também seu talento.
A repentina crise que passa faz pensar que aquilo é a retribuição do que Simon plantou, resumida na perda da única coisa que lhe foi importante e constante em vida. A arte é tão ingrata quanto a soberba: só se permitiria ser capturada novamente quando a entrega do intérprete fosse completa. Os aspectos teatrais fazem lembrar o texto de A Pele de Vênus, de Roman Polanski, no desesperador ato que une rei e figura artística, os quais têm nas luzes da ribalta e aplausos a sua igual gratificação. Os momentos finais justificam tanto a versão brasileira de “último ato” quanto a descida ao cerne da humildade na tradução de “humbling”, tratando desta humilhação não como afronta, mas sim como a arma necessária para a entrega completa e a solução para o quadro depressivo.
A peregrinação mundial dos cientistas Richard Dawkins e Lawrence Krauss é flagrada pela câmera e edição moderna de Gus Holwerda, que se utiliza de depoimentos de celebridades conhecidamente incrédulas – a maioria ateia – para fortalecer o discurso que torna o argumento científico a solução para a maioria dos males humanos, especialmente o da falta de discussão do papel dogmático que a religião exerce sobre as sociedades ocidental e oriental.
Dawkins é um zoólogo, etólogo e evolucionista, enquanto Krauss é especialista em física teórica. Seus currículos os credenciam para falar a respeito das descobertas pregressas da ciência, e especialmente para pregar às multidões a graça da verdade, a ciência como libertadora de qualquer pensamento recalcante, por ser ela a que explica a face originária da vida. No entanto, para que o alicerce da ciência seja sólido, é preciso usar o sepultamento por completo do pensamento religioso, tirando-o da base da pirâmide de pensamento, não só por ser a “instituição” um órgão que proíbe a discussão em volta de si, mas também pela natural escravização de seus membros, a maioria vítima de sofismas alienantes, cuja consciência passa longe da mentalidade dos fiéis.
Os debates são quase sempre muitíssimo enérgicos, onde a razão e a lógica quase nunca vence o senso comum do pensamento formado através da fé, seja pelos devotos fundamentalistas, seja por meio dos crentes que aceitam concessões. O discurso dos cientistas, no entanto, é indobrável por estes terem a certeza de que qualquer faceta da crença acima da premissa congruente do raciocínio fuja de seus próprios ideais.
Olhando por esse ângulo, é fácil associar o modus operandi dos pesquisadores aos de um fanático religioso, que possivelmente inspirou parte da massa ateia praticante que tenta converter tudo e todos. Mas há que separar a abordagem do discurso e as estratégias de fala, executadas para mais fácil entendimento dos incautos no simples pensar e no estudo da origem da vida, das espécies e dos lugares em que o homo sapiens habita. Os números apresentados para uma plateia exclusivamente sua são realizados em ambientes teatrais, dando a eles um ar de celebridade e que, com humor, levam a sua plateia uma mensagem que entretém e pretensamente informa. Assim, o discurso torna-se bastante discutível em razão da edição escolhida que os glamouriza na tentativa de popularizar a fala, o que pode naturalmente banalizar suas palavras – especialmente para os analistas mais “xiitas”.
As imagens falam por si só. Enquanto os dois protagonistas estão em um ambiente fechado, onde a paz reina, do lado de fora há vozes dissonantes que vociferam ofensas distantes demais da paz que predomina sobre o evangelho e tantas outras religiões, derivadas ou não do cristianismo, crenças essas que basicamente tentam reduzir o argumento da não religião a algo que a maioria dos dogmáticos conhece: o puro recalque, descrito por Sigmund Freud como fruto do chiste, de quem baseia qualquer decisão lógica em passionalidade, calcada basicamente na mágoa, que é o inteiro inverso da religião.
A crença defendida em Os Incrédulos é abordar en passant os conceitos científicos que Dawkins e Krauss pregam, não apresentando todos os argumentos que estes costumam usar em palestras, até para que o documentário sirva de aperitivo. O alvo é destacar o quão ignorantes podem ser os opositores deste pensamento, em alguns pontos até validando algumas ideias, mas, claro, utilizando o conceito científico como crítica à intolerância e tendo ao seu lado os melhores argumentos.
A implacável ira do cenário desértico do Oeste Americano pré-século XIX é exibida antes mesmo do início das cenas, com uma abertura levada por uma música doce, exibindo fotos de cemitérios e de outros massacres que ocorrem naquela terra. O intenso tiroteio envolvendo os personagens Charles Burn (Guy Pearce) e seu irmão, Mike (Richard Wilson), ambienta o espectador na espiral de morte em que entrará por mais de cem minutos, no mundo particular que John Hillcoat costuma exibir em sua filmografia.
Capturados pelo Capitão Stanley (Ray Winstone), os dois foras da lei olham ao redor, vendo cada um dos que os acompanhavam, mortos. Charles, o mais maduro e talhado para a vida, recebe então uma proposta que traria a redenção a ele e ao caçula, mas que o atingiria em cheio no coração. A alternativa pesada assemelha-se mais a uma sentença de se colocar em desgraça perante os seus, com a incumbência de assassinar o mais velho dos irmãos Burns, principal responsável por um massacre no passado.
A sujeira presente nos dentes e no suor da têmpora dos personagens faz A Proposta se diferenciar dos westerns clássicos de John Ford & Wayne, passando um pouco pelo cinismo da trilogia dos dólares de Sergio Leone com a mesma alma encruada e mal cheirosa de Os Imperdoáveis, sobretudo nos personagens periféricos, como o beberrão Jellon Lamb (John Hurt), decadente em essência e caráter, amoral como todo o background dos anti-heróis do faroeste.
Após alucinações, provenientes do torpor do veneno que faz Charles quase ir para o outro mundo, o personagem finalmente encontra o primogênito dos Burns, interpretado por um diferenciado Jack Huston, de cabelos longos e aparência tão surrada e mal cuidada quanto a dos outros membros do clã. A miséria é comum tanto a suas posses materiais quanto no comportamento de sua alma, mas não há qualquer capacidade mútua de fazer mal aos membros da família.
O desprezo pelas leis se reflete também no comportamento errático de Arthur com os seus. Mesmo que suas intenções sejam boas para com seus semelhantes, falta ação e atitudes mais sinceras, o que faz Charlie balançar, não o bastante para ceder à proposta de fácil execução. Ele precisa ainda experimentar o pior de seu irmão ao vê-lo cometendo um ato imperdoável, tanto de negligência dos seus quanto de crueldade de espírito.
Seu inimigos se postam em uma mesa figurativa à sua frente, como no conto bíblico que pede que se prepare um jantar diante de seus adversários, e o principal fator aviltante a ele é a intimidade com os que lhe impingem mal. Curiosa é a base do roteiro de Nick Cave, que usa as tragédias gregas de Sófocles como inspiração para os conflitos, algo semelhante ao que faziam os realizadores de western spaghetti com os filmes de samurai de Akira Kurosawa. A profundidade do texto está nas sutilezas que apresentam uma resistência interessante, mesmo diante de toda a violência que a fita apresenta. A forma não substitui o conteúdo, pelo contrário, fortalece o argumento repleto de viradas, dualidades e podridões de espírito.
Faleceu nesta quinta-feira, aos 106 anos, o célebre diretor Manoel de Oliveira, responsável por mais de 60 produções.
Nascido Manoel Cândido Pinto de Oliveira, o realizador vivenciou a maior parte das mudanças tecnológicas do cinema, passando da era analógica à digital. Seus filmes foram indicados e premiados nos eventos mais importantes, como o Festival de Cannes, o Festival de Berlim, entre outras diversas premiações em Portugal e em toda a Europa.
Vítima de uma parada cardíaca, Manoel de Oliveira foi o mais longevo e prolífico diretor, atuando na carreira até pouco antes de sua morte. Suas últimas obras, os curtas-metragens Chafariz da Juventude e O Velho do Restelo, foram lançadas no ano passado, sendo a última uma trama com Dom Quixote,Camillo CasteloBranco e Luís Vaz de Camões como personagens discutindo as glórias e o passado portugueses.
Mestre na imagem e na palavra, seus filmes mais importantes são: A Divina Comédia, Espelho Mágico, Viagem ao Princípio do Mundo, O Princípio da Incerteza e O Estranho Caso de Angélica.
O músico Chico Buarque, que dispensa apresentação, pergunta-se, em sua canção Almanaque, para onde vai o amor quando ele acaba. Uma reflexão metafísica e coerente com o estabelecimento de qualquer relação amorosa que, mesmo longeva, é transitiva.
Dirigida por Roger Michell (Um Lugar Chamado Notting Hill, Amor Obsessivo, Vênus), a história de Um Fim De Semana em Paris dedica-se ao tempo contínuo do amor, apresentando um casal que vive junto há trinta anos e viaja a Paris para comemorar as bodas de Pérola.
Meg e Nick são um casal desencantado pela vida. Vivem juntos um tempo considerável que não produz margem de surpresas. Conhecem a personalidade um do outro, as pequenas manias e reclamações, cientes de que a solidez do amor não poupa mais palavras e, assim, dialogam abertamente sobre os desígnios da vida, a velhice, o tempo e o amor compartilhado em conjunto.
Recentemente, voltaram a viver sozinhos sem a presença dos filhos. Um passo muito comum entre diversos casais que criam filhos por um longo período e, após os filhotes saírem de casa, deparam-se com um vazio e o estranhamento em relação ao que fazer com o tempo e a liberdade. Normalmente, é neste período que marido e mulher voltam a pensar em si e na unidade de um casal, ainda que o tempo consumido para gerar um filho tenha modificado visivelmente as percepções de vida.
Na cidade luz, os ânimos ficam acirrados pela comum expectativa que qualquer viagem simbólica e comemorativa é capaz de gerar. A Paris conhecida anteriormente foi modificada pelo tempo. Tentando não destruir a celebração, o marido faz concessões aceitando ficar em um local caro, sem esconder a insatisfação.
A proposta do longa-metragem é a busca sobre a temporalidade do amor e como histórias de longa durabilidade são vividas diariamente. Mesmo com o amor presente, há uma leve amargura em cena, evidenciando que o amadurecimento não gera a sabedoria imaginada popularmente em uma jornada de crescimento. Cada ser humano ainda carrega dentro de si medos e dúvidas que, se por acaso dissipadas, darão espaço a outros lugares escuros.
Jim Broadbent e Lindsay Duncan fazem um casal ponderado, sem extremidades dramáticas evidentes, afinal a proximidade e a intimidade podem gerar menos espaço para cenas e grandes discussões. De maneira honesta, discutem a sexualidade, a ausência do desejo em relação ao tempo e as maiores fragilidades sentidas neste momento da vida: Nick ainda incrédulo por manter uma relação madura, amorosa e duradoura, e Meg irritada pela falta de confiança do marido após a dedicação de uma vida juntos.
De fato, estar ao lado de outra pessoa não significa uma total completude interna dentro dos seres. Cada qual vive à margem um do outro, e neste espaço permanecem também medo, dúvidas e afins. Não à toa o poeta Rilke, como outros escritores, viram o amor como uma espécie de solidão vivida a dois. Uma maneira mais suportável de viver a vida e a solitude da existência na companhia e no amor ao lado de outra pessoa.
A tensão amarga e amorosa do casal resulta em uma única cena epifânica, mas suficientemente eficaz para exemplificar como o amor denota dedicação constante, mostrando como as dificuldades de viver a dois nunca terminam diante das lacunas, tentações e outras fissuras inerentes a todos nós.
Uma classe de catecismo liderada pelo padre Webber (Florian Stetter), um devotado e atencioso homem que passa seus ensinamentos católicos para os infantes. Este é o primeiro cenário educacional e formador de caráter de Maria (Lea Van Acken), a protagonista da jornada vista no filme do alemão da Bavaria Dietrich Bruggemann, que insiste em posicionar sua câmera de maneira contemplativa, com um plano americano focado em uma mesa, em estilo semi-documental, oprimindo seu espectador como o jovem padre faz ao impor suas verdades e crenças para as incautas crianças.
A realidade da Fraternidade São Pio XII tem na rigidez dos preceitos e no discurso militar de seus fiéis sua base, mesmo que o caráter destes ainda não esteja formado. Seu ideário fundamentalista religioso entra em conflito com praticamente todos os aspectos normativos da modernidade, e todos os movimentos visam integrar os atos dos personagens com caricaturas de pinturas bíblicas famosas. O roteiro é dividido em estações, como os atos teatrais, cada uma mostrando uma faceta do cotidiano de Maria, em busca de um destino dos mais comuns, ao menos em tentativa.
O texto de Dietrich e Ann Bruggerman é verborrágico, não por conter diálogos estupendos, mas por ser uma história narrada através das muitas conversas de conteúdo constrangedor que oprimem e humilham Maria na maioria dos eventos. A partir de um momento, ela mesmo reproduz tais diálogos inquisidores, acusando conceitos cotidianos de sofrerem influência satânica e demoníaca, mesmo em ambientes distantes de sua paróquia, como em sua escola, no convívio com outros pré-adolescentes.
Logo, os adultos à sua volta começam a discutir os métodos e escolhas que Maria fez para sua vida. Sua mãe é a figura de pai/patrão, como no clássico dos irmão Taviani. Sua postura autoritária recalca a menina, aumentando o escopo de proibição a níveis cada vez mais absurdos, massificando a sensação de isolamento. Já na escola, seus professores a indagam sobre os diálogos que trava com seus colegas, sempre remetendo a pactos e eventos ligados ao diabo. Em um ambiente “normal”, ela se sente coibida, tornando-se tão passiva e agressiva quanto os que passam sua fé a ela, reclamando da constante exacerbação do pecado e da banalização da santidade.
A renúncia ao carnal, e consequentemente a qualquer impulso de vontade própria, é o norte da jovem, mesmo antes dela ter ciência real dos votos que faz. A massificação do fundamentalismo é mostrada detalhadamente, esmiuçada pelo inquisitivo pelo realizador, que não guarda pudores ao mostrar o processo de canonização de humanos ainda em formação.
À medida que os estágios avançam, a credulidade cega faz condenar a curta existência de Maria, pautando-se na paranoia cristã, pontuada no cúmulo da interferência do padre dando uma hóstia para a menina enquanto ela convalescia, atrapalhando todo o processo. A misteriosa enfermidade parece ter mais causas em desgosto e sem sentimentos vãos do que uma raiz científica.
A entrega de Maria é semelhante a de sua figura heroica, que se rendeu aos desígnios divinos para espiar os pecados da humanidade. No entanto, o sentimento presente na despedida da personagem-título vem para culpar e não perdoar, tudo através do silêncio e da métrica lenta do filme, características que são fruto da agonia desesperadora da protagonista, que nem em seus últimos momentos tem alívio e liberdade para viver como quer. 14 Estações de Maria é um interessante exercício narrativo que usa os aspectos estilísticos para maximizar o drama de sua heroína, remetendo ao inexorável destino do qual foge, comum a muitos dos escravizados pelo julgamento religioso.
A origem latina da palavra “resistência” vem de resistire, que faz lembrar o conceito de “ficar firme, aguentar”, relacionando a manter posição. Em tempos de ditadura militar, em plena efervescência cultural e política mundial, o Brasil vivia aquém, sem liberdade para o povo, sem vazão ao poder popular. Apesar de mentes envelhecidas nadarem normalmente a favor desta correnteza de mazelas, havia alguém que fazia a contramão desses ideais, destacando a militância no ambiente jurídico.
Sobral Pinto era um senhor de alta idade que teimava em legislar em favor dos direitos humanos, em um período no qual o conceito era completamente ignorado e tratado como assunto subestimado, uma vez que o regime impunha sua vontade para quem quer que tentasse resistir a ele.
A pesquisa de Paula Fiuza – diretora e roteirista, interessada pessoalmente pelos assuntos legais dos tempos em que a esquerda somente habitava os porões do regime – leva o espectador ao ano de 1999, quando ocorreu o resgate das fitas com os julgamentos dos presos políticos, os quais o jurista Sobral, que destacava sua tremida e passional voz, ainda teimava em defender; tudo através de um material adquirido por um jovem advogado que visava preencher o espaço de sua tese de conclusão de curso na faculdade. As defesas serviam de inspiração para alguns bons defensores de direitos, além de fornecer a garantia da lei, tão ignorada no absolutismo de farda.
A intimidade do já idoso protestante realiza-se através dos depoimentos de seus convivas e descendentes, dos que foram bravamente defendidos por ele. A obra também reúne boas imagens da época, com falas do próprio advogado. A briga para fazer da liberdade a bandeira universal teve um episódio especial na união do biografado com Luis Carlos Prestes, mostrando que mesmo o marxista e militante extremo não tem necessidade de conflitos extremos com o comportamento católico praticante do causídico, exemplificando o quanto tem em comum em relação ao discurso socialista e do moderno modo de Jesus tratar os excluídos dos evangelhos.
O subtítulo do filme reflete a verdade atrás de sua personalidade e trabalho. Não ter preço não era uma expressão, especialmente por poucas vezes cobrar de seus clientes, a maioria formada por gente humilde, de poucas posses. Sobral era um homem do povo, refutava que o chamassem de Vossa Excelência. Por suas virtudes no Direito terem a ver com sua extrema humanidade, contraditas no passional modo de enxergar o futebol e as fases ruins de seu time de coração, o América da Tijuca. A sabedoria do jurista não o salvaguardava do fanatismo do futebol ou do bom humor e sacanice em relação a belas mulheres, inclusive Sônia Braga. Os fatos narrados em relação ao tema, prendem-no à realidade, distanciando-se da ideia de um androide em prol da justiça.
A influência da religião fez Sobral se autopunir quando cometeu o pecado da infidelidade conjugal: a renúncia ao próprio ofício de procurador e a diversões sãs, como partilhar dos estádios de futebol em dias de jogos e sessões de cinema. A marca do erro se fixou em sua alma, revelando o lado conservador do advogado, que só teve sossego sobre o caso quando conseguiu o perdão de sua esposa.
Segundo as falas dos depoentes, Sobral apoiou o movimento “revolucionário” dos militares, por medo igual do possível regime vermelho. A partir do momento em que a constituição passou a ser transgredida, o jurista mudaria de lado. A fala é dada em gritos, com a voz claramente alterada em razão da passionalidade, possivelmente pela indignação consigo próprio ao ter caído no engodo dos que viria a combater. Nem mesmo sua verve e inteligência foram capazes de identificar a tomada de poder ilegítima: mesmo apoiando o golpe em 1964, houve o ato de lançar uma carta de repúdio a Castelo Branco por assumir a presidência mesmo sendo o chefe do exército, o que era também inconstitucional.
A falta de concessões às convicções que tinha e que defendia fazia dele uma personalidade sui generis, algo descoberto em sua integridade anos depois dos seus feitos junto ao romantismo, ao extraordinário trabalho que fazia para o povo de modo geral. Os créditos finais passam-se em uma homenagem no terreiro de samba, ao lado de seu amigo João Nogueira, que canta os feitos de seu amigo e mentor, popularizando uma figura de integridade ímpar, que a câmera de Paula Fiuza busca honrar. Às vezes não dando tanta vazão ao conservadorismo conhecido do advogado, a obra ressalta o viés de luta de seus convivas e o altruísmo que fala mais alto que qualquer pragmatismo pseudo-revolucionário, mostrando um Sobral como o jurista do qual o povo precisava.
Assistir a este filme e decifrar seus signos narrativos é assistir a uma esponja absorvendo um balde d’água de dois litros: uma especulação angustiante e estranha. Paul Thomas Anderson, o cineasta pós-Sangue Negro e o ultra-autoral O Mestre, não parece mais, finalmente, ter a necessidade de impressionar ninguém, o que é tão bom quanto ruim, e faz seu filme mais erótico até agora – esqueça Boogie Nights: Prazer Sem Limites.
Vício Inerente é anos 70, é trilha sonora de domingo, é Brian de Palma e Jim Jarmusch em algum lugar do cinema ítalo-americano daquela época, perdido ou integrado informalmente em pleno 2015. Não é de se surpreender o estranhamento, não só pela forma e essência, atemporal e universal, mas principalmente estrutural, numa abordagem tão literária quanto fluida e linear, evitando ser episódica, o que poderia tornar confusa a trama já confusa – de propósito e no bom sentido, no melhor sentido, na verdade. Temos na história todos os elementos e recursos de uma investigação filmada: conversas misteriosas em ruas sombrias, figuras cômicas de tão inusitadas, diálogos que sugerem mais do que revelam, policiais, suspeitos, etc. O quanto esses recursos são usados pelo artista, e como são interpretados a favor de um contexto policial, é a aliança que consagra o filme e garante uma boa impressão no final, ainda que não tão boa e poderosa quanto outros filmes do seu diretor, isso é indiscutível.
A energia de Magnólia vai pra debaixo dos panos e surge a paranoia, por exemplo, extra e intertextual no filme, feito em Embriagado de Amor, comédia romântica cheia de segundas e terceiras intenções e que muito tem a ver com a história de Doc, personagem fantasmagórico de Joaquim Phoenix, perfeito debaixo da peruca afro e óculos escuros. Um agente policial mais interessado em ser primeiro o símbolo de sua época libertária e depois resolver o desaparecimento de um milionário, em meio a um painel de contatos e informantes que contribuem mais com a trama imprevisível e tortuosa do que com a responsabilidade de ser coadjuvantes em torno de Doc, talvez a figura mais icônica do Cinema de Anderson depois do petroleiro Daniel Plainview.
Martin Scorsese e Michael Mann, dois dos maiores diretores americanos em atividade, filmam a América escancarada, nua e crua tanto em forma, tanto em alma emergencial, como se o mundo (ou o país) fosse explodir amanhã, e um último registro precisasse e devesse ser filmado já, como um atestado rupestre em vídeo a ser imortalizado. Anderson, não; filma o que já passou para entender o presente filmado pelos outros. Mas isso não quer dizer nada, não a longo prazo. O que importa e engrossa o caldo é a relevância que ele, Tarantino e outros filhos dos anos 90 dão ao processo de revitalização do cinema americano, quase perdendo o posto de ser um dos melhores do mundo. Mas se ainda é, é por causa de gente assim, que aposta no próprio poder de persuasão artística e cultural para convencer o público que ainda vale a pena assistir a filmes como O Lobo de Wall Street, Colateral, Django Livre e Vício Inerente, somados no retrato nacional de um estilo de vida. Doc é a personificação desse estilo: vivo, porém na beira da overdose.
O filme parece ser improvisado naquela abordagem de época já comentada, apesar de que fica claro ser o bom roteiro adaptado que sustenta suas cafonices deliciosas e bem-vindas, até o final, numa bela conversa conclusiva sobre o amor e suas contradições. Mas Vício Inerente não é suas contradições: é adaptação, inclusive a nossa, de uma plateia pós-moderna assistindo a glórias e pesares de uma época precoce, diante de uma ex-realidade que a atual deve muito de seus vícios e fraturas, vitórias e valores por mais ambíguos que tudo isso possa ser. Não é tampouco um livro filmado ou folhetim de um crime: é, isso sim, o romance homônimo publicado por Thomas Pynchon em 2009, tratado na tela de forma moderna, sem limitações de mídia que não poderíamos esperar de quem adaptou de forma épica o romance de Upton Sinclar, em 2008. Alguém achou que juntar Os Infiltrados com Embriagado de Amor era uma boa ideia. Talvez a obra de Pynchon não precise ter o mesmo poder e escala dados ao livro de Sinclair, por mais viciante que foi aquela força profunda molhada de petróleo, aqui cheirando a maconha e com 1/3 da profundidade. O problema é que o filme não se leva a sério, quando Anderson tem talento o bastante para ser pretensioso numa boa.