Categoria: Cinema

  • Crítica | Sonhos Roubados

    Crítica | Sonhos Roubados

    sonhosroubados

    Já dizia o filósofo alemão do século XIX, Nietzsche: Nada lhe pertence mais que seus sonhos.

    Filosofias à parte, o simples bater das asas de um beija-flor, atravessa, de repente, a trajetória de qualquer um de nós, e parece arremessar, para longe, sonhos que começamos a esculpir, transformando-os em fragmentos de desilusões e desânimos.

    No entanto, apesar do que possa parecer através do título, Sonhos Roubados é um filme brasileiro que fala da capacidade em manter intactos nossos sonhos, por mais que a vida insista em querer desbotar suas cores. Eles se mostram presentes na sutileza de um shampoo roubado, do retoque do batom sob o reflexo de uma tampa, do desejo de um mp3, de um jeans provado na loja da periferia, ou no prazer do frenesi do baile funk e da serena brisa na areia da praia.

    A diretora, Sandra Werneck, insiste mais uma vez em explorar o avesso dos núcleos sociais, como fez com os seus documentários. Já premiada pelo filme Cazuza – O Tempo Não Para (2004), nacional e internacionalmente, e antes desse, com Amores Possíveis, de 2001, como Melhor Filme Latino-americano, no Sundance Film Festival, Werneck arrebata, com Sonhos Roubados, o prêmio do júri popular no Festival do Rio de 2009. Ainda por este filme, o trio que protagoniza a história, Nanda Costa (Jessica), Amanda Diniz (Daiane) e Kika Farias (Sabrina), divide o prêmio Biarritz de Melhor Atriz, em 2010.

    Nanda Costa está, mais do que impecável, vibrante, quando mergulha em todos as nuances de uma garota que encara a prostituição com absoluta naturalidade, já que esta atividade se mostra como a única forma de cuidar do seu avô e de sua filha. É assim que Jéssica acaba conhecendo o presidiário Ricardo, que marca a estreia, como ator, do rapper MV Bill.

    Também em torno de uma dinâmica que visa a realização de sonhos, sejam eles de sobrevivência ou de consumo (mas que fazem parte do universo das favelas e de tantas outras garotas no mundo todo), Diane e Sabrina se dispõem a ganhar alguns trocados como pagamento de “favores”.

    Baseado em um livro da jornalista Eliane Trindade, que conta a história de seis adolescentes, Sonhos Roubados não economiza na qualidade dos intérpretes, e nos presenteia com as ótimas atuações de Marieta Severo (que já havia trabalhado com Werneck, em Cazuza), Daniel Dantas, Nelson Xavier, Ângelo Antônio e mesmo do estreante Bill.

    Ainda que a realidade das comunidades carentes se apresente como tema que vem sendo abordado pelos cineastas brasileiros, essa obra nos traz a cadência, a vaidade, a garra e a fragilidade de um universo feminino, visto pelo mesmo olhar, com honesta humanidade. Sonhos Roubados veste-se de uma leveza que suspira o lado dramático da precocidade da vida das três meninas, sem permitir que a alegria de viver as pequenas (talvez imperceptíveis aos olhos dos outros) conquistas, e o direito de sonhar, lhes seja roubada.

    Devo confessar que notei uma certa negligência na elaboração dos diálogos. Mas então me pego pensando: e precisa? Afinal, não é assim mesmo (despreocupada, instável e intolerante a desperdícios) a linguagem de quem se debate entre a necessidade de amadurecer e a secreta vontade de conservar a meninice? Não podemos “ler” nos gestos, nas expressões e nos caminhos traçados, tudo aquilo que não é falado?

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Um Momento Pode Mudar Tudo

    Crítica | Um Momento Pode Mudar Tudo

    Um Momento Pode Mudar Tudo - Poster BR

    A breve primeira cena de Um Momento Pode Mudar Tudo é suficiente para o público estabelecer a relação de Kate e Evan, casados há quase quinze anos: um idílio amoroso no chuveiro, demonstrando intimidade e harmonia, uma abertura que evita insinuações eróticas.

    O momento de amor é base para o contraste do drama de Kate, diagnosticada com esclerose múltipla. Tentando negar a condição frágil, a ex-pianista evita enfermeiros ou qualquer profissional que a trate como um paciente delicado. Mesmo com um marido dedicado aos cuidados, o casal procura alguém que a ajude diariamente, e Bac, uma jovem impositiva e diferente das demais candidatas, é escolhida como a pessoa ideal para o cargo.

    A história tem leve semelhança com o drama francês Intocáveis, filme que também enfoca uma amizade a partir da relação entre enfermeiro e paciente. Como nessa produção, a relação entre Kate e Bec se compõe entre a amizade e a maternalidade e o choque eventual de gerações divididas: uma vida de casal consolidada e bem-sucedida em contraposição à juventude e suas relações coloridas e a indecisão sobre o futuro.

    O título brasileiro representa erroneamente e com certo exagero um fatalismo que não está presente na trama. A doença de Kate é o evento que modifica sua vida, não se tratando de um momento específico transformador. O avanço da doença altera seu dia a dia, a princípio devido à limitação física; em seguida, com o distanciamento de suas amigas e também pelo afastamento do marido, do qual ela descobre uma traição.

    A relação de mãe e filha se estreita devido à dedicação e à convivência entre as personagens. Bec é a única a tratar a doente como uma pessoa normal. A presença da esclerose gera uma redoma além da limitação física, como se a incapacidade locomotiva causasse temor e preconceito por parte dos familiares, sendo a traição do marido o ápice da quebra harmônica da relação. Um peso que modifica a estrutura amorosa.

    A obra baseada no romance de Michelle Widgen estabelece a amizade como tema central, sem deixar de expor a dificuldade da doença e explorar a frágil questão da eutanásia. Diante de sintomas que cada dia mais tornam o corpo insuficiente, a trama se pergunta se há justiça em prolongar a dor de um paciente ou em aceitar seu pedido para que morra em um momento adequado, enquanto a pessoa mantém a consciência a respeito de seus atos.

    O carisma das personagens – em destaque para o talento de Hilary Swank, grande atriz de poucos papéis louváveis – dá sustentação a esse bonito drama sobre relações humanas em um tom suave mas sensível, sem exagero fatalista ou melodramático.

     

  • Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Cidade de Deus 10 Anos Depois 1

    Com a mesma faca usada na morte da galinha que abre o filme original de Fernando Meirelles, Cidade de Deus: 10 Anos Depois inicia-se. A narração de Alexandre Rodrigues, comum em documentários e na ficção, explora como foi o desenrolar da carreira artística de cada um dos integrantes do elenco e a produção do sucesso Cidade de Deus, focando nos moradores do complexo comunitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro, em quem permaneceu no mesmo local.

    Leandro Firmino da Hora é o primeiro “personagem” analisado, muito além do seu Zé Pequeno, quilos mais pesado e anos mais velho. A confissão de que jamais sonhou seguir carreira artística é surpreendente, especialmente por sua condição de negro e morador de favela. A situação de que a comunidade era uma questão cult se deu a partir de 2002 com o lançamento da obra, passando a nortear a enorme diferença entre a realidade dos envolvidos, do sucesso meteórico, e a volta para suas casas paupérrimas, realidade, segundo os depoentes, digna de choro.

    A crueldade do meio artístico é flagrada na fala de Roberta Rodrigues e de Jonathan Haagensen, que lembram as terríveis dificuldades que tiveram ao tentar solidificar a carreira como atores, algo raro mesmo dentro do talentoso elenco do clássico instantâneo. A crueza da fama é ainda melhor mostrada na face de Alexandre Rodrigues, quase sem maquiagem, onde cada sinal de imperfeição é muito bem pontuada, e que em cujas falas mais se demonstra o arrependimento por não ter aproveitado, como deveria, a fama repentina.

    Os contatos dos diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal fizeram possível o encontro com astros como Seu Jorge, mas os esforços são muito melhores vistos ao investigar como a rotina de pessoas absolutamente anônimas, como o ex-ator Felipe Paulino, cujo papel pequeno, o do menino que tem o pé alvejado por Zé Pequeno. Felipe fala timidamente sobre suas cenas, intercalando com os momentos de seus trabalhos e bicos como servente de um hotel. Confuso, o jovem faz fortes declarações a respeito de sua aposentadoria, inclusive uma polêmica envolvendo o dinheiro que recebeu e quem supostamente o gastou. Apesar dos reclames, de fato se demonstrou que o cachê dos atores foi muito pequeno, variando entre os quatro dígitos de reais para os personagens secundários e pouco mais de dez mil para os protagonistas e antagonistas.

    Apesar de louvar carreiras promissoras como as de Alice Braga, os depoimentos mais interessantes são os que revelam o drama de Rubens Sabino, que fez o personagem Neguinho e sofreu enormes dificuldades na vida, ficando conhecido um ano após o lançamento mundial. O motivo da “re-fama” foi devido a um assalto que cometeu e que, claro, deu errado, causando sua prisão e a reputação de contraventor.

    As filmagens, realizadas no começo dos anos 2000, aparecem como introdução a discursos emocionantes dos meninos que foram obrigados a amadurecer muito rápido, passando na maioria das vezes a serem os provedores de renda de suas casas. O momento de Darlan Cunha e Douglas Silva após o longa-metragem e o seriado Cidade dos Homens, que foi ao ar entre 2002 e 2005, também é focado. Um efeito semelhante ao tencionado por Linklater em Boyhood – Da Infância à Juventude, com a trajetória de Douglas, que teve de se reinventar e que nadou contra a corrente de seus companheiros, visto que a maioria não teve qualquer sucesso nem em carreira artística, nem em vínculo empregatício.

    O rumo das falas lembra a pouca abordagem sobre a vida do negro sendo contada por pessoas negras, quase sempre representados por estereótipos de bandidos desorganizados, como uma inversão do conceito de bom selvagem, um ser irracional, desorganizado e agressivo. A condição de apartheid é comum entre as seleções de casting, raramente contemplando papéis comuns em profissões como advogados, médicos e engenheiros. A fuga do arquétipo de envolvido no “movimento” reflete-se no drama de muitos negros, entre eles Jefechander Suplino, que viveu Alicate, curiosamente invertendo o estigma de conversão do seu personagem, tornando real a ficção que viveu, visto que está desaparecido até a produção do documentário. A realidade do ator é a mesma de muitos outros jovens negros, quando não, chacinados pelo poder paralelo ou pelo Estado.

    A ideia de reunir as falas dos que fizeram parte de fenômenos que mudaram completamente o panorama da favela de asfalto é ímpar por resgatar os momentos não contados, até então, dos que não tiveram tanta sorte quanto os famosos “globais” e conhecidos internacionalmente. É no drama que mora o principal adjetivo positivo deste Cidade de Deus – 10 Anos Depois, uma realidade que ainda exclui o preto e o pobre, mesmo quando o indivíduo teve seu momento ao sol. Nem os lembretes textuais das iniciativas de praças artísticas oriundas das favelas cariocas conseguem mudar a sensação de que falta oportunidades a essa classe, exemplificada na demora em distribuir o documentário em questão para o circuito comercial, fazendo deste um evento de quebra da quarta parede, que retrata o tema discutido no roteiro.

  • Crítica | Velozes e Furiosos

    Crítica | Velozes e Furiosos

    Velozes e Furiosos A

    Rob Cohen segue na esteira da moda do começo dos anos 2000, variando entre o exploitation dos pegas e corridas ilegais de carro, passando pela base do roteiro tosco de redenção x contravenção vista em Caçadores de Emoção. David Ayer,  Erik Bergquist e Gary Scott Thompson conseguem conceber o roteiro de um filme que virou uma mania, mais vazio e mais cheio de personagens estereotipados que os péssimos seriados americanos infanto-juvenis da Discovery Kids e Disney XD. Velozes e Furiosos apresenta caretas, brigas impensadas, rap datado e uma plataforma que faz de Dominic Toretto um homem bem mais alto que seu intérprete Vin Diesel.

    Apesar do nome semelhante ao de um serial killer, Brian Earl Spilner (do saudoso Paul Walker) consegue ter a atenção e a boa vontade de Toretto, mesmo com o começo atrapalhado na relação de ambos. Atrás do cabelo desgrenhado e da aparência parafinada, Brian esconde um segredo terrível, quase tão aterrador quanto os passinhos de dança injustificados nos arredores das corridas ilegais, e os diálogos babacas de afeição quase instantânea, que envolvem os corredores.

    A entrada triunfal da gangue de Toretto, próximo de uma avenida movimentada, com cada máquina apresentando uma cor diferente, faz lembrar as triunfais aparições dos Power Rangers pela Alameda dos Anjos. Até as personalidades das personagens secundárias têm muito a ver com as do seriado nipo-americano, com Petty (Michelle Rodriguez), fazendo a latina mal encarada que namora o líder dos bandidos, o nerd – e hacker – de compleição física mirrada, Jesse (Chad Lindberg), e o mal encarado – e desconfiado – braço direito do chefe Vince (Matt Schulze), que se vê enciumado com o acréscimo de mais um fator na equação, especialmente por ele chamar a atenção da irmã de Toretto, Mia (Jordana Brewster).

    Os outros personagens periféricos basicamente apresentam um show de horrores e de péssima construção de personagens, com Ja Rule fazendo o negro pró-poligamia, zoado por seus iguais. Mas sua vergonha não se compara a do asiático, que não tem nome, e que joga videogame antes da corrida. As esferas de inverossimilhanças pioram depois das falas de Toretto após vencer, inflamando a multidão com ideias tão profundas como as letras de Charlie Brown Jr., e que funcionam como a cereja do bolo presente na estranha armadilha policial que envolve o racha. O findar da perseguição é conveniente, unindo Brian e Dom no mesmo carro de fuga, gerando uma dívida dupla.

    Johny Tran (Rick Yune) consegue interceptar o personagem calvo, logo após a fuga, mostrando que a pressa não é só uma característica dos corredores, como também dos roteiristas do filme. A fúria de Domic ocorre por ele ser interrompido e importunado pela cobrança de uma dívida, e só não é maior que a decepção de ter sido abandonado por seus chegados.

    Sem qualquer cerimônia, Brian revela-se um policial infiltrado, o que faz se perguntar como é injusto o investimento de dinheiro do contribuinte americano. O absurdo é quase tão gritante quanto as preces em forma de oração que Jesse faz à divindade que cuida das peças de carros.

    Apesar de datado, e da eterna predileção pelas corridas, Velozes e Furiosos é, em essência, um filme que discute a necessidade do maniqueísmo, fazendo uma ode ao anti-heroísmo. A obra inclui mais semelhanças com o clássico da Sessão da Tarde de Kathryn Bigelow do que com o filme original de 1955, com pouca substância do drama apresentado, sejam os arquétipos dos protagonistas, seja a tênue linha entre a vida bandida e o cumprimento ético de carreira do personagem infiltrado, pervertido pelas velhas tentações carnais e pela necessidade de adrenalina.

    A rivalidade entre Tran e Toretto piora muito depois da invasão ao domicílio do asiático, algo que se agrava pela aposta com Jesse, que finalmente dá um motivo para o personagem, que mais chega perto de ser um vilão, atacar o protagonista fora da lei. O show de trapalhadas piora na cena da ação contraventora em meio a um dia ensolarado, sem qualquer planejamento de que o caminhoneiro roubado poderia retribuir a violência a ele e à empregada.

    A revelação da verdade do disfarce se dá ao modo do clássico de Tarantino, Cães de Aluguel. Repentina e abrupta, a descoberta ocorre através de uma ligação para salvar o personagem que menos se afeiçoou por Brian, e que tinha total razão para duvidar de sua índole. Mesmo com todas as incongruências de roteiro, a evidente mensagem edificante consegue funcionar pela junção de fatores, a trilha sonora, o cenário arenoso, a tentativa de vingança e o assassinato do mais frágil membro do quinteto de foras da lei.

    Em algum momento, o revide torna-se justificável, e toda a irregularidade fica plausível diante do compromisso do personagem de ser um pária social. O sucesso posterior prova que algo a mais causou a popularidade no telesseriado. Talvez a culpa seja das variações das máquinas e a ode ao Dodge Charger 70 do protagonista. O sucesso foi tanto que a partir de Velozes e Furiosos, surgiram inúmeros sub-produtos, inclusive provenientes de refilmagens, como na mini franquia Corrida Mortal, igualmente baseada nos filmes de Roger Corman.

    A corrida que Toretto e O’Connor fazem rumo ao infinito reafirma a necessidade por adrenalina, além de extravasar a testosterona de duas figuras que se assemelham em espírito, e que devem muito mais um ao outro do que se aparentava antes. Apesar de toda a cópia da história de Caçadores de Emoção, o diferencial é a relação dos dois personagens masculinos, que não se permitem maiores afiliações sentimentais de ordem sexual, uma vez que o vínculo deles é exclusivamente de amor aos carros e às pessoas que os envolvem. A transformação em franquia fez bem ao filme de Cohen, já que ele é muito menos execrado do que deveria, visto os seus defeitos de concepção atenuados pelo conceito de representar como poucos a época em que foi realizado.

  • Crítica | Carta Selvagem

    Crítica | Carta Selvagem

    Wild Card - Poster

    Carga Explosiva foi o primeiro papel principal de Jason Statham, e um bom cartão de visitas que ainda hoje lhe garante o status de astro de ação contemporâneo. O performático filme produzido por Luc Besson foi lançado em uma época em que coreografias marciais eram uma vertente em decadência. Ainda assim, entregava ao público a necessária ação frenética e destacava o ator como um brucutu em potencial.

    Representante de um único estilo de papel, o personagem bruto com um passado violento, suas personagens se configuram como o tradicional herói de ação fundamentado na década de 80. Homens solitários e fortes fisicamente com potencial para serem um exército de um homem só. A trilogia Carga Explosiva e a paródia cômica Adrenalina trazem o melhor do ator. Ação direta, violenta e rápida, com maior enfoque para a luta corpo a corpo.

    Se estabelecermos essas primeiras produções como um parâmetro, observamos que o ator tentou diversificar a carreira em filmes de ação sem as lutas desenfreadas dessas primeiras interpretações. Histórias levemente dramáticas que, supostamente, garantiriam mais peso aos seus personagens. As cenas de ação se tornaram menores e mais concentradas e, em certos filmes, quase inexistentes. Uma ausência decepcionante se você espera que o ator entregue a brutalidade costumeira do gênero.

    Dirigida por Simon West, responsável por diversos filmes medianos e os excelentes Con Air – A Rota da Fuga e Mercenários 2, Carta Selvagem é a nova produção solo de Statham. Dessa vez, o ator é Nick Wild, um mercenário que vive em Las Vegas como consultor de segurança. Quando uma ex-namorada é espancada por um figurão da cidade, a personagem se vê obrigada a retornar à violência que tentou deixar para trás. Baseado em um livro de William Goldman, roteirista responsável por grandes obras como Butch Cassidy e Maratona da Morte, a trama já fora adaptada anteriormente em 1985 com Burt Reynolds no papel principal.

    A vingança ocupa aproximadamente um terço do filme, como um primeiro ato de uma trama maior. Wild tem ciência de que, após a execução da vingança,  deve sair da cidade e, à procura de dinheiro, passa a apostar freneticamente, e vencer, em uma mesa de blackjack. Um entreato que dura mais do que necessário e não parece dramático e urgente o suficiente. A trama se arrasta fazendo o público se perguntar se haverá algum momento em que a ação entrará em cena definitivamente.

    Há poucas cenas de ação no longa-metragem. West incorre no erro de apresentar os primeiros embates em câmera lenta, um recurso saturado no estilo e que ameniza o potencial das lutas de Statham. Normalmente, é sua agilidade nas artes marciais e a brutalidade que marcam suas cenas coreografadas. Promovê-las em câmera lenta torna-se diferente do habitual, sem dúvida. Mas perde em impacto.

    O terceiro e último ato da história retorna a ação em boas sequências e tenta retomar o pulso de uma situação-limite, mas nenhum personagem parece ameaçador para tornar-se um problema para a missão de fuga da personagem. Ao tentar diversificar sua carreira, o britânico tem estrelado filmes que seu público-alvo não deseja ver. E a cada nova produção, permanece a expectativa de que seja esta a obra que lavará a alma do ator, em fúria, porrada e sangue. Faltam-lhe boas histórias que direcionem seu talento para aquilo que Statham faz de melhor: ser um astro de ação físico, sem um drama profundo que o afaste do brucutu que se tornou.

  • Crítica | Os Boxtrolls

    Crítica | Os Boxtrolls

    Os Boxtrolls - poster br

    Estreando na direção de animações em longa-metragem, a dupla Anthony Stacchi e Graham Annable se vale da mesma estética stop motion utilizada em Coraline e o Mundo Secreto para remontar uma história de cunho político, ao menos em comparação com outros produtos infantis. A história gira em torno de uma sociedade fanática por elegância e por queijos que tem em seus esgotos uma subexploração do povo, seres vivos tão inteligentes quanto os cidadãos da superfície, mas que são caçados unicamente em razão do medo do diferente.

    Os boxtrolls são criaturas de aparência grotesca que aparentemente não entendem a dualidade do bem e do mal, fator que os diferencia dos demais cidadãos, possivelmente pondo-os em uma escala maior de inteligência. A subsistência deste grupo realiza-se pela exploração do lixo dos moradores da cidade Ponte Queijo, e eles somente têm coragem para ir à superfície no período da noite, por medo de serem capturados por Arquibaldo Surrupião (dublado por Ben Kingsley) e sua gangue.

    É do meio dos excluídos que surge a maior atitude de altruísmo, repetindo os dogmas de muitas histórias de redenção, levando o tema a uma nova geração. Ovo é um menino humano, tratado como um nobre pelos pequenos monstrinhos. Ao ingressar no mundo dos humanos, sempre buscam novas formas de entretê-lo, seja com brinquedos, música ou demais aspectos culturais típicos dos homens.

    Já crescido, Ovo – interpretado em fase adulta por Isaac Hempstead – Wright – decide ir à cidade para ver como seus colegas de espécie agem. Uma vez na meca, ele observa um forte discurso contestador formado por verdadeiras ofensas aos seus criadores. Sua missão é resgatar um de seus velhos amigos na casa de Rupião, onde se prova que a caça de Arquibaldo é motivada por rancor e supercorreção, uma vez que ele tem intolerância ao bem maior social, o queijo. A incursão revela detalhes da origem do bebê Trubshaw, além de mostrar pelo relato da pequena filha do monarca, Winnie (Elle Fanning), que Ovos na verdade não é um boxtroll, e sim um menino.

    Não demora para revelar-se que a origem do protagonista é intimamente ligada a do vilão, que em um ato cruel assassinou seus pais. O roteiro, baseado no livro de Alan Snow, ganha ares de obra adulta ao abordar a temática de não julgar as figuras de autoridade por seu poder ou aparência, além de focar seu enredo em uma parcela de pessoas excluídas de seu universo, debochando do estilo de governo oligárquico, mas sem abrir mão de um discurso leve.

    O fator que faz os oprimidos agirem é a iminência de suas próprias mortes, e os boxtrolls finalmente agem, pouco antes de serem exterminados, em uma reviravolta muito comum em desenhos animados, mas que em análises mais profundas serve de alegoria ao comportamento revolucionário, quando o povo se une para acabar com o czarismo que os escraviza e os deslegitima.

    A ação dos pequenos trolls acontece pouco antes da execução de Ovos. Em uma cena demasiado forte, vestido como um boxtroll, o personagem é posto para ser queimado vivo por uma população conservadora e inflamada, provando que suas atitudes são mais dignas de honra do que as dos até então poderosos. Perto do final, é mostrada a nova configuração da sociedade em Ponte Queijo exibindo as mazelas desfeitas, e ambas as espécies convivendo harmoniosamente, mesmo com a antiga rejeição. Prova-se, portanto, nunca ser tarde para a mudança de postura, levando o belo ensinamento a uma animação muito esmerada.

  • Crítica | O Garoto da Casa ao Lado

    Crítica | O Garoto da Casa ao Lado

    O Garoto da Casa ao Lado - poster brasileiro

    Jennifer Lopez tem como maior atributo a beleza de ascendência latina. Em anos anteriores, foi uma das cantoras que adentrou o cenário pop musical dos Estados Unidos representando uma figura diferente da popular loira americana. Em paralelo a esse sucesso, desenvolveu uma carreira de atriz estrelando produções como Sangue & Vinho, Selena, Irrestível Paixão e Anaconda, filmes que, com ou sem qualidades, eram destaques na época de lançamento. Concentrando-se com maior ênfase na carreira musical, permaneceu em papéis simples, a maioria comédias românticas ou histórias dramáticas sem muito destaque, porém sempre mantendo seu nome na mídia, seja nas telas ou nos singles musicais.

    Produzido pela própria atriz, O Garoto da Casa ao Lado é o novo thriller de suspense de Rob Cohen, diretor conhecido por suas costumeiras obras medianas mas que antigamente ao menos conquistavam o público de ação, caso de Velozes e FuriososTriplo X e Daylight. Não fosse a popularidade da atriz e do diretor, a produção seria um genuíno filme B com lançamento direto em home video. Considerando a época de seu lançamento, a história parece formatada propositadamente para acompanhar o nicho recente de romances que misturam erotismo em uma trama qualquer, principalmente devido ao lançamento da adaptação de Cinquenta Tons de Cinza.

    Claire (Lopez) é uma mulher divorciada que teve um casamento manchado pelas aventuras conjugais do marido. Após a separação, procura o recomeço como professora de literatura em uma escola. Em uma noite após um encontro ruim, se envolve romanticamente com o vizinho, um adolescente que recentemente veio cuidar de um tio doente. Reconhecendo a disparidade da relação, Claire tenta negar o amante após a noite de amor e, lentamente, a personagem se torna agressiva e utiliza a chantagem, intimidação e medo como maneira de manter os laços.

    Não há nada de novo nesta história que siga à risca os argumentos básicos de uma intriga. O vizinho, a princípio atencioso e atraente, revela-se um homem obsessivo e violento e sem nenhuma credibilidade. Ampliando seus domínios, a personagem aproxima-se do filho de Claire, um garoto com idade próxima da dele e tenta influenciá-lo negativamente contra a mãe e o pai, que ainda tentam manter uma relação. O erotismo em cena é precário e parece um recurso obrigatório para tentar atrair parte do público devido à fórmula que alterna atração e perigo. Nenhum dos atores tem o talento necessário para dar sustentação ao seus papéis, e o desenvolvimento da trama, tentando amplificar a tensão, entrega ao público frases de efeito, cenas tradicionais de suspense com personagens olhando janelas de maneira furtiva e o evidente fim redentor para a história.

    A brevidade do filme é suficiente para não causar estragos no público, mas a narrativa superficial com interpretações rasas não promove nenhum tipo de emoção, nem mesmo o suspense rasteiro que era o alvo desta história. Lopez e Cohen estão distantes de uma carreira brilhante, mas juntos conseguiram compor quase um manual de tudo que deve ser evitado quando se intenta contar uma boa história do gênero.

  • Crítica | O Ano Mais Violento

    Crítica | O Ano Mais Violento

    Um Ano Mais Violento 1

    O Ano Mais Violento se passa no árido inverno de 1981 em Nova York, e inicia-se já apresentando o histórico violento da cidade bem como o seu futuro incerto e desajustado. Índice de assassinatos em alta, roubos não investigados, e um sistema judiciário inchado e coberto de interesses políticos.

    É neste cenário que o empresário e imigrante Abel Morales (Oscar Isaac) e sua esposa Anna (Jessica Chastain) lutam para progredir no negócio de venda de combustível enquanto tentam lidar com suas éticas internas e com a violência opressora da cidade. Vítimas constantes de roubos e da vigilância do ambicioso promotor local (David Oyelowo), os personagens empalidecem sua aparência civilizada a cada novo golpe que sofrem, cada vez mais tendendo à opção de moldarem-se ao modus operandi da cidade.

    Em plena ascensão, Abel é mostrado como um homem rígido e eventualmente caridoso que subiu na vida através do seu talento e do casamento com Anna, e tendo como carta final a compra de um terreno de logística privilegiada que lhe garantirá o poder que tanto almeja. Seu destaque empresarial e resiliência pessoal contrastam-se, porém, com a trajetória de seu jovem empregado Julian, que se quebra frente à pressão de suas próprias incapacidades até apresentar-se como um problema para Abel e suas ambições.

    Uma das preocupações do roteiro é não mostrar apenas a violência urbana. Está claro que na verdade estamos falando de uma época mais civilizada que antes. Esse “antes” é a época dos gângsteres, que dominavam o mercado na violência e na troca de tiros. O que faz desse ano descrito o mais violento não é a violência física em si, mas a recente desinstitucionalização dessa violência.

    Não é incomum pessoas que viveram sua infância na década de 1940, por exemplo, rascunharem o relato de uma época mais pacífica, saudável e solidária que a atual, mesmo que esta tenha sido a década em que 40 milhões de pessoas morreram tão violentamente em uma guerra mundial. O motivo é que, quando sob aval social, a violência perde impacto, e com o tempo acaba por ser digerida pelo sistema.

    Usando Oscar Isaac (Inside Llewyn Davis – Balada de um Homem Comum) como astro, é notório que, apesar de seu talento, o ator desaparece cada vez que Jessica Chastain (A Hora Mais Escura) aparece em cena. Isso não é por acaso, pois a direção de J.C. Chandor faz questão de iluminá-la e destacá-la em todas suas aparições, demonstrando todo o magnetismo daquela mulher que, ao contrário do marido, é capaz de fazer o que é necessário. Cria de uma sociedade gângster, ela se mostra capaz de adaptar-se à sociedade atual, mais civilizada e de sobretudo, mas sem deixar suas garras de lado.

    Subliminarmente perversa desde o início, Chastain faz um belíssimo papel demonstrando que, como disse Mario Puzo, por trás de toda grande riqueza sempre há um grande crime, fazendo do “American Dream” tudo, menos um sonho.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Mommy

    Crítica | Mommy

    Mommy 1

    Apenas quatro anos após seu filme mais notório – Amores Imaginários –, o jovem realizador Xavier Dolan traz à luz um drama realista que põe em xeque sentimentos como impotência, desprezo por parte dos poderosos e mortalidade. Mommy inicia-se violento com um acidente em uma rodovia canadense, remetendo à constante preocupação da matriarca do clã Després, Diane (Anne Dorval), que tem de equilibrar a própria vida pessoal com os cuidados especiais dedicados ao filho. Seu estado nervoso é absolutamente compreensível, diante das agruras de Steve (Antoine-Olivier Pilon), diagnosticado com hiperatividade.

    O fino equilíbrio entre o fardo de ter de sustentar uma pessoa “inválida” e fornecer socorro se mistura à sensação constante de fim do mundo, resultado da impaciência com elementos externos ao seu próprio mundo e de possíveis ofensas à sua cria. A rotina da família mudaria em absoluto após Steve deixar o internato para retornar à casa de sua mãe.

    O modo agressivo com que a família se trata deveria pressupor desrespeito mútuo, algo questionado por personagens periféricos. A agressividade na verdade suaviza uma relação de extrema intimidade, em que impropérios servem para derrubar palavras hipócritas, escondendo também um enorme senso de preservação e proteção das duas partes. Somente Die pode “ofender” Steve, e vice-versa, sob pena de sofrer xingamentos violentos, acompanhados de adjetivações distantes do costumeiro comportamento politicamente correto.

    Os arroubos emocionais pelos quais Steve passa são registrados em estilo semidocumental por Dolan, equilibrando poucos momentos de docilidade (ainda que moderada e repleta de palavras torpes) e de extrema agressividade, tão feroz que faz de sua mãe uma vítima provável. O desespero flagrado tem uma urdição ímpar, graças à perícia no roteiro de Dolan, que não subestima o público, tampouco cai em fórmulas convencionais e conservadoras de contar histórias.

    O paradigma da solidão e desespero começa a ser quebrado aos 30 minutos de exibição com o surgimento de Kyla (Suzanne Clément), uma menina que se muda para o outro lado da rua, e que, numa extrema atitude de benevolência e altruísmo, oferece-se para auxiliar a família na árdua jornada, que mistura perversões, amoralidades e autodescobertas.

    O modo curioso como os Després usam o idioma francês é mais uma mostra do roteiro e o deslocamento compartilhado pelos iguais, como se a vida falasse de modo diferente deles, enquanto outros membros daquela microsociedade têm dificuldade ou completa inabilidade em acompanhar o ritmo daquela língua particular. Mesmo Kyla tem enormes contratempos ao se ver sozinha com o jovem, enxergando em si e no rapaz um estorvo ambíguo, que funciona bilateralmente, com bloqueios enternecidos involuntários motivados pelo inculpável portador do mal investigado.

    Os estigmas antes sugeridos ganham contornos de carnais realidades com o crescente sentimento de isolamento por parte de Steve e dos que o cercam. O ciúme que passa a sentir em relação a sua mãe faz proibi-la de ter qualquer flerte ou relação emocional e física que não seja por ele. A aproximação do espectro da solidão faz o rapaz se desesperar e agir de modo impensado até mesmo para ele, ferindo a si e, por tabela, machucando seus entes queridos.

    Os momentos finais guardam toda a melancolia anunciada no decorrer da fita, sendo absolutamente cruel para os personagens reais mostrados em tela. Depois do incidente maior, mostrado no roteiro, o fantasma da segregação finalmente paira sobre a existência dos Després, unindo dor, desespero e infelicidade dos que ficam do lado de fora do sanatório, e um pouco de entristecimento também nos poucos momentos de lucidez do protagonista. Mommy se baseia em um drama forte que depende da entrega irrestrita dos intérpretes para compor um quadro agridoce, retratando uma realidade frequente e inevitável.

  • Crítica | A Música Nunca Parou

    Crítica | A Música Nunca Parou

    No livro Um Antropólogo em Marte, o neurocientista Oliver Sacks reuniu ensaios sobre casos estudados em sua profissão demonstrando a potência do cérebro, uma das melhores máquinas compostas pela engenharia neural. O escritor narra histórias de pacientes que sofreram algum distúrbio neurológico e, a partir de uma nova condição, tentam se adaptar à realidade.

    Lançado no Festival de Sundance em 2011, A Música Nunca Parou se baseia no artigo O Último Hippie, presente no livro citado. Na trama, o adolescente Gabriel Sawyer (Lou Taylor Pucci) sai de casa à procura de liberdade e anos depois é encontrado pela família em um pronto-socorro com um tumor cerebral que lhe causou sérias lesões, incapacitando-o de reter novas memórias, mas apenas momentos de sua juventude enquanto hippie. Tentando estabelecer uma conexão com o filho agora adulto, o pai Henry procura meios e alternativas para ajudar o garoto.

    Como pai de um adolescente na década de 60, Henry foi um conservador que não admitira as mudanças naturais da sociedade e, em consequência, o comportamento do filho, gerando distanciamento entre brigas e discussões. O reencontro traz à tona velhas feridas e coloca o pai em um interessante conflito: a única maneira de estabelecer uma conexão com o filho é adentrar nas memórias de sua juventude, um universo sempre negado pelo personagem paterno.

    Mesmo que pais busquem a melhor criação para os filhos, há um momento em que os rebentos precisam refletir sobre o mundo por conta própria. Os ensinamentos dados com amor por pai e mãe devem servir como apoio moral, não um guia absoluto. As gerações diferentes promovem valores distintos, e a discrepância entre o passado e o presente é um dos embates naturais na relação familiar.

    Com um herdeiro incapaz de produzir novas memórias, o pai busca construir uma nova relação familiar descobrindo a terapia musical como ponte. As canções ouvidas anteriormente ao problema de Gabriel funcionam como combustível para sua lembranças, fazendo-o sair de um estado mental diferenciado para se conectar às pessoas à sua volta, discutindo sobre canções e relembrando tempos passados.

    A música se configura como símbolo conector entre ambos. Um exemplo simples dessa grandiosa força de expressão, comovente e catártica, como nenhum outra arte. Isso nos leva a uma citação, replicada ao extremo em diversos meios mas representativa da força das canções: sem música, a vida seria um erro.

    O caso de Gabriel é um exemplo acessível do comportamento da máquina cerebral, composta com uma engenharia completa e que trabalha de maneira diferente quando sofre algum abalo. A narrativa é eficiente ao explorar tanto o lado científico de sua condição quanto o modo como um paciente mantém sua nova estrutura de vida.

    J.K. Simmons entrega uma bonita interpretação do pai severo e amoroso, que busca uma conexão com o filho, demonstrando sua competência habitual mesmo que nem sempre destacada pela mídia. Como na interpretação que lhe valeu o Oscar em Whiplash – Em Busca da Perfeição, seu papel é o conectivo da história. O público acompanha o drama do pai em descobrir a respeito da condição do filho, produzindo um laço emotivo que universaliza a sensível história.

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  • Crítica | Cinderela

    Crítica | Cinderela

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    Contos de fadas são parte de uma cultura popular originada em histórias transmitidas oralmente de geração para geração, nas quais temas adultos e controversos que explicam o mundo são atenuados com base na formação moral. Sem autoria definida, os contos de fadas, também chamados de contos maravilhosos, sempre dispõem de elementos sobrenaturais, fantásticos ou de encantamento, sendo as fadas apenas uma representação simbólica.

    A história de Cinderela possui diferentes versões. A mais famosa é do francês Charles Perrault, responsável por reunir diversas fábulas da cultura oral e transformá-las em narrativas simples, breves, tornando-se um modelo seguido por diversos outros autores. Cinderela ganha vida literária como Gata Borralheira no livro Contos de Mamãe Gansa em 1697, junto a Chapeuzinho Vermelho, Gato-de-Botas, Pequeno Polegar, entre outros personagens que passam a ser conhecidos mundialmente através do autor. Ainda que com a mesma base narrativa, essas histórias modificam-se conforme a cultural local, adquirindo diferentes formas. Caso dos irmãos Grimm, que posteriormente adaptariam esses e outros contos de forma a preservar a cultura e o folclore locais, e suas versões mais antigas, mais violentas e nada apropriadas a crianças, difeririam das de Perrault, que procurou manter com seus leitores um diálogo sóbrio e voltado aos infantes.

    Lançado em 1950, Cinderela é fruto da obsessão de Walt Disney pelo conto. O diretor já havia produzido um curta-metragem inspirado na história em um estúdio anterior ao Walt Disney Pictures. Pioneiro nas animações, o Laugh-O-Gram apresentou de maneira cômica uma personagem com roupas da moda da época, em uma linguagem típica do cinema mudo. Passaram-se quase 30 anos para o diretor voltar ao projeto, uma demora influenciada pelo baixo investimento ao estúdio durante o período da guerra. Inicialmente, a história seria uma de suas Sinfonias Ingênuas (Silly Simphonies), mas gerou inspiração suficiente para se tornar um longa-metragem.

    Com poucas modificações da versão literária francesa, o filme narra a vida da personagem homônima, órfã de pai, maltratada pela madrasta, Lady Tremaine e suas filhas Drizella e Anastasia. Sonhando com uma realidade diferente da atual, Cinderela interage com os animais da casa, os únicos amigos com quem divide seu pesar. A princípio, a obra estabelece uma inversão entre a representação dos humanos e animais, onde animais são humanizados e humanos bestializados, dominados pela soberba e vaidade.

    Assim, o roteiro mantém a crítica de Perrault ao regime de trabalho estafante da plebe e à ociosidade e arrogância da corte francesa, representada pela antagonista e suas filhas fúteis, de gosto duvidoso e sem atrativos físicos. A subordinação de Cinderela à madrasta é ainda mais opressiva porque não se trata de um trabalho explorado, mas uma relação familiar. O embate dualista do bem versus mal é comum nas narrativas de contos de fadas, nos quais essas representações tipificadas utilizam-se de conflitos simples como alicerce da trama para compreensão universal.

    O conceito tipificado da bondade estende-se também aos animais, tidos como seres puros e figuras presentes na maioria dos contos maravilhosos. Identificando-se com a compaixão de Cinderela, o núcleo dos ratos – os únicos com o dom da fala – ajuda a personagem a lidar com as adversidades da vida, inclusive, durante um divertido musical, os roedores reformam um antigo vestido que ela usaria no baile do príncipe. A bondade, em contraste, não se ostenta nas cenas de Lady Tremaine, onde as sombras dividem espaço com a vilã, revelando sua figura soturna e malévola. A obra costura um retrato benevolente de pessoas que sofrem querendo ocupar algum lugar no mundo. No sofrimento, o coração e alma desabrocham, e a partir das lágrimas de um ser imaculado surge a fada-madrinha.

    A protetora dos contos de fadas salvaguarda a heroína e geralmente aparece quando há a necessidade de atender a um chamado ou pedido. Representada pelo poder de segurança, a fada-madrinha da versão Disney é um pouco atrapalhada e associa-se à figura materna que Cinderela não tem por perto. Apesar dos ratos que falam e pássaros que observam a princesa cantar, é a fada e suas magias o elemento fantástico da história, a figura que transforma e surge como contraponto a um mundo caduco que necessita de compaixão.

    Procurando equilibrar a narrativa, Walt Disney chegou a mudar a estrutura da obra centenas de vezes. Perfeccionista, o diretor não teve medo de deletar cenas extras ou personagens desnecessários à trama. Muitas passagens foram cortadas, inclusive foi pensado um final diferente no qual o príncipe vê a Gata Borralheira com seus trajes modestos, após descoberta a sua verdadeira identidade. Retirada essa indicação desnecessária, a obra mantém a coerência, sem margem de interpretação para a surpresa que a realeza teria ao ver a princesa com roupas simplórias, algo muito diferente da contemporânea versão cinematográfica Para Sempre Cinderela, que subverte o desfecho, gerando um conflito em relação ao fato da heroína ser ou não uma moça da nobreza.

    Seguindo a estrutura de um conto de fadas tradicional, com introdução, conflito e desenlace, e apoiado pela boa trilha sonora, que oferece maior profundidade às cenas chave da película – ponto para a dublagem clássica brasileira, mantida na versão do blu-ray, com Simone de Morais dando à personagem principal um caráter mais doce –, o filme marca mais um momento dos estúdios Disney, após um difícil período mundial. Cinderela não só conta uma boa história como também torna a personagem a figura definitiva da princesa, elevando-a a um conceito que se sobrepõe à própria mitologia.

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    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Crítica | Eden

    Crítica | Eden

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    Remontando à geração French Touch, iniciada em 1992 e viva até hoje, responsável pelo advento musical do estilo eletrônico house, Eden, da diretora Mia-Hansen Love, se propõe a ser o retrato de uma época. A câmera segue os passos do iniciante DJ Paul Vallée (Félix de Givry), que busca um modo de se sustentar e de planejar seu futuro na arte, usando o tempo vago que dispõe para planejar novas apresentações, ouvir músicas e discutir com seus parceiros o rumo de seus trabalhos.

    O uso irrestrito da intimidade de Paul tem a função de desenhar o destino de grande parte de seus fraternos, que passam demasiado tempo trabalhando no entretenimento alheio, vivendo uma árdua rotina, quase sem intervalos. A entrega de corpo e alma é praticamente integral, em uma jornada de busca ao som e batida mais acurados possíveis. As atuações dos Cheers passam a ser mais frequentes, reunindo cada vez mais gente ao seu redor.

    A acirrada discussão a respeito da plausibilidade de Showgirls – filme controverso e fracasso comercial de Paul Verhoeven – é o catalisador para a pouca paciência de Paul, claramente mais exaltado que todos os presentes na reunião de amigos, sentimento este fruto da extrema ansiedade que sofre e da abstinência de não estar em sua ilha, trabalhando. Sua satisfação só ocorre quando está em ação, e mesmo as frivolidades, como a discussão a respeito de um filme que divide opiniões, parecem de um enfado sem tamanho.

    O nome original da obra foi preservado na versão brasileira sabiamente, uma vez que seu significado vai muito além da referência cristã. Como é sabido na cultura popular, o Jardim do Éden era um local paradisíaco, onde o deus cristão pôs sua obra-prima em forma de carne, o homem, que só saiu daquele lugar motivado pela ingratidão do pecado, que o fez separar. A busca por retornar às bem-aventuranças e ao lugar idílico, onde sonhos e realidade dividem o mesmo espaço, é comum à trajetória das personagens.

    No entanto, falta envolvimento do espectador com o drama das pessoas retratadas em tela. A trilha sonora, apesar de competente, não tem o poder de envolver o público, por ser a intenção de seus realizadores: emular através da câmera a frieza e extrema solidão que atravessam o caminho dos Cheers e que permeiam a existência deles.  Mostrando que há muito mais do que somente cor, batida, drogas e pessoas bonitas dançando, na vida de um clubber, a obra problematiza o conceito de que, mesmo cercada de muitas festas, a existência de um ser pode ser também muito miserável. Apesar de sua bela fotografia e edição, Éden não se destaca demasiado de seus pares, caindo na irresistível fórmula de frivolidade presente nas boates que servem de cenário para a miniepopeia.

  • Crítica | Golpe Duplo

    Crítica | Golpe Duplo

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    No início de 2000, roubos e assaltos com temática cinematográfica voltaram à tona e se tornaram uma vertente popular. Diversos filmes, sendo o remake Onze Homens e Um Segredo o mais significativos destes, pontuaram as telas com ladrões charmosos, grandes feitos glamourosos e reviravoltas como uma constante em suas histórias.

    Vindo de um fracasso de bilheteria dirigido por M. Night Shyamalan, Depois da Terra, o carismático Will Smith retorna às telas ao lado de Margot Robbie (O Lobo de Wall Street) formando uma dupla de golpistas nesta produção que segue a fórmula do roubo de maneira genérica. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o filme estreou em primeiro lugar na bilheteria, demonstrando que, apesar do enredo simples, a popularidade de Smith é capaz de garantir uma base de público nos cinemas.

    A dinamicidade didática de Golpe Duplo se apresenta desde o título brasileiro. A trama é dividida em dois atos passados entre um período de três anos, justificando, portanto, os dois golpes citados, e nos dando a impressão de que a fraqueza da história inicial promove uma segunda de maior impacto.

    De maneira rápida, o golpista Nicky conhece Jess e descobre sua habilidade em roubar. As cenas partem do pressuposto de que o personagem é um especialista no que faz, e não só demonstra superioridade de furtos em relação à moça como faz um jogo cênico apresentando tudo que é capaz de roubar. Em seguida, faz uma rápida introdução à técnica do crime para Jess – arte que o próprio disse denotar tempo para aprender – com pseudo-conceitos teóricos sobre distração, teatralidade e outras maneiras de conquistar pessoas, logo aceitando-a no bando.

    Como ladrão charmoso, a personagem vive de pequenos roubos e esquemas locais que exploram uma cidade de grande rotação turística, dentro de um sistema de furtos generalizados entre cartões, dinheiro, joias, roupas e tudo o que pode ser furtado e revendido por uma grande equipe de especialistas. As apostas estão no sangue de Nicky, assim cenas frívolas, como a do apostador viciado que não resiste à tentação, surgem como um conflito para uma trama que não possui nenhum.

    O primeiro ato da trama encerra em uma hora e salta temporalmente para três anos depois. Surge um novo golpe que, coincidentemente, reúne o mesmo casal, separado após o último. Em cena, entra Rodrigo Santoro como Garriga, dono de uma equipe de carros de corrida na Argentina. O destaque da imprensa brasileira é feito em demasia: Santoro destaca os cartazes brasileiro, e, de fato, é louvável que o ator prossiga na carreira internacional. Porém, seu papel ainda se mantém próximo do estereótipo, o de um latino-americano representando um hermano argentino.

    A obra é voltada para o entretenimento rápido. Sem profundidade de nenhuma personagem, o enfoque está centrado nos roubos, no glamour que o cinema produziu dos furtos, e nas naturais reviravoltas que parecem surgir para subjugar o público, como se dissessem: sim, nosso roteiro é superficial mas será capaz de te surpreender.

    Durante a exibição, o público pode ser divertir. Mas desde já é possível observar que Golpe Duplo não será o grande redentor de Smith que, há dez anos, começava uma excelente fase com Eu, Robô, Hitch – Conselheiro Amoroso, À Procura da Felicidade e Eu Sou a Lenda, filmes que fundamentaram ainda mais sua credibilidade, o que justifica a boa bilheteria de sua mais recente aparição.

  • Crítica | Mapas Para as Estrelas

    Crítica | Mapas Para as Estrelas

    Mapa Para As Estrelas 1.5

    A viagem em um ônibus popular que atravessa municípios está longe demais da realidade almejada por Agatha Weiss (Mia Wasikowska, cada vez mais linda e madura), que chega a Hollywood para dar uma volta na limusine dirigida pelo aspirante a ator Jerome (Robert Pattinson). Numa breve conversa, revelam-se as dificuldades que se apresentam ao viver no olho do furacão da cultura pop, surgindo, claro, os graves assuntos familiares que a fazem ser obrigada a ficar longe dos seus.

    A câmera de David Cronenberg trata de variar logo seu foco, mostrando uma família disfuncional, que em níveis diferentes reflete as neuras e paranoias típicas do show business. O pai Sanford, feito por John Cusack – com visual tão bizarro quanto em Obsessão –, é um psicólogo que se vale dos incautos que compram seus livros de autoajuda. Ele é o guia do clã rumo a qualquer possibilidade de sucesso, e investe em carreiras distintas entre os parentes. Seus esforços físicos são mais voltados ao tratamento de uma atriz cinquentenária repleta de crises – interpretada por uma oxigenada Julianne Moore –, que tenta, através de madeixas louras, esconder a real idade (e o envelhecimento físico visto a quilômetros) no intuito de conseguir interpretar um papel que sua mãe fez, em um remake. Havana Sangrand tem sérios problemas psíquicos, encarando com frequência o espectro de sua mãe Clarice (Sarah Gordon), que a atormenta e faz duras críticas a cada performance sua.

    Benjie (Evan Bird) é um jovem menino, que tem sua precoce carreira cuidada pela mãe da família Christina (Olivia Williams). A pressão que sua genitora realiza para que ele tome as melhores decisões possíveis revela – mais uma vez – a profunda perseguição à notoriedade no ambiente que é o mundo dos célebres astros do audiovisual. A tentativa do roteiro de Bruce Wagner é parodiar esse ambiente apontando seus absurdos, que se tornam caricatos pela lente e edição de Cronenberg, exagerando o tema em muitos pontos da trama para provar os pontos que defende.

    Cada um dos humanos parece deslocado da realidade, como se a febre da corrida por glória e renome anestesiasse os personagens, tornando relação e conversa travada por eles artificiais e aéreas. Apesar de não perder o apelo sexual, o visual de Moore e Wasikowska é estranho em algum nível, revelando defeitos estéticos, como marcas e envelhecimento da epiderme, provando que elas são espécimes humanas vvendo pateticamente em um ambiente semifantástico.

    A aura predominante é uma ode ao grotesco. As reações às recusas são intolerantes, especialmente da parte da debilitada Havana. Há estranhamento do público ao analisar os fatos recorrentes da fita. Os inimagináveis exemplos fazem lembrar a face pouco usual do cinema de David Lynch, onde os limites explorados passavam longe do comportamento padrão da indústria cinematográfica e não restringiam o desenrolar de qualquer história. No entanto, o modo como Cronenberg faz seus planos não é tão inspirado, também pelo caráter depressivo de seu conto.

    A esquizofrenia e as cicatrizes de deformação de Agatha não só a diferenciam visualmente dos corpos sem vida que vagam pelo mundo estranho apresentado na película, como também são avatares da insanidade que habita a mente e alma dos fúteis homens que compõem o clã dos Weiss. Uma análise cuidadosa do quadro revela que os demônios que atormentam uma das gerações reverberam na outra, denotando a maldição hereditária e a praticamente incombatível realidade inexorável e incondicional.

    As esferas de perturbação mental variam seus ápices entre as tentativas de morticínio familiar e a quantidade exorbitante de devaneios e ilusões com seres incorpóreos, algo que ocorre a mais de um personagem por vez e cuja razão não é explicada. As maiores possibilidades de origem de tais fatos podem prevalecer no uso abusivo de alucinógenos ou na cada vez mais crescente possibilidade de insanidade do coletivo, igualmente agravados pelo envolvimento com infantes e adolescentes, pessoas cujo caráter e inteligência emocional ainda estão em formação, mas dentro do escopo dessas fantasias.

    A obra segue fiel aos preceitos do início da carreira de seu diretor e faz lembrar, em espírito e algumas cenas violentas, o gore dos clássicos insanos Scanners e A Mosca. Ainda assim, Cronenberg perde em seriedade, repetindo grande parte dos erros de Um Método Perigoso, ainda que, em se tratando de qualidade, Mapas Para as Estrelas esteja anos luz à frente dos últimos filmes do cineasta. O foco em apresentar um deboche inspirado na falsidade ideológica que Hollywood exala é pontual, mas o roteiro que tinha em mãos é bastante atabalhoado, sendo, em alguns momentos, salvo pela ótima direção de atores. Porém, sobra em excentricidade em alguns dos núcleos. O saldo final é positivo, especialmente pelo pastiche e pela referência à crueldade do método e da arte.

  • Crítica | Terceira Pessoa

    Crítica | Terceira Pessoa

    Terceira Pessoa 1

    Paul Haggis (Crash – No Limite) tem duas grandes qualidades como idealizador, sendo a primeira sua percepção humanística e descentralizada das interações cotidianas que transbordam em seus roteiros  ̶  mesmo nos mais populares como Cassino Royale, e principalmente nos mais intimistas como Menina de Ouro, Crash  ̶ , e a segunda qualidade é sua capacidade de agregar grandes nomes para o elenco de seus filmes.

    É fácil identificar-se com suas obras, mesmo aquelas mais densas como Vale das Sombras, pois em um mundo onde as pessoas pouco se relacionam, pouco sentem e pouco se tocam, sua escrita promove uma pequena torrente de reflexões e a quebra das “minicertezas” do dia a dia ao escancarar, de forma franca, a efemeridade da vida e a fragilidade das relações humanas. Por ter laços tão sutis, a dinâmica social torna-se um nó górdio no qual a dilaceração é destino mais provável, e que por ser assim, Haggis traz em suas obras um estranho senso de otimismo, aceitação e bondade.

    Premiado em três categorias no Oscar por Crash, Haggis também carrega o estigma de dirigir um dos vencedores mais controversos pela Academia de Ciências Cinematográficas. Estruturado sobre um roteiro que costura vidas e cenários a fim de montar um panorama social dos EUA e seus cidadãos, a direção, roteiro e montagem trabalham perfeitamente para criar um ambiente único e sujeito a variações caóticas diante da menor perturbação. Honesto, sucinto e humildemente relevante, é uma pérola do cinema. Esta digressão, porém, serve para contrapor Crash com seu novo longa, Terceira Pessoa, o qual não consegue ser a sombra do primeiro.

    Dotado novamente de um elenco competente e estrelado, de nomes como James Franco, Liam Neeson, Mila Kunis, Adrien Brody, e a desperdiçada Kim Basinger, Haggis tenta lidar com suas próprias dificuldades humanas ao elaborar uma teia de vidas, que têm em comum a dificuldade de lidar com a realidade e assumir-se como aquilo que realmente são. Um ladrão que se diz “homem de negócios”; uma mãe incapaz de lidar com suas falhas psicológicas; uma mulher perdida em relacionamentos autodestrutivos; um escritor notoriamente atormentado por seu passado e incomodado com o declínio de sua trajetória profissional, hoje tão opaca; e, por fim, o próprio filme que, apesar de ser intitulado “Terceira Pessoa”, não consegue perceber o egocentrismo inerente à toda sua estrutura.

    E assim, todas as qualidades que poderiam relacionar a película com a carreira de seu diretor dissolvem-se por conta da falta de carisma e relevância das histórias. Dessa forma, os erros ocorrem pela montagem defeituosa que em diversos momentos desnorteia o espectador ao invés de orientá-lo na transição entre os segmentos, pela direção burocrática, bem como pela tentativa frustrada de usar o histórico cinematográfico de Haggis e clichês narrativos dos filmes de histórias entrecruzadas, para incentivar o espectador a ter a boa vontade de supor sobre os destinos daqueles personagens para algo além do óbvio. Infelizmente, é apenas óbvio mesmo.

    Distante do impacto emocional que poderia causar, o que se tem aqui é um filme muito mais longo que o ideal, e que se torna ainda mais enfadonho ao deixar escapar já antes do encerramento do segundo ato que não há mais nada a dizer ali.

    Na tentativa de gerar alguma dinâmica mais atrativa, as resumidas tramas fecham-se em um anticlímax desatencioso e incapaz de decidir com quais decisões deve arcar. A trilha sonora tenta atuar como ferramenta para adicionar alguma sustância aos diálogos bobos e direcionar os sentimentos que deveriam ser suscitados pelo espectador, e desta forma torna-se quase onipresente, chegando a incomodar.

    Essa alienação dos elementos narrativos, uns pelos outros, faz com que vozes e clamores dos personagens ora tenham múltiplos representantes, ora não tenham nenhum. Talvez o diretor esteja em uma crise pessoal, talvez por isso a crueldade no trato com o amor romântico e o amor familiar, talvez por isso a incerteza tautológica. Mas, como para aquele que escreve, toda obra é autobiográfica, talvez assim Paul Haggis tenha conseguido expulsar seus demônios.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Enchente

    Crítica | Enchente

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    Antes mesmo de iniciar o documentário, os cineastas Julio Pecly e Paulo Silva utilizam a tela dos créditos para exibir um pronunciamento oficial, ministrado por uma autoridade local da cidade do Rio de Janeiro, apelando para que o cidadão de bem não saísse às ruas a menos em caso estritamente necessário, já que, nos idos de 1996, a cidade se encontrava em estado de calamidade. O pedido não poderia ser aceito por quem morava na Cidade de Deus, já que suas casas foram invadidas pelas águas, cuja fatalidade levou, inclusive, a vida de alguns moradores.

    Através de imagens da televisão à época, o diretor tenta resgatar em imagens a dor e o desespero que seus vizinhos e família sofreram. Seguido a isso, mostram-se moradores do local naquele período, rostos que não conseguem esconder nem o alívio por estarem vivos, tampouco o amargor pelo infortúnio causado à comunidade.

    Sem infraestrutura, comida, com os comerciantes sofrendo saques, os moradores pereciam – outra vez – no abandono por parte da prefeitura e das autoridades cabíveis. De positivo, há muito pouco. O que resta é a curiosidade de conferir os relatos por parte dos sobreviventes, que, mesmo perdendo grande parte dos seus bens, comemora momentos do resgate, como afirma um morador local ao conseguir salvar ao menos seu aparelho televisor da enchente que tomou a sua casa, ainda que o nível da água estivesse já na altura do tórax.

    A maioria dos habitantes do local simplesmente jogava seus pertences fora, como em um rito desesperançoso de passagem, exibindo o fim de um ciclo para um começo do zero. O simples baixar das águas não faria os problemas simplesmente sumirem, tampouco traria de volta à vida aqueles que morreram. Todos tiveram marcas provindas da tempestade, mas apagar os sinais visíveis pela favela era o mínimo para que se começasse uma mudança.

    Outras enchentes ocorreram e tiveram grande exploração midiática nos anos 60, inclusive em tons dramáticos transmitidos pelos programas de reportagens da época. O pouco feito pelas autoridades é o mote da fita, que destaca a total ignorância do poder público, marginalizando os homens com menos dinheiro e recursos, pois eram esses que, na cidade do Rio, ficavam desabrigados e perdiam tudo.

    Mesmo entre os entrevistados, não há um consenso entre quem seria o principal culpado pelo acontecido, ou a razão maior. Desde destino até o desprezo das autoridades, todas as causas possíveis são levantadas, inclusive com registros do então prefeito Cesar Maia, mais uma vez reclamando que o governo federal e estadual não assumiam a responsabilidade junto com ele, tirando o atestado de autoria por aquele pecado de perto de si. Tudo isso dito pelo político que vê a cidade do alto, em um helicóptero, fazendo com que distância entre os dois mundo se mostrasse puramente visual.

    A mensagem que Pecly e Silva passam escolhe um lado, mas não ignora o outro. A voz dada aos que acham que a culpa era dos próprios moradores não ignora a parcela de responsabilidade dos governantes. Mesmo que diante da tragédia anunciada e da ação praticamente nula dos que foram eleitos pelo povo, e que assistiam passivamente à morte daqueles homens.

    A trilha instrumental, deixada ao final, traz um conjunto de cordas tocando Unforgiven do Metallica, para então revelar que, em 2010, outra enchente ocorreu, vitimando mais cinco pessoas na Cidade de Deus, e outras centenas no restante da cidade. Tudo fruto do imperdoável desprezo com o pobre, ainda muito comum na triste relação de chefes de Estado e população carente.

  • Crítica | Leviatã

    Crítica | Leviatã

    leviatã

    Leviatã. Rima com amanhã, exatamente sobre o que trata este filme. O futuro e a angústia das incertezas a partir da insegurança que o amanhã confere. Quanto a essas incertezas, o filme discorre suas razões de cabo a rabo, desde o que move a vida dos habitantes de lugar-nenhum no fim do mundo – o mundo deles no qual só os “nativos” parecem ter acesso e conhecimento de como sobreviver em bando por lá – até o ambiente, que, por mais lúdico e inspirador, chega a sofrer influência e alteração pelo homem pelo simples fato deste viver em determinados recantos da Terra, culminando em caráter de parasita, muitas e muitas vezes. A troca de influência entre o social e a ambiência é a coluna dorsal de um atestado felino das relações humanas – astuto e expressivo, ainda que discreto, diga-se de passagem. É como se o magnífico turco Era Uma Vez na Anatólia fosse (re)filmado na ótica implacável e cética do francês Michael Haneke, e nem é preciso medir as palavras para atestar tal delírio alternativo.

    Bobagens (e uma atmosfera semi-emergencial que remete muito a Onde os Fracos Não Têm Vez) à parte, Leviatã adere à eterna moda soviética de ser realista a ponto da realidade ser surreal, e precisar ser ficção na tela de Cinema, exigindo do público uma fuga na ilusão para esquecer que o real pode ser tão mundano e frio, com certeza. Os cineastas Sergei M. Eisenstein e Vsevolod Pudovkin já faziam isso há quase um século, em Potemkin e A Mãe. Essa total apropriação da realidade pelas mãos da ficção, e todo o resto, pode ser percebido nos primeiros 15 minutos de Leviatã, contadinhos. Filmes de respeito são assim mesmo.

    O filme é um relato de um presente regido por suas pontas, um momento atual resultado e estopim do que já foi e do que será, uma não-oficial adaptação literal ao cinema, com veias de forte e imponente literatura russa, da melhor qualidade, a tanger aspectos de reinações da história, triste e contemplativa, moderna e histórica no mesmo nível, e ao mesmo tempo. O filme é uma enorme metáfora indireta só aos cegos que não querem ver, para com algo maior ainda: a Rússia e suas fundações refletidas no comportamento da civilização. Leviatã é um filme universal e com situações universais que, por acaso e entre aspas, calha de ser russo. Sabe as famílias despejadas no Rio de Janeiro, movidas para não enfeiarem os arredores da Copa de 2014? Aqui, essas famílias falam russo, os políticos têm cara e religião hipócrita, e as resoluções para os abusos e pressões de autoridades são expostas sem medo – essa história poderia estar em qualquer jornal do Brasil se manchetes não vendessem devaneios.

    Do suspiro “Toda minha vida está aqui” se resume a sensação de uma família de advogado reunida ao redor de uma mesa, o olhar geral num quadro pagão, com seu habitat estampado entre a moldura e prestes a ser corrompido num país gigante em que a pequenez se faz na ação jurídica de quem comanda suas tangentes. O cineasta Andrey Zvyagintsev vai fundo sabendo onde termina o abissal e começa o inferno, e desbrava tradições de um povo e de uma classe (baixa, claro) ignorando limites sensoriais – cada rosto no filme é uma bomba a explodir num barril de pólvora cercado por rochas milenares e um mar de lágrimas, lágrimas daqueles que o olham sem saber se almejam nadar para longe ou limpar com suas ondas o que infesta a pátria das pessoas que só querem viver em paz. De pequenos grandes momentos nos quais o silêncio grita tanto quanto as discussões, Leviatã admite que não há futuro respeitável sem respeitar o histórico do que poderia consagrar o estado atual das coisas. Sim, é uma obra de hipóteses. Alice no País das Maravilhas no mundo real – é impossível saber qual cabeça será cortada antes do fim, talvez todas. Destaque para a atuação coletiva, gloriosa.

    Com uma míngua de esperanças, a família se reforça para cantar ao político que rouba seu sono o refrão de Apesar de Você, de Chico Buarque, através de atos e relatos contra o abuso político e a favor da boa e velha resistência existencial da parte de baixo da pirâmide, sempre e ainda sofrida. E assim como os personagens que são maiores que seus dilemas e ensejos de sobrevivência, o filme se expande além de suas personas, locais e iluminação, à luz de um prisma enorme de interpretação ao gosto do público, cortesia do cineasta Andrey. Mesmo com a falta de uma alegoria épica aos moldes de cineastas como Ceylan ou Lav Diaz, e com algo mais prático ao estilo de Abbas Kiarostami e do próprio Andrey, Leviatã, onde nada é gratuito e toda ação e reação tem seu pesar, se consagra como narrativa mais que sólida, exemplar, e ainda nos oferece a obrigação, enquanto público, de prover conclusões ao filme. Uma obra complexa, mas com uma história bem aberta, de propósito, dada a revisões se não for pedir muito. Nós somos o ponto final nesse espelho interativo ao lado de cá da tela, onde, lá e cá, a corrupção política é natural e inerente ao espírito humano (pelo menos enquanto a ficção não prova o contrário). Daí o esforço pelo amanhã, num mundo dividido entre o natural e o mecânico.

  • Crítica | O Universo Graciliano

    Crítica | O Universo Graciliano

    Universo Graciliano 1

    Intentando resgatar a memória de um notável brasileiro, Sylvio Back se aventura pela trajetória panorâmica do autor Graciliano Ramos, elevando a carreira e visão de mundo do alagoano ao patamar cósmico, ao apresentar seu O Universo Graciliano, de Sylvio Back. Não à toa, o primeiro personagem flagrado em cena é Oscar Niemeyer, cujos desígnios políticos eram muito semelhantes aos ideais sociais do escritor, transmitindo a mensagem antes mesmo do preâmbulo.

    A câmera invade a intimidade dos que depõem, com closes fechadíssimos, expondo pele e rugas -, defeitos que tornam cada um dos participantes ainda mais humano. Com a trêmula câmera, comum ao movimento de quem registra, sem modificação estética, a obra faz do ofício um paralelo com a carreira e o texto de Ramos, o que já havia sido realizado anteriormente por Nelson Pereira dos Santos em seus Vidas Secas e Memórias do Cárcere.

    Em cada palavra da parte dos convidados, nota-se o destaque que Graciliano dava ao socialismo e à crença de que a revolução soviética seria a resposta para todos os males sociais, algo representado em suas obras pelo árido deserto nordestino, onde as condições paupérrimas impediam que qualquer coisa se proliferasse. Como principal motivador desse decréscimo de vida, a condição de supervalorização do capital. Voraz leitor e estudante das condições econômicas, Graciliano batizou de Lênin um de seus filhos, homenageando o homem que, segundo seu pensamento, conseguiu se aproximar mais do pragmatismo recorrente de Karl Marx.

    A verve política de Ramos é bastante focada, especialmente em seu ingresso no PCB (Partido Comunista Brasileiro) junto a outros tantos ilustres, como Jorge Amado, Cândido Portinari, Niemeyer, além de outros autores, intelectuais e proletários. Sua participação aconteceu desde a inspiração a Luis Carlos Prestes até o fomento à entrada de escritores mais moços para que adentrassem as fileiras do grêmio político. As diretrizes eram levadas a sério, ipsis literis na maioria das vezes, seguidas como em uma seita onde nada se destaca. Em determinado ponto, o documentário de Back envolve tanto a figura de Graciliano quanto os efeitos do socialismo sobre toda uma geração de pensadores brasileiros, com ele incluso, claro.

    A edição de Mariana Fumo e a fotografia de Erick Mammoccio ajudam a  transcender os formatos comuns ao gênero documental, mesmo levando-se em conta os novos modos de registrar os fundamentos biográficos. A linguagem enquadra uma visão fidedigna, resgatando dos entrevistados detalhes privados do personagem, humanizando-o de um modo pragmático, mas bem distante da literatura propagandista e panfletária. Revela-se uma persona repleta de nuances, com uma multiplicidade de pensamento aberto, e a quebra de rigidez típica de quem pensava o comunismo dentro do partido, sendo uma voz dissonante que visava analisar a estrutura do Brasil, adaptando o modo de governo aos anseios e necessidades do povo.

    O sertão era o cenário das histórias de Graciliano por exibir uma dura realidade, pessimista em essência, por conter na região o resumo das necessidades básicas do brasileiro às quais eram relegadas pela disparidade social, que na prática resultava em fome, desnutrição e miséria. Apesar da questão tender a ser ignorada por teóricos, graças à quantidade exorbitante de burocracia que tomou grande parte da esquerda, tais anseios se associam naturalmente ao pensamento básico socialista. A escolha de Back em retratar esta faceta de Graciliano Ramos não só humaniza a figura mítica como também mostra o engajamento e alma do artista e do homem por trás da grandíssima obra.

  • Crítica | O Mensageiro

    Crítica | O Mensageiro

    O Mensageiro 1

    Em sua estreia dirigindo longas-metragens para o cinema, Michael Cuesta destaca o discurso público dos políticos iniciado pelo conservador presidente Ronald Reagan, falando da profunda luta e perseguição ao comércio de drogas no território estadunidense. Após os créditos iniciais estilizados, a câmera passa a acompanhar o drama biográfico do repórter, infiltrado em um esquema de tráfico de drogas, Gary Webb (Jeremy Renner), que é logo cooptado em uma operação policial.

    Após o susto, a trama acompanha o meticuloso trabalho de Webb, averiguando fontes e correndo atrás de notícias que municiassem sua investigação. A obra ora alterna cenas de seu cotidiano familiar, em casa, relembrando sua condição de normal humanidade, ora o ambiente de trabalho, em uma redação nada glamourosa na época modorrenta dos anos 1990, quando se passa a história. O modus operandi do jornalista é igualmente monótono, repleto de noites em claro, representando a classe comunicóloga, assim como O Espião Que Sabia Demais o fez em relação ao serviço de inteligência e investigação das grandes nações.

    A construção da figura heroica de Webb é feita ao modo do cinema hollywoodiano: tentando diferenciá-la dos muitos personagens amorais que cedem a pressões psicológicas e às tentações sexual e monetárias comuns em biografias. Seu personagem é fiel em ideais, exibindo tão somente uma atuação quando é jornalista gonzo nas matérias em que se dedica. Sua posição é o meio-termo entre o anti-herói americano e o clássico paladino, que tem de se ver “corrupto” somente quando necessário, mas que, mesmo ao mergulhar no mundo inimigo, consegue manter-se são e distante daquele padrão de conduta, num fino equilíbrio do roteiro de Peter Landesman. Como um texto de denúncia, apresenta-se um personagem apolíneo sem soar falso ou chapa branca.

    A trajetória do biografado tem dois momentos distintos, e, como em uma peça do teatro grego, tem seu apogeu e uma queda bem distinta. O movimento começa lentamente após a segunda metade das quase duas horas de duração do filme, apesar de já dar indícios do que ocorreria ao longo de todo o filme, especialmente de seu início. Após lançar com sucesso seu livro, Webb passa a ter de dar “satisfações” às autoridades que acusou através de seus relatos, fundamentados, claro, em fatos investigados por fontes plausíveis. A odisseia pela qual o personagem passa faz com que ele se envolva mais na história, a ponto de se deparar com grandes mandatários do narcotráfico ao receber uma inesperada visita no território de John Cullen (Ray Liotta), tendo a própria vida e as dos seus em perigo.

    Praticamente não há nenhuma cobertura por parte de sua editora Anna Simons – de uma surpreendentemente performance madura de Mary Elizabeth Winstead –, tampouco do resto de seus superiores. A batalha passa a ser do exército de um homem só, que tenta provar a própria inocência, zelando por seu nome e pela segurança de seu seio familiar. Por jamais ter cedido aos apelos dionisíacos que se apresentavam a ele, a situação agrava-se.

    A superação das questões que se puseram à frente do personagem central tem um fim inesperado, com a opinião pública tomando rumos tão controversos quanto o desfecho de todo o momento dificultoso. Seus relatórios serviram muito à investigação do tráfico de drogas nos Estados Unidos, e toda a construção de persona non grata tem finalmente sua justiça, visto que ele para de trabalhar com sua paixão, levando-o a um fim trágico, sabiamente não mostrado pelas lentes de Cuesta. O Mensageiro tem em seu nome original – Kill The Messenger – uma sucinta mensagem, exibindo um conto enxuto, equilibrado e muito necessário a uma figura que foi controversa e calada – apesar da tão louvada primeira emenda.

  • Crítica | Hook: A Volta do Capitão Gancho

    Crítica | Hook: A Volta do Capitão Gancho

    Hook - Blu Ray

    Hook: A Volta do Capitão Gancho é um daqueles filmes que ficam na memória de qualquer criança que hoje está na casa dos 30 anos. Lançado em 1991, com jeito de super produção e com um elenco estelar, o longa teve muitos problemas, demorando, praticamente, 10 anos para sair do papel, além de trocas de estúdio, abandono (e posterior retorno) do diretor Steven Spielberg e demissão de roteiristas..

    À época, Spielberg já tinha em seu currículo clássicos dos estilos mais variados como Tubarão, Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Os Caçadores da Arca Perdida, E.T. – O Extraterrestre, A Cor Púrpura e O Império do Sol, portanto, expectativa suficiente para fazer de Hook um grande sucesso. O que se viu, então, foi um sucesso de bilheterias, mas um desastre de críticas.

    Baseada na obra e na peça escrita por J.M. Barrie, a história é centrada no pai de família Peter Banning (Robin Williams), um advogado de sucesso que não tem tempo para a família, já cansada de seus atrasos e de suas falsas promessas. Durante uma visita à casa de sua sogra, Wendy (Maggie Smith), os filhos de Peter acabam sendo sequestrados pelo Capitão Gancho (vivido brilhantemente por Dustin Hoffman). Assim, a fada Sininho (Julia Roberts) também sequestra Peter e o leva de volta à Terra do Nunca. O problema é que Peter não lembra absolutamente nada a respeito de sua época na Terra do Nunca, nem da própria Sininho, muito menos dos Garotos Perdidos, que ficam divididos naqueles que acreditam ou não que aquele Peter é, seu líder, Pan. Porém, Peter tem apenas três dias para se lembrar e se preparar para um duelo contra o Capitão Gancho e que decidirá o futuro de seus filhos.

    A premissa já foi (e ainda vem sendo) desgastada por Hollywood, e a performance do grande elenco é o que mais deixa a desejar. Julia Roberts concorreu ao Framboesa de Ouro; Robin Williams deu início à saga de papéis iguais que o tornaram famoso. Além do mais, hoje, chega a ser constrangedor vê-lo adulto, levemente fora de forma vestindo a roupa de Peter Pan. Tais fatos acabaram por deixar Dustin Hoffman sobrecarregado, mas sem perder o brilho, juntamente com seu aliado pirata, Smee (Bob Hoskins) e um ou outro Garoto Perdido que se sobressai em relação aos demais.

    Analisando friamente a fita, chega-se à conclusão que o destaque fica para a direção de arte, que construiu uma Terra do Nunca bastante lúdica, além de um navio pirata sensacional, e os figurinos dos personagens (principalmente o do Capitão Gancho), que são impecáveis. Mas em que se pesem os aspectos negativos, podemos perceber que Hook: A Volta do Capitão Gancho é um filme feito pra entreter, e ele cumpre bem o seu papel. Pelo menos, o projeto seguinte de Steven Spielberg foi Jurassic Park.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Dois Lados do Amor

    Crítica | Dois Lados do Amor

    Dois Lados do Amor 2

    O começo do novo filme de Ned Benson começa debochado, em uma conversa descompromissada e humorística entre Conor e Eleanor, um casal apaixonado que se divertiria pregando peças em restaurantes, retirando-se às pressas para não pagar as contas. Um dia, tal espontaneidade teria seu preço, maior do que o simples viver dos sentimentos, e o casal enamorado já não seria mas tão unido, causa justificada por nenhum motivo específico; somente as vicissitudes da vida foram responsáveis pelo gradativo afastamento.

    A narrativa do diretor autoral passaria por mostrar eventos em atos, como em uma peça teatral. O primeiro, após a breve introdução, exibe Eleanor Rigby, caracterizada emocionalmente por uma cada vez melhor Jessica Chastain, que em um momento rotineiro prende a sua bicicleta a uma grade e se joga ao mar, impedida de morrer por um transeunte anônimo, fruto da entropia que se torna menos estranha pela completa ausência de explicações anteriores. A aura de aleatoriedade permeia a existência da personagem e faz com que qualquer diagnóstico torne-se confuso.

    Conor Ludlow, o homem, sente-se mal e responsável por todo o drama que chega a sua casa. James McAvoy é o perfeito sujeito tomado pela responsabilidade do “delito”, digerindo o remorso pelos atos de sua esposa que são piorados, é claro, pela subjetividade inerente ao término da relação e o consequente apartamento das partes, reforçado por um pedido de Eleanor para que a distância permanecesse intacta entre ambos.

    A métrica usada por Benson compreende uma linha temporal dionisíaca, que mostra cada momento específico da relação de acordo com o que o realizador julgar melhor. O fino equilíbrio não é quebrado, e a composição estratégica valoriza o romance perfeito do passado e a amargura de ambos após o fim da relação amorosa, que apesar dos pesares, não perdeu força, tampouco significou a interrupção do sentimento e da atração mútua.

    O lugar que o casal administra é um restaurante, curiosamente o símbolo que demanda amor, lugar onde muitas relações começaram ou simplesmente passaram, mostrando que a intimidade dos personagens é repleta de momentos de exploração da afeição típica de consortes enamorados. Mesmo assim, a sorte dos dois não fez prever o atropelamento que sofreriam, literal ou figurado. Curiosamente, após o rompimento, o estabelecimento é gerenciado somente pelo homem, o que coincide com a vontade de tornar o negócio em um empreendimento unilateral. Ao menos em um nível liminar de pensamento, que somente se manifesta em Conor.

    Após algumas incursões ao consultório psicanalítico da Professora Friedman (Viola Davis), Eleanor enfim percebe que não conseguirá mudar ou evoluir permanecendo no mesmo lugar. A moça tenciona sair da cidade, mas é fortemente aconselhada a não agir tão drasticamente, sugestão dada por sua analista e por todo o corpo de apoio formado pelo belo elenco de coadjuvantes, que conta ainda com Bill Hader em um papel diferente das comédias habituais – emulando o drama já visto em Skeleton Twins – e uma comedida Isabelle Huppert, que faz a matriarca Rigby, prenunciando alguns dos defeitos de introspecção de sua herdeira.

    Quando a melancolia torna-se o norte dos indivíduos em separado é que a real necessidade de estarem juntos aparecem, quando não se pode mais ver qualquer traço de identidade sem enxergar-se duplamente, sendo uno somente quando estão unidos. A maturidade passa por conhecer o momento de parar e tomar rumos opostos. Nesse ponto, a mensagem que Ned Benson produz é muito clara, e curiosamente não é dúbia na questão mais importante da inevitabilidade do des-romance.