Categoria: Cinema

  • Crítica | O Sétimo Filho

    Crítica | O Sétimo Filho

    Setimo Filho 1

    Após um começo de carreira intimamente empenhado em retratar batalhas épicas, como as dos elogiados da década passada Nômade e O Guerreiro Gengis Khan, o diretor russo Sergei Bodrov foi escalado para encabeçar o blockbuster de capa e espada O Sétimo Filho, uma aventura epopeica fantástica que conta a trajetória lendária de Bem Barnes (Tom Ward), um rapaz cuja profecia garantia poderes incríveis e possível soberania sob um mundo completamente destroçado por trevas e desesperança.

    O que se vê já nas primeiras cenas é um arremedo de referências a contos “medievais” diversos, com inspirações visuais e grandes semelhanças com a última trilogia que Peter Jackson capitaneou, além de conter o mesmo espírito aventureiro das adaptações de livros da saga Eragon, incluindo a desfaçatez de roteiro, em comum principalmente os defeitos de concepção de personagens.

    As duas figuras centrais do elenco são as personagens de Jeff Bridges, Master Gregory, um aposentado e deprimido guerreiro, único remanescente vivo de uma ordem de honrados cavalheiros, já extinta; e Mother Malkin, personagem que quase custou o Oscar a Juliane Moore, compondo uma caricata vilã que se vale de um sex appeal que jamais condiz com as feições repletas de maquiagem exagerada da maniqueísta figura, a rainha das trevas daquele mundo. Malkin e Gregory enfrentam um embate ainda no início do filme, exibindo uma relação emotiva das mais artificiais possíveis, tão tosca quanto o esdrúxulo figurino dos intérpretes.

    Mesmo com o exagero gráfico dos efeitos especiais e com as risadas maléficas que lembram vilões de desenhos animados da Filmation, não há como esconder a pobreza dos diálogos e do argumento primário. Baseado “livremente” nos livros da série O Aprendiz de Joseph Delaney, o roteiro de Charles Leavitt, Steven Knight e Matt Greenberg tropeça em si mesmo, apresentando um conjunto de pessoas tão mal construído que faz lembrar todo o espectro genérico das aventuras de He-Man, She-Ra e das adaptações em live action de Dungeons & Dragons, piorando a disposição das cenas pela postura de absoluta seriedade da película, que consegue ser digna de deboche desde o começo da exibição.

    Após fracassar algumas vezes em procurar o sétimo filho de um sétimo filho, Gregory finalmente se depara com Barnes, mas percebe ter se equivocado ao confiar no poder de luta de um rapaz que jamais tinha visto guerrear. O mocinho se envolve com uma menina de feições belas e com características semelhantes às das princesas Disney mais afeitas a ação, compondo, então, mais um par romântico típico das aventuras épicas.

    Os momentos de reclusão de pupilo e mentor nas montanhas verdejantes até guardam boas cenas de ação, talvez o único ponto realmente positivo do filme de Bodrov, quando o equilíbrio consegue ser estabelecido. Ainda assim, falta inspiração tanto na caracterização dos virtuosos quanto nas atuações, sendo a maioria sem convencimento algum ou completamente patética. Os veteranos Moore e Bridges, no auge da afetação que negaram em todos os papéis que já fizeram, personificam os papéis mais dignos de reprovação da filmografia de ambos, certamente.

    O que deveria ser poético apresenta-se pífio. Os momentos de exaltação soam ridículos e fazem rir. O Sétimo Filho talvez consiga enganar alguns (poucos) ardorosos maníacos por aventuras fantásticas, mas, para o espectador minimamente exigente, o resultado é um filme enfadonho, difícil de digerir. Tudo graças aos inúmeros defeitos encontrados na execução do roteiro, piorados pela expectativa da filmografia de seu diretor.

  • Crítica | Em Busca de Iara

    Crítica | Em Busca de Iara

    Em Busca de Iara 1

    Todo o mistério a respeito da morte da psicóloga e ativista Iara Iavelberg é analisado no documentário de Flavio Frederico. Iniciando os relatos com uma reportagem de televisão, que acompanha a tentativa da família de exumar o corpo da moça, conclui-se que o falecimento de Iara não foi por suicídio, como as autoridades anunciaram. A tentativa foi fracassada, e a partir da narração da codiretora  – e sobrinha de Iara, que teve o sobrenome mudado para não atentar aos olhos do Regime Militar – Mariana Pamplona, claramente obcecada pela história de sua familiar, a obra explora a tradição religiosa judaica da família, mostrando como a biografada começou a se interessar pelo discurso libertário.

    Unida a outros jovens, Iara começa a viver na VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, composta por estudantes, trabalhadores e militares. Iara também integraria o Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária), e depois o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), todas organizações de extrema esquerda que tinham em comum a luta contra a ditadura. A sensação de pressa acometia Iara e todos os outros integrantes destes grupos, movidos pela possibilidade de não ter um futuro garantido, uma vez que os militares estavam no auge de suas ações de poder.

    Os depoentes relembram o quão diferente tornou-se a repressão após o AI-5, recrudescendo e torturando de modo muito mais intenso e emocional, fazendo do decreto um divisor de águas na vida política e comum do Brasil, afetando diretamente os militantes. Iara transitava nesses meios e convivia com guerrilheiros na clandestinidade, usando o nome de Mariana para desviar a atenção de possíveis perseguidores, uma vez que era comum a polícia ficar de tocaia.

    Em determinado ponto, a obra se dissipa em dois caminhos servindo como uma boa análise da biografia de Carlos Lamarca, desertor do exército brasileiro que ajudou a treinar um grande número de guerrilheiros. A câmera mostra um flagrante curioso, de que os “subversivos” militantes eram vistos como agentes do caos e um perigo para o status da família normativa, enquanto Lamarca era considerado um pária, um traidor das forças armadas que se debandou para o time inimigo.

    Os detalhes da execução de Iara são explorados ao máximo, especialmente no depoimento do amigo e também militante Cesar Benjamin, que foi um dos primeiros a ver o corpo da moça, executada e com um corte que ia do queixo até a cintura, centralizado entre os seios. Além dessa imagem demonstrar um sinal de profundo desrespeito com o preso, ainda demovia a ideia de suicídio, sendo somente este um dos gritantes sinais de que a versão oficial da morte de Iara por suicídio era, na verdade, uma farsa.

    A conclusão do filme não poderia ser mais simbólica: a segunda cerimônia de sepultamento de Iara, ministrada pelo religioso Henry Sobel, no ano de 2006, encerrando a memória da guerrilheira de modo emocional, seguindo a tônica presente em todo o filme. Em Busca de Iara consegue reunir depoimentos para montar um panorama de proporções pequenas, mas que não exclui argumentos contrários. O ponto alto da obra está em seu formato, bastante pessoal e carregado de emoção, fazendo da moça que buscam um personagem tão vivo quanto qualquer um dos que estão na produção ou na plateia do filme.

  • Crítica | Happy, Happy

    Crítica | Happy, Happy

    Happy Happy 1

    A tradução em português para Sykt Lykkelig, filme de Anne Sewitsky, é insanamente feliz. Isso é passado ao público através da atitude da personagem central Kaja, vivida por Agnes Kittelsen. O estágio de absoluta paz de espírito preconizada por um número musical, apresentado antes mesmo dos personagens, remete à negação clara da miséria existencial da protagonista. O tédio causado pela solidão impingida a Kaja por ela mesma a faz viver expectativas muito altas para as visitas que se aproximam da gélida paisagem onde sua casa fica.

    Dois vizinhos se mudam para a casa ao lado, Sigve (Henrik Rafaelsen) e Elisabeth (Maibritt Saerens), e ambos tocam automaticamente a expectativa de Kaja como o perfeito casal, arquétipo do ideal que buscava para si e para o já distante marido Joaikim (Joachim Rafaelsen). A falta de interação e principalmente a castidade imposta pelo homem fazem com que o mantra de combate à própria depressão seja cada vez mais frequente para a personagem central, fazendo de episódios corriqueiros, como um jantar entre vizinhos, eventos entrópicos e cheios de situações. Uma breve análise no cotidiano familiar, repleto de desprezo, dá a tônica do porquê a mulher sente-se tão lisonjeada quando outro a trata minimamente bem.

    Happy Happy trata de carências e da inevitabilidade do espírito humano em encontrar eco para as suas situações sentimentais e medos que habitam sua alma, demonstrando que a falta de reciprocidade pode ser esmagadora para a moral de qualquer espécime. A falta de alento ou de esperança em viver uma relação saudável acaba se mostrando verdade também na interação do casal recém-chegado, o que abre portas para as indiscrições anunciadas no segundo terço da fita, claras desde a premissa do filme, insistindo em transformar em tragicomédia a intimidade conjugal mal resolvida.

    O formato, com insights do grupo na capela pontuando as sensações dos protagonistas, fornece um fôlego de ineditismo à película, além de destacar a ambiguidade do anseio de Kaja, que nutre cada vez mais a volúpia em se despir de suas roupas, algo que, mesmo em análises pouco profundas, remete à vontade de ser outrem, fazendo-a esquecer os problemas que esmagam sua autoestima e vivendo uma realidade paralela a sua enfadonha rotina.

    A capacidade de desprezar os supostos entes queridos não salvaguarda os detratores de seus próprios sentimentos, especialmente quando sua moral é abalada pelas indiscrições de seus parceiros. A música começa a pontuar o conjunto de sensações dos que são os “novos” ignorados, dos que um dia fizeram sofrer e que, no presente, passam a amargar o desdém dos que juraram amar. Quando a verdade se revela, toda a configuração inicial se modifica, produzindo momentos de ásperas reuniões, nas quais a confusão emocional reina, propiciando momentos de completa ignorância no mundo dos adultos, o que se reflete nas sérias brincadeiras protagonizadas pelos filhos dos casais, numa história paralela que perde todo seu impacto ao se revelarem seus detalhes.

    A simplicidade do roteiro que Sewitsky conduz apresenta uma narrativa simples e criativa, que toca a alma dos personagens e espectadores igualmente. Ao fazer valer a verve e necessidade humana de tornar o homem comprazido, pleno em espírito e alma, a obra consegue atingir assuntos espinhosos dizendo tão pouco, de forma completamente apolínea apesar dos assuntos aviltantes. A melhor qualidade de Happy, Happy certamente é a delicadeza em sua condução, fazendo com que a verdade se contradiga: justificando o nome original, que remete à felicidade insana, apesar de todas as agruras inerentes a vida, o causo é produzido a partir da estranha normalidade da hipocrisia moderna.

  • Crítica | Trinta

    Crítica | Trinta

    Trinta

    Uma das maiores festas populares no Brasil, o Carnaval se consagrou como um típico produto de nossa cultura, representado em diversas manifestações pelo país. Símbolo de nossa nação, as festividades, principalmente os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro, são um atrativo para turistas de várias partes do globo, que vêm assistir a esse espetáculo visual e musical. A representação histórica e cultural do carnaval afeta até os não-carnavalescos que reconhecem sambas-enredo populares, como Chiquinha Gonzaga e seu “abre alas”, ou recordam-se de nomes das escolas mais consagradas, uma parte de nossa cultura inegável.

    Aos apreciadores que ainda têm paciência para assistir, noite adentro, às transmissões de cada escola – ou aqueles que se dedicam à tarefa de ver in loco as apresentações – sabem que cada desfile é trabalhado com cuidado, em cada ato de sua composição, na tentativa coerente de unir música, imagem e teatralidade. Durante a evolução dos carnavais, a tecnologia adentrou a passarela, e consequentemente um investimento cada vez mais alto foi necessário para as realizações dessas apresentações repletas de cores e adereços.

    O carnaval como objeto de uma cultura também passou por transformações e aprimoramentos. Nas visões de profissionais que visavam o lado mais belo dessa celebração; personagens que dedicaram uma vida à passarela e foram capazes de marcá-la pela inovação.

    A produção Trinta biografa a vida de um dos carnavalescos mais conhecidos pelo público. Joãozinho Trinta se tornou um dos grandes inovadores do carnaval, com uma capacidade criativa de misturar culturas diversas na passarela e promover rupturas nos contornos tradicionais da época. O roteiro de Joana Mariani, Matias Mariani e Paulo Machline é bem amarrado e concentra-se em dois períodos temporais que apresentam a trajetória de João, um recorte bem delineado que evita os excessos de biografias que abarcam a vida toda da personagem central.

    Como parece tradicional em roteiros baseados em vidas reais, uma cena chave abre a história em um momento de transição na vida de Trinta, quando aceitou ser o carnavalesco da Salgueiro. Porém, diferentemente de outras biografias que apresentam apenas uma cena e retornam a um início cronológico, há um ato breve que antecipa as tensões que promoveram o artista ao cargo citado. E, assim, a trama retorna à década de sessenta, quando João vai ao Rio de Janeiro tentar a carreira de bailarino. Mesmo selecionado para o Corpo de Baile do Teatro Municipal, o dançarino de pouco mais de um metro e cinquenta sentia-se inferiorizado por não ser a estrela dos espetáculos. A ausência de destaque é o primeiro passo para adentrar os bastidores e, ao lado do cenógrafo Fernando Pamplona, iniciar uma carreira na cenografia e nos figurinos, onde poderia brilhar de outra maneira.

    O teatro deu a experiência base para Trinta, um fracasso que o levou ao carnaval, em 1973, escolhido para produzir o desfile da Salgueiro. Selecionar seu primeiro desfile como desenvolvimento narrativo é suficiente para apresentar a personalidade do biografado e, ao mesmo tempo, retratar as tensões de produzir um evento de grande porte. Em cena, Matheus Nachtergaele retrata a delicadeza natural e a fúria perfeccionista deste homem desacreditado por boa parte da comunidade local, vivendo na pele o preconceito por ter sido bailarino, mas ciente de sua própria capacidade inovadora. O personagem João revela-se um homem erudito, que não via a festividade do carnaval somente como uma manifestação popular: comparava-o a ópera, produzia acessórios com profunda pesquisa de outras épocas e temas, criando figurinos, adereços e afins que apresentavam facetas múltiplas pelo jogo intertextual. No desfile escolhido para este filme, Trinta retomava as histórias orais afrobrasileiras em meio a um universo da corte francesa. Uma mistura que se tornou inovadora na época e, em futuros anos, foi superada pelo próprio autor em outros famosos desfiles, tanto pela Salgueiro quanto pela Beija-Flor.

    A tensão de realizar um bom carnaval excede a figura do biografado e, mesmo sutilmente, demonstra que por trás da beleza há sistemas duvidosos que sustentam financeiramente o carnaval quanto um grupo dedicado em produzir arduamente um espetáculo, que será apresentado em um breve espaço de tempo. Uma concisão também presente neste filme, que seleciona um excelente recorte da vida da personagem, no espaço de transição entre João, um bailarino frustrado e aderecista, para o carnavalesco Joãosinho Trinta. Uma obra que narra uma boa história e demonstra a popularidade do carnaval.

  • Crítica | Dois Lados do Amor

    Crítica | Dois Lados do Amor

    Dois Lados do Amor - Poster Brasileiro

    A primeira referência que salta aos olhos do público retoma uma canção dos Beatles, composta por Paul McCartney, presente no álbum Revolver, de 1966. Eleanor Rigby é uma majestosa canção sobre a solidão, composta como uma crônica cotidiana poética e com um belo arranjo orquestral. Uma música que ecoa nesta produção, terceira parte de um projeto idealizado pelo roteirista e diretor Ned Benson.

    Buscando uma alternativa de inovação nas narrativas românticas no cinema, o diretor compôs uma trilogia sentimental sobre uma mesma história com ponto de vistas alternados. As duas primeiras produções lançadas em 2013 contavam o ponto de vista masculino e feminino separadamente. Narrativas que foram lançadas no exterior, mas ainda não chegaram ao país. Os Dois Lados do Amor é a união destas duas histórias anteriores, em uma nova edição que suprime partes dos filmes anteriores, produzindo uma nova cronologia em que conhecemos as duas personalidades da relação.

    O título original, The Disappearance of Eleanor Rigby, remete não só à canção dos Beatles como naturalmente infere a temática da solidão. A cena de abertura com o casal em harmonia é apenas um contraponto à separação de Conor e Eleanor após um acontecimento traumático, que será analisado no decorrer da história.

    Ainda que a personagem feminina tenha uma breve fuga, o desaparecimento é apenas uma metáfora simbólica que representa o transitivo. Neste aspecto, o amor do casal representava um momento anterior que, por escolha ou não, chegou ao fim. As personagens estão recomeçando a vida de maneira primária, reaprendendo como viver sem a presença do ex-amado, retornando a casa dos pais e observando que a percepção do que era concreto – o “para sempre” do amor – agora é parte do passado.

    O roteiro retém a motivação para a separação do casal enquanto demonstra a inadequação de ambos na nova vida. Eleanor tenta retomar a vida de solteira tentando voltar aos estudos; enquanto Conor, que mantém um restaurante estável, parece incapaz de viver sem a companheira e passa a persegui-la à procura de satisfações.

    A trama se constrói entre os espaços do fim e das circunstâncias que levaram a perda de laços dos protagonistas. O amor interrompido ganha maior composição trágica ao descobrimos que a perda de um filho parece o fator primário para o afastamento do casal. Infelizmente, não há aprofundamento que revele os motivos da morte da criança, e muito menos o drama que produziu no amor um sentimento repulsivo que impediria o casal de manter sua relação. Ao mesmo tempo, tais lacunas parecem intencionais para que a história adquira um caráter maior, simbolizando a dificuldade de uma relação a partir de um acontecimento inesperado por si só, sem a necessidade de que os pormenores dramáticos sejam revelados ao público.

    A medida da sensibilidade é um risco razoável para o roteirista e diretor, que depende de maior entrega do espectador para que este leia as entrelinhas inferidas pela obra. James McAvoy e Jessica Chastain demonstram competência ao interpretarem o casal recém separado, ao mesmo tempo que manifestam a ternura ainda existente. É uma obra bonita e reflexiva que mesmo perdendo a composição mais autoral ou audaciosa, apresentando somente um lado da relação como nas histórias anteriores, narra uma relação madura que não envereda nem para o lado excessivamente cômico, nem ao dramático.  Dessa forma, edifica-se a sensação de uma realidade assistida e comum a tantos casais cujo amor já não é residência constante.

  • 10 Filmes com Personagens Femininas Marcantes

    10 Filmes com Personagens Femininas Marcantes

    Em 1857, operárias nova-iorquinas levantaram uma grande greve em busca de melhores condições de trabalho, uma das razões que deram origem ao Dia Internacional da Mulher. As garotas do Vortex Cultural listaram 10 filmes cujas personagens femininas principais trouxeram alguma discussão sobre o gênero, além de mostrar as lutas pessoais das mulheres, como o preconceito e a violência física e psicológica que ainda sofrem, seja no ambiente profissional, seja em relações amorosas. A ficção, neste sentido, transporta para a mídia cinematográfica conceitos já vividos por muitas de nós, que só possuímos o direito de votar e trabalhar graças às demandas promovidas pelas operárias, militantes feministas e pensadoras dos séculos XIX e XX.

    (confira também nossa lista de Filmes com Temáticas Feministas (Pouco Lembrados))

    Volver (Pedro Almodóvar, 2006) — Por Cristine Tellier

    volver

    Filmes de Almodóvar e filmes com personagens femininas fortes são praticamente sinônimos. Não há como pensar em um sem pensar no outro. Seus filmes focam quase exclusivamente o universo feminino e, o que é ainda mais interessante, sob um ponto de vista feminino. Voltando a ele após tê-lo deixado um pouco de lado em Fale com Ela e Má Educação, Volver centra sua história em um grupo de personagens femininas, cada uma forte à sua maneira, em que os homens são meros coadjuvantes. Admito que minha escolha não seguiu um critério muito racional. Foi o primeiro filme que me veio à mente e mesmo pensando em outros depois – Kika, A Flor do Meu Desejo, De Salto Alto – ainda assim me pareceu a melhor escolha. É, por vários motivos, um dos meus top 5 favoritos de Almodóvar. Seja pela referência à Hitchcock, pelo humor negro, pela leveza (beirando a comicidade) com que a morte é tratada, seja pela fotografia cuidadosa.

    O Silêncio dos Inocentes (Jonathan Demme, 1991) — Por Karina Audi

    jodie-foster-silêncio-dos-inocentes

    O Silêncio dos Inocentes é um dos thrillers policiais mais marcantes não só por ter um enredo bem construído, uma atmosfera sombria e ótimas atuações – de Jodie Foster, no papel de Clarice Starling, e de Anthony Hopkins como o dr. Hannibal Lecter, rendendo-lhes, respectivamente, um Oscar de Melhor Atriz e de Melhor Ator por esta obra –, mas também por ser um dos primeiros filmes a mostrar uma policial mulher como detetive principal designada para um importante caso, e que em sua própria jornada também salva outra mulher. Jodie Foster, em entrevista, disse que se interessou de imediato pelo papel principalmente porque acreditava que este argumento era quase inédito na história do cinema. Em meio a seu percurso heroico, Starling, ainda em formação pelo FBI, não é acreditada pelos colegas e por dr. Chilton, do instituto psiquiátrico onde Lecter está confinado – inclusive sofrendo assédio sexual do personagem, e humilhada por mais um paciente do local –, encontrando respeito e compreensão, paradoxalmente, na figura de Hannibal. Os dois personagens formam o par mais icônico, e cabe a Starling o título de personagem policial feminina mais importante do cinema.

    Kill Bill: Volume 1 e 2 (Quentin Tarantino, 2003 e 2004) — por Larissa Tinoco

    kill-bill-beatrix-kiddo

    Uma Thurman é uma noiva assassina em busca de vingança após ter sua família assassinada no dia de seu casamento. O enredo seria batido se fosse um homem nesse papel, mas o que vemos é um roteiro incomum e cheio de personagens fortes. Além da noiva, a lista de inimigas não deixa a desejar no quesito Girl Power. Temos Vernita Green, uma ex-assassina de aluguel e agora mãe de uma menina; Elle Driver, que perdeu um olho após desafiar seu mestre de kung fu; Oren Ishi, uma guerreira mafiosa que viu sua família ser massacrada quando era criança; e Gogo, uma adolescente que não deixa ser intimidada pela força da noiva atrás de vingança. Kill Bill foi um dos primeiros filmes do Tarantino a abordar o tema do empoderamento feminino, seguido de À Prova de Morte e Bastardos Inglórios.

    Ninfomaníaca (volumes 1 e 2) (Lars Von Trier, 2013) — Por Carolina Esperança

    ninfomaníaca-charlotte-gainsbourg

    Espancada e jogada em um beco sujo e escuro, a personagem Joe (Charlotte Gainsbourg/Stacy Martin) demonstra fisicamente as condições de sua própria consciência, vitimada pela ausência de sentimentos e busca interminável pelo prazer. Após ser retirada desse cenário caótico, ela narra os acontecimentos pregressos ao seu compreensivo interlocutor, que não se abala, escandaliza e tampouco julga essa mulher. Para ele, sua compulsão pelo sexo é inata, o ponto de vista pelo qual seu mundo realmente faz sentido, em que ela escolhe o que, como e por quem sentir; simplesmente, não a vê como alguém que precise de uma cura, e sim de compreensão de seu modo de vida. Fora do padrão de boa moça, a personagem expõe uma realidade difícil de aceitar, por conta de conceitos ultrapassados ainda vigentes em tempos atuais, onde a sexualidade feminina causa desconforto. O segundo volume torna a discussão muito mais aprofundada, com Joe assumindo sua compulsão, enclausurando-se em uma vida aparentemente perfeita, onde finalmente pode ser aceita. Felizmente, agora, podemos debater a respeito da temática sexual.

    Livre (Jean-Marc Vallée, 2014) — Por Mariana Guarilha

    livre-reese-witherspoon

    Livre conta a história de Cheryl Strayed (Reese Witherspoon), uma americana que decidiu percorrer toda a costa oeste dos Estados Unidos, completando a chamada “Pacific Crest Trail” numa jornada para se livrar de vícios e expurgar memórias. Uma mulher atravessar um país caminhando sozinha é uma ideia que me encanta, talvez porque, desde os tempos de menina, todas nós temos ouvido que isso está fora de nosso alcance. Junta-se a isso uma personagem extremamente carismática, um cenário de tirar o fôlego e um formato simples: entre relatos de contratempos da caminhada, as bolhas no pé, animais peçonhentos, a falta de material adequado, são apresentados flashbacks que nos entregam que a protagonista já esteve em uma situação bem mais precária. Livre é um grande filme por não recorrer a fórmulas fáceis, mostrando-nos que não existem grandes heróis para salvar a protagonista dos perigos: ela é sua própria heroína.

    Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres (David Fincher, 2011) — Por Cristine Tellier

    Ok, o protagonista da história é Mikael Blomkvist (Daniel Craig). Todavia, é incontestável que a personagem mais marcante seja Lisbeth Sallander (Rooney Mara), uma hacker de inteligência acima da média. Não apenas por sua aparência – que confirma o gosto de David Fincher por personagens misóginos – mas também por sua atitude. Mara faz o tipo mignon, e é o contraste entre essa aparente fragilidade e a intensidade de sua atitude que torna a personagem tão sedutora e envolvente. E aqui, ser frágil está longe de significar ser indefesa. Há um contraponto extremamente sutil entre a “mensagem” passada por suas tatuagens, piercings, penteados, vestimentas e o que se pode apreender de sua postura, de ombros constantemente encolhidos, e de seu olhar fugidio que evita encarar seus interlocutores. Interessante notar que, ao interagir com Blomkvist de igual para igual, ao ver nele características que valoriza em si própria, vai deixando de lado aos poucos a ideia de que para sobreviver é necessário mimetizar as atitudes masculinas e tomar o lugar dos homens.

    Mulan (Tony Bancroft e Barry Cook, 1998) — Por Karina Audi

    Mulan

    Lançada em 1999, Mulan foi uma das últimas animações da chamada “era do renascimento” dos estúdios Disney. Retomando um milenar conto chinês que tem Hua Mulan como heroína real, a protagonista, ao ver seu doente pai ser chamado para a guerra contra o exército dos Hunos, coloca-se em seu lugar vestindo-se como soldado, uma ideia que contraria os preceitos da época, em que as mulheres não podiam exercer a carreira militar. Opondo-se ao papel imposto às mulheres, o de se dedicar exclusivamente ao casamento e ao homem, a heroína, assim, rompe os paradigmas das princesas Disney, as quais geralmente necessitam de um fator externo para a mudança de suas vidas – o amor de um príncipe ou o mundo que desconhecem –, mas que em Mulan reside no amor que sente pela figura paterna, sentimento tido como o mais grandioso em razão do grande laço sentimental formado na relação entre pai e filha. Mulan é uma bonita peça que foge dos estereótipos de animações “princesa espera príncipe e os dois vivem felizes para sempre”, e mostra uma personagem feminina dona de seu próprio destino.

    Preciosa: Uma História de Esperança (Lee Daniels, 2009) — Por Larissa Tinoco

    preciosa-Gabourey Sidibe

    Vencedor de dois prêmios no Oscar, Preciosa – Uma História de Esperança nos mostra um fragmento social que infelizmente está longe de (como na maioria dos filmes) ter um final feliz. Claireece “Preciosa” Jones (Gabourey Sidibe) é uma adolescente de 16 anos com uma vida repleta de dificuldades infinitamente piores do que as de qualquer adolescente comum. Abusada por sua mãe, estuprada pelo seu pai, obesa, pobre e analfabeta, Preciosa não vê motivos (e com razão) para pensar que a vida é bela. O filme mostra de forma realista a vida de pessoas que sofrem violência dentro de seu próprio lar, e como o sistema de proteção (em geral, a pessoas do sexo feminino) é falho em perceber quando há algo de errado. É praticamente impossível acompanhar algumas cenas sem ter os olhos cheios de lágrimas. E é incrível a força que a protagonista tem em continuar lutando por um futuro melhor, mesmo que sua condição de vida seja tão precária. Um dos filmes mais marcantes sobre o assunto que eu já vi, e, sem dúvida, uma lição de vida.

    Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento (Steven Soderbergh, 2000) — por Carolina Esperança

    Erin-Brockovich-still

    Responsável por um processo judicial desacreditado, a Erin Brockovich de Julia Roberts conta com seu carisma, e por que não dizer, também com seus atributos físicos, para torná-lo possível, como, por exemplo, persuadindo um empregado da companhia de águas a deixá-la vasculhar documentos, que comprovem a contaminação da água da cidade. Também vale ressaltar que sua eloquência e sentimentalismo a fazem entrar constantemente em conflito com seu chefe, Ed (Albert Finney), que por sua vez a relembra dos números, de perdas e ganhos, envolvidos nesses casos. Os fatos reais nos quais o filme se baseia reforçam que sua protagonista representa diferentes personas: a mãe solteira, a divorciada, a desempregada, alguém com pouca escolaridade; a mulher à procura do amor, mas que teme ser deixada outra vez; a que teme, em nome dele, deixar seus sonhos para trás. Erin tenta conciliar seu trabalho, filhos e um relacionamento com o novo vizinho, George (Aaron Eckhart), e todos estes núcleos a cobram maciçamente, e mesmo que as expectativas gerais não se concretizem, ela aparenta controle e discernimento sobre tudo o que acontece à sua volta. O processo, ao final, é ganho, e Erin tem seu esforço recompensado. Ela representa a mulher da vida real, que sofre as mesmas cobranças, sem possibilidade de errar ou de não realizar suas ações.

    Dirty Dancing: Ritmo Quente (Emile Ardolino, 1987) — Por Mariana Guarilha

    dirty-dancing

    O filme de 1987 conta a história de Frances “Baby” Houseman (Jennifer Grey), uma garota que, ao se hospedar com a família em um resort, vive uma paixão proibida pelo professor de dança. Porém, apesar do filme já se mostrar um tanto quanto progressista, e colocar uma mocinha não tão passiva assim, o que torna a obra digna de nota é a forma desprendida com que trata a questão do aborto. A parceira de dança de Johnny (Patrick Swayze) fica grávida e não pode continuar trabalhando se prosseguir com a gravidez. Sua melhor opção acaba sendo um aborto clandestino, que a teria matado se não fosse a ajuda da protagonista Baby. Além disso, as duas demonstram cumplicidade e não ficam se digladiando por causa do protagonista.

    (Bonus Track) A Mãe (Vsevolod Pudovkin, 1926) — Indicação de Flávio Vieira

    the-mother-Vera Baranovskaya

    O filme mudo de 1926 narra a história de uma mãe que vê o filho ser preso, e posteriormente morto em uma fuga, pelo exército da monarquia czarista. Revoltada com a situação, cuja imagem mais emblemática são seus olhos marejados em lágrimas, em razão da situação desesperadora de perder o filho para um governo que mantém a população miserável, a personagem conscientiza-se de sua condição, questionando o horror imposto pelo regime e empenhando-se nas causas políticas do filho. A Mãe foi baseado no romance homônimo de Máximo Górki, escritor russo que, assim como outros artistas da URSS, logo no início da instauração do poder socialista procurou retratar a população soviética e o Estado a partir de uma consciência revolucionária. A obra traz à luz um momento marcante da história e como uma mulher, sozinha, se fez ouvir.

  • Crítica | João e Maria: Caçadores de Bruxas

    Crítica | João e Maria: Caçadores de Bruxas

    João e Maria 1

    Na última década, o cinema tem explorado muito os contos escritos pelos Irmãos Grimm, responsáveis por Branca de Neve, Cinderela, João e Maria, Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel e A Bela Adormecida, todos estes conhecidos por todo o planeta por conta das adaptações infantis de grande sucesso feitas pela Disney. Com o sucesso da Saga Crepúsculo e se aproveitando do fato de que todos os contos citados estão em domínio público, Hollywood resolveu reaproveitar o vasto material, trazendo um conceito um pouco diferente, mostrando ao espectador uma abordagem mais adulta, gótica e com teores de suspense.

    Assim como A Garota da Capa Vermelha (que adapta Chapeuzinho Vermelho), Alice (que adapta Alice No País das Maravilhas), Branca de Neve e o Caçador (que adapta Branca de Neve), Jack: O Caçador de Gigantes (que adapta João e o Pé de Feijão) e Malévola (que adapta A Bela Adormecida), João e Maria: Caçadores de Bruxas adapta, de maneira divertida, João e Maria, dois irmãos que, após passarem por um evento traumático, sendo sequestrados por uma bruxa, decidem dedicar suas vidas a caçá-las.

    Diferente das outras adaptações, a história de João (Jeremy Renner) e Maria (Gemma Arterton) que conhecemos é contada apenas nos 10 minutos iniciais do filme, dando mais espaço para a fase adulta do casal de irmãos e isso, talvez, tenha sido um erro, uma vez que não haveria problema se a infância deles fosse novamente retratada, já que o tempo de fita é muito curto, resultando em apenas um hora e vinte minutos de filme (sem contar os créditos), o que prejudicou, de certa forma, não só o desenvolvimento dos personagens, mas também o da história escrita pelo também diretor Tommy Wirkola .

    O desenrolar da trama é muito simples, sendo que, por conta de sua fama, os irmãos chegam a uma cidade com o intuito de investigar o desaparecimento de crianças, entrando em confronto direto com a bruxa Muriel, vivida por Famke Jansen. Como dito, os personagens são mal desenvolvidos e, dentre todas as bruxas que aparecem no longa, Muriel não chega a ser tão ameaçadora ou poderosa quanto parece. E o destaque, ironicamente, fica para as outras bruxas, todas bem distintas umas das outras, carregadas de maldade, com visuais lindos, porém grotescos e que, ainda assim, necessitam de algum pedaço de madeira para que possam voar. As bruxas siamesas ligadas pelas costas são fantásticas.

    Um outro ponto bastante curioso, mas muito divertido é que João (responsável pelo lado cômico), por conta do consumo excessivo de doces na época em que estava encarcerado pela bruxa, sofre de diabetes e precisa aplicar sempre uma injeção de insulina. Inclusive, João é o único que tem uma trama paralela no longa, ao libertar da fogueira uma mulher do vilarejo que estava sendo acusada de bruxaria.

    O destaque fica para a parte técnica e artística, que desenvolveu um filme com bastante violência visual, sabendo trabalhar bastante a parte fotográfica, trazendo uma cidade medieval que elucida a tristeza pelo sumiço de suas crianças, se utilizando de cores frias, sem vida, numa época do ano que está sempre com o céu nublado, mas de qualquer forma, uma diversão para um dia frio e chuvoso.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | O Sexto Sentido

    Crítica | O Sexto Sentido

    O Sexto Sentido - poster

    Após quinze anos de lançamento, não é exagerado afirmarmos que o desfecho de O Sexto Sentido é conhecido por grande parte do público. Desde sua estreia, a obra recebe elogios e foi responsável pelo destaque a M. Night Shyamalan, que dirige uma trama sobre um garoto que vê fantasmas e é ajudado por um psicólogo juvenil, em um suspense que reverencia o cinema de Alfred Hitchcock.

    A qualidade desta produção e uma consequente exigência do público de que outros filmes do diretor apresentassem um plot twist surpreendente e bem realizado talvez tenham sido significativas na derrocada de sua carreira, hoje quase sem credibilidade. Parece absurdo que este mesmo diretor, que na época conquistou comparações exageradas com o mestre do suspense – uma inspiração confessa de Shyamalan –, tenha realizado posteriormente uma adaptação regular do excelente desenho Avatar, feito um suspense bizarro sobre a natureza em Fim Dos Tempos e uma insossa ficção científica com Will Smith e o filho.

    O Sexto Sentido é um excelente thriller psicológico, bem executado no roteiro e na direção. Bruce Willis ainda era um ator de renome, em uma posição confortável de papel de destaque em filmes de ação – atualmente, Willis parece ter voltado somente para salvar filmes do gênero do desastre completo, vide G.I. Joe: Retaliação, R.E.D. – Aposentados  e Perigosos –, uma vertente interpretativa perdida em sua velhice. Confiando em sua performance, o ator é um premiado psiquiatra infantil que trata infantes com distúrbios mentais ou sociais. Após um evento traumático envolvendo um antigo paciente, o Dr. Malcolm Crowe estuda o caso de Cole Sear, um garoto tímido e deslocado socialmente.

    Abandonado pelo pai na infância, Cole estabelece uma relação paternal com Malcolm, transformando-o no único adulto confiável de seu círculo. A perda do pai é a primeira ruptura familiar do garoto, e também o princípio traumático que trazem à tona suas visões fantasmagóricas. Consciente de que nem todos são capazes de ver as entidades, o garoto teme contar seu problema à mãe por medo de rejeição. Enquanto a matriarca possui dois empregos para manter o sustento familiar, ela parece desconhecer ou ignorar os abusos que o filho sofre na escola.

    Manipulando tradicionais conceitos do terror, o roteiro estabelece uma boa justificativa para a presença de espíritos no mundo real, a mesma base presente em dogmas de certas religiões. Os espíritos seriam seres desencarnados que ainda desconhecem a própria morte e, por isso, permanecem na presença dos vivos. Manifestações físicas aparentemente com baixa temperatura, objetos que se movem, seriam tentativas de contato destes espíritos.

    Esta abordagem transforma a sugestão no melhor recurso cênico para provocar medo. Nem sempre o horror é visto na tela, mas imaginado pelo público com base em seus medos internos. Shyamalan realiza bonitas cenas em uma linguagem cinematográfica própria e repleta de símbolos visuais. O uso do vermelho indica cenas de maior tensão sobrenatural, um detalhe que permite ao espectador, em uma segunda exibição, observar as pistas dadas pelo roteiro até a revelação no desfecho da trama.

    A edição, com cenas breves e finalizadas em um rápido fade-out, passa a impressão de uma narrativa entrecortada. Somente ao final do filme, compreendemos o motivo da narrativa elíptica, que amarra suas histórias em pequenos três atos. Primeiro, o caso de Cole encerrado pelo Dr. Malcolm. Ao propor ouvir os mortos, o garoto encontra paz à sua maneira. Pressupomos que ele será um destes mediúnicos que dialogam diretamente com o outro mundo, à procura de ajudar mortos na passagem além-vida. Em seguida, Cole faz as pazes com a mãe em uma bonita cena em que revela sua percepção sensitiva ao observar os mortos em um acidente de trânsito à sua frente. Talvez em seu pensamento infantil, o garoto nunca imaginaria que a mãe poderia aceitá-lo. Por fim, o gancho que muda a perspectiva do roteiro e, sem dúvida, produz uma boa revelação.

    Diante desta informação, rever a obra é procurar pistas e inferências, inseridas, em cenas, diálogos e cenários, por Shyamalan. Na cena em que Cole revela ao doutor sua capacidade de ver fantasmas, a cena seguinte é um close no rosto de Bruce Willis. Em seguida, ao comentar sobre a falência de seu casamento, o psiquiatra menciona a mudança da relação após um problema – o acidente no início do filme. Um jogo que expõe pistas ao público de maneira pontual, até o final revelador.

    Mesmo visto após conhecer a revelação, o suspense estabelecido e a tensão dramática da obra ainda produzem um intenso thriller. Bom motivo que trouxe popularidade ao diretor, com um perfeito equilíbrio que nunca mais conseguiu compor. Chega ser espantoso que, hoje, ainda viva à margem deste brilhante filme sobre espíritos.

  • Crítica | Bob Esponja: Um Herói Fora D’Água

    Crítica | Bob Esponja: Um Herói Fora D’Água

    Bob Esponja Um Herói Fora Dagua 1

    A animação Bob Esponja: Um Herói Fora d’Água é a segunda incursão, na grande tela, de Bob Esponja Calça Quadrada, série produzida pela Nickelodeon e criada pelo biólogo marinho Stephen Hillenburg originalmente como um programa educativo sobre os oceanos.

    Diferente do modesto primeiro longa de 2004, desta vez os diretores Mike Mitchell e Paul Tibbitt aproveitam-se do recurso 3D e da animação CGI para extrair todo o potencial comercial deste personagem, que conta inclusive com um clipe de Pharrel Willians como peça promocional. O resultado é uma bilheteria astronômica que foi capaz de desbancar o fenômeno Sniper Americano em solo americano.

    Sucesso desde sempre, a série é sobrevivente de uma outra época das animações por manter-se convicta de seu carisma e apelo cultural, e não à toa é produzida desde 1997. Nada muda. Não possui arcos ou desenvolvimento de personagens: é apenas uma comédia bem moldada nas bases do humor físico de caráter ingenuamente “vergonha alheia”.

    Um herói que deve consertar seu erro ingênuo é ingrediente essencial em qualquer aventura, porém na comédia o herói não aprende com seus erros, mas sim os repete à exaustão. Neste aspecto, as aventuras de Bob Esponja são precursoras do meme ao trabalhar aspectos recorrentes e esgarçar a piada no limite do incômodo, porém com a inserção de gags que trabalham a quebra da lógica, criando o efeito humorístico. Não seria diferente então nos cinemas. Aqui, vemos as mesmas piadas de sempre, com o Planck tentando roubar a fórmula do hambúrguer de siri  ̶  que é basicamente a sinopse do filme  ̶ , adicionada a uma excelente justificativa do porquê ninguém decorou essa fórmula ainda.

    Com um desenrolar mais lento que o de costume, os diretores conseguem acelerar o ritmo para o padrão alucinado que as animações têm hoje em dia ao fazer a troca periódica da ação e cenários como quem estivesse submetido a um metrônomo, e assim manter as crianças filhas da Ritalina entretidas.

    O resultado, porém, é um filme enfadonho em diversos momentos, por ser bem menos ousado que sua versão televisiva e pela necessidade de prender a atenção do público por mais tempo do que o tempo de piada, o que diminui a malemolência de sua comédia perante a imposição de um ritmo bem mais rígido que retira o prazer da surpresa e da subversão costumeira.

    Com bons momentos, como a participação do primo do Fliper na obra e uma ou outra piada, mas sem conseguir potencializar o que já conhecemos, Bob Esponja: Um Herói Fora d’Água é uma adaptação competente, mas bem distante de seu “verdadeiro eu” da TV. Há algum espaço para deixar claro que Bob esponja vem de outra mídia, tanto que, ao ir para o mundo real, a animação muda de técnica e tira sarro do melodrama heroico, daquilo que é nativo do cinema. Neste ponto, o filme mostra realmente a que veio, mas aí ele já está quase no final.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | 118 Dias

    Crítica | 118 Dias

    118 Dias - Poster BR

    O apresentador americano Jon Stewart, conhecido por sua crítica cômica ao universo político dos Estados Unidos, demonstra seu apreço à liberdade de expressão ao produzir, dirigir e roteirizar 118 Dias, adaptação do livro Then They Came de Maziar Bahari, um jornalista que permaneceu preso no Irã pelo período inferido pelo título brasileiro.

    Em junho de 2009, o jornalista da Newsweek visitava o país para cobrir as eleições presidenciais, em um momento delicado do país à procura de um sucessor que apresentasse uma nova visão de governo. Acompanhado de um motorista selecionado no local, Maziar registra entrevistas em vídeo das opiniões da população sobre os dois grandes políticos com maiores chances de assumir o cargo presidencial: Mahmoud Ahmadinejad e Mir Hussein Mussavi, conservador e reformista-conservador respectivamente. Após a votação, a vitória de Ahmadinejad, com 62,6% dos votos, causou um dos maiores e intensos protestos no país, indignados com uma porcentagem tão esmagadora na vitória. Partidários saíram às ruas para protesto, e confrontos entre manifestantes e as forças de segurança iraniana resultaram em baixas civis. Em um dos protestos, Bahari registra uma dessas mortes e, mesmo reconhecendo os riscos, aceita a publicação online do vídeo; dias depois, é preso sem motivo aparente.

    Até o momento de sua prisão, a personagem interpretada por Gabriel García Bernal é apenas um fio condutor que testemunha as tensões do local. Seu cárcere modifica a estrutura narrativa, focalizando o drama do jornalista como um representante de diversos outros repórteres que, em situações recentes, foram vítimas de prisões, torturas e morte. Em um país com liberdade de informação nula, a maior transgressão é possuir conhecimento e fazer propagá-lo globalmente. Enquanto acompanha as eleições, Maziar encontra um grupo que burla ilegalmente as restrições do país, com satélites que não só dão acesso a informações como permitem a entrada de cultura de jogos, filmes e outros conteúdos vindos do exterior. Dessa maneira, torna-se evidente que o vídeo gravado pelo repórter denuncia uma morte que o país não deseja mostrar.

    Na prisão, o jornalista passa por interrogatórios diários questionando seu envolvimento com espionagem. Uma teia de inferências surge por parte da inteligência iraniana, que pressupõe que a empresa para a qual o repórter trabalha seria gerenciada pela CIA e, portanto, uma porta de entrada para adquirir informações para os Estados Unidos. Passando por privações diárias, breve tortura física e severa tortura psicológica, Bahari luta diariamente para manter a sanidade apoiando-se na memória familiar, principalmente do falecido pai e da irmã, ambos militantes presos e torturados anteriormente. Durante estes momentos, a história retrocede brevemente para mostrar a relação fraterna das personagens, destacando como a irmã inseriu o jovem irmão em um universo cultural vasto, que lhe formou. O argumento do passado familiar também é justificativa para que seus interrogadores acusem-no de ser um espião.

    A todo custo, seus captores desejam descobrir alguma informação, mesmo sem nenhuma prova ao menos circunstancial para justificar qualquer envolvimento com espionagem, exceto um vídeo gravado para um programa humorístico, no qual seu apresentador finge ser um espião, também chamando Bahari de infiltrado. Nesta mesma filmagem, de acordo com o filme, o jornalista compara o Irã com os Estados Unidos. Sem dúvida, o público também fará uma inferência óbvia a respeito se relacionar esta história a outras duas produções de Kathryn Bigelow, Guerra ao Terror e A Hora Mais Escura, principalmente em relação à tortura como a principal forma de extrair informações de suspeitos que ressaltam a violência obscura de diversos países. Afinal, temos ciência de que a tortura ou o cárcere preventivo não estão limitados a estes dois exemplos.

    A mídia e o acesso à informação também demonstram sua potência transgressora quando o caso do repórter se propaga em diversos países com apelo da esposa e de outros políticos a favor de sua liberdade. Um resultado positivo diante de tantas baixas recentes vistas em jornais mundo afora.

    118 Horas é competente em registrar uma história real, sem apelar para maneirismos dramáticos para o público. Acredita na força da narrativa e, por consequência, na força da própria liberdade de informação como uma transgressão capaz de quebrar barreiras e iluminar caminhos: o motivo pelo qual a mídia foi chamada de quarto poder.

  • Crítica | Simplesmente Acontece

    Crítica | Simplesmente Acontece

    Simplesmente Acontece 1

    Relacionamentos amorosos comumente nascem de amizades profundas, especialmente entre conhecidos desde a infância. A história de Rosie Dunne (Lily Collins) passa por esse estigma. O modo como Christian Ditter filma essa situação é prodigiosa. Antes mesmo de dar nome aos seus personagens, o realizador trata de inserir o espectador dentro do micro mundo dos dois inseparáveis confidentes, exibindo Alex (Sam Caflin) se aproximando perigosamente dos lábios da heroína da fita.

    Os belos aspectos visuais, típicos da juventude, são registrados primeiro ao modo das comédias descerebradas, de estilo semelhante ao de Porkys, da franquia American Pie e do recente Finalmente 18, quando as barreiras morais e sexuais de Rosie caem em nome da dita maioridade e a obrigatoriedade do alvorecer sexual e do enfrentamento de seus medos, entre eles o receio de ver seu grande amigo como possível cara-metade. O começo da possível atração entre o casal começa na tensão que envolvia os ciúmes mútuos, negados pela garota e levados adiante por ele.

    A guerra dos sexos segue padrões estereotipados, mas de modo fluido, uma vez que a fase da adolescência é normalmente vivida a partir de reproduções de arquétipos normativos, onde a margem de erro é pequena.

    A recusa resultante da teimosia do par perfeito ocasiona uma situação cômica com a pobre menina. Patética, apesar de completamente entrópica, cujas consequências poderiam ser sérias, fazendo separar os apaixonados inconfessos eternamente. Logo, outros fatores somam-se à louca equação que envolve a rotina de Rosie, como a possibilidade de estudar na América, longe de sua tradicional família britânica. Ao chegar a sua admissão na Universidade de Boston, logo é anunciado que seus planos de fuga se aproximavam de um êxito.

    Logo a malfadada transa da protagonista ganha os contornos da dura realidade que vive, prendendo-a em seu destino de origem, enquanto observa seu amado se afastar, formando enfim a sinopse do livro de Cecelia Ahern. A inevitabilidade do romance e o carisma dos personagens fazem lembrar a literatura de Nicholas Sparks, ainda que esta obra seja bem menos açucarada, e os dramas clichês, tratados com maior maturidade. O mote altera-se e o roteiro acompanha bem a trama, apresentando uma nova gama de possibilidades e de amores a explorar.

    Aos poucos, os amigos crescem, vivem suas vidas intercontinentais completamente diversas, com parceiros sexuais e afetivos diferentes, assistindo ao amadurecimento da pequena Katie, sendo a pequenina amada até por seu “padrinho” à distância, a despeito do casamento da mãe com um colega de faculdade.

    A ignorância de Alex o fez se afastar geograficamente e emocionalmente através da dificuldade em dar vazão aos próprios sentimentos e ao amor mútuo entre os enamorados frustrados. O papel de vitimado insiste em passar pelo seu comportamento, mas o modus operandi não se sustenta, já que, em cada ação que faz, o personagem transparece culpa e remorso, mas sem se arrepender o suficiente para resultar em uma confissão de amor.

    Os meandros por onde o roteiro passeia são lotados de reviravoltas, que escondem a obviedade latente de um romance que sempre se anunciou que não daria certo, apesar de todas pinturas cor de rosas e intermináveis tentativas de fazer dar certo.

    A convenção dos livros de amor juvenis praticamente obriga que um final feliz seja ensaiado pelo autor. A fuga para o paradigma, contrariando a essência do romance anterior de Ahern, P. S. Eu Te Amo, não consegue ser plena em Simplesmente Acontece, apelando para um fim que reforça não só os bordões típicos do gênero, como também reforça o discurso machista de que a felicidade da mulher deve prioritariamente passar pela presença de um sujeito do sexo oposto. Apesar da mensagem um pouco simpática e do bom começo da abordagem, falta liga e maior apuro com o texto final para que a película seja redonda.

  • Crítica | Força Maior

    Crítica | Força Maior

    Força-Maior-1

    A empatia com os protagonistas de Força Maior é praticamente automática, visto que a história se passa em um comum ambiente de férias familiares. Tomas (Johannes Kuhnke) tem uma relação aparentemente perfeita com sua esposa Ebba (Lisa Loven Kongsli). A uniformidade de pensamento apresenta-se até nos trajes de dormir, todos azuis, mostrados em cima da mesma cama que os pais dividem com os filhos Harry  (Vincent Wettergren) e Vera (Clara Wettergren). Feliz, o clã se instala em um hotel caro nos Alpes suecos, em localização próxima de uma montanha gélida, onde costumam ocorrer avalanches de médio porte.

    Em um evento natural de desmoronamento, a neve invade o hall descoberto, onde os hóspedes se alimentavam, assustando todos. A cena demonstra a firmeza de caráter de Tomas, que já no início não teme largar os seus, fugindo rapidamente para sua própria sobrevivência, enquanto sua esposa permanece com as crianças. A covardia ficou mais evidente e vergonhosa quando se percebe que o fenômeno foi de pequeno porte, sem vítimas. No entanto, apesar do descontentamento primário, a costumeira hipocrisia faz com que as partes retornem ao convívio, numa referência clara ao conceito defendido por Nelson Rodrigues de que é preciso muito cinismo para permanecer casado.

    Ruben Östlund faz uma direção contemplativa, exibindo a bela paisagem fria, que causa por si só uma estranha sensação de isolamento e obrigatória reflexão. Reflexão que só não atinge o espaço comercial hoteleiro, o qual funciona como uma bolha, livrando os que estão instalados de qualquer sensação inconveniente ou incômoda, exceto, é claro, pela possibilidade de deslizamento de neve.

    A “derribada imaginária” do local e a discussão com outras casais fazem Ebba conversar finalmente sobre o que aconteceu, desabafando, enfim, sobre o abandono que sentiu ao ficar sozinha no deck. A câmera enquadra-os normalmente em plano americano, mas de modo tão invasivo quanto um close na figura desnuda do homem, já que a intimidade dos dois é escancarada e mostrada como algo vil e traiçoeiro a partir daquele momento. Negação e frustração andam juntas, fazendo refletir sobre o que realmente fez unir aquele casal no sagrado matrimônio e o que os motiva a prosseguir juntos.

    A crise existencial finalmente acomete Tomas, que, mesmo no período de interrupção de sua rotina, busca ajuda para retornar à normalidade de pensamento e ação. Sua relação antes límpida e angelical ganha conotações reais, nuances e defeitos capazes de serem sepultados rapidamente. O descuido do patriarca inviabiliza sua permanência como figura de respeito e respaldo, invertendo o paradigma em que ele vivia nos últimos anos, obrigando-o a revisar o próprio modo de agir e encarar o mundo, sem ter nem de longe a mesma complacência de antes, por parte de Ebba.

    Após ficar longe dos seus por um período breve, o marido retorna ao lar somente para encontrar um ambiente demasiado hostil, semelhante ao de casais que tentam se reconciliar após uma das partes trair a outra. A sensação que predomina na esposa é de exata infidelidade, mas não física, e sim de alma e ideologia. Um perdão é quase inviável, seja por qual via ele corra, tanto do culpado quando do culposo.

    A indecisão impera nas cabeças da família numa tentativa irremediável de negar a realidade depressiva que a envolve. Os acordes clássicos, sempre interrompidos quando tocados ao longo do filme, finalmente têm sua música prolongada após a resolução da situação familiar, que enfim sai da letargia para a vida comum. O conjunto de ações do elenco, especialmente no embate entre Johannes Kuhnke e Lisa Loven Kongsli, é o sustentáculo da tragédia do fim de uma relação há muito construída, e da trágica sensação de paranoia que impede o homem de raciocinar além de seus antigos traumas. Força Maior cruelmente brinca com a sensibilidade do espírito humano.

  • Crítica | Cinquenta Tons de Cinza

    Crítica | Cinquenta Tons de Cinza

    50 tons o filme 1

    O novo filme de Sam Taylor-Wood inicia-se com a rotina matinal de Christian Grey (Jamie Dornan). Após uma corrida, o personagem toma banho e escolhe as roupas para mais um dia de trabalho, com gravatas que retomam o título cinza. O evento quase consegue desvirtuar a atenção da trama ruim que seria apresentada, a história mundialmente conhecida, sucesso da “literatura” de E. L. James, Cinquenta Tons de Cinza. O prédio da companhia é belo, imponente, e por si só já intimidaria a calada estudante Anastasia Steele (Dakota Johnson), que precisa entrevistar, a pedido de uma amiga, o bilionário de boa aparência.

    Mais do que as roupas de trato fino e da aparência impecável, é a insensibilidade de Christian que gera na moça a impressão de que ele seria diferente de tantos outros homens de seu cotidiano. As salas grandes de cor branca também servem para desviar a atenção espiritual do seu “herói”, que abruptamente começa a se interessar pela intimidade da moça que o encara, em uma construção de relação boba e ainda mais mecânica do que a vista no livro.

    Aos poucos, forma-se uma atmosfera de conto de fadas pós-moderno, onde o príncipe ignora completamente a boa aparência da princesa, e ainda assim tem êxito em cooptar a atenção da amada. No entanto, os meios para alcançar esse encantamento é quase todo formado por situações constrangedoras e falas cafonas, típicas não de um homem erudito, e sim de um conquistador barato encontrado em cada bar, balada ou esquina das grandes cidades. Suas táticas de intimidação também são invertidas, já que ele usa seu dinheiro e recursos para reforçar o aspecto de homem maléfico.

    Após quase assinar um termo de confidencialidade sem ler o que está escrito nele, Anastasia mergulha em um quarto secreto, após o anúncio de Grey dizendo que “não faz amor, e sim fode com força”. No cômodo, ela vê toda sorte de brinquedos e apetrechos sexuais, ecos de uma vida mimada, cujos gostos e desejos jamais foram negados, quando a negativa não é um estado comum ou objeto aceitável.

    O auxílio visual faz momentos entediantes do livro tornarem-se dinâmicos e até aceitáveis. Grande parte da personalidade estúpida e infantil de Ana é suprimida na fita, e ela mostra muito menos rubor, por exemplo, depois dos elogios de seu primeiro parceiro sexual. No entanto, são comuns as cenas de um constrangedor romantismo, distante demais do posicionamento de dominador que Grey tenta passar.

    A beleza da nudez da Dakota Johnson faz o filme destacar-se além do ordinário comum do livro, mas não o bastante para superar o enfado que é acompanhar a lenta sedução do casal, que em termos bem conservadores tenta emular os momentos eróticos de Sete Semanas e Meia de Amor. As cenas de discussão dos termos são realizadas sob uma luz avermelhada, e tenta, em vão, sexualizar o momento, exibindo um mau gosto atroz.

    As cenas de prazer através da dor são flagradas de modo bastante conservador pela câmera, com dificuldade enorme de chocar o espectador mais antiquado e desagradando a quem vê a sexualidade como um assunto que não é tabu. O medo do choque prossegue, com a nudez pouco contemplativa de Anastasia e praticamente nenhuma sobra do corpo de Grey para o público feminino. Essa abordagem invertida em relação ao público alvo da sedução mostra inabilidades em representar fantasias e fetiches, algo que piora ainda mais nas cenas que apresentam primeiro o incômodo da moça em ter sua liberdade invadida, e depois em momentos de risadinhas constrangedoras após voar em aviões caríssimos, exibindo uma faceta bastante fútil da personagem.

    As atuações super mecânicas fazem o combalido roteiro ser ainda mais tedioso, incapaz de gerar qualquer empatia. Sequer a trilha sonora, repleta de músicas boas, consegue surpreender. Todas as faixas exibidas primam pela previsibilidade e superficialidade. As cenas em que o chicote vibra na pele da protagonista não possuem nenhuma indicação de que há sangue. Falta humanidade ao drama que é proposto, não há alma ou sentimento em quaisquer ações filmadas, nem mesmo o asco e a repulsa são bem retratadas.

    O abrupto e incômodo fim do livro é reiterado na fita, com uma cena repetida no final, claro, com sentido diferenciado. O trabalho que Taylor-Wood pouco conseguiu salvar do péssimo objeto literário em que se baseou concentra-se nos mesmos problemas éticos e defeitos sexistas e machistas. O roteiro ruim foi criticado até pela criadora da ex-fanfic, e consegue não vulgarizar, mas também não permite quase nenhuma parcela de erotismo ou sensualidade. Assim, prevalece a cafonice do argumento original, com um pouco menos de tédio, por só tomar duas horas do público, ao contrário do excessivo tempo necessário para terminar o livro.

  • Crítica | Virunga

    Crítica | Virunga

    Virunga 1

    O lar de muitas pessoas, e da espécie em extinção dos gorilas das montanhas, serve de cenário para um conto sobre a história da República do Congo e sua sangrenta batalha racial. O Parque Nacional de Virunga contempla uma biodiversidade enorme, incluindo um orfanato de símios, e a realidade do local mostra a convivência e o conflito entre humanos que não aceitam a diversidade racial entre os habitantes do país. O milagre natural é tristemente obrigado a coabitar com a situação bélica.

    A desesperança que deveria acometer a população por vezes é contornada e invertida, gerando a capacidade de acreditar que a natureza e a vida subsistirão, mesmo diante de tantas catástrofes. Orlando von Einsiedel conduz suas câmeras pelas planícies verdejantes, um cenário lindíssimo e inspirador pontuado pela bela fauna e flora, que garantem mais cores e nuances ao combalido local, exagerados pela trilha sonora. A abordagem spielberguiana, dos tempos em que o diretor norte-americano dedicava sua carreira ao público infanto-juvenil, aumenta a aura de lugar fantástico, assinalada ainda mais pelo visual.

    A câmera é escondida em lugares insalubres, intentando captar depoimentos dos militares que ocupam as cercanias do parque. Os pontos secretos da entrevista constituem em si um achado, com informações valiosíssimas. Em paralelo, são mostradas cenas da realidade cruel que acomete o vilarejo, com bombas e mísseis sendo lançados, tanques passando pelas paisagens verdes, deixando um rastro arenoso de cor bege, colorindo de forma depressiva o ambiente que devia ter na aquarela do arco-íris o seu norte.

    No lugar abandonado onde os desalojados ficam habitam a miséria e condições mínimas de subsistência humana. Os barracos, feitos de sucata e madeiras estragadas, representam visualmente as condições paupérrimas de vida dos habitantes do proletário local, pessoas que sofrem o terrível efeito colateral da guerra civil e que não têm qualquer alento, seja dos poderosos locais ou das autoridades internacionais. O massacre visual prossegue nas visitas aos hospitais, onde crianças aparecem feridas, algumas até aleijadas, com seus membros amputados em razão do temível estado bélico que reside em suas terras.

    A inocência dos pobres filhotes de gorilas das montanhas, que ainda conseguem sobreviver em meio à floresta, produz pouquíssima esperança de retorno ou resgate da paz. A produção cinematográfica contém uma edição prodigiosa, unindo-se ao roteiro de modo equilibrado, sem roubar a importância de ambos os aspectos. A verdade é averiguada sem esquecer-se dos espinhosos lados distintos do embate, dando voz para a organização que ocupa o parque ecológico.

    Virunga transcende a condição fílmica, atuando não só como denúncia através do cinema e transmissão streaming, mas também para ser um grito revoltoso, uma acusação incriminatória que visa esclarecer à opinião pública mundial, elevando um problema que é local e supostamente sem solução a um nível mais global, mais uma vez à procura da possibilidade de paz e de sossego para os pobres habitantes e para as criaturas que habitam a reserva.

  • Crítica | V/H/S 2

    Crítica | V/H/S 2

    VHS2-Poster

    V/H/S 2 foi lançado sob muita expectativa. O trailer que o promoveu era interessantíssimo, e havia a promessa de que o filme fosse uma grande produção de horror, trazendo contos que superariam o original. Ocorre que, após o sucesso de seu antecessor, V/H/S, o projeto – novamente sob responsabilidade do criador do site Bloody Disgusting, Brad Miska –, mesmo tentando inovar em certos aspectos, perdeu fôlego, não por repetir a mesma fórmula do filme original, mas por, talvez, ouvir as críticas negativas relativas a detalhes técnicos que a fita tenha recebido – a qualidade técnica do primeiro filme é de fato precária, mas não atrapalha em nada a diversão.

    Ainda assim, V/H/S 2 conta com um dos contos mais insanos já escritos e filmados, superando todas as histórias restantes, inclusive os contos do filme anterior.

    TAPE 49

    Como dito, Brad Miska repete a fórmula que o consagrou, trazendo uma história principal que intercala com os outros contos. Aqui, Simon Barret escreveu e dirigiu Tape 49, que conta a história de um casal de detetives investigando o sumiço de um jovem. Ao adentrar a casa do rapaz, eles se deparam com diversas fitas VHS, às quais passam a assistir em busca de provas.

    Assim como no primeiro filme, a história é vazia e sem graça, não atraindo o espectador em nenhum momento, principalmente aqueles que já estão familiarizados com a franquia.

    PHASE I: CLINICAL TRIALS

    Logo de início, o primeiro conto propriamente dito já mostra o motivo de V/H/S 2 ser menos interessante que o seu antecessor.

    A fita dirigida por Adam Wingard e escrita por Simon Barret se inicia exatamente quando a câmera é ligada. e logo se percebe que o protagonista perdeu um olho e está fazendo um tratamento inovador que consiste na instalação de uma câmera atrás de uma prótese ocular realista, fazendo com que seu cérebro receba as imagens daquilo que a câmera está captando. E não preciso nem dizer que a câmera do rapaz capta mais do que deveria.

    O mais interessante em Clinical Trials são os truques de cinema utilizados em todas as vezes que o protagonista se olha no espelho, pois, teoricamente, a câmera está dentro de seu olho direito e, realmente, parece estar.

    Os pontos negativos se repetem por quase todos os contos, e consistem na qualidade das imagens, todas elas muito nítidas, contradizendo com o padrão (hoje) precário das fitas VHS, além das cenas de susto virem acompanhadas de sons altos de interferência ou trilha sonora, o que mostra certa falta de cuidado com o conteúdo da história, uma vez que usar esse tipo de artifício é como jogar um jogo de videogame com códigos de invencibilidade e munições infinitas. Totalmente sem graça.

    A RIDE IN THE PARK

    Dirigido pela dupla que, respectivamente, dirigiu e produziu o sucesso A Bruxa de Blair, Eduardo Sánchez e Gregg Hale, e escrito por Jamie Nash, A Ride In The Park é uma produção totalmente azarada por um único motivo: The Walking Dead. Talvez, se o grande sucesso apocalíptico zumbi não existisse, esse passeio no parque seria mais interessante. Trazendo um conceito interessante que mostra um ciclista (com sua GoPro acoplada no capacete) sendo atacado por um zumbi, podemos acompanhar sua transformação e o ataque a uma festa de aniversário sob o ponto de vista da câmera no capacete. Porém, todos os zumbis do conto são muito mal feitos, deixando qualquer membro da Zombie Walk aqui no Brasil totalmente orgulhoso de sua maquiagem.

    SAFE HAVEN

    De longe, Safe Haven é o melhor e mais insano conto de toda a franquia V/H/S, E não é por menos, uma vez que a fita é dirigida pelo louco Gareth Evans, responsável pelo premiado filme indonésio Operação Invasão. As cenas de violência que consagraram Evans permanecem intactas, sendo que as cenas de luta dão lugar à mente doentia do roteirista Timo Tjahjanto que, junto com diretor, mostra a história de um grupo de cineastas que estão filmando um documentário sobre uma estranha seita religiosa indonésia, cujo líder – um cidadão muito sinistro, por sinal, está sendo acusado de promover abusos sexuais às crianças da seita entre os demais membros do grupo.

    Para o azar da equipe de filmagem, eles se descobrem exatamente no meio do “juízo final”, a chamada “redenção” dos membros da seita. Sangue. Muito sangue. Assassinatos, suicídios coletivos, pessoas explodindo e uma cena de parto que deixa encabulado até o mais cético.

    Se você não se interessou pela franquia V/H/S, procure por Safe Haven na Internet. É obrigatório.

    SLUMBER PARTY ALIEN ABDUCTION

    Hollywood parece sentir falta de filmes de suspense/terror com temática de abdução por alienígenas, e Slumber Party Alien Abduction, de certa forma, tenta (sem sucesso) preencher o vazio deixado após o lançamento de grandes clássicos como Contatos Imediatos de Terceiro Grau e Fogo no Céu.

    O segmento se parece bastante com o clássico B de abduções Estranhas Criaturas, de 1998. Com o sucesso de A Bruxa de Blair, o filme, em found footage, conta a história de uma família que, durante o jantar do feriado de Ação de Graças, recebe em sua propriedade a visita de seres extraterrestres nada amigáveis.

    O conto, dirigido pelo talentoso Jason Eisener, diretor de Hobo With a Shotgun, mostra de forma muito inteligente a invasão da residência e consequente abdução de uma família sob o ponto de vista do cachorro da casa, que teve uma câmera acoplada em sua coleira durante uma festa do pijama.

    Mesmo que o filme seja urgente e frenético, os bons momentos da fita são atrapalhados pelo auxílio de sons impertinentes que buscam causar sustos, o que de certa forma deixa o espectador irritado. Numa produção assim, espera-se que a própria trama, aliada a um roteiro e uma direção competente, cause medo por aquilo que está acontecendo em tela, e não por causa de um barulho alto quando se menos espera.

    Mas, em que pesem todos os aspectos negativos, o saldo de V/H/S 2 ainda é positivo, porque além de trazer Safe Haven, possui ótimos momentos, fazendo com que o fã do terror se sinta agraciado com histórias de qualidade criadas e dirigidas por diretores conhecidos ou promissores do cinema underground, sendo exatamente esse o conceito de toda a franquia.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | A Vida Íntima de Sherlock Holmes

    Crítica | A Vida Íntima de Sherlock Holmes

    a-vida-intima-de-sherlock-holmes-poster

    A valise aberta no cofre do banco, somente autorizada a ser aberta após passados 50 anos da morte do seu antigo dono, lembra, em importância, guardadas as devidas proporções, a Arca da Aliança, por conter em si materiais que se mostrariam sagrados para toda uma geração de fiéis. Em pouco mais de 3 minutos, Billy Wilder, um realizador polonês de nascimento – mas ainda assim ícone da narrativa clássica americana – consegue transmitir como ninguém todo o charme de um dos maiores personagens da literatura britânica.

    O afetadíssimo Sherlock de Robert Stephens – que usa uma sobrancelha postiça, garantindo a ele um ar aristocrático – começa o filme praticando algo que o detetive adorava fazer nos livros: desdenhar da escrita de Watson (Colin Bradley), acusando-o de aproximar a imagem de si da de um misógino, além de exagerar em seus dotes musicais. Mas o que realmente incomodava o protagonista eram as liberdades poéticas tomadas pelo médico, que faziam dele um personagem longe demais da realidade e mais próximo de um ideal heroico.

    O auge do sarcasmo acontece quando Holmes recusa um convite para “deitar-se” com uma renomada artista russa, alegando que, assim como Tchaikovsky, seu prato preferido não seria este – a homoafetividade antes insinuada é encarnada de forma jocosa, anedótica e pontual. O escândalo que a mulher rejeitada faz certamente é parecido com a reação que os fãs mais conservadores teriam ao ouvir uma revelação da homossexualidade factual do personagem; o grito de protesto pelo desperdício de tão viril figura – ao menos à primeira vista – seria uma resposta comum de parte dos leitores.

    É evidente que esta liberdade de roteiro era apenas anedótica, um artifício do detetive para rejeitar a mulher sem maiores problemas. Mas a indagação de Watson a respeito de seu currículo com o “beau sexe” (“belo sexo”, em tradução literal) incomoda o frágil detetive. A própria orientação sexual constituía para Holmes um mistério mais difícil de desatar do que os vários nós das vidas alheias – provando, aqui, mais uma grande característica do Detetive no cânone, o interesse diminuto em realizar autoanálise.

    O humor negro é muito presente sob uma máscara cínica e em abordagem ácida dos fatos absolutamente pouco usuais que aconteceram sob o teto de 221b de Baker Street. O registro visual lembra muito Topázio e Marnie – Confissões de uma Ladra, enquanto as viradas de roteiro remetem a Festim Diabólico e Disque M para Matar – Wilder era apenas sete anos mais jovem que Hitchcock, e, nesta película, optou por reverenciá-lo citando partes de sua filmografia, mesmo quando a crítica considerava o realizador em declínio, e Alfred estava às portas da aposentadoria.

    A fonte da desconfiança de Holmes com as mulheres seria sua noiva, que morrera de gripe pouco antes do casamento, mostrando que por trás do suposto comportamento misógino havia um coração ferido por uma perda irreparável, e até inesquecível, dada uma fala do detetive no filme:

    Alguns de nós vivem atormentados com uma memória de elefante, com uma quantidade tremenda de dados variados lá cravados, mas na maioria inúteis”  – esta citação entra em contradição com uma afirmação de Holmes em Um Estudo em Vermelho, na qual ele compara o cérebro a um sótão, onde é interessante guardar somente o necessário. Talvez a argumentação de Wilder fosse a de mostrar que Holmes era incapaz de atingir este ponto ideal, assim não poderia esquecer-se de nada, desde que não seja algo inconveniente.

    Para Holmes, perceber que foi enganado e tratado como joguete pela única mulher por quem conseguira se afeiçoar – numa clara repaginação de Irene Adler – derrubou significativamente sua autoestima e a possibilidade de um romance com a única mulher que Sherlock seria capaz de amar. Mas, ainda assim, a reação do detetive fora benevolente, sugerindo ao seu irmão, Mycroft, que Gabrielle (Geneviève Page) tivesse amenizada sua pena por espionagem. A notícia que recebera por carta no final sepulta de vez qualquer possibilidade de haver um romance imaginado em sua mente, encerrando em seu triste coração partido a inexorável solidão, que deveria estar presente até o fim dos seus dias, provavelmente vivendo estes de modo melancólico.

  • Crítica | Alien: A Ressurreição

    Crítica | Alien: A Ressurreição

    Alien A Ressurreição Versão Estendida

    A versão estendida, como anunciada por Jean Pierre Jeunet, não é uma versão do diretor, mas uma versão alternativa, com novas cenas. A primeira apresenta-se com um hiperclose nas mandíbulas de um inseto, algo semelhante à arcada dentária do Alien. Seus oito minutos a mais de exibição tentam resgatar algo de bom em meio à continuação que segue a pós-morte da protagonista, mas sem qualquer ressalva ou arrependimento por parte de seu realizador.

    O adentrar da nave, exibindo o corpo nu de Sigourney Weaver, só não é mais assustador em sua figuração do que a noção de que o roteiro do filme é assinado por Joss Whedon. O milagre por trás do reavivar da heroína de ação  é dado por uma experiência sem qualquer consentimento da personagem, em que a liberdade de escolha é ignorada e completamente contrariada. Aos poucos, Ripley toma conhecimento do que ocorreu consigo, ainda que sua mente esteja tão diferente que qualquer noção de identidade torna-se bastante discutível.

    A direção de Jeunet imita os elementos de filmes de ação franceses, com exageros em diversos aspectos, como no modo tosco em que os doutores tratam a mulher, correndo risco de morrer o tempo inteiro, dada a força descomunal de Ripley, ainda que nenhum deles tome qualquer precaução. A postura deslocada da personagem lembra o comportamento de Leeloo, personagem de Milla Jovovich em O Quinto Elemento, de Luc Besson. A caricatura da modernidade inclui identificadores que funcionam através do hálito dos indivíduos, abrindo mão de qualquer praticidade para exibir uma alternativa grotesca.

    Os tripulantes da nave/laboratório são ainda mais sádicos do que os vistos em todo o decorrer da franquia, executando experiências com espécimes vivos, pessoas amarradas contra a vontade à espera de terem suas vidas cerceadas em frente às ovas de Alien. Paralelo a isto, um grupo de mercenários entra a bordo, sem qualquer desculpa minimamente plausível, uma intromissão que inclui o contato com a antiga tenente, que se mostra um ás no esporte, a máquina perfeita de combate e predação, e com habilidades semelhantes aos xenomorphos, como a propriedade de sangue corrosivo. O esquadrão de assassinos, que a princípio deveriam ser uma versão dos mariners de Aliens: O Resgate, é caricato, com arquétipos retirados de desenhos animados, só perdendo para os cientistas estúpidos que permitem a fuga de uma das criaturas, do modo mais vergonhoso que o roteiro poderia construir.

    Após a fuga, uma correria desenfreada começa, seguida de uma extensa carreira de eventos bizarros, exibidos à moda da comédia, onde nem o conteúdo gore/trash consegue salvar qualquer suspensão de descrença. Até mesmo a chocante cena em que Ellen Ripley encontra o laboratório repleto de cópias defeituosas, que deveria prioritariamente causar emoção, provoca náuseas, na personagem e no espectador.

    As sequências de ação mal feitas, as situações constrangedoras e o roteiro repleto de personagens estranhos ainda não são suficientes. O bizarro se instala ao apresentar uma evolução da Rainha, cuja herança da amálgama com Ripley resulta num parto semelhante ao humano, com um útero fértil, dito pelo doutor Jonathan Godiman (Brad Dourif), que narra o nascimento do Alien albino, o qual, ao invés de simbolizar o avanço interespécie, acaba mostrando-se uma criatura rudimentar risível.

    Não bastasse unir os inimigos mortais numa tensa relação de familiaridade e sedução, a fita de Jeunet ainda consegue apresentar uma caracterização de Ripley assustadoramente diferente de tudo que foi visto antes, desconfigurando por completo sua persona. A luta final e a solução encontrada para assassinar o Alien são um acinte, apresentando a despressurização e dilaceração da criatura em um movimento tão mortífero que encerraria a franquia, apesar dos desejos de continuar a partir dali. Nem mesmo a desolação da Terra parecia ser algo diante de tamanha catástrofe cinematográfica que é Alien: A Ressurreição.

    Compre aqui: Alien Quadrologia (DVD | Blu Ray)

  • Crítica | Uma Noite no Museu 3: O Segredo da Tumba

    Crítica | Uma Noite no Museu 3: O Segredo da Tumba

    Uma Noite no Museu 3 - O Segredo da Tumba

    Poucas trilogias mantêm a qualidade e sucesso nas três partes de suas histórias. Mesmo grandes produções, como O Poderoso Chefão e De Volta Para o Futuro, apresentaram oscilações. Normalmente, ao nos referirmos a trilogias, o último ato sempre é o mais difícil de ser bem executado. À exceção, talvez, de O Retorno do Rei, na trilogia O Senhor dos Anéis, o melhor dos três e grande desfecho da saga. Realizar três histórias diferentes com a mesma qualidade é um processo difícil, ainda mais quando as três produções são desenvolvidas de maneira separada, sem nenhum plano inicial de conduzir continuações, mas que, devido ao sucesso de público, ganham mais uma história nas telas.

    Nestes casos, observamos um padrão entre cada parte de uma trilogia. Normalmente, o segundo filme reconta a história do primeiro de maneira levemente diferenciada e maior, muitas vezes cometendo excessos para entregar algo a mais ao público. Por consequência, se a continuação recebeu críticas negativas, sua terceira parte tenta equilibrar-se nos acertos anteriores, evitar erros e tornar competente o desfecho.

    Esta proposição pode ser vista na trilogia Uma Noite no Museu, a franquia mais familiar do comediante Ben Stiller. Após o primeiro filme, que trabalhava com simplicidade uma história lúdica e mágica, sua sequência apresentou excesso de novos personagens e cenários que desequilibraram a narrativa, resultando em um filme inferior. Eis que Uma Noite no Museu 3: O Segredo da Tumba evita o excesso de novas personagens, mantendo os conhecidos e cativantes integrantes do Museu em uma nova aventura que decidirá o destino de cada um deles.

    Shawn Levy assume novamente a direção nesta produção que enfoca o trabalho do vigia noturno Larry Dayle em um museu de história natural. Um local onde, durante a noite, as personagens históricas ganham vida graças à magia da Pedra de Ahkmenrah. Devido a uma corrosão que surge na peça, Larry viaja até Londres para pedir ajuda ao Faraó Merenkahre, o criador do artefato.

    A produção começa com um pequeno prólogo em uma escavação do Egito, quando um garoto acidentalmente encontra a tumba onde está a pedra. Durante muito tempo, este mesmo garoto seria o guardião noturno do museu, um dos antigos vigias que retorna à história quando Larry procura-o para pedir informações sobre o artefato. Enquanto lida com este problema do museu, Dayle tem problemas com o filho, decidido em não seguir nenhuma carreira acadêmica. Um conflito paternal explorado além da aventura.

    Como na história anterior, as personagens necessitam explorar um novo museu e se deparam com novos objetos que ganham vida devido à Pedra de Ahkmenrah. Ao contrário do excesso de personalidades de Uma Noite no Museu 2, somente um novo personagem acompanha a jornada dos heróis: o famoso cavaleiro Lancelot. A adesão da figura nobre à trama promove humor e ajuda a intensificar as cenas de aventura e ação. O museu britânico é limitado a poucas áreas, o que se evita o surgimento de outros personagens, mas ainda apresentando novos monumentos em cenas pontuais, principalmente porque há salas específicas para diversos países e regiões. Sem deixar de lado o acervo grandioso do museu, a história destaca a litografia Relativity, de M. C. Escher, e ainda inova uma cena de batalha encenada dentro do quadro com suas diversas visões de perspectiva e tridimensionalidade (um dos pôsteres de divulgação utilizou o quadro em cena).

    A trama dosa a aventura e o lado familiar, afinal trata-se de um filme feito para um público amplo, de crianças a adultos. As cenas de humor são simples, com um tipo de riso que é provocado sem agressividade. Um estilo de produção que não busca nenhuma invenção, mas segue uma cartilha própria, consagrada nas histórias anteriores e com personagens queridos do público.

    A produção marcou a despedida de Robin Williams, sendo esse o último filme estrelado pelo comediante. Alguns críticos apontaram que sua morte modificou levemente a estrutura desta obra, que adquire um tom mais maduro e sensível em seu ato final. As últimas falas do Presidente Teddy Roosevelt dialogam sobre o fim e o início de novos caminhos, a sensação de desconhecimento sobre o futuro que seria benéfica devido às suas muitas possibilidades. Uma realidade que gera outra carga a essas palavras. O público anula momentaneamente a diferença entre personagem e ator para, com emoção, se despedir do próprio Williams na figura do presidente. O adeus a um ator que sai de cena da mesma maneira que entrou nos palcos: em um papel cômico, demonstrando que conduziu sua vida até o fim na esperança de trazer o riso aos outros.

    Neste misto de comédia, história familiar e leve drama dentro e fora das telas, Uma Noite no Museu 3 realiza um desfecho com qualidade a uma história simples, sem muitas pretensões, mas que cativou o público principalmente pelo jogo cênico de personagens históricas, dialogando entre si, e o humor acessível de Ben Stiller.

  • Crítica | Grace de Mônaco

    Crítica | Grace de Mônaco

    Grace de Monaco - poster

    Produções românticas e uma vertente dos contos maravilhosos transformaram reis, rainhas e príncipes em soberanos que vivem uma vida perfeita e cheia de pompa. Até hoje, este conceito persiste pela tradição de contos de fadas e histórias infantis, que visam um final feliz para encerrar sua trama. Grace de Mônaco desmitifica a vida de princesa “feliz para sempre”,  trazendo à tona a história de Grace Kelly.

    Kelly foi uma das belas atrizes que fizeram parte da obra de Alfred Hitchcock. Estrelou diversas grandes produções do mestre do suspense, mas foi por Amar e Sofrer que recebeu um Oscar de Melhor Atriz, dois anos antes de casar-se com o príncipe de Mônaco e receber diversos títulos de honrarias desta cidade-estado soberana. A intenção da biografia é desconstruir parte da percepção de que, por se tornar princesa, Kelly alcançou um sonho ideal e perfeito. Entre os difíceis dilemas que teve de enfrentar, a outrora atriz se destacou como uma mulher forte e independente, tendo uma noção diferente daquela vista pelo principado local.

    Escalada para o papel da estonteante atriz, Nicole Kidman tenta recuperar seus tempos áureos de boa atriz, já que, desde a década de 2000, com Os Outros, Moulin Rouge e As Horas, não tem obtido o mesmo sucesso e nem realizado grandes interpretações. Trata-se de um papel que requer um talento apurado, o qual a atriz possui, tanto para interpretação como para a composição mímica de uma pessoa real.

    O roteiro de Arash Amel (que tem no currículo somente outra obra, Erased, com Aaron Eckhart) segue o estilo padrão de biografias cinematográficas. O filme inicia-se com uma cena poética e uma citação da própria Grace sobre a vida de princesa e contos de fadas, abrindo sua história. Ao se mudar para Mônaco, a princesa ainda sentia-se como uma atriz de Hollywood. Hitchcock na época realizava Os Pássaros e convida a atriz para seu próximo trabalho, Marnie – Confissões de uma Ladra. O diretor é o único personagem cinematográfico a aparecer em uma breve visita ao palácio, apenas para convencer Kelly a voltar às telas para uma saída triunfal.

    Dentro do principado, com poderes adquiridos no casamento, uma possível ida da princesa a Hollywood é considerada uma afronta. Principalmente porque, na época, Mônaco sofria ataques da França que quase transformaram em guerra uma disputa de interesse relativa a impostos.

    Kelly observa este mundo como alguém que assiste a uma peça, sem saber que ela faz parte deste processo. Ao reconhecer seu status, a princesa ganha força e começa a usar seu poder para melhorar o principado com a representação de um derradeiro papel final, ajudando a promover o governo do marido. Interpretado pelo sempre bom, mas quase esquecido, Tim Roth, o Príncipe de Mônaco é um homem que carrega grandes problemas nas costas e vê na esposa uma aliada capaz de ajudá-lo. Ambos unem suas forças e, cada um em suas frontes, ajudam a reerguer Mônaco e solucionar o impasse com a França, país exportador de muitos produtos para a cidade-estado. Surge uma Grace Kelly ciente de suas obrigações e uma humanista que usa seus atributos de beleza, inteligência e sagacidade a favor deste momento difícil.

    A trama transforma o conflito como centro da narrativa para compreender quem foi Grace Kelly. Uma mulher por muito tempo dividida entre dois mundos até assumir a coroa de princesa definitivamente. Não é à toa que a história da atriz tornou-se um exemplo de conto de fadas. Nascida na Filadélfia, talvez Grace nunca imaginasse que um dia se tornaria princesa. Porém, esta imagem figurativa, provavelmente difundida em tabloides na época, é modificada nesta produção, que, mesmo focando uma interessante figura real, passou despercebida por parte do público. Olivier Dahan constrói uma princesa bem equilibrada entre a força que deve ter e a fragilidade interna cheia de incertezas. Porém, a condução somente correta da trama traça um panorama superficial demais sobre Kelly, fazendo com que o filme não tenha força suficiente para se tornar uma grande obra, mesmo com uma rica história como inspiração.

  • Dossel dos Dólares – A Trilogia do Oeste

    Dossel dos Dólares – A Trilogia do Oeste

    O Star Wars no Oeste, antes de ser no espaço. Pensaram que onde não existe som – mas, nos filmes de George Lucas, o que não existe é a física – seriam mais bacanas duelos de rifle com sabres de luz, espaçonaves ao invés de cavalos etc. Pode ser, pode não ser, mas se de fato há discordância da qualidade da interminável série da família Skywalker, o mesmo não se remete aos clássicos indiscutíveis de Sergio Leone, seminais em sua proposta mas não em realização: os filmes são deliciosamente exagerados na abordagem das histórias, sendo que esse “excesso de Cinema” tornou imortal a trilogia justamente pela precisão na aplicação de intenções artísticas que Leone empregava, na fartura de linguagens em um mesmo filme, tal qual Akira Kurosawa ou Sam Peckinpah posteriormente, cada um com a sua manha. Além do gênero e sub-gênero spaghetti, exagero mesmo é não encaixar a quinquagenária Trilogia dos Dólares (em 2014, o primeiro filme completou 50 anos) entre as maiores trilogias, junto à Trilogia de Apu, do indiano Satyajit Ray, ou de Michelangelo Antonioni, a da Incompatibilidade. Leone vai além do diretor favorito de gente como Quentin Tarantino, foi um dos mestres que, com poucos filmes, feito Stanley Kubrick ou Hiroshi Teshigahara, se tornou uma lenda e elevou o Cinema ao respeito do mundo.

    Por Um Punhado de Dólares

    Em cada bala, e não são poucas, se justifica a relevância da metáfora na figura de um abutre, vulgo feitor de caixões. A clássica frase: “Erro meu, quatro caixões” se encaixa e é a essência do manifesto italiano a um cinema de hipóteses e incertezas contra qualquer permanência de clichês anteriores na filmografia do país. Leone se preocupa só em criar a mitologia primária da trilogia, a ética de um microcosmo empoeirado onde a moral é matar ou morrer ou servir, no máximo. Cada figura, e isso se aplica aos dois outros filmes, arrasta suas esporas num fio de navalha que ajudam a tecer e tornar cada vez mais mortal em seus conflitos de interesses, divertidos, unilaterais, havendo nestas questões planos óbvios para próximos filmes, que naturalmente iriam superar este primeiro exemplar, humilde síntese ao cunho de Sérgio Leone. Por Um Punhado de Dólares é o berço de gigantes como Sergio Corbucci, Enzo G. Castellari e Fernando Di Leo, ases da terra da Sicília que não escondem em obra alguma referências à excelência da história de gringo, cowboy sem nome, passado e, graças à sábia incerteza que o filme se apropria durante a projeção, futuro.

    Por Uns Dólares a Mais

    A morte, entretanto, é um excesso de certeza – lê-se isso nos olhos de Lee Van Cleef. A cena de Clint Eastwood e Cleef atirando em seus chapéus, dois raios no gatilho, para provar suas miras é emblemática: um sobrevivente avisando ao outro para não traí-lo em sua parceria desconfiada, só pra chegarem mais rápido na recompensa de ambos, no violento Índio, vilão sem limites cujo desejo repousa no banco de El Paso, e que o grande ator Gian Maria Volonté tratou de tornar inesquecível. Agora, o vilão e o parceiro de Gringo ganham pretérito e propósito para distinguir suas condutas em sentido imediato perante Gringo, caçador de recompensas que a morte parece não querer cruzar seu caminho. Num trote infinito de causas e consequências, um mural de esporas e verdadeiros centauros consagra um gênero como Cinema quente e abafado de primeira qualidade. Leone agora é mais dono de si, dono de suas marcas registradas. Por Uns Dólares a Mais carrega consigo uma propriedade mais refinada para representar sozinho, se for preciso, o trio que faz parte, lapida o que deu errado antes e o que dará certo mais tarde, e concede honra ao fazê-lo.

    Três Homens Em Conflito

    É o ponto máximo, é o épico que toda trilogia com começo, meio e fim tenta ter, mas poucas conseguem – todos sabemos bem disso. Leone não só atingiu a veia suprema na exploração de temas e recursos de sua trilogia, como maximizou seu legado sem precedentes em Era Uma Vez no Oeste, de 1968, um colosso incorruptível diante dos arquétipos da mise en-scène contemporânea. Il Buono, il Brutto, il Cattivo (porque no idioma original é sempre melhor) é tudo que o cinema permite, é um abuso positivo das quatro extremidades de uma tela de cinema em prol de uma história longa, 161 minutos cabíveis ao sentido de epicidade que Leone não abriu mão de conjurar. É difícil imaginar outros atores melhores: Eastwood, Van Leef e o extraordinário Eli Wallach – recém falecido, o eterno Tuco – são o ménage à trois, o real cenário pulsante e vivo de uma teia de fetiches ordinários, descompromissados, contudo cercados numa abordagem cirúrgica aos rumos que um dos maiores expoentes do western mundial ao longo dos anos tomou, aos poucos, sem pressa, até um clímax/aula de edição cinematográfica muito além do deserto de Almería, no nordeste de Madri (Espanha), que serviu de cenário a Por um Punhado de Dóles, e antes a O Xerife de Queixo Quebrado (1958), um spaghetti western britânico.

    Três Homens em Conflito é um marco histórico a ser celebrado ao mostrar (e definir, para muitos) o Velho Oeste de forma mais realista que John Ford ou Howard Hawks mostraram, para efeito de comparação, é claro. No encerramento da trilogia, Leone deixa a ambição subir à cabeça mas sabe como a usar em benefício próprio; chave difícil de se encontrar. O filme persegue suas personas, seus protagonistas, em três histórias que não evitam de se chocar de uma forma para a qual, hoje em dia, quase não se abre exceção. E sobretudo, se num mundo onde um homem vale o quanto mata e a mulher o quanto vê e silencia, muito da experiência irresistível se deve à alegoria sonora, a inconfundível música composta por um dos maestros seminais da trilha sonora fílmica, o veterano que em 2012 fez ingresso aos domínios de Quentin Tarantino – e desaprovou – com Django Livre, uma homenagem aos moldes de um tarado por Leone.

    Ennio Morricone, de timbres seletos e cada vez mais diversos no uso de instrumentos inusitados, tão inusitados quanto o espírito irreverente que se sente na tela, cria um bálsamo sonoro presente em 90 porcento do tempo, com aperitivos presentes neste artigo. Sua melodia, sensibilidade à flor da pele, embala e aprofunda um universo ao constituir aspectos subjetivos que nenhum diálogo e nem ação poderiam alcançar senão com a música. A digressão dos momentos não teriam a mesma emoção sem a fórmula sensorial desenvolvida por poucas e tão eficientes intervenções musicais. Morricone cria sublimes concertos e faz a poeira testemunhada ter gosto e cheiro, maturidade que num cenário merece tamanha identidade acústica. Numa trilogia que faz permanecer sua qualidade técnica até o fim como forma de personalidade linear, a música só é cortada pelos tiros que falam mais alto que qualquer coisa, afinal, señor, isso ainda é um bang bang. †

  • Crítica | Delícias da Tarde

    Crítica | Delícias da Tarde

    Delicias da tarde - poster

    A inquietação de Rachel (Kathryn Hahn) em seu próprio carro, enquanto o veículo passa pelo lava a jato, resume o enfado que existe em sua rotina, presente na vida de muitas mulheres de meia-idade. Suas primeiras falas destacam o seu estado de ócio e a culpa em sentir-se vazia, por não ter muitas emoções além de sua vida acostumada ao ordinário. A análise com sua terapeuta, Doutora Lenora (Jane Lynch), deveria servir para ela contar a verdade, mas assumir suas derrotas é demasiado vergonhoso.  Ao finalmente acatar a sinceridade, a protagonista revela uma rotina na qual sua vida sexual é praticamente nula, mais uma vez reafirmando o drama de algumas mulheres que veem que a segurança de um belo lar suburbano não é o bastante.

    A abordagem escolhida pela diretora Jill Soloway arranha a imagem da mulher julgada pelo machismo. Propositalmente, é claro, visto que a realizadora tem uma experiência com o seriado protagonizado por Toni Colette, United States of Tara. As personagens da película são bastante reais, cada uma simbolizando uma faceta do universo feminino, elevando o conceito do seriado a um nível mais especulativo, não literal.

    O farsesco da comédia brinca com o grotesco inerente ao ser humano, quando envelhecer nem sempre é um exercício digno ou edificante. O mundo conflituoso da mulher de mais idade é invadido pela vontade de quebrar a rotina. As tentativas de reavivar a vida sexual do casamento da protagonista com Jeff (Josh Radnor), como a visita a um strip club, somente a assustam, não servem para reavivar nada além do asco comum aos seus dias solitários. Além disso, a primeira experiência com uma stripper de 19 anos, McKenna (Juno Temple), só a deixa mais tensa e insegura.

    A completa falta de perspectiva faz com que a dona de casa busque se aproximar da stripper, fazendo uso de outro nome, Sophia, numa busca por ser outro indivíduo. O destino das duas se entrelaça a ponto de McKenna ir morar na casa do casal. De repente, o lar ultra conservador é invadido por uma mulher que ganha a vida na maior parte do tempo sem roupa alguma. O diálogo travado entre as duas exibe realidades muito distantes umas das outras, uma em que a carência afetiva resulta no tédio, e outra resulta no ganho de vida através da prostituição.

    O principal fator para que as duas personagens focadas sejam diferentes é a maturidade, ainda que ambos os dramas sejam, numa análise fria, os mesmos. A empatia entre ambas ocorre sem maiores esforços, com Rachel se afeiçoando pela dramática história de vida de McKenna, sentindo pena pelo trabalho que ela se vê obrigada a fazer, uma vez que sua “família” precisa de dinheiro. A comiseração se confunde com identificação, por parte de Rachel.

    Ao acompanhar a jovem em seu trabalho, Rachel se depara com uma realidade inconveniente: por um lado, assiste à degradação de sua protegida; ao mesmo tempo, o cliente consegue atingir pontos que seu marido não alcança, metas simples, como olhar para ela enquanto chega ao clímax.

    Após o fatídico acontecimento, a cortina cai, e as mulheres percebem que não há como conviver harmoniosamente, a despeito da dependência mútua que um dia existiu. A quebra de confiança resulta na mágoa de ambas, pondo para fora o respectivo veneno que as duas tanto guardavam, usando estes como mecanismos de defesa em um ataque mútuo.

    Rachel se torna factualmente o arquétipo a que sempre sentiu pertencer. Era uma pária, um evento da entropia, orbitando um espaço galáctico longe demais de onde deveria (e queria) estar. Aos poucos, até os papéis de carente e ouvinte são trocados em seu cotidiano. Sua queixas param, seus problemas são superados através da comunicação com seu marido, que antes não funcionava. Apesar da clara evolução, o caráter do final da mensagem pode ser encarado como um viés de conformidade, aceitação de seu destino, distante do começo inquieto, mas resignado. A felicidade finalmente paira na vida da mulher, provando que a solução óbvia, longe das reclamações constantes, pode ser a melhor opção para uma vida plena.