Categoria: Cinema

  • Crítica | A Teoria de Tudo

    Crítica | A Teoria de Tudo

    A Teoria de Tudo - Poster brasileiro

    O século XX, mesmo sendo considerado um dos períodos mais sangrentos da história da humanidade, deixou heranças culturais sólidas em nossa cultura, e a popularização da ciência e do discurso científico foi uma delas. Einstein é mais conhecido por suas frases a respeito da moralidade da humanidade e por sua oposição à violência do que por sua obra na física. Depois dele, o grande divulgador da ciência (e polemista nato) é o astrofísico britânico Stephen Hawking, que, além de ter mudado os rumos da física moderna, é portador de uma doença séria chamada esclerose lateral amiotrófica (ELA), que o impossibilita de se movimentar, tornando sua figura ainda mais interessante aos olhos do mundo.

    Sua ex-esposa, Jane Hawking, publicou em 2008 o livro A Teoria de Tudo – A Extraordinária História de Jane e Stephen Hawkin contando a experiência de ter sido casada durante tantos anos com o físico. Em 2014, o diretor James Marsh e o roteirista Anthony McCarten trazem essa interessante história aos cinemas com A Teoria de Tudo, tendo o excelente Eddie Redmayne no papel de Hawking, e Felicity Jones como sua esposa.

    Por não se tratar de um filme biográfico sobre a vida e obra do cientista, a história começa com Hawking já na faculdade, buscando um tema para seu doutorado. O jovem, então, começa a perceber que algo está estranho com seus movimentos musculares, ao mesmo tempo que lida com colegas, professores e conhece a jovem estudante de línguas Jane. Após pouco tempo, quando ambos já estavam em um relacionamento, ele sofre um tombo do qual não consegue se levantar. Levado ao hospital e diagnosticado com a grave doença, recebe uma estimativa de vida de dois anos. Por isso, tenta afastar Jane, que reluta e decide manter-se ao lado do físico teórico, o que se manterá por 26 anos e três filhos.

    Retratando fielmente a perseverança do britânico, o filme mostra o passo a passo de sua degeneração física em contraponto a sua ascensão meteórica como astrofísico, desafiando todas as convenções da academia impostas até então, como, por exemplo, sua ideia a respeito dos buracos negros (que ele iria alterar posteriormente) e conceitos sobre a expansão do universo. O filme também aborda, de maneira mais leve, a postura que possui em relação a religião e à crença em deus. Apesar de se declarar publicamente ateu, o filme evita escancarar tais posições e mostra a vida de Stephen Hawking, de jovem cientista arrogante a um idoso cientista que “prevê a possibilidade de deus”, sendo que isso está longe da realidade. O que faz é brincar com as palavras e as convenções das pessoas usando seu famoso senso de humor, e essa fina ironia o filme não consegue captar nesse aspecto.

    Porém, a relação entre ele e sua esposa Jane possui momentos belos e profundos. Jane se doa à família, e deixa sua própria vida de lado. Mesmo quando tenta retomar seus estudos, o pesado cotidiano a impede de prosseguir com isso. A sombra de Hawking é muito grande, e sua teimosia em aceitar ajuda profissional reforça sua visão tradicionalista, beirando o machismo. Porém, tudo muda quando Jane conhece o professor de música de uma igreja local Jonathan H. Jones (Charlie Cox), que logo passa a morar com o casal, suscitando vários boatos de que ele e Jane eram amantes, o que o filme em momento algum aborda diretamente, apesar de ser fato conhecido por todos.

    A relação apaixonada e conturbada de Jane e o marido também é mostrada de forma interessante. Com empenho no começo e depois passando por problemas, como quando Jane explica a Jonathan um resumo das ideias de Stephen (sobre como ele queria uma teoria que explicasse todo o funcionamento do universo, desde as grandes massas até as pequenas partículas) de forma passivo-agressiva, tentando conter ao máximo a frustração de sua própria vida sendo contida ali dentro daquele universo.

    Porém, após uma complicação em uma viagem, Hawking é submetido a uma traqueostomia e perde a habilidade de falar para sempre, o que causa também o afastamento de Jonathan da família. É nesse momento que o físico teórico recebe o sintetizador de voz, que hoje é uma de suas maiores características.

    O peso de cada uma das dificuldades que Hawking precisou passar é enorme. Superar o diagnóstico, a expectativa de vida, o uso da cadeira de rodas e depois o sintetizador seriam brutais para qualquer pessoa. Porém, ele consegue continuar avançando e produzindo. De onde ele tira essa força é um mistério para todos nós, e o filme falha em problematizar justamente esse lado. O cosmólogo britânico sempre foi contrário à eutanásia (apesar de recentemente ter mudado de opinião) e nunca se apoiou em nenhuma religião para obter conforto ou uma fuga da realidade. Sua mente genial está para sempre aprisionada nesse corpo, e raras vezes o filme parece questionar como foi passar por tudo isso. Em sua família, conseguimos sentir esse peso, mas não nele.

    A ciência também vai, conforme o filme avança, perdendo importância na narrativa. Cada vez menos as universidades e professores aparecem, tornando a história cada vez mais pessoal e intimista, o que por sua vez dificulta um pouco a compreensão do espectador a respeito da forma com a qual Hawking se tornou conhecido realmente. O caminho é corrigido subitamente quando aborda a publicação de seu primeiro livro, Uma Breve História do Tempo, em que ele tenta explicar um assunto complicado e “chato” para o leitor comum, e com isso vende milhões de cópias por todo o mundo, saindo de vez das revistas científicas e indo parar nos jornais e tabloides. O tempo sempre foi sua grande paixão. E compreendê-lo por completo, seu maior desafio.

    A vantagem de A Teoria de Tudo é sua honestidade. Não se propõe a decifrar por completo a figura do cientista ou de sua esposa, e sim os frutos de sua interação por todos os anos de casamento, e como um impactou a vida do outro na intimidade. Apesar de flertar com momentos um pouco clichês em cenas românticas, mostrar epifanias criativas em momentos aleatórios e expor discursos de autoajuda em palestras que mais parecem motivacionais do que científicas, consegue jogar luz dentro deste personagem tão fascinante. Vale a assistida, mas consciente de suas limitações, como qualquer biografia.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    boyhood pic

    Boyhood tem tudo – tudo sob medida – para ser um clássico da Sessão da Tarde. Infelizmente, o espaço vespertino de filmes na programação da emissora é de péssima qualidade, há muito alheio a apostar no êxito de outrora, como com A Lagoa Azul, Elvira ou Uma Babá Quase Perfeita. Filmes família (Lagoa já não é mais visto inocentemente como antes) que todo mundo curte e curtia, principalmente se houver um cachorro como cereja do bolo; se for falante, melhor ainda. No filme de Richard Linklater, filmado em 39 dias (1 mês e pouco) ao longo de 12 anos (1 ou 2 dias pra cada cena, talvez), não há animais nem nada “do barulho” que desde a época que começou a ser gravado já não funcionava mais com a plateia. A obra carrega em si, por excelência, no tratamento da narrativa, a alma leve dos anos 80 que fascina o espectador (sempre carente de modéstia) dos anos 2000, tempos complexos em que desejamos cada vez mais a simplicidade, o alívio, o despretensioso. Num mundo cheio de segundas e décimas intenções, quando encontramos um filme, livro ou música que invoca um quase extinto frescor lenitivo, a problemática teia social vigente, ah… Brisa no deserto.

    Só que os méritos do filme de Linklater param por aí. O cara merece aplausos pela iniciativa de tornar o sonho real? Sem dúvida! Mas a tal da profundidade que muitos apontam em sua obra mais ambiciosa (e incomparável diante do valor de qualquer filme de sua trilogia romântica) não afunda muito na superfície da simplicidade do tempo, numa rasa exaltação da família e da riqueza da entidade familiar, como se uma homenagem a Era Uma Vez em Tóquio ou Pai e Filha – ópios soberbos sobre laços étnicos – ganhasse território americano nos moldes épicos do cinema de Yasujiro Ozu, impraticável por qualquer cineasta que não seja o próprio, tamanha a força de seu talento, sabedoria e leveza artística que nenhum outro, oriental ou não, conseguiu repetir até então. Linklater homenageia mesmo sem querer (querendo) a pureza de um Cinema leve e emocional ao extremo, mas acha contradição ao resgatar valores que já se repetiu em resgatar antes, e ao (simplesmente) focar 12 anos mundanos de uma família branca de classe média em fórmulas de publicidade que vendem a obra a partir de sua forma, e não do seu conteúdo, do recheio que iria, por fim, perfurar a validez do filme no tempo.

    James Cameron levou de 10 a 15 anos para rodar Avatar, mas foi na sua revolução tecnológica e no seu conteúdo 3D puramente técnico que o filme honestamente se apoiou, e não no seu arremedo de história. Boyhood só é levemente mais nobre por transcender e preferir a carga dramática ao aspecto técnico, mas cujo status de proeminência da tola história de um menino e sua família chega a ser tão leve quanto uma formiga se comparada à grandeza dos longos anos de produção, tal um elefante numa balança desigual de destaques relevantes. Um filme que exalta e, devido à longa duração, superestima as digressões em uma história, pois vai e volta, vai e volta, entre o limite do agradável e descartável, o rico e o gratuito, coisa típica da Sessão global, também.

    Na verdade, o que mais vale na obra não é nem a história, nem a duração das filmagens, mas sim o que de ambos os aspectos se pode extrair da plateia: o exercício da interpretação individual. O que mais cada um gosta em um filme e desgosta, se inspira para recriar na arte ou na vida, admira, reflete, se espelha ou repreende na tela é tão relativo quanto o gosto duvidável da direção irregular de Linklater, no começo compatível a um diretor de filmes amadores, ainda nos anos 90, terminando o filme de um jeito 100% carinhoso e paternal ao material que cultivou com tanto esmero, por mais de uma década. Certeza mesmo vem da ótima montagem em torno da obra, e acima de tudo, do talento à prova do tempo de Patricia Arquette, ótima como a matriarca que, quando vê barba no rosto do moleque, trava um diálogo emocionante sobre a brevidade das coisas, espécie de resumo do filme e a melhor cena de uma bijuteria que brilha, mas não é ouro. Deixemos ao tempo mostrar até aonde o brilho chega.

  • Crítica | Como Na Canção dos Beatles

    Crítica | Como Na Canção dos Beatles

    Como Na Canção 1

    Baseado na obra Norwegian Wood, de Haruki Murakami, Como na Canção dos Beatles exibe uma história que mistura melancolia existencial com viés revolucionário político. A base da experiência é a solidão sentimental de Toru Watanabe (Keniche Matsuyama), cuja confusão mental começa por sua dedicação à moça que é seu primeiro amor, Naoko (Rinko Kikuchi), uma bela menina, com dificuldades sérias de socialização, cuja introspecção faz Toru afundar-se ainda mais no desolamento e exílio.

    O principal fator que mantém o casal unido é um segredo do passado, que envolve a dor da perda de um amigo próximo, cujo trauma jamais foi superado por nenhuma das partes. Mais do que amor carnal e dependência sentimental, há uma relação de divisão do luto, um compartilhamento da dor que não deveria ser quebrado.

    A modernidade da vida adulta exerce em Toru seu domínio, inserindo-o no mercado de trabalho e na vida acadêmica, o que o faz ter contato com mais pessoas, se abrir para maiores experiências e provar de vieses que antes nem imaginava existirem. O mundo de possibilidades que se abre a ele faz nascer a amizade com Midori (Kiko Mizuhara), cujo comportamento absolutamente sociável difere, e muito, de seu par amoroso.

    O apoio que a nova amiga de Toru exerce é tão grande que ela até o acompanha às visitas que faz a Naoko, sendo uma presença constante no relacionamento de ambos, reforçando a ideia de ambiguidade, pavimentando a bifurcação da estrada da dúvida, que insiste em se apresentar ao coração do rapaz.

    As planícies geladas cobertas de neve resgatam ao cenário uma sensação de extrema solidão, que remete ao estado de espírito de cada uma das partes da equação. Um isolamento que não é quebrado mesmo nos momentos de interação carnal entre o casal. A depressão evade a mente de Naoko, se alastra como uma doença contagiosa, tomando a alma dos que a querem bem, fazendo da estima própria de seu parceiro algo cada vez mais baixo.

    A trilha sonora muda de tom ao se aproximar da meia-hora final. Os tons ditados pelo conjunto de cordas prenunciam o destino trágico, fazendo até dos movimentos de câmera de Anh Hung Tran algo acessório, apenas. O choro derramado sob as pedras, que ilham o personagem principal, é resultado de toda a trajetória que ele fez, com a dramaticidade elevando-se a cada segundo de fita. O amor corre ao lado da calamidade.

    As lágrimas de Naoko e Toru insistem em aparecer, mesmo com a chuva lavando a face dos amedrontados românticos. A angústia é a sensação constante para Toru, que vê na impossibilidade de se aprofundar em uma relação com Midori um avatar para sua tristeza, ainda que o movimento final seja o de sinalizar uma possibilidade de mudança, em uma atitude de pouco alento. Como na canção dos Beatles, uma histórica romântica repleta de pesar, em que a culpa e o trauma norteiam o destino mostrado na película, sem chances claras de redenção para nenhuma das partes.

  • Crítica | Quero Matar Meu Chefe

    Crítica | Quero Matar Meu Chefe

    cartaz-quero-matar-meu-chefe

    A tônica do discurso de Nick Hendricks (Jason Bateman) reprisa-se na “fatalidade” dos outros dois protagonistas, cuja única diferença é na dor causada por seus “superiores”. O foco da edição modernosa, cuja narração muito acrescenta ao conteúdo, é uma ode ao desconforto, um conformismo moderado, mas incomodado com algo básico: os desmandos de seu chefe, o autoritário Steve Wibie (Kevin Spacey). A causa do infortúnio de Dale Arbus (Charlie Day) é sua consultora, uma dentista fogosa chamada Julia Harris, vivida por Jennifer Aniston, exalando sexualidade para o pobre rapaz que quer manter-se fiel ao seu compromisso. As agruras de Kurt Buckman (Jason Sudeikis) não são exatamente relacionadas ao seu chefe, mas ao filho mimado e megalomaníaco deste, Bobby Pellitt (um Colin Farrell fazendo o melhor papel de sua vida), que repentinamente torna-se o responsável pela empresa em razão da doença de seu pai.

    O trio de atraentes homens de meia-idade tem uma autêntica encruzilhada dramática: trabalhar em suas respectivas carreiras em ambientes hostis, cujas oportunidades de crescimento são escassas, não importando seu alto nível de comprometimento e esforço em realizar um bom trabalho.

    Apesar dos múltiplos repertórios e das diferenças de personalidade que incorrem a cada um deles, na essência, o mesmo destino catastrófico recai sobre a existência deles. Dos sacripantas que ordenam a miséria na vida dos funcionários exemplares. A escolha básica deveria ser entre manter suas dignidades intactas, saindo do serviço e da miséria financeira, mais calamitosa ainda em tempos de crise, o que inviabiliza qualquer chance de saírem de seus postos. A única alternativa é fugir completamente da norma padrão, contratando um assassino de aluguel para se desfazer do incômodo que os acomete.

    Claro que, em se tratando de três espécimes sem qualquer experiência, o simples ato de procurar alguém para fazer o trabalho sujo teria que ser aventuresco, repleto de situações nonsenses. Após fracassar algumas vezes em arranjar um assassino, o trio é orientado a verificar os hábitos de seus mandantes para eles mesmos cometerem homicídio, com a responsabilidade trocada de acordo com o vínculo empregatício dos homens. Todo o estratagema é uma desculpa para se inserirem na intimidade completamente louca dos excêntricos próceres.

    As referências farsescas a filmes clássicos são diversas, desde Pulp Fiction até a despretensiosa comédia Trovão Tropical. A histeria causada pela falta de traquejo de Nick, Dale e Kurt só não é mais engraçada que todo o entorno de Bobby Pellitt. Nenhum aspecto de sua desfaçatez é minimamente aceitável para uma pessoa adulta. Todo o conjunto de ações de Bobby revela uma personalidade machista e fajuta, caricata ao extremo, tão ignóbil que ele se torna extremamente engraçado.

    O carisma dos “vilões”, tal como a completa falta de confiança que Harken sente de si mesmo e da esposa, faz de Quero Matar Meu Chefe um filme diferenciado. A experiência de Seth Gordon em comandar comédias televisivas faz com que ele seja a escolha perfeita para fazer transitarem suas piadas em núcleos diferentes, dando o mesmo nível de importância para cada uma das causas. O carisma, roteiro e loucuras da trama fazem com que a obra seja muito superior às comédias que percorreram os cinemas em 2011.

  • Crítica | De Volta ao Jogo

    Crítica | De Volta ao Jogo

    De volta ao jogo - poster brasileiro

    Não é novidade que Keanu Reeves divide opiniões em relação a sua forma de atuação, bem como aos filmes que escolhe atuar. Desde sua participação na franquia Matrix, o ator passou a oscilar em papéis de maior ou menor expressividade dentro de Hollywood. Vimos Reeves participando de grandes produções, desde Constantine a filmes de baixo orçamento, como Sem Destino. Certo é que o recluso ator tem voltado a aparecer cada vez mais no circuito comercial, a começar pelo exagerado filme de fantasia samurai 47 Ronins e agora com De Volta ao Jogo.

    O filme conta a história do personagem que intitula originalmente o filme, John Wick, um assassino de aluguel que se aposentou do mundo do crime pra viver uma vida pacata ao lado de sua esposa. Uma vida perfeita até que uma doença levou a vida de sua mulher. Como último presente em vida, ela lhe presenteou com um pequeno cachorro e uma mensagem carinhosa para que John não desistisse.

    O destino de John muda completamente quando um capanga da máfia russa resolve invadir sua casa, espancá-lo, matar seu cachorro e, por fim, roubar seu Boss Mustang 1969. Por esse motivo, John retorna ao seu eu do passado para se vingar dos agressores da memória de sua esposa.

    A sinopse aparenta ser boba, talvez um pouco ingênua, mas a simplicidade do plot não faz jus ao filme em si. O roteiro simples e direto não diminui a execução soberba e as excelentes cenas de ação que são apresentadas durante a obra. Chad Stahelski, dublê responsável por cobrir Brandon Lee no clássico O Corvo, apresenta um trabalho impecável, refletindo sua longa carreira no cinema. Em De Volta ao Jogo, os movimentos de câmera frenéticos e cortes rápidos que acompanham lutas – técnica muito utilizada com o intuito de conceder dinamicidade às cenas ao mesmo tempo que facilita a filmagem da ação propriamente dita – dão lugar a uma filmagem precisa, calma, que explora cada momento das cenas de ação, extremamente bem elaboradas e coreografadas.

    De Volta ao Jogo empolga. E não só empolga como diverte. O envolvimento da trama e das situações absurdas em que John é posto – bem como em todas as situações do filme que giram em torno da fama que o personagem tem entre os assassinos no submundo – gera momentos hilários. Humor involuntário, porém natural, que cativa o espectador a embarcar com mais naturalidade na vendeta de John Wick e observar as centenas de mortes que seguem dali em diante.

    Michael Nyqvist também merece o devido destaque por sua participação, bem como Willem Dafoe, e até Ian McShane em um papel mais singelo. Porém, os holofotes mais uma vez estão mirando em Keanu Reeves, o qual incorpora com naturalidade a personalidade obscura e contida de John Wick. Gostando ou não de Reeves, ele tem nossa atenção.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Crítica | Amor, Plástico e Barulho

    Crítica | Amor, Plástico e Barulho

    Amor, Plastico e Barulho 1

    O nome extenso e composto esconde uma intenção pseudo-simplista da diretora Renata Pinheiro. Amor, Plástico e Barulho brinca com os elemento do ritmo tecnobrega, cada vez mais popular no Brasil, que ganha as ruas a partir do Norte/Nordeste para contar uma história de vaidade e narcisismo, mostrando uma jornada de intensa competição e rivalidade feminista, duas trajetórias, duas mulheres, que dividem os mesmos amores.

    A trilha que mistura ritmos populares no estado de Pernambuco, resgata elementos do forró, misturando com a batida groove, produzindo um cenário ideal para a prática bulímica que ocorrerá em tela, que já no primeiro momento, discute a glamourização das moças de família, que se escondem atrás de saltos agulhas e maquiagens fortes, capazes de embelezá-las e sexualizá-las, mas não de esconder suas carências e necessidades básicas.

    A arte musical é a oportunidade de avanço e apogeu econômico, possivelmente o único modo de “sair da lama”, primeiro para a protagonista mais vivida, Jaqueline Carvalho, interpretada pela premiada Maeve Jinkings. A personagem é dançarina e vocalista principal da banda Amor com Veneno, cujas letras melosas engodam o coração de homens e mulheres de origem humilde, cuja exploração do corpo e do sexo é uma das poucas formas de livre expressão.

    O protagonismo do filme é divido com a personagem Michelle “Shelly” (Nash Laila), outra das dançarinas da Amor com Veneno, que guarda um sonho de poder cantar dentro dos shows da Amor com Veneno. Por trás das palavras cafonas e imagens de gosto duvidoso, esconde-se uma enorme vontade de ascensão social também da parte de Shelly. Entre os detalhes nas partes erógenas de suas personagens, o progresso sofre uma amálgama com a sensualidade, reforçando a formula comum ao homem simplório.

    A duplicidades de personagens heroicos femininos tenta combater o pensamento misógino em meio a um mundo comandado por homens poderosos, usando o showbizz brega como a representação do mundo externo, mas sem livrar suas personagens de viver tentações e traições. Cor, dança, figurinos escalafobéticos, contribuem para o verniz da banda retratada, cuja nitidez de imagem contrasta com o aspecto embaçado dos comerciais do governo, com os poderosos distante da realidade enquanto o “comum” é próximo do público consumidor.

    Os períodos do dia servem de elemento narrativo, explanando a miséria econômica e sentimental das duas rivais, mostrando que o mundo e dramas de ambas é compartilhado. Pela manhã há a contemplação do ócio, enquanto a noite explora-se e “degradação do corpo”, claro, factoide este destacado pelos olhares do espectador mais identificado com o moralismo.

    Os diálogos naturalistas presentes no roteiro de Pinheiro e de Sérgio Oliveira destacam que o “brega” dá voz a multiplicidade de interpretações das relações humanas. A utilização indiscriminada do gênero musical não exige do público qualquer conhecimento ou apreço pelo ritmo, uma vez que o fato é irrelevante, servindo apenas como pano de fundo, como era o Jazz para Whiplash e o Balé para Cisne Negro.

    Impedida de enfim estrear como cantora, Shelly exibe uma tristeza que predomina entre os elementos visuais. Mesmo estando maquiada, bela e pronta para a ação da noite, ela é incapaz de demonstrar qualquer reação positiva, sofrendo medo de ser enfim rejeitada pelo público e empresariado. Ao enxergar a decadência de sua antiga rival, impera o sentimento de obsolescência, que por sua vez trava um duelo com a insignificância e invisibilidade entre as gerações. O medo maior é o perigo de ser ordinário, de não alcançar a notoriedade buscada por todo o decorrer do filme.

    A resignação de quem percebeu dedicar seus dias a um ofício fútil, que ignorava até os entes queridos faz enfim Jaqueline cair em si, retornando a casa de seus familiares. Os aspectos simples como purpurina, plumas, neon e a batida prosseguem no ideário de Shelly, que ainda não aceitou a derrota, mesmo com a rejeição do público e decadência de sua contraparte. Renata Pinheiro traz uma história realista, que flerta com a fantasia e o torpor da fama, deixando a sina do insucesso acometer seus personagens, elevando as estatísticas ao patamar de protagonista.

  • Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    De Gosto de Sangue a Inside Llewyn Davis, uma análise geral e não-datada sobre as diretrizes da obra de Joel e Ethan Coen. Da parceria primordial com Sam Raimi a dois lugares cativos nas expectativas de crítica e público, feito mais que raro, senão raríssimo. Suas obras são trabalhadas com mãos de pelica juntamente a todas as possibilidades do cinema, em seu estado humilde, para apostar em temas ricos, intentando criar algo inédito, como que com o ímpeto de um fracassado que aposta tudo na única chance de sua vida.

    A moral e a força dessas obras vêm em forma de lenta infiltração atrás da parede da sala, apesar da rápida duração, geralmente, das mesmas. Em um punhado de entrevistas dedicadas a dissecar o que está por trás dos estímulos da filmografia vigente, os cineastas não cedem a surtos didáticos sobre seu caminho no cinema, carregado de marcos em dobro.

    O Homem que Não Estava Lá(2001)

    O expressionismo alemão que não se mostra herdeiro das consequências do passado, mas de uma irrevogável essência dúbia e ambígua da composição do mundo surreal desses realizadores, corajosos por experimentar de tudo, um pouco; formados na fórmula de como se sustentar na corda bamba da criatividade. As sombras do interior de um homem expostas nas calçadas no contra plongée de um enquadramento, na possibilidade do filme ser mudo, sem carência de pantomima, na caricatura de uma história contida, prestes a explodir a qualquer segundo como um dínamo desconfiado. Até onde pode se estender a luz nas sombras do mero ser, quiçá os domínios da técnica numa produção com coração e possibilidade de submersão, além do visual. O Homem Que Não Estava Lá é um convite para o espectador ter a responsabilidade de sentir a história separadamente ao belíssimo arranjo e aquisição do fotógrafo Roger Deakins, o oposto do que as produções bilionárias de Hollywood tentam evocar. É como se os irmãos, através de cada frame e close facial do ator Billy Bob Thornton, levassem o público pelas mãos por um campo já arado, esperando uma semeadura de consciência para algo poder ser colhido dali. É claro que o potencial poético do filme não é de todo renegado, mas desde que a estrutura dialoga em primeira e terceira pessoa, o que é unilateral nos filmes de Joel e Ethan não tem vez.

    O Amor Custa Caro (2003)

    Crises existenciais sempre foram inerentes aos Coen, e aqui, em plena era da infinitamente atrasada igualdade entre os sexos, eles homogeneízam em uma inusitada paleta de cores quentes o que há de bom e ruim no interior humano, na fronteira entre o distinguível e as miragens da neblina moral, no caso, existencial. A ênfase às contradições, revogáveis vistas do lado de fora, da natureza do homem e da mulher são colocadas no microscópio conhecido por Cinema, imagens e sons novamente sob o prisma da interpretação variável. A começar por ser boêmio e não menos que simbólico, há alguns “novamentes” aqui, seja a repetida parceria com Thornton e Clooney ou o raro esforço por não serem tão óbvios no tratamento de um contexto pré-montado, há mais no sorriso de George Clooney e no vermelho de Catherine Zeta-Jones do que sonha nossa vã filosofia. Como nós aceitamos ser guiados por dois seres desprezíveis é cortesia nossa, só nossa, nascida do simples ímpeto de se envolver com uma boa história, humilde sem demais alegorias no fluxo de ideias velhas bem retocadas, num cenário de roupagens e vocabulários requentados; poucos podem ser culpados por tentar a nobre arte da revitalização clássica.

    Matadores de Velhinha (2004)

    O humor universal é o que há de mais caro no gênero. Tudo se assemelha em âmbito cultural e de repente a satisfação se esvai em prol da sede pelo original. Quase não há espaço para a inovação nessa questão, a menos que essa seja obtida por legítimos punhos de aço; um empurrãozinho da sorte, aliás, não faz mal a ninguém. Só nos resta ser o gato à margem da ponte, na cena derradeira de Matadores de Velhinha, filme que se recusa a ir ou a voltar no espaço-tempo: Vaga nesta filmografia como um espectro do que ficou na vontade, e do que os Coen poderiam ter sido na pior instância. O maior risco intelectual dos Coen se concretizou em escorregão, convertido aqui em plena irresponsabilidade no material final: É lugar comum, é a espreguiçada que se dá ao acordar no domingo de manhã. Equívoco que todo cineasta merece e faz bem de cometer para se mostrar hábil o bastante de espantar o pó e seguir de cabeça erguida adiante.

    Onde os Fracos Não Têm Vez (2007)

    E seguiram. Quando um(a) artista, no sentido amplo do termo, chega no auge do exercício almejado com unhas e dentes, ele(a) retorna talvez injustamente ao ponto de partida, pois sente que foi naquele ponto onde sua autenticidade falou mais alto, gritou e berrou ao mundo. Onde os Fracos Não Têm Vez é uma constatação rara que não tem espaço para nada mais do que a maturidade absoluta no ofício do realizador, este que arrisca toda a reputação até aqui conquistada para fazer o que é preciso dentro e fora da conjetura que se equilibra para não arredar o pé, com ou sem esforço. Tipo de peça que toda filmografia deve ter, é o currículo dos Coen falando lado a lado com a história árida e que casa mais que perfeitamente com os fundamentos dos irmãos, na hora certa e com o material certo. Estimulante a qualquer profissional da área, nota-se que, através dos paradoxos psicológicos e do desenvolvimento harmonioso do mosaico de sensações a ser desembrulhado, conforme a projeção se encarrega do próprio desfecho, a adaptação de McCarthy é a mais notável evolução moral desta dupla de mentes. Sua maior proeza extraestrutural é ser denso enquanto flexível, aberto a todo o tipo de interpretação a quem acompanha o cão (Tommy Lee Jones) perseguir o gato (Javier Bardem), que persegue o rato (Josh Brolin) e rata (Kelly Macdonald). De câmera intimista num mundo desesperado por lógica, intenções se desenham em terreno abstrato diante dos olhos; um manifesto imprevisível e amargo contra a violência e a favor do que pode ser ridículo nela. Os irmãos aqui assumem a figura de dois palhaços tristes que sempre nos fizeram rir com signos derivados de tiros a queima roupa e sangue sobre carne, se posicionando desta vez na lateral oposta do mesmo, sem máscaras ou maquiagem, acerca de uma modernidade ainda deficiente de humanidade. Se eles não conseguiram ser pretensiosos aqui na abordagem, por mais ativa que seja, eles certamente não mais poderão ser, pois sem o habitual humor negro, qualquer um morreria sufocado assistindo Onde os Fracos Não Têm Vez.

    Queime Depois de Ler (2008)

    Do veterano roteirista Marshall Brickman: “A mensagem do filme não pode estar no diálogo”, e para quem não tem ideia de onde mais poderia estar, os filmes desses instáveis irmãos chegam a ser uma boa resposta. Infelizmente, sendo uma resposta reflexiva para alguns, fato é que Queime Depois de Ler, dotado de um elenco estelar, faz parte do que já pode ser analisado como a segunda fase dos Coen: A fase que eles não precisam mais provar nada a ninguém, quando o motor do carro para de ranger após subir a colina e chegar ao topo do planalto. É possível descansar nessa hora, esticar as pernas e deixar rolar tudo o que o desejo assim apontar. Instáveis, porém incansáveis, o céu não é o limite para quem anda com a cabeça nas nuvens, e à medida que a câmera desce na abertura do décimo quarto filme da dupla rumo ao foco no teto de uma instalação governamental em Washington, Estados Unidos, é como se o tempo tivesse parado e aquelas comédias, dos tempos de Arizona Nunca Mais, nunca tivessem saído do lugar para alçar voos mais altos. Premissa claramente iniciada do zero, um filme interessante de corroer as bases, morder os princípios ao longo da projeção, por lá estar contido um punhado de estruturas submersas, à tona aos poucos: Um strip-tease ofertado pelas toneladas de relações humanas trágicas apresentadas, terrivelmente familiares para muitos de nós, e em constante impacto quase cármico. Um círculo social de diálogos subversivos vindos de condições, apenas e, sobretudo, masoquistas por excelência. A obra é o picolé de limão mais ácido no dia de verão mais quente, conquistando quem vive a vida real e acha graça nos imprevistos irresistíveis e contínuos. Como Cartola já cantou: “Rir, pra não chorar”. É a vida.

    Um Homem Sério (2009)

    Uma rara metalinguagem não-admitida. Por mais abstratas que sejam suas cognições, Um Homem Sério é um antifilme onde os Coen brincam de ser Deus e se fazem ilegíveis, portanto. O excesso de subjetividade é totalmente proposital, e entre fenômenos naturais improváveis e a lógica matemática que também não chega a lugar nenhum, os irmãos assumem a ironia de o cineasta ser capaz de criar seus mundos, mantê-los e destruí-los quando e como bem quiser, seja através de um divórcio ou de um furacão geológico. Indo além do masoquismo e sendo tão imparcial quanto as constelações nos são, Um Homem Sério não parte mais do pressuposto artístico de investigar os mistérios da vida, mas passa a aceitá-los sem a pretensão de entendê-los, como sugere um personagem em devido momento quando a força do que vem a ser dispensável pontua qualquer julgamento, cético ou não, agnóstico ou não, quanto a confusão que é provável de se formar da abrangência da produção em relação ao tudo e ao nada. Os rostos interrogatórios de todas as figuras no filme promovem signos indecifráveis, embora para com a dupla de cineastas, sempre serenos e donos das verdades que não aceitam compartilhar, no caso, os rabinos desta história que olha para si mesmo e rejeita um final, pois é um retrato do ciclo da vida que só termina quando a montagem exibe os créditos finais e tudo fica escuro, na técnica do fade out. Filosófico sem levantar bandeiras, e bem sucedido enquanto amplo em torno de embalagens melancólicas, como projetos cinematográficos no início foram idealizados a ser, aqui os Coen riem baixinho da vida com as mãos na frente da boca, após gargalharem do caos existencial em Queime Depois de Ler. Logo, a filmografia desses irmãos tem humor negro próprio, caso seja procurado um sentido para cada filme existir.

    Bravura Indômita (2010)

    Silenciar as impressões dos Coen quanto a um gênero não funciona com eles. É tentador imaginar os irmãos na premissa de um terror a seus moldes, assim como era um western visto a temperatura e o fluxo de calor que suas produções são submetidas, de vez em quando, na direção que o gênero imortalizado por LeoneFord e Hawks era inevitável, em uma visão senão mais próxima de Sam Peckinpah, é verdade, se esse fosse adepto de Proust. Se de estereótipos se faz o gênero, os irmãos se aproveitam disso e mostram a jornada da vida através de quem vai, e só não ignora o cenário devido à beleza das pradarias e do céu do meio-oeste dos Estados Unidos captados pela câmera de Roger Deakins, mais uma vez na sua melhor parceria com a dupla criadora. Metáfora sobre a coragem do “fazer humano” reflexiva e caricatural em suas causas, e seus efeitos. O rosto deformado de Jeff Bridges, a bravura cega da jovem figura de Hailee Steinfeld e, principalmente, a ineficiência do personagem de Matt Damon apontam para o fim de um jeito seco, sem conclusões, aqui substituídas pela, artisticamente falando, analogia moral de se realizar a arte que reúne as outras, o cinema, da concepção notória do movimento com ou sem final feliz, tanto faz, na ubiquidade do invólucro narrativo aqui presente até a última cena. Toda a beleza fotografada indica qual beleza? Uma beleza que não se pode ver, apenas ouvida, quiçá pela força dos diálogos, os olhares que dizem tanto? Daí a principal indagação, de dentro pra fora, no frescor da nobre odisseia para prender um bandido. De uma mera vaidade surge a obra mais sábia e onisciente de seu poder de persuadir o espectador desde Onde os Fracos Não Têm Vez, a partir do momento que retira a bravura do título da humildade com que tudo nos é configurado, sem pressa na familiar esquematização cênica dos irmãos que quase nos permite ver seus filmes com nossas avós ao lado, numa dramatização econômica e cirurgicamente precisa, não mais que satisfatória; uma máquina que chega com o manual necessário, porém, obviamente, escrito em uma língua que só as emoções sabem falar. No dia mais escuro, quando os Coen se tornarem objetivos em suas razões então deturpadas, nada mais poderá fazer sentido.

    Inside Llewyn Davis: A Balada de um Homem Comum (2013)

    O folk de Joan BaezDave Van Rock e Bob Dylan é o ritmo que melhor casa com o ritmo dos Coen, se tornando irresistível de representar; o frenesi de discos como The Folkways Years e Highway 61 Revisited exemplificam perfeitamente a semelhança ideológica nas intenções conjuradas em mensagens sociais (e atemporais, como as do folk), oriundas da desconexão com o que e quem essas mensagens pretendem tocar. O músico Llewyn Davis de decadente e ascendente social não tem nada, é apenas um nômade feito com pernas incansáveis, junto a seus sapatos surrados, violão e cabelos despenteados, a materialização do espírito musical em pauta, de uma geração e de um artista. No primeiro musical convencional dirigido em dobro pelos Coen, a predominância do tempo presente é mais uma vez redigida com gosto, uma espécie de limpeza de alma, do poder que a música empresta ao cinema quando esse se habilita em aperfeiçoar melodia com o audiovisual sem perder fatores de fidelidade. Retratar o som em nome da expressão não verbal que A Balada de um Homem Comum termina por ser é tarefa árdua, que aqui parece ser das mais simples, tímida, mas masoquista até a medula. O foco dos diretores continua sendo a potencialidade do que é retratado, num processo de destilação vertiginosa no conteúdo da história, um descobrimento leve do que pode vir a ser – sempre no tempo presente já mencionado – e um polimento do interesse bruto do público. Os Coen aqui assumem que suas zonas de conforto são amplas e seus domínios, largos, e há ainda muito a que se agarrar e discursar em prol daquela visão 360° que eles têm sobre seu terreno, e nos querem fazer ter também.

  • Crítica | Antes de Dormir

    Crítica | Antes de Dormir

    O primeiro corte de cena em Antes de Dormir remete à vermelhidão dos olhos de sua personagem principal, Christine Lucas, vivida por Nicole Kidman, uma mulher de meia-idade que sofre um mal raro, causado por um golpe acidental na cabeça. Sua memória é muito curta, dura apenas os momentos em que está acordada de dia, o que a faz duvidar de sua condição de esposa.

    Seu par, Ben Lucas – Colin Firth – é um marido devotado, que tenta a todo custo reconstruir o que deveria restar da combalida psiquê de Christine, ajudando-a a anotar fatos importantes de sua vida em um diário, reunindo em escrito o que deveria ser importante para sua vida. Nesse ínterim, Christine, que acabou de saber de sua condição, recebe o telefonema do Doutor Nash (Mark Strong), que tenta ajudá-la a se reabilitar, montando com ela um banco de memórias através de vídeos, mas sem o conhecimento do seu marido, que já num primeiro momento parece ser uma ameaça ou certa possibilidade de reter alguma lembrança.

    Rowan Joffe tem em sua filmografia uma variedade de filmes de temática ansiosa, desde o thriller de ação Extermínio 2, ao filme de espionagem O Homem Misterioso. Tal experiência tem a função de produzir os momentos de tensão máxima, elementos chave para atiçar no espectador a curiosidade para os dramas exibidos em tela. O que salta aos olhos é a vertente da ambiguidade, presente em praticamente todas as conclusões que são tiradas a partir da investigação minuciosa de uma personagem que não consegue lembrar o que fez na noite anterior.

    A repulsa ao sexo presente no comportamento de Christine é um dos indícios de que sua mente combalida realiza na tentativa de consertar seu defeito primordial, um modo de tentar não repetir as derrotas para seus agressores. A opressão faz reprimir mais que suas lembranças, mas também sua feminilidade e instinto materno, nunca inteiramente satisfeito, até o final.

    O embate físico a que a protagonista se submete é acompanhado da mais importante de suas gravações, fruto da libertação que a realidade lhe traz, ao poder abraçar a verdade que deveria regê-la de uma vez por todas. O dia seguinte ao combate começa em um hospital, onde os seus desejos finalmente têm um fim ideal, aparando as arestas que se puseram ante a existência da mulher e mãe que Nicole Kidman vive. O final, resolvido de modo agradável, destoa um bocado do resto da fita, fechando a curva descendente e óbvia do que poderia ter sido uma história bem mais transgressora. Mas seu fim não é uma decepção completa exatamente por entregar um fim de jornada justo para uma personagem que labutou o tempo inteiro.

  • Crítica | O Filho do Batman

    Crítica | O Filho do Batman

    O Filho Do Batman 1

    Iniciando-se nas instalações de Ra’s Al Ghul, a animação O Filho do Batman começa com uma invasão ocidental, com soldados armados massacrando os ninjas da Liga das Sombras, cujo contra-ataque começa por esforços isolados de Talia, filha do soberano e mãe do pequeno prodígio Damian. As profecias em torno do jovem eram muitas, sempre associadas a um legado sanguinário e massacrante, como nas primeiras cenas de ação.

    Logo a origem da investida é mostrada como fruto de uma vingança impingida por Slade Wilson – ou Exterminador – que busca o revanchismo pela expulsão do clã de guerreiros, decidida pessoalmente por seu antigo mestre, que sucumbe ante a sua espada. Diante da morte do Cabeça de Demônio, a voluptuosa mãe resolve levar seu filho ao único destino onde ele estaria seguro: Gotham City.

    O resgate ao arco de Grant Morrison, Batman e Filho, contém inúmeras liberdades criativas, tantas que quase não é possível identificar uma releitura tão fiel, exceto pela premissa de resgatar o filho perdido de Batman e da filha do Demônio, pensada pelo escocês. Como nas revistas, Talia deixa o rebento com o Morcego para que o menino fique longe de problemas, mas não distante dos incômodos provenientes da pouca idade. As travessuras dão lugar a um instinto assassino e a uma voracidade causados pela ausência de uma figura materna e pela persuasão dos assassinos com quem cresceu.

    Sem se prolongar muito, o roteiro trata de fazer o menino começar a agir contra o submundo de Gotham, onde encontra Asa Noturna, antigo pupilo de seu pai. Depois de lutar ferozmente com o antigo Robin, o menino reclama para si o capuz de garoto prodígio, e após uma acurada pesquisa de campo, com seu pai e Dick Grayson, Damian descobre o possível paradeiro de sua mãe, que é mantida refém pelo traidor da Liga das Sombras.

    Ao suprimir grande parte dos eventos mostrados nas sagas de Morrison, o roteiro acaba por perder um bocado do sentido, constituindo, em si, eventos, ocorridos um atrás do outro, sem muita significância, simplificando a história, mas também tornando-a menos atraente, especialmente para o espectador atento ao cânone dos quadrinhos. A versão filmada é como alternativa, no estilo dos Novos 52, aos fatos ocorridos antes do reboot da editora.

    Apesar da animação conter um escopo de violência poucas vezes visto em adaptações de super-heróis, ainda falta conteúdo. Os cortes feitos na história não alteraram a lógica de entendimento, mas sim um bocado do espírito presente nas tramas que introduziam Damian no universo do Morcego. Qualquer menção aos escritos de Morrison não passam de inspiração, quando muito. O Filho do Batman é semelhante às animações pós-reboot do Universo Animado da DC que substituem figuras chave e exclusivas por personagens mais famosos, sem tomar o cuidado básico de não descaracterizar a história, fato que infelizmente ocorre nesta animação.

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  • Crítica | Foxcatcher: Uma História Que Chocou o Mundo

    Crítica | Foxcatcher: Uma História Que Chocou o Mundo

    Foxcatcher 1

    O piano que predomina na trilha remete a uma singeleza espiritual bastante diferente dos golpes presentes nos membros superiores e inferiores dos personagens de Foxcatcher, nova aventura de Bennet Miller na direção. A história, baseada em eventos reais, começa exibindo a rotina de Mark Shultz, interpretado por Channing Tatum, claramente afetado pelas condições que envolvem o proceder das lutas, com o pensamento e modo de caminhar afetados pelos materiais comuns aos lutadores profissionais, e abalado emocionalmente pela ausência de seu irmão, Dave (Mark Ruffalo). A presença do caçula, em um discurso em uma escola primária, já prenuncia a tragédia que ocorrerá na família, sem necessidade de sinopse ou qualquer aviso prévio.

    Mark e Dave trabalham arduamente em um ginásio, onde as posições distintas de ambos são exibidas, mais uma vez reforçadas pelos belos ângulos em que a câmera se insere, fazendo com que cada golpe proferido e esquivado tenha texturas e significados diferentes entre si. Cada movimento exprime sentimentos, vontades e sensações diferentes, agravadas pelas diferenças entre o sonho olímpico de Mark e os rumos profissionais que Dave pensa para a dupla.

    Como se fosse um evento do destino, o cotidiano de Mark é interrompido pela ligação de um homem rico e famoso: John Du Pont, interpretado por um modificado Steve Carrell, quase irreconhecível pela maquiagem que o faz parecer um brutamontes. Seu comportamento envolve alguns métodos simples, mas com uma ambição sem igual. Sua fama e ostentação material seriam frutos de um passado de investimento explorando o espetáculo das lutas pagas. Cada palavra que sai de sua boca mantém um conteúdo de motivação e inspiração, traçando paralelos entre o wrestling e as guerras travadas pelos americanos, tendo em comum a supervalorização da honra, o que claramente seduz Mark e o faz tentar conversar com seu irmão.

    A recusa da proposta causa um racha entre os irmãos, com o caçula acreditando ser o comodismo o principal fator da estabilidade, mas eles encerram as discussões em paz, cada um seguindo o seu rumo. O modo curioso como os lutadores se movimentam lembra um comportamento primário, repleto de selvageria, quase animalesco, como se seres irracionais tentassem com todo esforço possível se adequar ao mundo civilizado, invertendo o paradigma, por exemplo, de histórias como O Planeta dos Macacos.

    Aos olhos de Du Pont, o alvo prioritário era o irmão mais velho, que, preso a sua família, demonstra-se pouco seduzido pelas propostas do aposentado homem rico. As conversas, travadas entre os personagens, são quase sempre executadas sem música, em um silêncio que inquieta o espectador, maximizando a sensação incômoda ao exibir o amor de Du Pont por armas raras. Seu comportamento, passivo agressivo com os que deveriam ser seus pupilos, faz perguntar a todo momento quando será o momento em que ele explodirá, como um barril repleto de pólvora, com um furo que permite um lastro prestes a explodir e desgraçar tudo a sua volta, sob o risco de ocorrer uma fatalidade ao sinal de qualquer mínima faísca.

    Entre financiador e empregado nasce uma relação diferente, de interdependência, incluindo treinamentos físicos e um compartilhar sentimental que engloba segredos e vícios químicos, mesmo os que são tratados pelos esportistas como pecados globais. O salário desses atos logo é cobrado, com uma derrocada de seus desempenhos atléticos, e uma entrada superficial no ambiente depressivo, que faz com que seu novo mentor o deprecie, movendo seu antigo tutor para perto de si novamente. Logo, Du Pont e Dave se veem frente a frente disputando a atenção de Mark, claro, com o irmão mais próximo do protagonista, que retribui ao magnata um pouco da rejeição sofrida anteriormente.

    A preparação física do lutador é semelhante à carreira odisseica de Ulisses, pautada na superação física e mental e repleta de reveses, fazendo com que as vitórias sejam ainda mais valorizadas. O trio de personagens focados pela lente mostra indivíduos com limitações físicas e espirituais, todas contidas em tudo o que representa o grupo Foxcatcher. A entidade é claramente posta acima do fraquejar humano, perfeita, sem possibilidade de nuances humanas, o que faz dificultar ainda mais a já atribulada relação entre John e Mark, que se deteriora cada vez mais no decorrer da fita.

    As desavenças têm suas resoluções baseadas na simplicidade, sendo possivelmente resolvidas caso o estado mental dos que brigaram estivesse em perfeitas condições. O que sobra no certame é a vaidade, e a principal vítima do arbítrio gratuito, a ponta do “triângulo amoroso”, que se mostrava a mais compreensiva, paciente e condescendente.

    O tom dourado da medalha de Mark não esconde a sensação de tristeza absoluta e amargura proveniente das perdas. O andar de cabeça baixa finalmente justifica-se, possivelmente pela vergonha e culpa que sente por agir tardiamente.

    Foxcatcher é um relato sensível que confunde a ordem de seus fatores, oras sendo mais um relato de uma versão, para, em outro momento, ser uma cinebiografia realista, que resgata o sentimental de seu objeto de análise. Semelhante ao vencedor do prêmio acadêmico Capote, a obra tem o agravar de serem três os espécimes analisados pela câmera de Miller, todos igualmente interessantes e bem interpretados, vivendo em uma atmosfera crível e bastante emotiva.

  • Crítica | Antes de Dormir

    Crítica | Antes de Dormir

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    A memória faz parte da composição de nossa identidade. É sua função organizar e registrar os acontecimentos vividos e, mesmo que de maneira transformadora, produzir uma linha narrativa de nossa própria história. A ausência da lembrança, seja crônica ou como um sintoma passageiro, é um tema recorrente em produções cinematográficas, tanto como enfoque central, visto em Amnésia, de Christopher Nolan, quanto usado como elemento para encorpar um roteiro, casos de Como se Fosse a Primeira Vez e Como Não Esquecer Essa Garota, romances cujos personagens possuem um curto espaço de lembrança memorial, gerando um viés bem-humorado.

    Adaptado da obra de S. J. Watson, relançado pela Editora Record devido ao lançamento do filme, Antes de Dormir reúne novamente Colin Firth e Nicole Kidman como casal, repetindo a parceria do drama Uma Longa Viagem. Kidman é Christine Lucas, uma mulher que sofreu um acidente traumático e que, todos os dias, acorda sem nenhuma lembrança de seu passado. Cada despertar de sua vida é uma reconstrução de seus próprios passos. Com a ajuda de um médico psiquiatra que recentemente acompanha seu caso, a personagem tenta restaurar pontos de sua vida. À medida que avança, surge a desconfiança natural do meio que a cerca.

    Se a confiança é uma construção mútua e naturalmente lenta, a condição da personagem depende da segurança que sente ao lado do marido, quem a atualiza diariamente sobre o casamento duradouro. Trata-se de uma fé cega diante de um homem aparentemente desconhecido, que não teria motivos para mentir para sua amada. À procura de exercícios que melhorem o quadro da paciente, o Dr. Nash (Mark Strong) aconselha Christine a fazer um diário filmado, mantendo-o escondido do marido, para lembrar-se do dia anterior. Este será o elemento de intriga que apresenta histórias que a personagem desconhece.

    Trata-se de uma produção em que tudo não é o que parece. Cada dia é como o primeiro de conquista e confiança, e a trama vai desafiando cada personagem e trazendo ao público a dúvida sobre a índole dessa pessoa. Durante a exibição, o público se representa pela personagem de Kidman tentando desafiar as intrigas e desfiar o fio da verdade, se é que há somente uma. A parcialidade narrativa promove uma maior intensidade do suspense. Como o público reconhece a base da história e se atrai por ela devido à curiosidade gerada, cada momento é visto com a expectativa de uma reviravolta. O quebra-cabeça mental será revelado até o final da trama e, mesmo que siga a cartilha de suspenses atuais, a dúvida é suficiente para que o enredo se sustente sem desembocar em exageros narrativos.

    Novamente permanece a impressão de que Nicole Kidman está tentando superar uma fase ruim de sua carreira. Porém, seu parceiro parece mais consciente de sua interpretação, e exterioriza melhor tanto o olhar cândido de um marido amoroso, como a fúria de um possível inimigo. A atriz reduz sua caracterização às naturais caras de pânico e medo que, em comparação com outros personagens de suspense/terror feitos por ela, como Grace, de Os Outros, permanece aquém em gestuais com leve exagero.

    O filme, que entrega ao público o suspense esperado, é uma destas produções tradicionais que se valem do talento de seus atores centrais. No entanto, no decorrer do ano, com diversos lançamentos semelhantes, pode não se destacar entre os melhores do gênero.

  • Crítica | Amor Obsessivo

    Crítica | Amor Obsessivo

    Mesmo reconhecendo que a linguagem escrita difere da cinematográfica, há aqueles que se incomodam quando sua obra predileta sofre modificações necessárias em uma adaptação. Um romance dentro de um filme é uma transposição impossível devido aos parâmetros estruturais que devem ser convertidos de maneira adequada, tudo para não perder a intenção original do autor e ser uma obra íntegra como longa-metragem.

    Baseado no romance Amor Sem Fim de Ian McEwan, Amor Obsessivo foi transposto de maneira parcial às telas. A bela linguagem formal do autor é naturalmente deixada de lado, visto que é impossível de ser inserida em um roteiro. Paralelamente a isso, a densidade dramática composta por situações simples, movidas pelo acaso e determinantes na vida de seus personagens, foi também esquecida no roteiro de Joe Penhall.

    Na trama, um acidente de balão em um parque em Londres é a situação-limite encontrada para expor o drama. Joe, um professor universitário, e outros presentes no local tentam prestar socorro às vítimas, mas são incapazes de impedir a fatalidade. É nesse momento delicado, compartilhado por estranhos, que surge Parry (Rhys Ifans), um dos socorristas que acaba se apaixonando pelo professor em um misto de amor e obsessão.

    Interpretada por Daniel Craig, a personagem de Joe foi bem reconstruída nas telas. No romance, a personagem narra a própria história enquanto a produção evita a narração em off e o transforma em um docente de uma universidade – originalmente, era um escritor científico –, um caminho correto para que, em cenas de aulas, a personagem apresente suas definições sobre o mundo, estabelecendo levemente parte do drama denso de McEwan.

    O dilema central situado na obsessão crescente de Parry perde a imparcialidade e se transforma em um drama com cenas de thriller de suspense. A força da obra original, que é a análise das relações e a fragilidade humana, é posta de lado para concentrar-se na obsessão, o tema mais banal da obra inicial.

    As mudanças são necessárias quando se trata de uma adaptação literária, mas, ao escolher somente um viés, dos diversos propostos pelo autor, a trama densa transforma-se em um fraco drama linear. Uma má execução que Christopher Hampton, roteirista de Desejo e Reparação, outro romance de McEwan, evitou: compôs um roteiro capaz de apresentar os dramas das personagem e a intenção fatalista que circunda a obra do autor. A reflexão que adensa as páginas do livro se transformou em um jogo de um homem solitário, obsessivo e doente, desintegrando a tensão das relações.

    Se comparações entre original e a adaptação enfraquecem argumentos, sempre favoráveis às obras originais, não há, com ou sem romance, profundidade suficiente que faça da produção uma história a ser recomendada. Explorando levemente o drama da obsessão, perdeu-se a profundidade original e não houve coragem suficiente que fizesse da obra uma trama de suspense. Funciona melhor como um complemento ao romance. Em outro caso, melhor optar pela obra original.

  • Crítica | O Predestinado

    Crítica | O Predestinado

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    Clamando pelos clássicos filmes de ação focados na vingança, com um visual que mistura elementos noir e aspectos visuais e estilísticos steampunk, O Predestinado começa violento, com uma câmera inquisitiva, investigando os meandros do modus operandi de um exímio assassino que teria feito um mal terrível por seus rivais. Baseado em um conto de Robert A. Heinlein, a fita desconstrói alguns dos recursos típicos dos filmes sci-fi.

    O ofício detetivesco é o aspecto policial mais evidente na rotina do personagem anônimo de Ethan Hawke, ferido gravemente por queimaduras, causadas logo no início da fita, marcas que deixaram seu rosto deformado, e seu espírito, ainda mais desejoso por um revés. Logo, o agente retorna ao passado, quando atuava como um competente agente de campo, munido de dons físicos e de um arsenal vasto que faziam dele o espécime perfeito para o tipo de trabalho que exercia.

    Trabalhando como bartender, o personagem principal encontra uma contadora de histórias vivida por Sarah Snook, que, no balcão de bar, movida pelo tédio, começa a remontar sua história, como uma órfã tradicionalmente rejeitada por figuras superiores e por aqueles que deveriam ser seus amigos. A aflição de sua alma, a instabilidade emocional, o pouco traquejo social, além da capacidade de observação bastante avançada fazem dela a escolha ideal para o ofício de agente governamental, servindo a uma filial que controla ações no espaço.

    Em comum com as histórias que conta, a personagem antes chamada Jane focaliza as rejeições amorosas que sofre, repetindo o paradigma exaustivamente, fato que a torna ainda mais vulnerável às propostas indecentes do braço podre do governo, o qual faz experiências com seu corpo, dando-lhe uma chance de sucesso quase nula. Ao se aproveitarem da moça partindo de sua principal característica, a carência, de certa forma até amenizam-se os desmandos que a “organização” faz com ela, quase justificando a mudança clínica – e pouco ética – pós-parto. A mudança clínica realizada a desfigurou tanto que uma mudança de identidade se fazia necessária, algo semelhante processo ocorreu com o funcionário do bar, no preâmbulo do filme.

    Logo, o destino dos dois personagens se mostra cruzado tempo demais antes do encontro casual, interligado por uma questão que flerta com teorias da conspiração, sociedades secretas e clichês de ficção científica, mas apresentados de modo hermético e muito natural. As mudanças feitas no espaço-tempo fazem lembrar belas referências a filmes laureados, os recursos narrativos presentes em 12 Macacos, claro, com um significado bastante diferente, catastrófico em essência.

    O conceito de predestinação é corrompido, mostrado nos últimos momentos como algo literalmente arquitetado, e não como um talento natural. Cada gama desse destino construído é explicado de um modo esmiuçado, mas não exageradamente didático. A rede de acontecimentos faz com que a linha temporal se assemelhe a uma intrincada rede de eventos que devem ser seguidos, ou ao menos algo a se buscar, mesmo a custo da sanidade daqueles que viajam por tais vias.

    A ética e responsabilidade de quem tem acesso a informação são questões levemente discutidas pelo encontro do protagonista com o Detonador Sussurrante, que, além de escancarar um fato que era prenunciado há tempos, exibe outro paradoxo, no qual consiste em mais chamar atenção por sua moralidade do que pelo fato de reprisar as questões de enfrentamento das contrapartes.

    A questão fundamental da inexorabilidade da existência é mantida, mesmo com tantas idas e vindas no espaço-tempo, acrescentando um viés bastante filosófico ao competente filme de Michael e Peter Spierig, que conseguem reunir ação frenética a um roteiro cativante. Apesar da fórmula redundante em si e dos furos, não cansa, até por seu caráter de absoluta despretensão.

  • Crítica | As Duas Faces de Janeiro

    Crítica | As Duas Faces de Janeiro

    As Duas Faces de Janeiro 1

    Em sua primeira aventura solo como diretor de longas-metragens, Hossein Amini pretende construir uma história em que os participantes têm fortes pecados morais, restando quase nenhuma opção para o público torcer. No passado de Amini como roteirista, incluem-se filmes como Drive, 47 Ronins e Branca de Neve e o Caçador. Essa miscelânea que compreende sua filmografia ajuda a traçar o esboço do que seria seu As Duas Faces de Janeiro, que trata da criminalidade – vista no filme com Gosling –, assim como mostra-se o intuito comercial – presente no filme com Reeves – e a desconstrução de mitos do conto de fadas repaginado, ao adaptar o livro homônimo de Patrícia Highsmith.

    O tripé de personagens centrais envolve o casal de americanos Chester MacFarland (Viggo Mortensen) e Colette MacFarland (Kirsten Dunst), os quais viajam pela Grécia em um encontro romântico. A diversão que os acomete é interrompida pela presença de Rydal (Oscar Isaac), um guia turístico bastante carismático, mas que esconde em seu sorriso e no verniz social um comportamento de vigarice, se aproveitando freneticamente dos viajantes carentes, e vendo no casal MacFarland, uma boa possibilidade de golpe quase certo, dada a ingenuidade dos dois.

    Ao visitar a dupla, Rydal acaba se deparando com um evento entrópico, com Chester saindo de seu quarto com um cadáver, tentando enganar a ele e a qualquer outra pessoa que viu a cena, fingindo estar cuidando de um amigo bêbado. Logo, o destino do casal e o do malandro se conectam, fazendo da união algo necessário, porém não muito agradável, fato consumado ao analisar as feições tensas de cada uma das partes.

    A tarifa cobrada a Chester pelo segredo que guarda é demasiado alta. Seus níveis de tensão e ansiedade aumentam com o tempo, deixando sua psiquê frágil e seu comportamento errático. Devaneios provindos da insegurança o fazem desconfiar até de seu par, com o marido achando que sua cônjuge tem um caso com seu cúmplice. A ambiguidade da questão é levada por grande parte da fita, o que proporciona ao filme um clima de teoria da conspiração durante toda sua duração.

    Logo, a crise acomete o trio de viajantes, como em um Na Estrada, cuja bad trip é ainda mais exagerada e calcada na inconfiabilidade. Os papéis de fidelidade se invertem, visto que Colette não olha mais para seu marido com o mesmo respeito de antes; em seu lugar, entram questões básicas, como o questionamento da lealdade, que são tão fortes na argumentação que fariam até do possível adultério algo muito subalterno comparado ao crime cometido.

    Aos que restam, fica a necessidade de apoio mútuo. Em uma sociedade macabra, semelhante a da premissa do hitchcockiano Pacto Sinistro (outra obra de Highsmith), e emulando-se também a relação eufemisticamente abordada em um pacto de sangue presente em Festim Diabólico, a básica diferença que há neste, As Duas Faces de Janeiro, é que a credibilidade entre os criminosos é nula.

    A conclusão da trama é salientada por uma perseguição frenética, cujo suspense predomina no drama e nos personagens. Os dois homens, antes simpáticos um ao outro, chegam ao ponto de tornarem-se inimigos mortais, para, então, reatar o coleguismo, enxergando-se mutuamente como errados, mas ainda assim, iguais, análogos àquele universo errático, onde até a moral e ética são conceitos discutíveis. A entrega de Chester a Rydal exibe uma compreensão madura de que, mesmo ante a possibilidade de traição, o sentimento que deveria predominar era a cumplicidade, para o bem e para o mal.

  • Crítica | Perseguição Virtual

    Crítica | Perseguição Virtual

    Perseguição Virtual - poster

    A análise de uma obra deve ser feita conforme a perspectiva da proposta cinematográfica. Não se pode assistir a um blockbuster e exigir primariamente uma história profunda ou erudita. Muitas vezes, a fórmula como tais filmes são compostos não desenvolve base suficiente para isso. Dessa mesma maneira, uma obra mais profunda, de cunho autoral, pode distanciar-se de uma história convencional e ter um apelo menor ao grande público. Evidente que, dentre essas definições, surgem produções feitas propositalmente para serem engraçadas ou intencionalmente toscas. Uma visão que deve ser prevalecida na análise crítica.

    Ameaça Virtual reúne Elijah Wood – que participa igualmente de grandes produções e de obras menores, como se atuasse também por diversão, além de trabalho – e a ex-atriz pornô Sasha Grey representando, desejando ou não, mais uma vez a mulher fetiche, a fim de atrair marmanjos para assisti-la. Filmado inteiramente por webcams, o conceito da produção é exagerado propositadamente.

    Wood é Nick Chambers, administrador de um site dedicado exclusivamente à atriz Jill Godard (Grey). Vencedor de um concurso para jantar com a estrela, Chambers fica decepcionado ao descobrir que a promoção era falsa e, com a ajuda de um misterioso hacker, se transforma em pivô de uma teia virtual que deseja conspirar contra a atriz.

    A trama é absurda. A princípio, pelos exagerados recursos tecnológicos fornecidos pelo hacker anônimo: o fanático observa a musa por câmeras de vigilância, acessa integralmente dados do celular da garota, além de utilizar diversos outros meios que registram imagens. Tudo apresentado como um passe de mágica ao personagem.

    O roteiro é focado no suspense do hacker anônimo, que utiliza Nick e sua fascinação pela atriz para obrigá-lo a realizar uma atividade criminosa. Embora absurda, a tensão se mantém, e o ritmo exagerado, graças aos diversos recursos tecnológicos, produz um tom kitsch à obra, que parece impossível de ser levada a sério. Distanciando-se de qualquer conceito relacionado a uma conspiração real, a história se transforma em um divertimento descerebrado de um garoto tentando salvar a mulher de seus sonhos.

    Os recursos digitais são bem utilizados em cena. Como assistimos à boa parte da obra através de uma tela de computador que captura a imagem de Chambers, observa o celular da atriz, e a vê em câmeras de vigilância diversas, além de outros recursos, o excesso de informação poderia retirar a atenção do público. Porém, a edição e a multiplicidade de câmeras dão agilidade e o enfoque necessário para cada situação que mereça maior atenção do público.

    Se há alguma lição a ser extraída da obra – mesmo que de maneira desnecessária, afinal, como mencionado, a produção não se propõe a isso –, é o cuidado que devemos ter na era virtual; e, principalmente, qualquer donzela em perigo necessita de salvação. O absurdo da produção sustenta uma trama divertida, em que os atores também estão à vontade. Como se, diante de grandes produções de Wood e da sempre pretensa seriedade de Grey, fosse favorável um tempo para a produção de uma obra cujos recursos não são necessários, e em cujo set de filmagem seja possível divertir-se.

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  • Crítica | Os Pinguins de Madagascar

    Crítica | Os Pinguins de Madagascar

    Os Pinguins de Madagascar

    Em 2005, a Dreamworks Animation comemorava o lançamento de sua décima animação. Diferentemente do grande sucesso do estúdio, a franquia Shrek (até então com duas produções), o filme Madagascar dava prosseguimento ao apelo anunciado por O Espanta Tubarão como uma estreia em potencial voltada ao público infantil. Dez anos depois, em sua 30ª animação, o universo dessas personagens retorna, ampliando o sucesso de uma trilogia que arrecadou quase dois bilhões de bilheteria.

    Inicialmente, o inédito Cada Um Na Sua Casa seria o lançamento do estúdio para o verão americano. Porém, devido à concorrência, escolheram um caminho seguro: Os Pinguins de Madagascar, um spin-off da trilogia dos fugitivos do zoológico. A composição do quarteto central, Capitão, Kolwaski, Rico e Recruta, segue à risca a linha de coadjuvantes que, devido a uma personalidade própria e um humor peculiar, destacam-se em animações Devido à ausência de um nome próprio para a equipe de pinguins, o título permanece ligado à franquia original. O grupo também é formado por estrelas de uma série animada da Nickelodeon, porém esse longa-metragem permanece fora da cronologia da série, situando em um momento após Madagascar 3: Os Procurados.

    Os minutos iniciais da produção foram apresentados anteriormente ao público como um curta-metragem divulgado pela Fox em seu canal oficial, mostrado em eventos, como a Comic Con Experience, com direito a comentários de produção de Benedict Cumberbatch, um dos dubladores da versão americana. Em um breve período de tempo, conhecemos a origem da amizade do quarteto, e a trama retorna ao presente, apresentando um vilão polvo, a cara e a voz de John Malkovich, que deseja se vingar dos pinguins. Como apoio, entra em cena a equipe Vento do Norte, um grupo de elite que policia qualquer agressão contra animais indefesos.

    O roteiro de Michael Colton, John Aboud e Brandon Sawyer segue a fórmula da animação tradicional voltada para a família, com o diferencial da Dreamworks não produzir histórias que concorram diretamente com a Disney, a qual sempre trabalha em filmes visando um amplo público, entre adultos e crianças. A trama é mais plana, uma simples história de aventura marcada por muitas cenas de aventura ou humor, escondendo a ausência de um enredo mais articulado. As gags são tantas que, vez ou outra, atingem o público mais adulto também, embora seja notável o quanto as crianças se identifiquem mais com o humor apresentado. Parte do sucesso estrondoso de Madagascar deve-se a seu público-alvo, ávido por consumir filmes do estilo sem um critério equilibrado em relação à qualidade das obras (para estabelecermos um parâmetro, Megamente e Como Treinar o Seu Dragão, duas grandes animações do estúdio, possuem em conjunto uma renda irrisória se comparadas à trilogia Madagascar).

    Sendo assim, dentro da proposta do estúdio, de produzir obras que gerem lucro, suas produções continuam dando um bom retorno e produzindo sequências naturais, mesmo que a maioria dessas produções seja de pouca originalidade, reciclando com a mesma espinha dorsal histórias semelhantes que se destacam, no máximo, por algumas boas e carismáticas personagens. Infelizmente, não é suficiente para sustentar um bom filme.

  • Crítica | O Segredo das Águas

    Crítica | O Segredo das Águas

    O Segredo das Águas 1

    O modo rude como o trabalhador idoso trata a carne sacrificial exibe a dicotomia do filme de Naomi Kawase. Após o epílogo, a cena corta para um ritual religioso, fruto da crença dos aldeões de Amami-Oshima que veem em cada manifestação da natureza uma participação de seus deus, fazendo do contato divino algo comum a existência humana, distante da percepção que separa o homem de seu criador por meio de tabus inalcançáveis. A paz bucólica da região praiana é cessada pela presença de um cadáver com tatuagens remetendo a uma vida diferente daquela presente na região.

    Amami-Oshima tem uma beleza imensa, enchendo os olhos de quem vê, sendo impossível não associar cada particularidade do local a algo que não seja louvor ao Divino. A religião não apresenta uma primeira face como uma instituição castradora, mostrando aspectos discutíveis em um nível liminar com o gradativo desenvolvimento de seu roteiro. A artimanha visa fugir de soluções simples, com um timing quase perfeito, tomando por base a maioria das discussões relativas as ações religiosas sobre o arbítrio humano sem amputar culpa a instituição, deixando aberta a questão da responsabilidade ser ou não de seus adeptos.

    O elemento venerado em O Segredo das Águas é a força da natureza, magnânima em si com ou sem a ação humana. A mensagem é como uma ode ao planeta, sem preocupações forçadas com a causa ecológica, ainda que valorize o conceito de supremacia da força originária, como julgadora e não refém de quaisquer ações dos homens, da mais simples as mais complexas. A natureza é poderosa e encerrada em si, como nos ecos de outras obras da filmografia de Kawase.

    A trama se desenrola com insights do passado, revelando dias de simplicidade, desarticulando falas corriqueiramente incriminatórias, supervalorizando o contato com o que é natural. A contemplação de Kaito e Kyoko engloba os ciclos da vida, explorando poeticamente os momentos de nascer, crescer, reproduzir e morrer, passando por discursos atentos aos ensinamentos proferidos pelos anciões o vilarejo. Entre as almas dos homens e da natureza, aceitar a condição subalterna seria a única alternativa para a sobrevivência além do ordinário.

    Ao exibir tratores e escavadeiras destroçando a mata para que o “progresso” possa pavimentar a vida na ilha, divide-se o ideal. A partir dali a inocência e ingenuidade seriam feridas, profundas ao ponto de não ter mais qualquer possibilidade de cura eventualmente. O que sobra passos à frente da pós-modernidade resume-se ao efêmero, a morte, solidão e melancolia. As personas presentes no filme dialogam com o público, mas servem especialmente para valorizar algo maior, como em Árvore da Vida, de Terrence Malick, ainda que a abordagem utilizada em O Segredo das Águas seja linear e de fácil digestão para o grande público.

  • Crítica | Batman: A Máscara do Fantasma

    Crítica | Batman: A Máscara do Fantasma

    Batman - A Mascara do Fantasma

    O sucesso de Batman – A Série Animada proporcionou a realização de um longa metragem ambientado no mesmo excelente cenário da série criada em 1992. Batman – A Máscara do Fantasma foi lançado nos cinemas em 25 de Dezembro de 1993, portanto, um ano após a primeira temporada da série e teve excelente recepção da crítica, ainda que o público tenha sido abaixo do esperado. Ainda hoje é considerado um dos melhores longa metragens do morcego.

    O roteiro não apresenta nenhum argumento novo no universo da personagem, mas trabalha de maneira habilidosa com os conceitos básicos em um estilo apurado e dramático suficiente para que se compreenda a dimensão e o fardo de Bruce Wayne. Na trama, os principais gângsteres de Gotham estão sendo assassinados por um misterioso novo vilão. Ao investigar, Batman descobre que algumas histórias do passado podem voltar à tona.

    Dividido entre flashbacks sobre o passado do morcego e o desenvolvimento presente da história, revisitamos o começo da carreira de vigilante de Wayne. Sem dúvida, há uma leve inferência do famoso Ano Um da personagem, porém, o roteiro feito a oito mãos por Paul Dini, Alan Burnett, Martin Pasko e Michael Reaves apresenta mais dúvidas quanto a uma vida de super herói ao incluir um interesse amoroso e duradouro na vida do milionário.

    Enquanto estuda maneiras de intimidação para viver como o futuro alter ego, a vida de Wayne se modifica com a relação duradoura com Andrea Beaumont, filha de um grande empresário do local. Dividido entre a promessa que fez aos pais após sua morte e a percepção de que poderia ter uma vida feliz afeta o psicológico do herói. Há mais fragilidade em sua personalidade nesta história do que na brilhante narrativa de Frank Miller. Com direito a uma bonita cena em que, na chuva, em frente ao túmulo dos país, Wayne questiona a promessa e o fardo perante a possibilidade de ser feliz, reconhecendo que, ao se tornar um herói, não haverá nenhum laço familiar com outra pessoa.

    O entreato passional se realinha com a tradicional história do morcego ao apresentar a desistência repentina da garota ao quase se tornar a futura Srta. Wayne. Um recurso habilidoso que amarra os eventos do passado com os assassinatos do presente, utilizando favoravelmente a presença do Coringa como um dos vilões do longa metragem.

    Um dos grandes vilões do universo do morcego, o Coringa, está presente em diversas sagas devido a sua popularidade, mas nem sempre sua presença garante qualidade. Em A Máscara do Fantasma, o passado do palhaço do crime também é revelado, sendo ele um dos capangas que trabalhou para um dos gângsteres assassinados. Dessa maneira, o personagem adentra a história ativamente, não apenas como um maníaco aleatório como alguns roteiros de quadrinhos apresentam. Produzindo um bom equilíbrio entre o novo vilão e um antigo.

    Mesmo aclamado com o sucesso atualmente, a produção estreou arrecadando uma bilheteria inferior ao esperado pela Warner. Porém, foi indicada ao Annie, prêmio americano de animação (perdendo para O Rei Leão) e sendo bem vendido em Home Video, além de inspirar um tie-in em quadrinhos. Um longa metragem bem superior as duas obras seguintes do morcego nos cinemas: Batman Eternamente e Batman & Robin. Ainda não há uma edição em alta definição desta produção. No Brasil, um DVD foi lançado, porém, em edição fullscreen. Uma pena para uma história com bonita ambientação nos consagrados traços da animação.

    Para ouvir: VortCast 34: Batman – A Máscara do Fantasma

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  • Crítica | Festa No Céu

    Crítica | Festa No Céu

    As cabeças protuberantes dos personagens fazem com que abordagem cartunesca de Festa no Céu se assemelhe visualmente a uma quantidade significante de outras animações, desde Jimmy Neutron até os seriados em duas dimensões, como Meninas Super Poderosas, herdando destes o ponto em comum, o de conter muita cor, saturando a imaginação infantil e algum subtexto, entendido na maioria das vezes por quem tem um maior repertório e vivência. A jornada de “livro da vida” começa em um museu, numa jornada protagonizada por alunos problemáticos obrigados a visitar o local, onde são sendo recebidos por uma bela guia, levemente sexualizada, que começa a contar uma história sobre o México, usando as figuras folclóricas do país norte-americano para cooptar a atenção dos que excursionam e da plateia.

    A coloração ganha contornos belíssimos ao se misturar ao gráfico tridimensional, sob comando de Jorge R. Gutierrez, para compor um quadro singular, valorizando os aspectos espiritualistas da tradição mexicana. A escolha do diretor foi pródiga, especialmente por sua experiência com a série El Tigre: As Aventuras de Manny Rivera. Quando Manolo Sanchez (Diego Luna) aparece, o carisma do filme já é estabelecido, fortificando ainda mais seu drama como órfão de mãe, que tem de conviver com a ausência da progenitora e com a inevitabilidade da morte, caracterizada por De La Muerte (Kate Del Castillo), a qual, por sua vez, acompanha a trajetória dos seres mostrados em tela.

    Manolo cresce em meio a expectativas de sua família quanto ao seu futuro. Seu violão e sua arte representam a doçura da infância, como um modo de comunicação poético em essência que o faz relembrar as perdas que teve. Este ideal esbarra na condição de toureiro, um ofício que está ligado tradicionalmente ao clã Sanchez e ao seu vilarejo. Manolo cresceu com dois amigos, Joaquin (Channing Tatum), que se tornou um exímio manipulador de touradas, e Maria (Zoe Saldana), que deixou a cidade há muitos anos para retornar já adulta. Obviamente, instaura-se um triângulo amoroso.

    Já adulto, o trio de protagonistas é vigiado pelas entidades espirituais La Muerte e Xibalba (Ron Perlman), que veem desabrochar a sexualidade — claro, suavizada para os infantes –, eufemisticamente tratada como amor e paixão. Maria percebe a abissal diferença entre as posturas de seus antigos amigos, um com pompa, fama e muito dinheiro, enquanto outro é munido de sentimentalismo, singeleza e inspiração. A aposta entre as figuras sobrenaturais chega ao cúmulo de ferir a moça, musa dos dois antigos parceiros. Afim de perseguir sua amada, Manolo se submete a morte, viajando para o além-vida, onde pode finalmente reencontrar sua finada mãe.

    A viagem ao mundo incorpóreo é bela, ainda mais repleta de cores. Seu encontro com toda a família Sanchez é bonito, revelando honrarias bem distantes do fracasso econômico de quando eram todos vivos, representando a fuga da decadência e retorno a glória, ainda que o viés de negação esteja implícito. Logo, ele percebe o ardil que sofreu, sendo enganado ao ser levado a Terra das Lembranças.

    A estratégia de trapaça logo se prova um erro, em ambas as dimensões. Enquanto a cidade de San Angel é atacada por um malfeitor, sem qualquer perspectiva de salvação, mesmo com o bravo Joaquin presente, Manolo é obrigado a enfrentar seus maiores medos no além-vida, tendo de combater ao mesmo tempo todos os touros que seus familiares assassinaram. Além da discussão óbvia da sensibilidade contra a brutalidade, há uma perene crítica às touradas e à fútil prática de assassinato de animais unicamente por entretenimento, cujos significados não são pasteurizados ou transformados em discursos baratos, transmitindo uma reflexão ligada ao perdão, mais forte do que qualquer panfletarismo exacerbado.

    Apesar de apresentar alguns pares de clichês em seu desfecho, utilizando um fechamento repleto de música e felicidade, toda a construção do romance e da felicidade mútua é feita de modo natural, formando o quadro gradativamente, cuja mensagem não subestima o entendimento, sequer o das crianças. A história de Festa no Céu torna-se eterna e até encorajadora, apresentando uma atmosfera semelhante à vista nos filmes de seu produtor, Guillermo Del Toro, com um caráter edificante que faz refletir além do lugar comum das animações norte-americanas.

  • Crítica | Pride

    Crítica | Pride

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    O cinema sempre reverencia narrativas baseadas em fatos reais. Principalmente, aquelas carregadas de carga emocional e entraves que se destacaram historicamente. Como grande parte do passado é esquecida ou reduzida pelo tempo, tais filmes ganham representatividade tanto como observação encenada de um acontecimento histórico quanto como símbolo ativo desse momento.

    Pride retorna ao ano de 1984 na Inglaterra, quando medidas econômicas da primeira ministra Margareth Thatcher retiraram direitos dos trabalhadores locais, incluindo os mineradores que, em protesto, promoveram uma das maiores greves registradas no país. Ao mesmo tempo que o país sofria problemas econômicos, a sociedade homossexual ainda era considerada periférica e lutava por direitos igualitários, buscando na união e em passeatas do orgulho gay uma maneira de se destacar a favor de sua causa.

    Um grupo de amigos liderados por Mark (Joe Gilgun) observou que o mesmo problema afligia grupos diferentes, gays e mineradores: a falta adequada de uma boa representação na sociedade. Assim, fundam a LGSM – Lesbians and Gays Support the Miners (Lésbicas e Gays Em Apoio aos Mineradores). A primeira dificuldade do grupo é encontrar um conjunto de trabalhadores que aceite ativamente a união entre ambos. O preconceito é deixado de lado em uma pequena vila em Wales, que recebe de braços abertos a ajuda da LGSM. Em uma reflexão comparada com nosso país, talvez pareça estranho que um grupo apoie outro em busca de direitos igualitários. Essa junção de classes faz da história um bonito exercício de como o povo deve agir como sociedade, não apenas focando no interesse de seu círculo interno, mas em um trabalho geral de manutenção e apoio às classes ou grupos que não recebem o apoio correto do governo.

    Durante a adesão dos ativistas ao grupo de mineradores da vila de Onllwyn, surgem eventuais membros contra o apoio dos coligados: uma minoria apoiada em uma opinião preconceituosa e retrógrada. Parte do longa apresenta a sincronia lenta entre esses grupos e as barreiras sendo destruídas. Impressiona que, em plena década de 80, em um país conservador como a Inglaterra, um pequeno vilarejo demonstre estar à frente de seu tempo, levantando a bandeira da igualdade e da união por uma mesma causa.

    A história situa tanto a aproximação dos grupos e sua militância a favor dos mineiros como o drama de alguns personagens compostos especificamente para a trama para potencializar a carga dramática. O jovem Joe Cooper (George MacKay) é um destes personagens fictícios que representam o jovem adolescente gay, e que ainda se sente relutante em assumir sua sexualidade, submetendo-se à repressão familiar, que decide mantê-lo em casa como maneira de evitar sua homossexualidade. Um exemplo dentre outras discussões levantadas pelo longa-metragem, como a presença da AIDS, o preconceito e a instituição familiar tradicional. Dramas que se apresentam e se modificam devido à causa maior a ser combatida. Uma espécie de expiação através da luta unificada.

    O filme é um exemplo de como a união e o protesto são fortalecedores e, acima de tudo, demonstra que é necessário a sociedade reconhecer que o direito do outro também é importante, tanto quanto a consagração de direitos da classe a que o indivíduo pertence. O apoio mútuo apresentado na história, datada 30 anos atrás, ainda é atual por essa mensagem significante.

  • Crítica | Deus e o Diabo Na Terra do Sol

    Crítica | Deus e o Diabo Na Terra do Sol

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    As moscas sobre as carcaças de animais mortos, acompanhadas da crescente música, revelam como é árdua, dura e árida a vida do herói focalizado pela câmera de Glauber Rocha. A iconografia visual condensada na trilha incidental certamente influenciou o trabalho de Sergio Leone, especialmente quando a maturidade o atingiu em Três Homens Em Conflito. O início, em forma de epílogo, contém poucos diálogos, quase nenhum deles direto; a observação, feita por Manoel (Geraldo Del Rey), da paisagem e do estilo de vida do povo do sertão realiza-se apenas por imagens, um resgate da máxima do cinema, pouco em voga no esquema comercial atual.

    A linguagem do discurso é simples, não em seu conteúdo – relevante ao extremo – mas simplista no modo tacanho e humilde da fala. A fé é propagada entre aqueles que sequer têm o pão diário para se alimentar, fomentando a esperança dos miseráveis e necessitados, que não têm onde ou em quem se agarrar se não no Divino.

    A câmera insistentemente trêmula emula os movimentos dos trabalhadores da lavoura e do engenho, que, com o seu suor, tentam produzir o seu sustento, mas que na prática fazem mais enriquecer seu patrões do que através de qualquer outro esforço. Mesmo quando o pobre e incauto peão tenta resgatar o que é seu por direito, esbarra no velho sistema explorador, que tenta roubar o pouco que lhe resta. Ao perceber seus direitos se esgotando, Manoel se rebela, agindo de maneira inversa a dos seus companheiros.

    O modo intimista com que o roteiro de Rocha e Walter Lima Jr. é executado contempla um lado idílico e sobrenatural do sertão, mas seu conteúdo ainda consegue ser direto, especialmente nas perseguições a cavalo e confrontos armados. É como se o expressionismo alemão se colidisse com o faroeste de John Ford, que gostava de contemplar o ambiente e as planícies norte-americanas para contar suas histórias. A Pernambuco de Glauber não tem paragens tão repletas de verde ou de montanhas frondosas, o que resta é o solo arenoso, a seca e as rugas nas testas dos peões, que tinham no sol inclemente o seu único aliado.

    A chacina impingida pelos poderosos ceifa mais vidas do que as precárias condições de vida no desértico nordeste. A perseguição ao pobre homem que tentou executar a “justiça com as próprias mãos” emula o modo com que o povo é esmagado pelo dedo do opressor. O cangaço é mostrado sob um viés diferente, como justiceiros que lutam pelos direitos do povo. Manoel, sem muita escolha, adere ao Capitão Corisco (Othon Bastos), recebendo dele a distinta alcunha de Satanás, para se diferenciar do arquétipo de vaqueiro, e ser finalmente temido pelos inimigos.

    A crença em São Jorge é um símbolo da necessidade de defender o povo do seu destino trágico. O rifle e o punhal são os objetos escolhidos para impor a mudança, algo necessário em meio ao ríspido modo com que todos são tratados. O altruísmo de Corisco é tamanho que ele sequer cogita a possibilidade de fugir do combate, mesmo sabendo que enfrentar o caçador Antônio das Mortes (Maurício do Valle) é quase garantia de perecer. Munidos da coragem e do chumbo, o capitão cangaceiro e Manoel – ou Satanás – vão em direção ao combate final, levados pela balada de Sérgio Ricardo, que narra suas aventuras como canção. O destino arredio dos revoltosos é um grito de louvor à liberdade, teimoso, que não aceita a possibilidade de ser enjaulado, seja pelas grades da cadeia, seja pelo escravismo que predominava no sertão.

    O tom poético do filme exibe verdades, discutindo-as sem ter qualquer pudor em vilanizar os coronéis, que ainda praticavam métodos datados e feudais com o pobre povo, escravizando-o a troco de contrapartida quase nenhuma, além de tomar pessoas normalmente marginalizadas como as figuras heroicas da fita. Não à toa a película ditou tendências estéticas no cinema brasileiro e mundial.