Categoria: Cinema

  • Crítica | Mercenaries

    Crítica | Mercenaries

    Mercenaries 1

    Após uma trilogia inteira ser produzida, a rebarba da ideia de Sylvester Stallone em utilizar os brucutus clássicos finalmente ganha uma versão mequetrefe. Reunindo clichês, Christopher Ray, de Mega Shark vs. Crocosaurus, capitaneia a cópia de baixo orçamento Mercenaries.  Já em seu início, a obra não nega fogo, seja nas cenas toscas de combate repletas de sangue artificial, cujo efeito especial é risível, seja na construção de seus personagens, com destaque para a vilã andrógina Ulrika, vivida por uma gigante Brigitte Nielsen, a qual transpira masculinidade, expondo tanta testosterona que faria Sly se tremer inteiro.

    Sua personagem rapta a filha do presidente americano, resgatando o medo vermelho presente na Guerra Fria. Já que o ideal seria o de relembrar os plots dos action movies despretensiosos de outrora, a solução “lógica” para combater tal mal seria reunir um grupo de mulheres liderado por uma agente especial, Mona, da veterana Cynthia Rothrock, que separa um grupo de elite, formado por moças de especialidades diversas, que tem em comum o encarceramento em uma prisão especial: Kat Moran (Kristanna Loken), a chinesa Mei Lin (Nicole Bilderback), o antigo desafeto da chefona Raven (Vivica A. Fox) e a líder tática Clay (Zoe Bell). A recompensa para a força-tarefa seria o perdão total do presidente e, claro, a libertação das mulheres, caso a missão suicida desse certo.

    As cenas de perigo são tão cretinas que, em dado momento, quando a raptada Elise (Tiffany Panhilason) tenta atacar sua sequestradora, nota-se que a faca usada por ela tem a lâmina trabalhada no plástico, algo constatado no modo que a arma enverga só de encostar na pele da inimiga. Outros momentos também são incrivelmente bem construídos, como o lançamento de uma moeda, por parte de Kat, que atinge o olho de um agressor sexual. Claramente, o feminismo é uma pauta importante dentro da trama, já que o assédio moral é combatido com unhas e dentes pelas Expendabelles.

    O modo com que a Asylum conduz os seus filmes lembra muito o chauvinismo e a forçação de barra da dupla Golan e Globus e sua produtora Cannon. A crítica ao Socialismo prossegue ao mostrar uma ex-nação soviética devastada, sem organização, saneamento básico ou sinal de civilização. Lexi (Alexis Raich) é a guia do quarteto em meio ao assombrado terreno; seu amor pelos estadunidenses é exibido em cada uma das suas propositalmente tacanhas falas, compondo um patético quadro de exacerbação do american way of life. Curiosamente, o modo patriarcal implícito no modo como a política dos EUA é levada consegue conviver harmoniosamente com todo o caricato girl power do roteiro.

    Curioso que, mesmo com a validação do poderio feminino ante o homem opressor, as moças ainda se valem de técnicas baratas de sedução, artifícios utilizados ao menor sinal de necessidade e executados para debochar dos autoritários e falocêntricos machos. No entanto, mesmo em meio a uma historinha mequetrefe, são possíveis plot twists, como a traição por parte de um dos integrantes do grupo – semelhante ao que ocorreu com o personagem de Dolph Lundgreen em Os Mercenários. O quebra-pau é intenso e muito mal dirigido, como a expectativa do filme pedia. A edição varia entre cenas de câmera lenta e disparos mostrados em velocidade normal, obviamente em cenas absurdamente mal montadas, compondo uma vergonha alheia sem limites.

    Referências a Rambo são feitas, como ao se retirar uma bala sob a pele, que é claramente composta por uma camada de tecido, mostrando que o filme não se leva a sério me momento algum. A jocosidade predomina, mas não ao ponto de dar a volta por cima, tornando o que é ruim em algo bom até meados do filme. A pouca violência só começa a ser consertada no final, podendo, assim, corrigir a desigualdade com os elementos de onde se retiraram as referências.

    As moças, munidas do senso máximo de justiça, resolvem liberar as pobres meninas, exploradas por um comércio de prostituição malvado. Kat põe armas em suas mãos unicamente para as moças serem massacradas por um dos capangas maléficos, o que é natural, já que elas não tinham qualquer preparo ou noção de como se deveria atirar.

    A perseguição mostra a vilã fugindo como alguém covarde, lançando por terra qualquer possibilidade de dignidade para sua personagem, ao contrário, claro, dos atos altruístas de Clay, que arrisca a própria vida amarrando-se a uma bomba e ameaçando sua rival de acabar com tudo, até com as (remotas) possibilidades de romance entre ela e Ulrika.

    Os momentos finais quase redimem toda a falta de ação desenfreadamente ridícula da fita com um duelo a três, em que se põem à frente Bell e Loken contra Nielsen, dando uma importância maior ao ícone vilanesco do que o visto com Jean-Claude Van Damme e Mel Gibson em Os Mercenários 2 e Os Mercenários 3, respectivamente. O modo como a vilã finalmente sucumbe consegue reunir dois dos maiores bordões dos filmes de ação, com uma queda de avião acompanhado de uma explosão, faltando apenas cair um piano em cima. Mercenaries chega muito perto de decepcionar os fãs do cinema tosco moleque, mas consegue equilibrar a galhofada com a esperança de que se torne uma franquia de sucesso.

  • Crítica | Sobrevivente

    Crítica | Sobrevivente

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    O início das filmagens se dá em um mergulho nas profundezas marinhas da gélida Islândia. Baseado em uma história real, Sobrevivente remonta o conto de um grupo de pescadores que, nos anos 80, viajou em um embarque fatal, tendo sobrevivido apenas um deles – daí seu (repetido inúmeras vezes) título brasileiro. A fita marca o retorno do prodigioso Baltasar Kormákur à direção de filmes em seu país, após uma pequena parceria com Mark Wahlberg em Contrabando e Dose Dupla.

    Sobrevivente tem muitas semelhanças narrativas com Tráfico de Orgãos, filme de Kormákur de 2010, ao mostrar um mundo distante do idealizado, em que os personagens são repletos de falhas e defeitos, com rotinas boêmias e ressacas que tentam esconder uma existência sem desafios além do ofício como barqueiros. Ao embarcar, a câmera se transforma em mais um tripulante, analisando o alto mar sob um viés tão realista quanto o modo de vida dos marujos.

    A tempestade acomete o barco, derrubando seus tripulantes na superfície líquida, mas o frio intenso vai aos poucos ceifando a vida de cada um dos personagens. O espirituoso Gulli (Ólafur Darri Ólafsson), visto antes convivendo com uma bela família, se desespera para manter-se vivo, a despeito do mar revolto e das poucas possibilidades de sair dali com vida. Para não enlouquecer, ele lembra-se dos momentos marcantes que tinha com seus entes queridos, ecos de uma vida normativa e ordinária, distante do esforço hercúleo que teria de fazer para simplesmente não morrer.

    Após ficar à deriva por um tempo praticamente incalculável, Gulli chega a uma enseada, chocando-se contra as rochas de um modo perigoso, quase fatal. A fim de não perecer, o protagonista se submete a condições insalubres, lançando mão de qualquer coisa para poder se alimentar, passando, inclusive, por eventos em que a realidade é questionada, entre a improbabilidade do que lhe ocorria e a ilusão de ter finalmente se salvado, ao encontrar a civilização que buscava desde os tempos em que seu transporte naufragou. O período curto entre os eventos gera uma sensação de eternidade para si.

    Ao retornar ao seu lar, o sobrevivente é submetido a uma bateria de exames na tentativa de explicar o motivo de ter escapado da tragédia, a despeito principalmente de sua forma física rotunda. Aparentemente, sua gordura o impediu de morrer, isolando suas sinapses do efeito destruidor do congelamento, podendo, assim, fazer toda a movimentação necessária para que conseguisse sobreviver.

    Após recuperação física, Gulli tem de enfrentar o monstro do cotidiano, a começar pelo velório, sem a presença dos corpos dos antigos companheiros, que têm no mar o seu túmulo. A dor acachapante o comprime para baixo, deixando-o inerte, incapaz de chorar. Sua expressão triste é cortada por olhos arrochados, cujas bolsas embaixo das pálpebras revelam que alguém queria chorar e desabafar, mas não tinha condições nem mesmo para isso.

    Após não obter qualquer explicação plausível para a própria sobrevivência e não a dos demais, Gulli se lança em mais uma aventura marítima, superando seus temores para enfim fazer prosseguir sua vida. Após o subir dos créditos, é mostrado em uma pequena tela o depoimento do sobrevivente real, cuja sorte por ter permanecido vivo é destacada no emocionante depoimento de um sujeito que, ante o milagre que viveu, não faz nada além de perceber o quão ínfima é sua existência, possivelmente em respeito aos que perderam entes queridos na fatídica viagem. A direção de Baltasar Kormákur expõe uma abordagem bela de uma história não menos emocionante, sem apelar para cafonices ou mensagens edificantes, deixando o público tirar do filme as sensações que lhe convém sentir.

  • Crítica | Se7en: Os Sete Crimes Capitais

    Crítica | Se7en: Os Sete Crimes Capitais

    Por vezes, o cinema é acometido por coincidências relativas a lançamentos de filmes sobre temas parecidos na mesma época. Nos anos 90, vimos uma sequência de filmes de investigação criminal sobre serial killers que foram sucesso de público, desde produções excelentes como O Silêncio dos Inocentes, até genéricos como Beijos que Matam e O Colecionador de Ossos. Em 1995, o então novato diretor David Fincher também se arrisca nessa empreitada com o filme Se7en – Os Sete Crimes Capitais, tendo Andrew Kevin Walker como roteirista.

    O filme se inicia apresentando primeiramente a cidade, que não é nomeada, mas que é representada como um local extremamente urbanizado e decadente, onde a chuva não dava trégua e caía intensamente, contribuindo para dar um peso dramático extra ao ambiente. Com uma atmosfera noir, a cidade possui construções degradadas, becos velhos e sujos, lixo no chão e um submundo onde a lei não costuma entrar, lembrando muito as diversas composições de Gotham no cinema, em especial as de Tim Burton.

    Os personagens principais são os detetives da polícia local, William Somerset (Morgan Freeman) e David Mills (em limitada, porém honesta e emotiva interpretação de Brad Pitt), sendo que este último acaba de se mudar para a cidade por causa da vaga de detetive, mostrando uma ambição fora do comum. Ávido por participar, sua personalidade contrasta com a paciência e calma de Somerset, que, por conhecer a fundo a escuridão da cidade e seus habitantes, não consegue mais se empolgar com nada.

    Ao serem chamados para atender uma morte incomum (um obeso que morreu de tanto comer), ambos logo chegam à conclusão de homicídio ao analisar a cena, onde o homem morto estava preso, o que é confirmado pela autópsia. Após outro corpo, de um importante advogado da cidade, ser encontrado com a inscrição “AVAREZA”, levando-os a encontrar a palavra “GULA” no corpo do caso anterior, fica claro a Somerset que mais assassinatos parecidos virão, e que, por isso, quer abandonar o caso, já que está próximo de se aposentar, enquanto Mills quer assumir o caso de todo jeito.

    Fincher escolhe contrastar a escuridão e violência do mundo, mostrados através de seus assassinatos, com a vida particular de Mills, na qual sua esposa Tracy (Gwyneth Paltrow) luta para se adaptar a uma cidade hostil e a um apartamento perto da linha de trem que treme cada vez que surge uma locomotiva. Tracy é responsável, inclusive, por unir Somerset a Mills, convidando este para jantar em sua casa. A partir dali, a relação entre os dois passa a ser mais harmoniosa. A câmera de Fincher, aqui, já consegue mostrar algumas das características que irão marcar seu estilo, como a composição das cores em tons pastéis e a escuridão sempre rodeando cada cena, como se estivesse o tempo toda pronta para engolir os protagonistas. Além da preferência por temas obscuros que envolvem a humanidade, que irá ser debatida em toda a sua filmografia subsequente.

    Quando os detetives resolvem suas questões pessoais, a investigação assume o foco ao tomarem destaque as passagens citadas pelo assassino em seus crimes, fazendo com que os policiais busquem os livros da biblioteca pública e quem os emprestou. Assim, chegam, de forma um pouco fácil demais, ao apartamento do assassino, que foge espetacularmente, mas não sem antes de ferir seriamente Mills, que, possesso, passa a cometer erros de julgamento que irão ter seu impacto mais tarde no desenrolar da história.

    Se7en consegue compor uma investigação criminal clássica, mas não se resume unicamente a isso, pois a obra também traz à tona a discussão de que não basta somente encontrar e prender o assassino, mas sim tentar entender o que está por trás de tamanha perversidade e como evitar que mais iguais a ele surjam. Nesse ponto, o filme dialoga com um espírito cansado e desgostoso em relação à modernidade  algo que os irmãos Coen expõem em Onde os Fracos Não Têm Vez –, um sentimento ao qual qualquer pessoa atualmente consegue se relacionar.

    Dentro desta lógica, o que menos importa é justamente o resultado da investigação, tanto que o assassino (interpretado por Kevin Spacey) se entrega após ter realizado suas ações, e a explicação por trás das razões de seus crimes soa terrivelmente familiar para nós, já que a indiferença e o egoísmo das pessoas do cotidiano isolam todos em seus mundos, e somente algo chocante pode tirá-los da realidade. A atração magnética de sua personalidade lembra o icônico Hannibal Lecter, e a nossa mórbida curiosidade em saber o que move tais mentes em direção a atos tão horrendos nos faz desejar que as explanações do assassino não parem.

    As constantes citações ao “Inferno” de Dante e a outros clássicos da literatura que flertam com a escuridão da alma humana deixam clara a mensagem que Se7en e seu assassino querem passar, a da eterna danação da espécie humana ao lidar com nossos demônios. A cena final, impactante, ecoa até hoje nas mentes dos fãs de cinema como uma das mais marcantes de todos os tempos, afirmação que possui tanto verdade quanto exagero.

    Portanto, Se7en é melhor apreciado se relativamente afastado do clássico gênero policial e encarado como uma jornada por dentro da própria humanidade, e apesar de não se aprofundar muito nos temas que se propõe, por si só já garante um destaque frente às produções semelhantes do período.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Diana

    Crítica | Diana

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    O fingido e delicado sorriso de Diana, cercada de paparazzi, membros da imprensa e de súditos, é o símbolo da hipócrita atitude que predominava em seu cotidiano. A princesa, vivida por Naomi Watts, mostrava-se incômoda, cansada das inconveniências do cargo que exercia, da completa falta de privacidade, além das claras rugas que saltavam em seu rosto, fatores que agravavam seu estado de espírito, aproximando-se cada vez mais da depressão.

    O improviso e o acaso fazem uma contraposição na regulação extrema da vida da princesa recém-divorciada com a aparição do doutor Hasnat Khan (Naveen Andrews), única pessoa capaz de fazer a realeza sorrir em meio a tempos de crise e de perseguição irritante dos fotógrafos, algo tão inconveniente para a moça quanto para o público, que sente o enfado de ver o argumento deste aspecto particular da vida da Princesa de Gales repetido tantas vezes em tela. A solução, pensada pelo novo affair da soberana, é esconder a sua identidade utilizando uma peruca, que obviamente não cobre todo o semblante da alteza, mas que causa nela uma estranha sensação de segurança e anonimato.

    A popularidade e carisma de Diana fazem dela um personagem trágico, uma figura amada por seu povo mas com possibilidades mínimas de ascender ao trono. Os discursos que ela faz à imprensa passam pela bajulação ao povo britânico, assim como pela posição de assumir um papel de vitimada, de alguém injustiçada unicamente por viver segundo os próprios instintos, fugindo da preconizada figura canonizada e perfeita de uma rainha para aproximar-se da plebe, do homem e da mulher comum.

    O motivo preponderante para que o romance ocorresse foi o modo como Hasnat tratou a mulher, sem reservas respeitosas a sua condição real, interagindo com ela de modo normal. O texto de Stephen Jeffreys destaca pontos de extrema obviedade, constrangendo quem assiste à obra em razão do didatismo exercido no drama particular.

    Watts é exibida na indiscreta câmera de Oliver Hirschbiegel como um ser de fragilidade extrema, vulnerável como a realidade de sua biografada. Em alguns momentos, a abordagem lembra demais o método utilizado por Michelle Williams em Sete Dias com Marilyn, obra na qual a faceta não oficial de uma diva também é mostrada, sem medo de se exporem defeitos e imperfeições dos objetos de análise dos realizadores. Hirschbiegel já tinha feito algo parecido com A Queda, ainda que Hitler seja uma figura muito mais fácil de criticar do que a britânica.

    Os afazeres da Lady variam entre eventos beneficentes, a luta por um maior combate à disparidade social, à fome e a proliferação de doenças na África, e, claro, a condução de seu romance que se tornou público, revelando o péssimo humor e recepção de Hasnat. Curioso como um elenco estrelado e formado por pessoas talentosas não consegue garantir tantas nuances quanto as personas exigem, culpa mais uma vez do preguiçoso roteiro, que se atrela a demasiadas soluções fáceis. A preocupação com o aspecto visual da película assinala ainda mais as muitas incongruências do texto, fazendo com que a fita pareça-se com um teatro mal executado em determinados momentos. Só faltavam placas indicando “uma tragédia se aproxima”, e por pouco nelas também estaria a inscrição “e com fotógrafos”.

    A balela que predomina na realização de Diana busca resgatar a falsidade dos dias de Lady Di, especialmente nos namoros fake que protagonizava, para desviar a atenção dos seus reais sentimentos. O excesso destes eventos constitui mais um momento de cansaço extremo. Como era de se esperar, a despedida da princesa é sentimental, carregada de romantismo e idealização por parte do povo inglês. Apesar de não ter um cunho chapa-branca, o filme erra demais, exagerando na longa duração e na repetição de plots, e é inferior, e muito, às adaptações recentes de histórias que envolvem grandes personalidades, como J. Edgar, A Dama de Ferro, Lincoln e outros, fazendo de uma figura pública um objeto de um simples amor que não pôde ser plenamente concebido, caindo em uma armadilha desnecessariamente piegas.

  • Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

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    A Segunda Guerra Mundial é um dos temas mais férteis para produções cinematográficas, ainda que atualmente se lancem poucos filmes sobre o assunto em comparação com décadas passadas. Porém, há sempre espaço para mais uma narrativa sobre este momento histórico, seja como um panorama universal do período, seja através de histórias pessoais de homens que viveram sob domínio da guerra e guardam lembranças de traumas, batalhas e sentimentos.

    Uma Longa Viagem baseia-se na história real do soldado Eric Lomax (Jeremy Irvine/Colin Firth), um oficial britânico preso no fronte em Singapura e enviado a um campo de prisioneiros para trabalhar à força na construção de uma ferrovia. Hábil em eletrônica, constrói um rádio amador para ouvir notícias sobre a guerra e, ao ser descoberto, é detido e se transforma em alvo de tortura e maus tratos.

    A história começa nos dias atuais. No centro de veteranos, Lomax é um senhor conhecido pela fascinação por trens. Conhece itinerários, maquinários, e em uma destas viagens conhece Patti (Nicole Kidman), a mulher que será sua futura esposa. Após o casamento, a relação com a esposa permanece distante, em parte por seu incômodo em revelar a história de seu passado, motivo que lhe deixa apreensivo e com pesadelos diários. A trama entrecorta o presente com sua jornada de guerra.

    O soldado foi utilizado como um exemplo pelos inimigos para se manter a ordem local. Torturado diariamente, privado de alimentação e de um local adequado de sono, o jovem, e suas dores físicas e psicológicas, é acompanhado pelo público, atento em compreender o motivo da fragilidade do personagem quando adulto. Incapaz de superar este trauma, Lomax vê a estabilidade familiar e a convivência com a esposa se tornarem insustentáveis. Tentando evitar uma separação, o veterano realiza uma viagem de volta ao local onde foi preso para encontrar seus torturadores e obter alguma resposta que possa amenizar sua dor.

    A batalha de Lomax é a luta contra o passado e a incompreensão diante de fatos brutais vividos no período de guerra. Sua viagem é frutífera, e o ex-soldado encontra um homem que estava presente nas sessões de tortura, o intérprete de guerra Nagase Takashi. Defronte a seu antigo inimigo no confronto, o homem percebe que o outro também carrega fantasmas e traumas de batalha.

    A guerra vista de uma maneira abstrata e com afastamento histórico retira a percepção de que homens lutaram uns contra os outros e saíram flagelados destas lutas, muitas vezes questionando-se quanto à verdadeira intenção de uma batalha entre nações. A obra demonstra a inutilidade da guerra e faz uma ode ao perdão. Um reconhecimento difícil e catártico entre homens que, um dia, viveram em lados opostos. As cenas do encontro destes ex-soldados são bonitas e emotivas pela coragem em compreender o outro lado e absolvê-lo de erros passados.

    Colin Firth sustenta com qualidade a personagem, principalmente nos momentos emotivos. Nicole Kidman, por outro lado, parece demonstrar intenção de resgatar seu prestígio como atriz, mas sua personagem é fraca e funciona mais como um motivador para a mudança do marido do que como alguém importante na história. O romance dentro da vida de Lomax foi a justificativa maior para que ele, finalmente, compreenda as torturas que sofreu durante a guerra.

    Como a maioria das histórias, principalmente em tempos sombrios como o da Segunda Guerra, a trama apresenta elementos interessantes, demonstrando as facetas cruéis de conflitos bélicos e os traumas carregados durante boa parte da vida. Mas dentro de tantas narrativas retratando este período, a história parece uma repetição, e o drama sensível salva-se mais pela competência dos atores do que por um bom roteiro.

  • Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Situado em uma cidade da Bélgica, que emula um lugar qualquer, dadas as características universais de sua locação, Dois Dias, Uma Noite, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, opta por analisar o viés da depressão, usando uma figura humana e deveras falha para expor o quão séria é a situação de quem convive com a doença, além de expor de modo cru o quão acachapante pode ser a rotina de quem sofre deste mal.

    Sandra, interpretada belamente por Marion Cotillard, é uma mulher comum, cujo salário ajuda a equilibrar as contas de sua casa; seu marido, o sempre presente Manu (Fabrizio Rongione) possui um trabalho cuja remuneração é baixa, frutos da crise econômica que acometeu o continente europeu. Diante do drama já instaurado, pelo diagnóstico de depressão, Sandra vê no chamado à aventura uma oportunidade para se afundar ainda mais em seu inferno mental, já que sua demissão do serviço que presta é quase certa, mudada em última hora pela possibilidade de seus colegas a salvarem, caso abram mão do bônus de mil euros a que cada um tem direito.

    O chamado da aventura ocorre a despeito dos muitos remédios controlados que Sandra ingere, sem qualquer discriminação ou bom senso, recriminado o ato somente por seu preocupado cônjuge, que, com medo, não insiste muito em criticá-la. Convencida por uma das poucas pessoas que votaram a seu favor, Sandra passa a caminhar pela cidade em busca de seus companheiros e fazê-los mudar de ideia, para não só salvar seu salário, como também sua conturbada estabilidade mental. A busca da personagem não é só por visitar cada um dos operários ou para convencê-los a aderir a sua causa, mas também vai de encontro à fuga para entrada no estado de desespero.

    Após três recusas, Sandra prossegue consumindo a droga dos tempos de doença, símbolos de uma ansiedade mal tratada junto à negligência de um vício. Os sinais da problemática são notados em seu rosto, os olhos fundos fazem até da bela Marion Cotillard uma figura digna de pena e comiseração, distante demais do usual arquétipo de musa que ocupa fora das telas.

    O preço da cura de Sandra teria que ser pela miséria de muitos. A Escolha de Sofia seria obviamente um desmando do patronado, mas a câmera convém explorar o lado de baixo da pirâmide, com dilemas da base. Os motivos de tais condições parecem não só financeiros, mas também ligados à reabilitação da personagem. A balança ora pesa para a crise financeira, ora para a doença de Sandra, exibindo um triste quadro em que os números sobrepujam as necessidades e a saúde humana.

    Após quase alcançar a meta, é feita uma proposta a Sandra, que prontamente recusa em virtude da queda de um dos seus colegas. Sua escolha é tomada pela ética, moralmente certa. Se este último ato fosse um objeto isolado, possivelmente a escolha dela teria sido encarada como um ato piegas ou cafona, mas dada toda a angustiante trajetória que fez, é natural que a opção tenha sido esta, o que condiz com todo o discurso que ela fez no decorrer de seu intenso drama, dando uma sobrevida e alento a sua lamuriosa existência. A compleição da moça muda completamente, como se o fechamento do ciclo colaborasse para a vitória sobre sua condição, a prova de que conseguiria lutar contra as adversidades que se sobrepõem a ela, aceitando a condição de que eventualmente sofrer faz parte da experiência de viver.

  • Crítica | Debi & Lóide 2

    Crítica | Debi & Lóide 2

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    Quase 20 anos depois da estreia do primeiro filme, após uma pouco inspirada prequência, Jeff Daniels retorna ao papel pelo qual ficara marcado ao lado de Jim Carrey, cuja carreira bastante deficitária exigia um sucesso comercial urgentemente. Sob a rédea da dupla de diretores que também comandou o filme de 94, a obra inicia-se mostrando a melancolia que está a vida de Harry/Debi (Daniels) cuidando de seu catatônico amigo, traumatizado após a rejeição de Mary Swanson – obviamente não aventada no episódio anterior. Lloyd/Lóide (Carrey) finalmente acorda, saindo do estado débil para mostrar que era apenas uma piada que durou duas décadas.

    Assim como com seus intérpretes, os tempos contemporâneos não são gloriosos. Harry está com um grave problema de saúde, com os rins danificados, e morrerá caso não consiga um órgão novo. Após uma visita aos pais adotivos de Debi, a dupla descobre que o loiro possui uma filha com Fraida Felcher, citada no filme original. Já idosa, a personagem vivida por Kathlen Turner diz que a menina foi levada para a adoção, e que não tem contato com ela desde então.

    O chamado à aventura realiza-se e eles finalmente põem o pé na estrada, repetindo e refilmando inúmeras situações cômicas, como a paixão de Lóide por uma mulher inalcançável – no caso, Penny Pinchlow (Rachel Melvin), a herdeira de Felcher –, e também os percalços na estrada e as fantasias em forma de sonho que acometem os dois protagonistas. É curioso notar que nestas imaginações há dois factoides distintos: o primeiro normalmente exclui um amigo do sonho do outro, como se as vidas deles só pudessem ser perfeitas caso a interdependência se findasse, a despeito da longa parceria; o outro mostra ambos agindo em prol da honra alheia – esse, da parte de Lóide.

    O esqueleto do roteiro contém semelhanças com Debi & Lóide – Dois Idiotas em Apuros, tanto nas lutas imaginárias fantásticas quanto as com um núcleo de bandidos, que buscam satisfazer sua ganância financeira a partir da exploração de alguém rico. Uma dupla de vigaristas acompanha o doutor Pinchelow (Steve Tom), tentando roubar seu patrimônio, constituído de recursos conquistados por sua carreira promissora de cientista. O casal formado por Adele (Laurie Holden) e Travis (Laurie Holden) decide então vigiar a dupla de estúpidos numa viagem até uma conferência a fim de entregar uma descoberta valiosa a Penny mas, atrapalhada, esqueceu a encomenda em casa.

    As rugas e sobrepeso dos astros argumentam contra o filme, especialmente por repetirem-se demasiadamente as fórmulas que deram certo antes. Ao ser resgatado e engasgar no primeiro solavanco, o velho carro/cachorro é o símbolo visual mais claro desse inconveniente, uma piada auto imposta de modo bastante humilde, não se levando a sério. Apesar da limitação física, Carrey ainda consegue fazer as piadas corporais ao estilo de Jerry Lewis, no entanto ainda existe espaço para o humor escatológico, mas com doses moderadas, já que se trata de um produto para toda a família e que visa atrair o americano médio.

    Obviamente, grande parte da graça de Debi & Lóide 2 vem da nostalgia dos fãs de Carrey e Daniels, crianças e adolescentes que cresceram com os protagonistas sentindo saudade do humor pueril, descompromissado e baseado no velho besteirol que faz muito sucesso com as plateias estadunidense e brasileira.

    Após uma briga, Debi e Lóide rompem sua unidade, indo cada um para o seu lado. Nas posições distintas que assumem, cada um à sua maneira tenta alcançar Penny. Apesar de não aparentarem, ambos sentem demais a falta um do outro, não conseguindo se sentirem plenos sem o amigo ao lado. E a iminente morte de Harry faz com que Lóide perceba que a vida é curta demais para ficar longe de quem se ama.

  • Crítica | Que Bom Te Ver Viva

    Crítica | Que Bom Te Ver Viva

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    Com uma inicial trilha de piano, prevendo a tristeza e o azedume nos fatos terríveis que seriam mostrados em tela,  Lúcia Murat utiliza-se de sua experiência pessoal para contar, através de suas personagens, o porquê e como aquelas mulheres sobreviveram aos desmandos dos governantes militares após a instituição do Ato Institucional nº 5 e a prática da livre tortura contra quem se opunha ao tal regime.

    A personagem anônima vivida por Irene Ravache recebe inúmeros telefonemas, graças a uma entrevista, retirada de outra publicação, sobre tortura sexual. Ela nega que tenha dado qualquer depoimento e diz que o jornalista em questão sequer perguntou a ela sobre esta exposição. A dramaturgia da hoje veterana atriz serve para inserir o público no mundo denunciativo, aos casos deflagrados que revelam o corpo feminino como um objeto de tortura.

    O artifício da quebra da quarta parede exerce a função de tomar a atenção pública daqueles que costumam consumir as telenovelas, e alertá-los para a flagrante realidade dos anos de chumbo, que, apesar do tempo decorrido, ainda ecoam de modo cruel nas almas daquelas moças violentadas pelo DOI-CODI e por seus semelhantes. A narradora, e única personagem representada, tem a função de pôr o dedo na ferida, uma vez que, no início, a maior parte das entrevistadas está demasiadamente emocionada, e a maioria chega a chorar ao relembrar o que a acometeu.

    Ravache beira a tragicomédia em alguns momentos, quando, por exemplo, surge a lembrança de que seu parceiro sexual deixará de “trepar” com ela por este descobrir, pela imprensa, que ela é uma mártir, fazendo-se perguntar se mártires têm necessidades humanas básicas, assim como os torturadores, demonstrando ao espectador que a “inconveniente história” das moças precisava ser lembrada e passada à posteridade, já que a conveniência está ao lado dos que trouxeram o mal à existência daquelas damas. O equilíbrio entre esquecer e conviver com as lembranças que não podem ser esquecidas, para que não sejam repetidas, e para que atrocidades como a dos torturadores serem chamados por suas profissões liberais, ao contrário dos torturados, intitulados apenas como terroristas, sequer contemplava qualquer mudança de comportamento, utilizando-se do prefixo “ex” antes de tais adjetivações. A mídia era deveras conivente nos idos dos anos 80.

    Os depoimentos dos maridos das torturadas também são interessantes por mostrarem como é a observação daquelas que tiveram marcados seus corpos, almas e mentes por parte de terceiros, porém íntimos das vítimas. O descontrole de algumas delas perante questões que relembram aqueles traumas invariavelmente as fazia bloquearem sua psiquê. Para muitas que tinham problemas como a epilepsia, era complicadíssimo dar vazão aos ataques, mesmo que fossem completamente incontroláveis na maior parte das vezes.

    Por parte das moças, alguns sentimentos “errados” sobrepunham-se ao prazer de viver mesmo após o término das torturas, como, por exemplo, a banalização daqueles que as cercavam, dado o tratamento aos presos anos depois, e a culpa por estarem vivas e tantos outros, parentes, companheiros e afins que não tiveram a mesma sorte que elas, ou mortos ou desaparecidos. O desaparecimento é também uma grande arma dos ditadores, já que pressiona sentimental e psicologicamente aqueles que esperam as notícias de entes queridos, cujo luto não pôde ser sentido, tampouco estava viva a esperança de encontrarem os desaparecidos.

    O esquecimento é a omissão daqueles que a consideram conveniente. A gravidade é ampliada quando “esqueceram” de lembrar a essas moças que elas não podem mais sentir dor, ou rememorar todas as catástrofes que aconteceram naqueles ralos metros cúbicos, imundos, repletos de baratas, lagartixas e aranhas, animais que até aquele momento continuavam assustando e causando fobia nas mulheres.

    A tecla tocada de modo mais agressivo – e necessário – é a da sexualização, da necessidade da mulher em transar, em se saciar, mesmo que sua vida pretérita fosse incomum. A vida das mulheres precisava ser comum novamente, ou o mais próximo disso possível. O prazer faz parte das necessidades básicas humanas; as dores e as marcas nos seus corpos não eram fáceis de serem arrancados, mas negar uma faceta tão presente em suas vidas seria declarar derrota, dar razão àqueles que praticaram o mal em seus corpos e em seus espíritos, e este revés não é algo que nem as mulheres, nem as companheiras e nem as ativistas políticas gostariam, afinal a luta delas e de Murat não foi em vão. Elas não fizeram parte deste acordo de silêncio e certas estão com esta atitude.  Esquecer seria trair a luta e, principalmente, seria trair a si mesma, a memória dos muitos amigos e amigas e a memória delas. A tortura fez e faz parte das vidas. O comentário final é arredio, denunciativo e inconformista, mas, ainda assim, delicado e feminino, tanto na figura de Irene Ravache como no roteiro de Lúcia Murat.

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  • Crítica | Amores Imaginários

    Crítica | Amores Imaginários

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    O cinema do século XXI é um travesti com um leve complexo de inferioridade. Também é, pode-se dizer, formado por um quadrado ou triângulo de referências básicas e latentes, de vértices com nomes, ou melhor, sobrenomes: Federico Fellini, Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard, e por aí vai. Uma trinca, no caso, que os tempos modernos homenageiam e derivam muitas de suas glórias através das intervenções desse trio responsável, sobretudo, de muito da estrutura na qual essa arte se apoia, para o bem e para o mal. E do ponto de vista francês da miscelânea atual, cada vez menos, mas ainda bem vanguardista, a passagem do tempo parece ser mais explícita na carne, e não é pra menos. Se vem de lá a película mais antiga, faz sentido as rugas serem mais fundas na terra mãe de Georges Méliès. Que responsabilidade pensa ter essa juventude; os bisnetos de Jean Renoir querendo fazer história.

    Xavier Dolan, após Eu Matei a Minha Mãe e o tropeção merecido de Tom na Fazenda, conheceu aqui o próprio valor, ainda não imprescindível, e confia nele como só! Tenta amassar uvas para transformá-las em vinhos de qualidade, e os sabores de sua safra inicial de nada (quase não) ofendem os paladares mais exigentes, muito menos os nutridos e sedentos por novos padrões de comportamento, e coragem a tanto, é claro. Feito um Pedro Almodóvar que fala uma língua mais globalizada e bissexual, com a bandeira protetora e bem-vinda de uma nova geração de intenções e mentalidades diversificadas, calcadas na liberdade de criação e longe de ditaduras, imposições monogâmicas ou marcas severas na testa, as cores de Amores Imaginários ilustram a alma de Oscar Wilde em tempos mais libertários que o século XIX (e por vezes de libertinagem como contraste bizarro, à gosto do freguês). De qual outra maneira, senão ambígua e irrevogável, a sugestão de um trio amoroso seria acolhida em uma versão fetichista da França dos dias de hoje, refém dos experimentalismos cheios de vida de Fellini, dos matizes do design de Kubrick, e da poética revolucionária de Godard que tanto estão presentes no DNA atual, nas veias de um cinema que começa na telona e termina no YouTube?

    Tudo batido no liquidificador das belas artes, com cuidado para elas continuarem belas, numa narrativa não linear regida pela emoção, instinto de cineasta ou seja lá o que brota da psique de quem brinca de Deus, tudo ainda meio tresloucado, imaturo no exercício, é verdade, de um jovem diretor que se perde no engatinhar das manobras entre o que a linguagem tem a oferecer, e o que a mesma tende a distorcer, ou ainda, a mistificar.

    A ética artística de Amores Imaginários, o juízo do filme, grava com ferro a identidade do longa, filmado à flor da pele com uma cinefilia pingando pela vontade de se fazer cinema a sério. Contudo, a mesma ética de Dolan tem um longo caminho a trilhar nos cumes onde pode vir a adotar préstimos, mas essa espécie de comédia romântica trágica prova que o caminho é esse, e prova isso talvez cedo, na melhor das hipóteses, por mais que sua trilha-sonora de balada eletrônica nos forneça um leve “déficit de atenção” quanto a profundidade da iniciativa de principiante. Fantásticas melodias, pontuando elementos perdidos nas várias intenções, essas carentes de uma sintonia maior que ficou na vontade, entre saltos altos, nicotina e confissões de amores não correspondidos. Um filme adolescente para o mesmo público, banhado numa imaturidade convidativa, no que acaba por ser satisfatório, por enquanto na carreira de Dolan, no prazer inenarrável de uma história contada por alguém que tem fé em ser, e que quase consegue expressar ser nesse estágio prematuro que um dia sentirá saudades, um menino prodígio.

  • Crítica | O Ciúme

    Crítica | O Ciúme

    Um homem vive sua vida com a mente no passado, relembrando como eram os momentos áureos de sua carreira artística, em detrimento das poucas ofertas de trabalho que lhe apareceram. Louis (Louis Garrel) tem a confusão como modus operandi, em sua rotina empregatícia e amorosa. Em paralelo à sua derrocada na arte, há uma separação dele de sua atual esposa, a mãe de sua pequena filha, para assumir uma nova relação, livre das amarras da monogamia.

    A direção de Phillipe Garrel destaca o modo ensaísta de contar sua história, preconizada por um estilo narrativo modesto, sem qualquer medo de não apresentar pretensão. A fotografia em preto e branco torna óbvias as referências ao expressionismo, especialmente nas cenas solo, onde a mulher chora sozinha as mágoas da relação que inexiste e com os modos diferentes de suportar a dor da perda.

    Quando Louis é enquadrado ao lado das mulheres que são (ou que foram) seus pares, há um incômodo latente em sua expressão, relembrando o quão inadequado ele está com seus sentimentos, apesar dele ter sido o causador da mudança. O filme é predominantemente silencioso, com uma trilha presente quase sempre nos momentos de tensão e perseguição – esta remete à angústia e ao sentimento de perda.

    O choro e o medo fazem lembrar que mesmo que o desejo predomine sobre o amor, ainda há muito o que se perder quando uma relação é findada. O paradigma da posse sentimental é duramente escrutinado, sem qualquer necessidade de encontrar-se uma solução aceitável ou de moral positivista.

    O triangulo amoroso, de situações estranhas, faz lembrar o quão inexoravelmente complicadas são as relações e quão intrínseco pode ser o modo de vivê-las. O guião expõe de modo cru como o homem age, sem perspectiva de redenção ou vacilo de bom mocismo, mesmo com toda a trama envolvendo uma infante, que vive a absorver o comportamento errático dos que deveriam cuidar de si.

    A busca do protagonista por múltiplas parceiras revela o vazio existencial pelo qual passa, com a promiscuidade simbolizando a sua vontade de voltar no tempo, retornar a uma época sem maiores responsabilidades, de livre sexualidade. O clichê amoroso é exibido de um modo que foge da pieguice habitual do cinemão americano, deixando a reflexão por conta do público, sem indução de mensagem.

    A demanda pela identidade é a tônica em comum a quase todos os confusos caracteres mostrados em tela. As personas vão na direção de seus erráticos corações, como atores em uma peça de teatro grego, que por não terem as suas máscaras, não conseguem exercer plenamente seus papéis. A metalinguagem teatral do guião faz exacerbar a sensação tragicômica, elevando a realidade para um estado de limbo, onde a existência é bem difusa, cujas reações não se resolvem por si só.

    A conclusão do caso exibe a necessidade da posse, tolamente ignorada durante a exibição do drama. A moral do filme não é uma ode a monogamia, mas expõe uma mente constipada, cujo caráter de confusão forma um indivíduo emocionalmente inacabado, que não consegue se resolver sozinho, como a maioria dos humanos carentes.

  • Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

    Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

    A “beleza” da Cidade do Lago em chamas é a síntese do que funcionou na “nova” trilogia de Peter Jackson, cujos aspectos visuais superam, e muito, o conteúdo da adaptação. A Batalha dos Cinco Exércitos encerra, enfim, a enfadonha trajetória da prequência de Senhor do Anéis, começando pelo que deveria ter sido o encerramento: a morte do Dragão pelas mãos de Bard (Luke Evans), o herói resignado. Ainda neste início, a primeira das (muitas) cenas lamentáveis ocorre mostrando os cidadãos tentando se redimir pela honra do guerreiro, que combateu uma única vez e que é o único lúcido o suficiente para saber que não merece louros.

    A trama se divide em núcleos, como em uma novela. Da parte da Montanha, Thorin (Richard Armitage) se mostra entorpecido pelo ouro e pela Joia Real, a Pedra de Arken. O presságio da guerra inicia-se, mas a multiplicidade de  núcleos, que funcionou perfeitamente nos outros filmes, não repete seu êxito, sendo esta parte a menos interessante no início, especialmente pela proximidade da luta dos que protagonizam a alta classe dos personagens da outra trilogia.

    Apesar do ótimo começo, a batalha para salvar Gandalf (Ian McKellen) termina mal. Até o exagero de poder da parte de Galadriel (Cate Blanchett) e a boa luta de Elrond (Hugo Weaving) e Saruman (Christopher Lee) contra os fantasmas não têm qualquer conteúdo redentório se comparados ao desdobramento da aparição de Sauron, um acinte que já se mostrou errado em A Desolação de Smaug e que se repete desnecessariamente neste.

    O núcleo dos anões torna-se novamente interessante quando os elfos chegam, postados para a guerra. Como no livro, Thorin tem seus motivos justos para não querer dialogar com ninguém, mas sua postura voltada a um comportamento egoísta e maquiavélico empobrece o personagem, e especialmente a sua causa. O torpor do ouro causa uma febre no personagem, uma doença maligna mal apresentada e que facilmente convence os outros 12 anões a seguirem por tal caminho.

    O filme começa a mudar de caráter a partir da apresentação dos exércitos, em bravatas ditas pelo núcleo dos anões de Dain (Billy Connolly) e pelos elfos de Thranduil (Lee Pace), tão  logo esquecidas quando o ódio em comum pelos orcs de Azog se manifesta. Os efeitos especiais são postos à prova, não decepcionando quem os espera. A batalha é sanguinária, com mais figuras lutando entre si do que em um jogo de MMO RPG, fazendo com que os fanboys fiquem liberados a ter orgasmos múltiplos.

    O confronto ganha um caráter ainda mais épico ao finalmente apelar para o guerreiro mais esperado de toda a fita entrar em ação. Após uma reflexão do rei anão, Thorin finalmente vai à luta. Sua armada cavalga em cima de seus bodes montanheses, em busca do antigo rival.  Apesar de serem poucos, o apoio moral dado após a entrada do Rei e de seus próximos ao combate é incomensurável, e até empolgante.

    A postura que Legolas (Orlando Bloom) assume é vergonhosa. O romance não concebido de Tauriel (Evangeline Lily) e Kili (Aidan Turner) joga toda a parceria do arqueiro com Gimli em um tremendo mar de irrelevância. A comicidade excede seus limites na demonstração da velocidade de Legolas, tal como no combate mais esperado da minissaga, que se deu entre o rei anão e o Orc, que feriu seus antepassados.

    Mesmo com tantos defeitos, o embate é bastante épico. O engrossamento do caráter importante de batalhas, fodacidades pensadas por Jackson, finalmente logrou algum êxito, não o suficiente para justificar toda a embromação anterior, nem a banalização dos três maiores sucessos de sua carreira, que certamente não possuem qualquer semelhança com esta obra, graças à presunção, cafonice e ganância de seu feitor, é claro.

    A longa espera pelo velório do rei ao menos encerra a visita do cinema a Terra Média, levando-se em conta que, por enquanto, nem O Silmarillion, nem outras obras tolkienianas estão licenciadas para os estúdios. Aos fãs ardorosos, a despedida pode ser dolorosa, e o é, desde que se decidiu esticar aos montes uma história de 300 páginas, cujas lágrimas não são plenamente justificáveis; nem mesmo ante o aviso do Mago a Bilbo Bolseiro (Martin Freeman), com ciência da guerra que está prestes a ocorrer, diante de um futuro sequencial que já tem seu espaço nos anais do cinema. A porta da casa de Baggins se abrindo, para receber, enfim, seu morador, retorna, Lá e de volta outra vez.

  • Crítica | Ouija: O Jogo dos Espíritos

    Crítica | Ouija: O Jogo dos Espíritos

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    MALDITO COMPROMISSO ASSUMIDO! MALDITO! Começo assim essa crítica porque assumi o compromisso com o Vortex Cultural de ver e fazer a crítica dessa enorme tranqueira chamada Ouija: O Jogo dos Espíritos. Já nesse pequeno parágrafo introdutório, adianto a vocês que desperdicei uma hora e vinte minutos da minha vida, e aconselho a todos que fujam desse filme. E mais: se algum amiguinho disser que esse filme é bom, desfaçam a amizade com ele. Ele não é um amigo de verdade.

    Produzido pela Platinum Dunes, a empresa que cometeu Horror em Amityville, e pela Blumhouse Productions – especialista em filmes de terror de baixo orçamento, como a franquia Atividade Paranormal – o filme baseia-se no jogo de tabuleiro da Hasbro (empresa que detém os direitos dos Transformers e do jogo Batalha Naval), que é inspirado no objeto de necromancia utilizado para abrir um canal de comunicação com o além, para apresentar a história de uma garota que, inconformada com o estranho suicídio de sua melhor amiga, resolve usar a tábua Ouija para se comunicar com a defunta a fim de melhor esclarecer as circunstâncias de sua morte. Não satisfeita em fazer isso, a toupeira ainda coloca sua irmã e mais três amigos nessa roubada. Logicamente que a parada não dá certo e a patota arruma uma confusão gigante para as suas cabeças.

    A trama do filme não sustentaria um episódio de seriado, mas o diretor Stiles White tenta o tempo todo criar uma atmosfera de tensão e expectativa. Porém, tudo acaba indo por terra, pois o filme fica com um ritmo arrastado, irritante, somente se apoiando em portas que se abrem sozinhas, barulhos estranhos em locais diversos da casa, aparições da expressão “Oi, amiga”, e quando as entidades aparecem, elas não assustam ninguém. Basicamente, um amontoado de clichês mal utilizados. Só faltou a famosa cena do gato que assusta a protagonista. Para piorar, existe uma “reviravolta” completamente previsível. Fora que a fotografia do filme é um breu só e de uma indigência que chega a dar pena.

    O elenco também não ajuda: repleto de rostinhos bonitos e desconhecidos, porém qualquer refugo da Malhação é capaz de desempenhar um trabalho mais competente do que o apresentado nessa draga. Diria que apenas a protagonista Olivia Cooke, de Bates Motel, salva-se por pouco. A atriz defende com dignidade seu papel, com seus lindos e arregalados olhos castanhos arregalados transmitindo as emoções de sua personagem (basicamente um cagaço federal). A participação da veterana Lin Shaye (você a conhece de uma cacetada de filmes de comédia) é muito constrangedora. Remete aos vários papéis cômicos que ela fez.

    Resumo da ópera: fiquem longe disso aqui. Não assusta, não provoca tensão, muito menos medo. Qualquer episódio ruim de Supernatural consegue ser mais divertido que essa porcaria. Eu só de volta queria meus 80 minutos desperdiçados vendo isso aqui.

  • Crítica | A 100 Passos de Um Sonho

    Crítica | A 100 Passos de Um Sonho

    A culinária como metáfora ao cinema. E não só ao Cinema, mas a qualquer arte: Passou do ponto e o caldo engrossa pra nunca mais voltar atrás. É puro tempero, pura experimentação a partir de um paladar refinado, mesmo a favor de quem não sabe distinguir o bom do ruim, um queijo assim, um queijo assado; um quadro sagrado de um quadro estragado. Não há remendos ou curativos, isso é arte médica. Seja na panela ou numa câmera, a metalinguagem entre duas ou mais formas de expressão se faz valer na formação de um manifesto emocional ou cultural, na compatibilidade entre visões de mundo que se chocam e viram uma só. Lindo, tudo na teoria é lindo, mas em A 100 Passos de Um Sonho a culinária é mero subtexto e coerência extravisual de duas culturas (indiana e britânica), usando uma combinação de ingredientes como contraponto realmente fraco a pré-conceitos sociais, ou seja: uma mera desculpa para fazer o filme parecer comida fina, quando é só arroz e feijão requentado.

    A história do filme. Uma história de superação. Após perder a matriarca num incêndio doméstico, uma família liderada pelo pai e pelos sonhos deste e do filho mais velho se mudam de continente, em busca do sucesso e acolhimento europeu, além das espetaculares cores do oeste regional que se refletem na matéria-prima do que a família sabe fazer: cozinhar. Acabam atraindo a atenção da Madame Mallory (Helen Mirren), que como numa fábula de Pavel Bazhov não tenta lhes passar para trás e garantir a soberania de seu restaurante tradicional (como diz o slogan do pôster), mas quase os acolhe, com amor e admiração conquistados pouco a pouco pela própria família Kadam, numa excessiva duração do filme. Nada mais convencional, essa versão de Ratatouille no mundo real. Só não vale perguntar quem seriam os ratos se a visão do filme não fosse fabulesca…

    O Cinema como metáfora à culinária. Como captar com a íris de uma câmera o frescor (e o vigor, o brio) do ambiente e mixar, com a força visual de um bólido errante na tela, a infinita abundância de cores dos sítios franceses e âmbitos urbanos de Paris, ao que é mostrado no prato, em todo seu colorido que vem destes lugares? A fotografia do filme, resumindo, é espetacular. Uma cena, em especial, quando um dos casais nessa história dividida entre realização pessoal e sucesso comercial, caminham juntos pelos prados cintilantes durante a aurora crepuscular, é absolutamente exemplar a beleza que surge em nossos olhos, e debulha em prol de qualquer conceito sensorial a favor da imagem, degustada pelos nossos olhos. Quanto aos ouvidos, a trilha-sonora cumpre seu papel primordial e nada destacável a quem não se impressiona fácil, aqui, regida pelo famoso A. R. Rahman, o maestro da boa trilha de Quem Quem Ser Um Milionário?, que sabe a hora certa para pincelar no prato seus timbres extra-diegéticos, em certos momentos-chave do filme. Ainda assim, o choque musical entre ocidente e oriente em As Aventuras de Pi e Viagem a Darjeeling, principalmente o segundo, é apenas ‘‘mais completo”, para não usar de superlativos.

    Mas aonde está a alma do filme?, é a pergunta. A 100 Passos de Um Sonho é motivacional como deseja ser, ou só um filme para assistir antes de dormir e ter bons sonhos? Os matizes da culinária apresentada, e sem uma introdução adequada ao espectador que gostaria de conhecer mais do que rola nos comes e bebes da Índia, fazem relevo ou oposição ao brilho dessa história de esperança e sonho em família? A resposta é não, eles não fazem, e o filme nem chega perto de fazer, pura e simplesmente por não tentar não se ater ao lugar comum dos ‘‘filmes-estômago”. Um subgênero que já nasceu saturado esse, das iguarias e petiscos, que encontra na sua essência a razão para se colocar no Cinema, pois assistir a um filme é afinal saborear uma iguaria com os cinco sentidos, mas entendê-lo é comer de olhos vendados.

  • Crítica | Tom na Fazenda

    Crítica | Tom na Fazenda

    Quando Xavier Dolan brinca bem de Pedro Almodóvar, Michelangelo Antonioni, Rainer Werner Fassbinder e faz ciranda-cirandinha com Pier Paolo Pasolini, todo mundo ama – e não é pra menos. As boas sacadas de imagem, o carisma, o desejo pelo mundo da moda e da música, a trilha-sonora cosmopolita e extrovertida que faz seus filmes terem uma identidade chave em meio a produção do cinema francês, tudo isso marcou até então o início do garoto prodígio, que agora volta para solo nativo, o Canadá. E, de uma hora pra outra, com um filme por ano, como Woody Allen, Dolan resolve parar de brincar e deixa o playground, se achando um cineasta maduro, sério, e todas as pretensões que o leitor/espectador possa achar mais conveniente. O criador de Amores Imaginários, o melhor da primeira fase dele, decidiu que, após três filmes, já estava na hora de ter fases, e resolveu imitar Lars Von Trier numa mistura de Anticristo com Brokeback Mountain, sendo que aqui um dos cowboys já morreu antes da história começar, anunciando a tragédia que Tom na Fazenda não assume a vergonha de ser – de existir, numa carreira até agora tão bacana e, por enquanto, promissora.

    O cara gosta de atuar, mas sem uma Monia Chokri ao lado fica difícil de convencer a dor existencial de quem perdeu o amor para a morte. O filme é totalmente assexuado, muito cérebro e pouco tesão; coração: zero. Totalmente abstracionista em conceitos e aplicações de éticas artísticas e consciências artísticas que Lawrence Anyways, de 2012 – ‘‘filme-fetiche” dos mais ocos, toscos e superficiais, que recebeu nota mínima na Escola LGBT Almodóvar de Cinema –, já dava indícios óbvios de que o processo de saturação da personalidade já havia começado, concluindo-se em Tom com cenas de dar vergonha alheia (o cara não sabe filmar a beleza de um nascer do sol) e de nos fazer duvidar da sorte de principiante que Dolan pode ter tido nos seus dois bons filmes de estreia, merecidamente ovacionados como propostas ousadas de recriação de formas, já empregadas desde sempre.

    Adaptado de uma peça de Michel Marc Bouchard, o drama é tratado de forma tão fechada e controlada, claustrofóbica, ofegante, que a emoção da história, os nervos à flor da pele a ponto de explodirem, se exala não pelo tratamento das personagens – o que não existe aqui, sendo que cada figura é fruto de estereótipos de um cinema velho, que nada condiz com a expectativa do talento ‘‘original” de Dolan –, mas sim pelo desejo que esse arremedo de história –e o pior, tratado como um arremedo – acabe o mais rápido possível, ou que alguma banda de pop-rock comece a tocar um sonzinho legal pra melhorar as coisas, pelo amor de Deus.

    O diretor (mais tarde a gente vê se é cineasta mesmo, pouquinho mais de arroz e feijão), já confiante que é o Quentin Tarantino da vez, se arrisca mais longe, muito mais alto, com Alfred Hitchcock (é aqui que a gente ri), e se não cai para a morte tipo Kim Novak para a decepção de quem o acompanhava com toda a expectativa do mundo, é atacado pelo o que vem de cima, quando já se considerava intocável. Tom na Fazenda é cinema de armário, limitado, enquanto, ilusoriamente, se enxerga arrasando na parada gay. Que “menos é mais”, todo mundo sabe. Mas que ‘‘mais” pode ser ‘‘menos’’, esperamos todos que Dolan tenha aprendido. Até porque Von Trier não é exemplo pra ninguém.

  • Crítica | Hell Ride

    Crítica | Hell Ride

    Silencioso em seu início, Hell Ride é movido pela ilusão de uma musa que inebria o imaginário de Pistoleiro, personagem de Larry Bishop, ator que também dirige o filme. Logo no começo, ela é cortada, já que assim que abre a boca, termina com qualquer possibilidade de santidade na abordagem da fita. Em menos de quatro minutos de exibição, os signos visuais já demonstram a rotina do seu herói, ligada  – e muito –  a sexualidade e violência extremas.

    O arquétipo gráfico provindo dos filmes noventistas de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino (produtor do filme) é notado de cara, ao mostrar um deserto repleto de sangue, chumbo, cadáveres e referências à figura diabólica, além de uma ode à pornografia em geral. A tentativa de emular os momentos de Um Drink no Inferno é válida, no entanto, o excesso de flashbacks e a linha temporal pouco afeita à normalidade são maneirismos que irritam o público logo no início, a despeito até da estética de “sexo, drogas e rock’n roll“.

    Ultrapassada essa excessiva transição temporal desmedida, é contada uma trajetória de vingança que remete a um infante que assiste à morte de uma índia cherokee inocente, resultado de uma inimizade entre duas gangues de motoqueiros que cobram um alto preço pela morte. Os dois lados opostos são os Victors, liderados na contemporaneidade pelo Pistoleiro, e os 666 Wings, afiliados a Billy Wings (Vinnie Jones), que com sua metralhadora/besta, impinge aço àqueles que se opõem a sua vontade e ao seu regime.

    A volúpia por repetir alguns dos elementos de ebriedade vistos em Sem Destino soa risível. Bishop filma momentos em que são manejadas drogas pesadas, causando na lente uma diminuição de velocidade, como se o mundo tentasse adequar-se à tontura causada pelo uso excessivo de entorpecentes. O artifício funcionou para os anos sessenta, mas em 2008 soa como um pastiche, como um conto caricatural sobre os elementos típicos do estilo de vida sob duas rodas.

    O elenco de coadjuvantes é estrelado pelas figuras carismáticas de Michael Madsen, David Carradine e Dennis Hopper, que tentam esconder a falta de capacidades dramáticas dos protagonistas, especialmente de Eric Balfour, que vive o novato Comanche dos Victors. Toda a curta duração do filme se encaminha para o embate entre Pistoleiro e Billy Wings. Uma vez alcançado, o entrave mostra-se truncado, mas com uma boa dose de violência extrema, qualidade que demora demasiadamente a ser explorada, mas que ainda assim é insuficiente para as expectativas ligadas a um filme B, como esse.

    Todo o sangue e depravação que vêm dos quase noventa minutos de duração do filme de Larry Bishop escondem uma mensagem de fraternidade e honra, que, no entanto, não é super explorada, uma vez que o roteiro se rende até aos clichês mais básicos como a tão repetida questão do amor imortal, tendo a justiça como o norte e objetivo a ser seguido. Em paralelo aos comentários sociais e anárquicos dos filmes que o inspiraram, Hell Ride não diz quase nada, serve apenas uma distração munida de elementos comuns aos produtos de mountain bike.

  • Crítica | I am a Ghost

    Crítica | I am a Ghost

    Indo contra a corrente do cinema de terror mainstream e sem se ater a clichês imensos, I am a Ghost, do realizador H. P. Mendoza, trata a lentidão da abordagem de seu filme como principal fator de suspense, levando o público vagarosamente para o estado de completo apavoramento. A história contida na fita mostra Emily (Anna Ishida), uma moça que tem insights curtos, aparecendo em diversos cômodos de sua residência, sem uma explicação mínima do porque tudo em sua vida se repete.

    A câmera manipulada por Mendoza é intrusa, adentrando a intimidade de Emily de modo invasivo, quase como se ela não tivesse uma identidade bem formada – tal prerrogativa seria explicada mais a frente. As cenas inconclusivas remetem à influência que o diretor teve no expressionismo alemão e a razão das filmagens terem transcorrido a este modo somente são explicitadas com o decorrer do filme.

    Não demora muito para que a origem da protagonista seja contada, fazendo jus ao nome do filme. Os flashs relapsos, relembrando a vivência corpórea de Emily, escondendo o segredo macabro que a fez perecer, selado sobre as falas de um contato externo. As cenas são quase todas encerradas em si, raramente há cortes seguidos sem uma claquete em forma de penumbra, em um breu assustador. A vista panorâmica aumenta a sensação de “vigiar a rotina” da protagonista, não necessariamente voltada ao medo.

    A narração da médium invisível Silvia – com a voz de Jeannie Barroga – quebra o mistério, explicitando os segredos do roteiro e de sua fórmula, mas introduz o terror do autoconhecimento. A plateia é introduzida na história através dos olhos e das atitudes de Emily, o que claramente complica qualquer associação da moça com as ações vilanescas que lhe são atribuídas.

    A explicação para a repetição de atos que corre todo o filme é inteligentíssima, se encaixando perfeitamente à sua proposta, relacionando até os cortes, sombras e os largos espaços de percepção que ela tem entre uma atitude e outra. A expectativa para mostrar o monstro que aterroriza o fantasma é enorme, e ainda mais assustadora do que qualquer premissa precipitada poderia antever. Buscar as pistas torna-se um aprazível exercício, já que a despeito até das “narrações” que deveriam elucidar, só aumentam a aura de mistério, algumas vezes até distanciando Emily de um merecido descanso.

    A busca pela autonegação fez Emily inventar estratagemas e histórias periféricas a sua, tudo para não assumir sua condição ainda em vida, que explicaria o terrível medo que a assombrou. O transtorno que ocasionou a bifurcação da alma revela que a parte entorpecida e maléfica de Emily é um signo, que serve para relembrar que a alma do homem é inexoravelmente dúbia, encerrando em si a ordem e o caos, a bonança e a maldição. O desfecho do filme é maduro, mais adulto do que a maioria de seus primos blockbusters, mostrando que a violência sofrida por ela é um ato flagelo, impingida por si, só podendo ser evitado ou revidado pela própria, num paralelo repleto de significados e de fácil associação com os dramas humanos.

  • Crítica | Saint Laurent

    Crítica | Saint Laurent

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    É possível sentir o cheiro dos bastidores de um teatro, de um camarim, da sala dos objetos de cena, do estoque de cheiros concentrados e misturados, assistindo este filme. Aqui, tudo parece ter cheiro, gosto, tamanha a fidelidade e realismo do charme de uma época tão bem reconstruída, tal cena de crime, todavia, e como dificilmente deixaria de ser, com uma grande liberdade ao estigma de ficção, para que o amor possa à arte, assim, integrar a obra e vida do estilista título; figura corrompida pela própria visão de mundo que ostentava, e que o filme usa em sua identidade visual, feito manifesto inter-contextual que se orgulha de ser, em resumo.

    Um fashion film autêntico, de cabo a rabo, aberto a quem não entende ou codifica o universo dos tecidos, produzido a algo mais do que impressionar aqueles que saem de casa com a primeira camisa à vista, mas não indo muito além que denunciar as “traças” que se escondem debaixo dos panos, sem cinismo ou crítica irônica, afinal, descer do salto não é o caminho. Um trem de carga leve em trilhos de porcelana: um milímetro pra fora e tudo se espatifa em louça branca. Saint Laurent, a cinebiografia, é Cinema frágil e que tenta achar um sentido mais profundo no próprio visual, a despeito de ser uma tentativa abaixo da capacidade de quem comanda o desfile.

    O esforço por colocar um coração no robô aponta semelhança com outras biografias recentes, cada uma com seu tema, é claro: A Dama de Ferro, Sete Dias Com Marilyn, Jobs, Getúlio, Versos de Um Crime, projetos incompletos que buscam no poder de suas atuações principais um gancho e uma âncora para o que nós podemos chamar de “inesquecível”. Pura falácia desonesta, injusta e, portanto, incompleta. É por não ser assim que A Rede Social, de David Fincher, merece ser um parâmetro bem-vindo e expandido a partir de suas qualidades.

    É inusitado notar como Saint Laurent, filme logo adotado nas palavras de André Bazin, antigo e famoso crítico de cinema, tem seus tímidos arcos de história de segundo plano gravitando ao redor da concepção ambulante que é o estilista, mais homem que artista, num desequilíbrio proposital de roteiro e narrativa, na pele de um inquieto Gaspard Ulliel, bom ator, empolgado e que esconde nos olhos a ânsia de ser tão grande quanto sua moda o denuncia ser. Tudo parece tão teatral, casinha de boneca, cinema britânico de tão certinho que o conjunto é, mas ainda assim, pulsante graças a um equipo à base de soro convencional. Dosagem excessiva de eficientes atuações, novamente dando o tom sensorial na projeção.

    É belo como um plano pode ser o clímax de um filme: o criador admirando sua criatura no topo da escada, ai se esconde a sutileza, o valor, o prestígio de um filme como esse, dedicado a galgar os próprios detalhes, feito a manga abotoada de uma camisa sob um terno na altura do pulso. E é chato, contudo, como o que poderia ser mais explícito acaba sendo uma gravata escondida; escondida à promessa de mais camadas de luz a favor do marco que o filme poderia ser, não apenas “mais um”, o que não reflete a posição de destaque de quem transformou a indústria da moda.

    E com a palavra, André Bazin, que por sua vez revolucionou a crítica de cinema: “É uma tarefa ingrata, mas também a única chance do Cinema, a de tentar agradar um público vasto. Ao passo que todas as artes evoluíram desde o Renascimento para fórmulas reservadas a uma minguada elite privilegiada, o Cinema é coisa destinada às massas do mundo inteiro. Portanto, toda pesquisa estética fundada numa restrição de seu público é, acima de tudo, um erro histórico fadado ao fracasso. Um beco sem saída“.

  • Crítica | Caçada Mortal

    Crítica | Caçada Mortal

    Caçada Mortal - Poster

    Aos 60 anos de idade, Liam Neeson vive um novo momento da carreira. Após diversas grandes interpretações em papéis dramáticos – incluindo o que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator, em A Lista de Schindler –, transformou-se em um ator de ação em razão da sempre competente performance, do carisma e do porte de 1,93 metros.

    Desde 2005, o irlandês escolheu projetos de filmes de ação, como Busca Implacável, Desconhecido e Sem Escalas, nos quais usa o mesmo estilo de personagem com eficiência suficiente para agradar aos fãs do gênero. Nesta nova produção, a ação fica em segundo plano, dando lugar a uma narrativa policial baseada em um dos personagens criados por Lawrence Block.

    Detetive particular não licenciado, o ex-policial Mathew Scrudder é a criação mais famosa do autor, sendo estrela de 17 livros até agora e, nos cinemas, também foi interpretada por Jeff Bridges em 1986. Caçada Mortal, de Scott Frank, adapta a décima obra com a personagem, um alcoólatra em recuperação que, após uma crise de consciência, abandona a corporação. A trama roteirizada e dirigida por Scott Frank (escritor de grandes obras como Irresistível Paixão e O Nome do Jogo, e tragédias como Wolverine: Imortal) é bem adaptada no estilo narrativo de Block. A prosa seca, sem muitos floreios, mantém a eficácia de sua personagem e, no filme, este recurso é apresentado ao longo de uma trama que não exagera em reviravoltas e ganchos, como diversas investigações cinematográficas atuais.

    A primeira cena, que se passa em 1991, apresenta o passado de Scrudder, aproveitando cada segundo exibido em tela. Simples e rápido, o momento serve para que o público compreenda o passado turbulento do ex-policial. A composição do detetive não reinventa nenhum padrão, mas segue o estereótipo tradicional do homem com um passado negro vivendo um presente difícil entre a negação e certa ironia contida. Uma figura niilista que, mesmo sendo um bom moço, parece não se importar com ninguém. O detetive é contatado por um traficante de drogas para investigar os responsáveis que sequestraram e mataram sua esposa. Uma morte que se revela parte de uma série maior de assassinatos.

    O assassinato e a investigação são os fios condutores da trama. Os elementos típicos de um policial herói, centrados em Scrudder e em sua mudança pós-álcool, fazem parte da concepção do gênero. O suspense carrega boas inferências de crueldade e mantém-se bem durante a trama. Trata-se de um enredo tradicional, portanto nada mais natural que o crime em si seja apresentado de maneira que choque o público inicialmente, para aliviá-lo na resolução final em que, na medida do possível, pune criminosos.

    O bom suspense não se consagra por completo devido à presença de um personagem juvenil que descaracteriza a intenção da história. Por pouco, o jovem não cai na armadilha de ser um gancho para a inevitável cena em que ele tenta algo heroico e se torna um fardo que deve ser salvo pelo personagem central. O recurso que tenta humanizar a figura fria do detetive quase é responsável por destruir a história e o suspense desenvolvidos em cena. Há muitos policiais da ficção que trabalham com parceiros esporádicos e uma equipe informal, porém, dentro da trama, parece inverossímil que o ex-policial queira envolver um adolescente em uma trama delicada.

    A repetição de personagens semelhantes em produções próximas – o personagem de Sem Escalas também era um ex-policial alcoólatra, por exemplo – retira parte da identificação literária de Mathew Scrudder. Em compensação, Neeson demonstra, além da competência, se divertir nesta nova fase da carreira, e poderia representar a personagem em outras futuras adaptações. Afinal, aos 76 anos, Lawrence Block não para de escrever. Como um bêbado sorvendo sua bebida.

    Compre aqui: Caçada Mortal – Lawrence Block

  • Crítica | À Procura

    Crítica | À Procura

    Sob planícies geladas, destacando a alva cor que a neve produz sobre o solo, À Procura remete a um estado de tranquilidade gerado por um ambiente onde quase não se percebe a ação humana. Exceto pela habitação isolada de seus personagens, indivíduos que vivem suas vidas normalmente dentro de casas modernas, ambiente que contrasta com o extremo frio que predomina do lado externo.

    A trama de À Procura envolve uma forte sensação de impotência por mostrar um pai – Mathew, vivido por Ryan Reynolds, num dos raros momentos em sua filmografia em que seus talentos são exibidos de modo conveniente – que tem suas habilidades de protetor postas à prova, fracassando de modo retumbante enquanto guardião de sua família. Na primeira conversa mais longa que seu personagem protagoniza, percebe-se um claro incômodo de quem está do outro lado da linha, forçando um sentimento de amor correspondido que não condiz com a realidade, ou com a expressão de Tina (Mireille Enos). A sensação de isolamento é novamente flagrada pela câmera num momento ainda mais evidente e palpável que o anterior.

    Um caso policial seria o motivo da discórdia, o que envolve um outro núcleo de personagens ligado à investigação criminal. O mistério quanto à origem do abismo emocional entre o antigo par logo é revelado, com informações gradativamente liberadas. Ao buscar Cass (Peyton Kennedy), Mathew se descuida, e a menina é raptada, ficando anos longe de seus parentes e tornando-se adulta, agora interpretada por Alexia Fast. O peso sobre as costas do pai é esmagador, mesmo após tantos anos. O que antes foi causado por um misto de displicência e ingenuidade provoca no emocional do sujeito uma culpa atroz, graças ao impacto gerado em seu cotidiano e, claro, nos seus sentimentos.

    O desenrolar das investigações encabeçadas por Nicole (Rosario Dawson) fazem os ecos do descuido soarem ainda mais amedrontadores na psiquê de Mathew ao ser indagado se ele teria estado em algum outro ponto antes do desparecimento de Cassandra. Mesmo a rotina dos inquéritos policiais o ofendem, uma vez que sua autoestima está abalada. O auxiliar de detetive, Jeffrey (Scott Speedman) tenta aplacar a situação, cavando ainda mais fundo dentro da cabeça do confuso pai.

    A câmera de Atom Egoyan registra o cativeiro de Cassandra, exibindo o narcisista raptor, que ao mesmo tempo que vigia sua presa, tem um espelho à sua frente, o símbolo da paranoia e da eterna autoanálise, o cuidado supremo para que nenhum detalhe fuja aos seus olhos, para que nenhum eventual acontecimento frustre seus planos. A motivação de Mika (Kevin Durand) é tão misteriosa quanto seu semblante, especialmente no que tange Cassandra. A moça é o intermediário entre uma intricada rede de exploração sexual infantil, e é ela quem faz contato com as crianças, ainda em sua cela moderna, no frio lugar exibido no começo da fita.

    A sociedade da informação se mune da alta tecnologia para praticar seus pecados morais, voltando os arquétipos pensados em 1984 por George Orwell para um dos aspectos mais podres da alma humana. Seis anos passados do incidente inicial, ambos os casos caem na rede de averiguação de Jeffrey, que logo trata de falar a mãe da menina, que enxerga na participação da filha uma monstruosidade quase tão grande quanto a que aquelas pessoas fizeram a ela, claro, culpando mais uma vez seu já débil marido.

    O viés escolhido pelo roteiro peca demais em sutileza, inserindo convenientemente os policiais no mesmo contexto dos marginais que praticam a rede de mentiras e que obviamente emboscam-nos. O mesmo se pode dizer das cenas de reencontro entre os parentes, há muito separados. Apesar de reafirmar a crueldade dos vilões, quase nada se acrescenta nos momentos de embate entre os justiceiros e os bandidos, fazendo o que deveria ser um intrigado suspense tornar-se uma desnecessária batalha maniqueísta.

    O modo como a história se fecha apresenta uma estranha sensação de que finalmente os eventos voltarão ao normal, apesar do número crescente de mortes. Além disso, a resolução é bastante estranha, como se tentasse emular a capacidade de pensamento dos que arquitetaram todo o circo emocional ao redor do rapto de Cassandra. Como em Sem Evidências, Egoyan tem em mãos uma premissa muito boa, mas apresenta uma condução equivocada, que se enrola nas próprias regras dramáticas que ele engendra.

  • Crítica | Chef

    Crítica | Chef

    Chef - poster

    Depois de dirigir o espetacular Homem de Ferro e os não tão espetaculares Homem de Ferro 2 e Cowboys & Aliens, filmes de orçamentos altíssimos que foram cercados de expectativa, Jon Favreau parece que resolveu se reciclar e fazer algo mais intimista, em cujo projeto pudesse ter maior liberdade. O resultado final foi Chef, um autêntico “feel good movie”, mas que também pode ser chamado de feel hungry movie, como bem disse um amigo meu.

    Na trama do filme, Favreau interpreta Carl Casper, chef de cozinha de um badalado restaurante de Los Angeles. Casper volta e meia entra em rota de colisão com o dono do estabelecimento – interpretado por Dustin Hoffman – por querer inovar o cardápio do lugar ao invés de manter os pratos mais pedidos pelos clientes. Certo dia, um renomado crítico culinário vai ao restaurante e critica justamente a falta de imaginação do menu do lugar, o que deixa Casper furioso. O chef então, resolve rebater as críticas através do Twitter, desafia o crítico a voltar ao restaurante para preparar um cardápio especial pra ele. Porém, o dono do local acaba demitindo Casper e servindo o menu repetido. Em um acesso de fúria, Casper acaba fazendo um desabafo e desferindo uma série de desaforos pro crítico. Toda a confusão viraliza na internet, o que acaba lhe fechando as portas para trabalhar em outros restaurantes. Sem saída, ele acaba aceitando o conselho de sua ex-esposa (Sofia Vergara) para reiniciar a carreira em um caminhão de comida.

    Gostaria de dizer que esse filme não deve ser assistido de barriga vazia. Chef abre o apetite e, se bobear, há o risco de o espectador se pegar salivando em frente à TV. Jon Favreau praticamente filmou um pornô gastronômico em alguns momentos, tamanha a sua preocupação em exibir os mínimos detalhes dos ingredientes, do preparo e do resultado final de cada prato. Isso definitivamente não é uma coisa ruim, porque somente explicita o esmero do chef Carl Casper em fazer desde um café da manhã para seu filho até os pratos mais elaborados que são servidos ao longo do filme.

    Favreau também se esmera em filmar as relações humanas que ocorrem durante o filme, seja em diálogos constrangedores – como o que ele trava com o personagem de Robert Downey Jr. (em uma ponta hilária) – ou em momentos mais ternos, como os que ocorrem entre Casper e seu filho. Mais importante ainda é que mesmo os personagens um pouco mais caricatos, como o interpretado por Bobby Cannavale, não caem no ridículo em momento algum. O editor evita estereotipar os personagens. Interessante também é a visão que o diretor tem das redes sociais. Em nenhum momento Favreau as demoniza. Ao contrário do que costumam fazer em outros filmes e em outras mídias, aqui elas têm papel fundamental na trama sem que haja exagero sobre o alcance e o poder que possuem.

    Outro ponto importante é a ótima química entre Favreau, John Leguizamo e o garoto Emjay Anthony, intérprete de Percy, filho do chef. Os três atuam de forma bem natural e sem nenhum tipo de afetação, proporcionando momentos engraçados e alguns recheados de ternura. O restante do elenco estelar também se sai muito bem, com destaque para Robert Downey Jr., como dito no parágrafo anterior, a sempre competente (e linda) Scarlett Johansson, que interpreta a recepcionista do restaurante de Dustin Hoffman (também ótimo em sua pequena participação). Sofia Vergara foge do estereótipo da latina quente e espevitada de sua personagem na série Modern Family e entrega uma atuação mais contida e bem interessante.

    Entretanto, o filme peca um pouco justamente no seu desfecho. Quando poderia seguir por uma rota mais ousada, o roteiro acaba por entregar uma solução fácil, ainda que redentora e feliz. Nada que seja capaz de estragar o brilho dessa empreitada bem executada e cheia de tempero do multi-tarefas Jon Favreau.

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  • Crítica | Branco Sai, Preto Fica

    Crítica | Branco Sai, Preto Fica

    Voltando seus esforços para o cenário predominante em sua vida artística, Adirley Queiroz usa a música via rádio para estabelecer um lugar comum, a base de operações de seu Branco Sai, Preto Fica. A história é narrada a partir do cadeirante e musicista Marquim do Tropa, um rapper que vive seus dias narrando suas experiências no passado, quando frequentava uma boate disco décadas atrás, antes das muitas preocupações que envolvem sua vida atual.

    A cidade da periferia do Distrito Federal, Ceilândia é um personagem por si só, remetendo a um apartheid social semelhante ao tema discutido pelo roteiro, que destaca a segregação racial, vista no título e no grito dos policiais, que invadiam o baile, respondendo de maneira desmedida a pessoas que não praticavam mal nenhum e que tampouco tinham qualquer chance de contra-ataque.

    A carreira de Adirley praticamente destaca a valorização do rap e a sua cidade, tendo em comum a fala sobre repressão e cerceamento de direitos, ocorrida de modo arbitrário. O direito de ir e vir é a maior das privações mostradas pela lente, exemplificada pelas pernas, amputadas ou inoperantes, de seus personagens centrais.

    O elenco é formado quase em sua totalidade por não atores, o que torna ainda mais curioso o fato de os personagens retratados em tela serem levemente inspirados em seus intérpretes. A colaboração do elenco com o roteiro é notória, especialmente no que tange a cessão de muitos detalhes e corruptelas de suas vidas particulares.

    A comédia predomina em alguns pontos da fita, fazendo uma descontração necessária diante da historieta tragicômica, que emula a realidade da capital do país. O viés de ficção científica, baseado no núcleo do talentoso ator Dilmar Durães faz menção a alienígenas, seres que vêm de fora da Terra para analisar o campo de batalha que se tornou o Brasil, que através de clichês tecnobabbles grafam a disparidade existente nas vidas dos marginalizados e dos que detêm os meios de produção, resvalando num panfletarismo que não incomoda.

    O escapismo presente nas histórias paralelas se confundem com o plot principal, trazendo um bocado de espírito nonsense ao caráter de Branco Sai, Preto Fica. O desfecho guarda uma revolta com o sistema, justificada pelos anos de exploração dos que têm pele negra. O estilo narrativo denota uma coragem grande, que incita no público uma curiosidade atroz, de como seria a régia de Queiroz em um pomposo e caro blockbuster, com expectativa de que tal filme tivesse uma mensagem tão densa e reflexiva quanto neste.