Categoria: Cinema

  • Crítica | Sound City

    Crítica | Sound City

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    Dave Grohl é um sujeito inquieto. Ex-baterista do Nirvana e frontman do Foo Fighters, Grohl vive envolvido em projetos paralelos, sendo o mais recente voltado aos cinemas. No documentário Sound City, ele explora um pouco da história do extinto estúdio de gravação Sound City Studios, lançando um olhar nostálgico sobre o lendário estúdio onde foi escrito um pedaço importante da história do rock.

    Criado em 1969, em um canto esquecido dos EUA (Van Nuys, California), por Joe Gottfried e Tom Skeete, e encerrando as atividades em 2011, Sound City foi um reduto de grandes músicos, produtores e gravações de álbuns épicos. O estúdio foi o lugar onde Neil Young gravou o clássico After The Gold Rush em 1970; onde Stevie Nicks e Lindsey Buckingham se juntaram ao Fleetwood Mac e gravaram o álbum homônimo, considerado por muitos um dos melhores álbuns da banda; ou mesmo quando Kurt Cobain, Krist Novoselic e o próprio Grohl decidiram virar o cenário musical do avesso ao gravarem Nevermind, no começo dos anos 90; se isso não for o bastante, em 1996, Johnny Cash, já debilitado, se juntou ao produtor Rick Rubin e gravou Unchained, o que fez sua carreira sair do ostracismo, ganhar o Grammy de Melhor Álbum Country, além de ser indicado como Melhor Vocalista Country pela performance em Rusty Cage; tudo isso ocorreu no lendário Sound City Studios.

    Grohl se faz valer de seu nome na indústria e consegue arrancar diversas histórias de artistas e as experiências dessas gravações. É um deleite para os amantes do rock and roll ouvir histórias de Neil Young, Tom Petty, Lars Ulrich, Rick Rubin, Barry Manilow, Josh Homme e tantos outros.

    A mística que envolve o estúdio é um ponto interessante comentado no documentário. Grohl deixa claro, através das diversas entrevistas, que o diferencial do estúdio era a postura dos profissionais ali presentes, já que Sound City estava bem distante dos grandes estúdios de gravação que possuíam áreas de lazer com banheiras de hidromassagem para os músicas relaxarem, muito diferente do estúdio da Califórnia que tinha seu estacionamento inundando constantemente, que possuía um fétido carpete velho revestido pelas paredes, nada de equipamentos de última gravação, ainda assim, Sound City possuía uma das melhores salas acústicas para se gravar bateria, além, é claro, da lendária mesa de gravação Neve 8078. O diferencial do Sound sempre foi a música, e apenas ela.

    Aliás, a questão analógico x digital é um dos temas centrais do documentário. Grohl deixa claro que não foi a atmosfera de pelúcia dos estúdios atuais, ou mesmo a facilidade de gravação que programas como o pro-tools ou auto-tunes proporcionaram à concepção de grandes álbuns. Ele destaca o elemento humano de tocar e errar junto, gravando quantas vezes forem necessárias para se conseguir o registro ideal. Possibilidades permitidas pelas jam sessions, seja na mudança de arranjos e novas composições, mas substituídas por alguns cliques em poucos minutos. Apesar dos benefícios que a tecnologia trouxe para a música, Grohl afirma que, em maior proporção, que esses fatores foram deixados de lado em função desses meios tecnológicos, e que isso se reflete no cenário musical atual. Até mesmo Trent Reznor, famoso pelo uso de meios digitais em seus trabalhos, destaca que as tecnologias devem ser utilizadas em função da música e nunca substituindo o contrário.

    A hora final do documentário conta um pouco sobre como a era digital acabou com os estúdios analógicos, caso da Sound City, e relata sobre as gravações de um álbum em seu estúdio utilizando a mesa de gravação Neve para capturar a química do lendário estúdio. Os minutos finais reúnem um momento único em que Grohl, Krist Novoselic e Pat Smear (guitarrista de apoio do Nirvana) se juntam a Paul McCartney para uma jam incrível.

    No fim das contas, Sound City é um pedaço de uma importante história da música, e, acima de tudo, deixa claro que em qualquer trabalho, o elemento humano nunca poderá ser substituído.

  • Crítica | Machete Mata

    Crítica | Machete Mata

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    A nova vida do personagem-título já é modificada logo no início da trama. Mais uma vez lançando-o numa caçada de vingança sem muita enrolação, a narrativa mostra-se tão louca e desvairada quanto a do primeiro filme. Machete prossegue com suas execuções, munido de lâminas gigantescas e dilacerando corpos como se fossem de papel, tornando-se um herói ainda mais imune a dor e coisas letais e uma figura imortal enquanto tiver uma missão.

    A abertura com um toque de psicodelismo e silhuetas femininas lembra as sessões de matinê, além de remeter obviamente aos preâmbulos de 007. O herói é obviamente um super agente à maneira mexicana. Nesse mundo exagerado, o presidente americano não poderia ser Obama, mas sim um branquelo, farpador, beberrão e drogado. Carlos Estevez o interpreta muito bem, especialmente quando narra o esdrúxulo plano contra o vilão latino: o discurso contém meia dúzia de frases de efeito, mas ainda assim sensibiliza o paladino xicano.

    O sorriso do Senador John McLaughlin no final do primeiro episódio é justificado. O elevado muro que planejou foi enfim construído, o que ocasionou um aumento substancial da violência nas ruas mexicanas, aumentando o poder dos cartéis. Mendez (Demian Bichir) é um justiceiro/soberano com desvios de comportamento e múltiplas personalidades, que, apesar de seus atos inconsequentes, busca uma alternativa justa para o seu país. O passado do personagem esconde motivações parecidas com as de Machete. Rodriguez usa toda a bagunça visual e os clichês de action movies para mostrar uma triste situação com sua pátria-mãe, e eleva ainda mais o herói mexicano em detrimento dos americanos motherfuckers. A crítica política aos americanos não envolve somente o menosprezo dos estadunidenses perante os mexicanos, contempla também a paranoia de não mais existir nenhum opositor demoníaco desde Bin Laden.

    O desenvolvimento da trama é qualquer coisa. Ao fazer um paralelo com Jack Bauer e 24 Horas, inverte o lado da paranoia terrorista de forma jocosa. Rodriguez não tem receio de abandonar as ideias do primeiro filme e mudar o gênero. Como é prazeroso reassistir Mel Gibson em um papel canastrão por essência, sem que este esteja produzindo/dirigindo um filme. Luther Voz tem o cinismo do Doctor Evil, os olhares e carisma de Martin Riggs, e claro, protagoniza cenas homenageando seus filmes, inclusive dirigindo um carro enferrujado com close nos olhos, à la Road Warrior.

    O ambiente, supostamente hermético onde há a batalha final, é tosco, assim como as produções sci-fi dos anos 50/60. As lutas referenciam Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, Era Uma Vez no México, Kill Bill e até Império Contra-Ataca. Rodriguez põe pra fora todo o seu lado nerd e não se preocupa em ser taxado de presunçoso, em razão de toda a jocosidade do roteiro.

    O fim abre uma brecha enorme para o 3° episódio, uma Space Opera, e é absolutamente condizente com o resto do filme. Apesar do subtexto ser bem menos contestador, Machete Kills cumpre perfeitamente a função de ser uma anedota de um action movie exploitation, com latinos mordedores e clichês milMachete Mata é, sem dúvida, um dos melhores exemplares de ação do ano. Detalhes para todo o carisma de Danny Trejo, para o trailer no começo da exibição e para as cenas pós-créditos com pouco sentido.

  • Crítica | Amor Bandido

    Crítica | Amor Bandido

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    O terceiro longa-metragem de Jeff Nichols começa utilizando a infância como alegoria para o início da existência, mas sem poupar o público, pois a mocidade é retratada sem muitas fantasias ou idealizações. A crise, os amores e relacionamentos mal resolvidos resvalam nos pequenos protagonistas, Ellis (Tye Sheridan) e Neck (Jacob Loflan) – e os influenciam negativamente na puberdade de ambos. O inferno astral a que Ellis é submetido o deixa anestesiado e carente, e por isso ele não estranha a presença de um elemento desconhecido nas redondezas de sua pequena cidade.

    A casa de Galen (Michael Shannon, mais uma vez em um filme de Nichols), tio de Neck, é a representação visual da decadência típica da cidadezinha: um lugar sujo, imoral, hostil, e pervertido. Até o sexo, que poderia ser algo belo, é tratado de forma degradante, sem o mínimo de romantismo ou tato. Os habitantes do lugarejo parecem parados no tempo, estacionados no pior momento de suas vidas.

    O anti-herói, personificado por Matthew McConaugh, está foragido e utiliza a floresta como esconderijo, onde se encontra com a atenção máxima em tempo integral. O único auxilio e as únicas mãos amigas que encontra, até então, partem dos dois meninos. Mesmo sem conhecê-lo, Ellis se doa inteiramente para que o enlameado Mud fique o mais confortável possível – a procura do infante é por alguém do mundo adulto que não o fira sempre que houver uma tentativa de aproximação de sua parte. As tonalidades escolhidas por Nichols para retratar os locais comuns ao menino sintetizam suas sensações: enquanto que em sua casa, o local incômodo, predominam as cores marrom e cinza, as cenas na floresta onde ele está com o seu igual são vivas, prevalecendo o verde e o amarelado da blusa do novo amigo.

    O modo como Mud pensa e desenvolve sua vida demonstra que ele não tem todas as propriedades de raciocínio típicas de um adulto. Apesar de não possuir a inocência dos meninos, seu discernimento é igualmente imaturo e inconsequente, e este é o motivo que o faz se identificar tanto com eles, pois ambos carecem de uma segura figura paterna – o presente do fugitivo poderá vir a ser o futuro do jovem rapaz.

    O ancião Tom, interpretado por Sam Shepard, é uma das poucas vozes lúcidas perto do personagem-título. Suas palavras evidenciam o quão imprudentes e levianas são as motivações de seu antigo protegido, e ao receber a verdade, Ellis nega tudo, como sua contraparte mais velha faz. Mud não consegue mudar, somente se enreda no círculo vicioso em que está. Sua decepção com a rejeição coincidentemente ocorre em paralelo com a bronca do pai em Ellis, e ambos se mostram como excluídos dos sentimentos e relações que tanto apreciavam. A aproximação dos dois serve como uma simbiose.

    Juniper (Reese Witherspoon), a antiga namorada do protagonista, é a representação da covardia humana e da falta de coragem para arcar com os desejos do coração, não só para o homem, mas também para Ellis. O menino se decepciona com tantas rejeições e culpa a si mesmo – no caso, a contraparte do que poderia vir a ser: Mud. Na fuga que tenta fazer de si mesmo, o anti-herói cai num covil de serpentes, onde é envenenado, numa simbologia clara à inexorabilidade do enfrentamento de seus próprios problemas. Fugir, no caso, é a pior das soluções. Ao ver o menino em apuros, o personagem principal larga o arquétipo anti-heroico e veste a capa do clássico salvador. Mal pensando em si, corre para acudir o amigo e se torna visível para aqueles que o procuram, mas, dessa vez, não se preocupa em ser finalmente pego.

    Após todas as reviravoltas, Ellis vê a chance de mudar sua vida. O rapaz, que antes temia o divórcio dos pais, se vê nesta situação e parece não ter mais receio da nova condição. Assim como Mud, ele resolve deixar os medos e o passado de lado para finalmente evoluir e viver a própria vida, ainda que as agruras e os erros futuros estejam garantidos.

    Amor Bandido é um filme sobre deslocamento, sobre a tentativa de encontrar um lugar no mundo. Mensagens presentes também em Shotgun Stories e O Abrigo do mesmo Jeff Nichols, mas que em momento algum são repetitivas, em razão da ótima forma de abordar as necessidades humanas com a qual o realizador exerce em seus roteiros autorais.

  • Crítica | A Trama

    Crítica | A Trama

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    O Senador Charles Carroll, interpretado por William Joyce, é o ideal do político, incorruptível, mas comprometido com o povo do que com um partido… Aos olhos da opinião pública é desenhado como um imponente e onipotente herói, e talvez por isso tenha sido alvejado por um vil assassino, para assim entrar na história, semelhante demais ao paralelo real à execução de JFK. O topo do prédio onde acontece o crime é altíssimo e simboliza o inalcançável posto onde o “semi-divino ser” pereceu, para tornar a sua figura a de um mártir.

    A negligência do jornalista/protagonista Joseph Frady, interpretado por Warren Beatty, é demonstrada em dois momentos importantes, primeiro, o de não ter podido presenciar a morte do Senador Carroll, pois deveria cobrir o evento, mas não fora, e segundo, ignorou o apelo da testemunha (e sua amiga) Lee Carter – Paula Prentiss – que pedia ajuda a ele, por achar que sua vida corria perigo. Frady não se afetou com o pedido e só voltou sua atenção ao seu testemunho após sua morte, o que demonstra sua falta de escrúpulos e falta de sensibilidade, além da clara ausência de culpa em si. No decorrer das investigações, muitas pessoas morrem, inclusive pelas mãos do repórter, que parece ter pouco receio em se envolver nos crimes.

    A conspiração se complica cada vez mais com o decorrer do filme. Os envolvidos no jantar em que o senador morreu vão perecendo um a um. Frady se “alista” em uma organização que prepara homicidas para fazer o trabalho sujo de quem os contrata, o que ia de encontro a sua teoria de assassinato do candidato morto. O modo de preparação dos assassinos é curioso e semelhante à lavagem cerebral, parecido com o tratamento aplicado a Alex em Laranja Mecânica, de 1971, três anos anterior a este A Trama.

    Joseph se enfia em sarilhos atrás de sarilhos, ele passa a executar sem a menor cerimônia aqueles que atravessam os seus planos de alguma forma, mesmo os que pouco interferem. O personagem mergulha fundo demais na situação analisada, tanto que confunde o papel que deveria desempenhar, deixando de ser o portador e comunicador da notícia para se tornar parte dela, vestindo até a máscara do vilão, quando deveria ser o maior exemplo de conduta ética possível – sua ambição desmedida acaba por puni-lo e a ele é atribuída a culpa de crimes que ele sequer cometeu.

    O desfecho não é tão intrigante ou auspicioso quanto o 1° e 2° atos, nem contém em si o mesmo nível de mistério, suspense e conteúdo conspiratório. Pakula ainda era um realizador cru, se comparado aos seus futuros sucessos de carreira, como Todos os Homens do Presidente, Dossiê Pelicano, A Escolha de Sofia, etc, mas, como um todo, contém mais acertos que equívocos por parte de sua produção.

  • Crítica | Os Suspeitos

    Crítica | Os Suspeitos

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    Novo filme do cultuado diretor canadense Dennis Villeneuve, Os Suspeitos é um bom suspense de grande tensão: a procura de um pai por uma filha desaparecida, gerando grande conflito e envolvimento emocional em diferentes escalas dentro de um grupo de pessoas próximas.

    Situado na fria e chuvosa cidade de Boston, Keller Dover (Hugh Jackman) leva uma vida feliz ao lado da esposa Grace (Maria Bello) e os filhos Ralph (Dylan Minnette) e Anna (Erin Gerasimovich). Em visita a casa dos amigos e vizinhos Franklin (Terrence Howard) e Nancy Birch (Viola Davis), sua filha, a pequena Anna (Kyla Drew Simmons), desaparece. As famílias logo procuram a polícia e o caso cai nas mãos do detetive Loki (Jake Gyllenhaal) que prende um suspeito, Alex (Paul Dano), que logo é solto devido à ausência de provas. Alex é um adulto problemático e com sintomas de deficiência cognitiva, mas que parece ser o culpado para Dover, que irá ultrapassar os limites de tudo o que acredita para encontrar sua filha.

    Começando já na escolha do tema (desaparecimento de crianças) o diretor acerta no objetivo de mobilizar uma plateia da mesma forma que qualquer um desses casos mobiliza a opinião pública. O infalível aspecto de pureza e inocência de uma criança torna qualquer ato contra ela abominável e irá aglutinar na comoção e condenação desse ato e seus realizadores grande parcela da sociedade, da mesma forma que acontece com o público do filme, que embarca na história e se pergunta a toda hora se faria algo diferente do que lhe é mostrado.

    Emocionalmente falando, o filme então consegue compreender a dimensão devastadora de um caso como este, que não é incomum em nenhum lugar no mundo, e que mostra como toda a dimensão da tecnologia não é capaz de nos proteger dos terrores da própria humanidade. A sensação de impotência dos protagonistas é destacada a todo instante, assim como as brigas internas dos adultos, evidenciando em todo instante a frustração de não conseguir fazer nada. Também neste aspecto somos apresentados ao detetive Loki, que é deixado claro ser um policial típico de filmes de investigação: solitário, sem vida, obcecado pelo trabalho e empático com as injustiças sofridas pelas vítimas dos crimes que investiga. Loki e Dover são personagens interessantes, que por vezes se antagonizam, mas ambos buscam o mesmo objetivo, um dentro e outro a margem da lei, simbolizando o eterno conflito de “civilização x selva” que sempre vem à tona quando o assunto é a violência humana.

    Também é interessante a construção de Alex, um personagem que é a todo instante tratado como culpado, e que parece culpado realmente. Em todo o calor gerado por comoções públicas, faltou ao diretor movimentar a história mais nesse sentido, e tornar a vingança egoísta e personalista de Dover como também parte da opinião pública, e não só pessoal. No entanto, faltou ao filme um trabalho melhor no que tratou da parte policial e investigativa. Ao contrário de outros clássicos do gênero, como “O Silêncio dos inocentes”, Os Suspeitos em alguns momentos falha em manter a expectativa da resolução do crime, e as pistas oferecidas dão ao espectador a chance de desvendar pedaços da história antes de Loki, enfraquecendo seu personagem, como na cena onde é utilizado o velho clichê da mesa destruída pela frustração e ali uma pista crucial é desvendada, quando um espectador mais atento teria reconhecido aquela pista vários momentos antes.

    O mesmo se repete na cena final, quando detalhes importantes são ignorados a fim de se encerrar a história em um clímax instigante e que deixa no ar o que poderia ter acontecido, mas não a ponto de não responder exatamente isso ao “acostumado às respostas” público americano. Caso não se focasse na investigação policial em si, detalhes como estes poderiam ser relevados (Dover vai a casa da tia de Alex com mala, ferramentas e deixa várias pistas, que são ignoradas pela história quando a casa é invadida e revirada por policiais, e nenhuma resposta a essas pistas é dada), mas nesse caso, enfraquece a narrativa investigativa sob a perspectiva policial.

    Apesar de uma fotografia muito bem construída, e também atuações dignas de grandes atores (talvez a melhor de Jackman), Os Suspeitos se alonga por muito tempo em redemoinhos narrativos (como a tortura de Alex por Dover) e que desgastam o choque inicial, travando o desenvolvimento da história. Quando o filme acaba, sobra uma sensação de “ainda bem” misturada a outra de satisfação com uma história que traz à tona discussões interessantes sobre paternidade, violência e sociedade, mas que poderiam ter sido levadas por um caminho mais ousado, questionando mais o valor da mídia e das decisões pessoais nesses casos, como faz magistralmente o longa dirigido por Ben Affleck, “Medo da Verdade” (Gone Baby Gone).

    Os Suspeitos é capaz de entreter e tem uma crueza e aspereza condizentes com o tema retratado, mas que falha em desenvolver objetivamente seu ritmo e conduzir os protagonistas em um desenvolvimento que justifique o tempo de tela, assim como em produzir pistas e recompensas que causem mais do que um certo “eu já suspeitava” ao seu final, enquanto prometia algo além. É um bom filme, mas que não acrescenta muita coisa ao gênero, recheado de clássicos mais completos.

    * Detalhe para a horrível tradução do título em português. Prisioneiros traduziria perfeitamente o que o filme quer passar, quando pais são prisioneiros dos captores de seus filhos. Os Suspeitos além de genérico e vazio, entrega que já há mais de um suspeito do crime.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | A Grande Beleza

    Crítica | A Grande Beleza

    A Grande Beleza

    A câmera de Paolo Sorrentino viaja pelos arredores dos monumentos. O cenário belíssimo de Roma é elevado às alturas, num tom quase divino, graças ao registro visual do realizador. Tais ângulos são típicos de seus trabalhos, mas em La Grande Bellezza estão a serviço de resumir a viagem, tanto a descrita no início da película quanto a do passeio pelas memórias e reminiscências de Jep Gambardella (Toni Servillo), um escritor que, há muito, largou a pena. Sua velhice é repleta de adjetivos que o público consideraria ideal: badalada, repleta de festas regadas a bebidas e mulheres belíssimas que ainda deseja, mesmo sem a fome de antes, resignado em muitos momentos e em um contentamento (aparentemente) resoluto.

    Sua roda de amigos é formada por outros artistas, mostrados como pessoas idosas, decadentes, que vivem de suas obras passadas. A reflexão é semelhante ao cinema felliniano, variando entre momentos de contemplação e adrenalina extrema. Nos momentos em que a jovialidade é mostrada, a rotação é acelerada, enquanto o registro das ações idosas é vagaroso. Visão direta de Jep, dessa vez julgando seus semelhantes. Um travamento criativo (não escrevia um romance há tempos) garantiu a ele congelamento mental. Gambardella não precisou envelhecer, só experimentou o que quis, e, à sua maneira, despreza quem se entregou à velhice. Seu cinismo o faz desdenhar das pomposas opiniões alheias, reduzindo-as. A ausência de ambição aumentou sua desfaçatez, que, por sua vez, afiou sua crueldade. Seu ímpeto em dias passados era não se tornar um mundano, mas um rei; queria a diferença, e sem perceber, perdeu a distinção.

    Ainda sobre o círculo social de Jep, quase todos são reféns da arte, mesmo os que não a praticam há muito tempo. Os que não são mais criativos a perseguem, tentam reavê-la, e os que ainda a exercem são seus escravos. A busca pela obra perfeita é subjugada pelo anseio de relevância; o reconhecimento os define. É um mal, uma muleta para os artesãos, causa malefícios, simbolizados pelas rugas no rosto, que, por sua vez, são o esconderijo onde o talento se esconde.

    A morte e a perda de pessoas importantes arranham a superfície da cúpula de onipotência do escritor. Aos poucos ele volta a ter as sensações que pensava haver perdido, e o estopim da mudança vem por meio da última pessoa que ele poderia imaginar. Percebe com o tempo – e o público é levado a crer – que a boêmia é como a vida animal. Sem muito sentido, os excessos não trazem todo o gozo desejado.

    A incessante procura pela inspiração – chamada por Sorrentino de Beleza – é encontrada junto à morte. A vida, cheia de falatórios infindáveis, esquece-se do silêncio catalisador dos sentimentos. A miséria, a tristeza, tudo isso pertence à vida, à fantasia, à ilusão…

    “Termina sempre assim. Com a morte. Mas primeiro havia a vida. Escondida sobre o blá, blá, blá. Está tudo sedimentado sob o falatório e os rumores. O silêncio e o sentimento. A emoção e o medo. Os insignificantes, inconstantes lampejos de beleza. Depois a miséria desgraçada e o homem miserável. Tudo sepultado sob a capa do embaraço de estar no mundo. Blá, blá, blá, blá… O outro lado é o outro lado. Eu não vivo do outro lado. Portanto… que este romance comece. No fundo… é apenas uma ilusão. Sim, é apenas uma ilusão”.

     A história trazida por Sorrentino é das mais universais, encaixa-se em praticamente qualquer vida humana, e ainda assim é única. Por sua doce e leve abordagem, pode-se inferir certa emulação de Federico Fellini em seus melhores momentos (La Dolce Vitta, e Amarcord especialmente), mas as reflexões de vida em seu texto são voltadas também para a contemporaneidade. Possui fotografia impecável e roteiro tocante, além da magistral atuação de Toni Servillo. Um dos maiores acertos cinematográficos de 2013.

  • Crítica | Questão de Tempo

    Crítica | Questão de Tempo

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    A nova comédia romântica de Richard Curtis (Simplesmente Amor) chega sem muito alarde no circuito cultural, e felizmente surpreende até mesmo os mais cínicos, grupo este em que me incluo. Em seu novo filme, Curtis consegue encantar o espectador ao longo de duas horas prazerosas de duração.

    A visão de mundo de Curtis se reflete em seus filmes. O tom otimista do cineasta suaviza boa parte dos golpes que a vida nos aplica. Seu cinema não busca grandes reflexões, é apenas um modo para oferecer algumas desculpas que servem como estopim para encontros entre casais e fazer com que estes lidem com algum tema, na maioria das vezes de maneira superficial.  Já vimos isso em Simplesmente Amor, Um Lugar Chamado Nothing Hill, Quatro Casamentos e Um Funeral, no entanto, verdade seja dita, o diretor sabe fazer isso muito bem, e Questão de Tempo é, sem dúvida, o ponto alto de sua filmografia.

    O longa conta a história de Tim Lake (Domhnal Gleeson), que, aos 21 anos de idade, é informado por seu pai (Bill Nighy) de que todos os homens de sua família têm o poder de viajar no tempo, desde que observadas algumas regras. Esse é o mote para que a história se desenvolva, no entanto não estamos nos referindo a um filme sobre viagens no tempo, visto que serve apenas como recurso narrativo para que se conte a história, propondo algumas discussões. Alguns irão falar de supostos furos de roteiro por não se observar lógica temporal, além de outras bobagens, porém não é sobre isso que o filme quer tratar. O paradoxo espaço-tempo é um mero recurso com pitadas de realismo fantástico.

    Tim é um jovem ingênuo e romântico que, ao saber do seu novo “dom”, faz com que o primeiro passo seja manipular seu amor de infância a se apaixonar por ele. Essa é sua primeira lição: nenhuma viagem no tempo faz alguém amar você. Após seu primeiro fracasso, Tim parte para Londres, onde conhece Mary (Rachel McAdams) e a história dos dois se desenvolve.

    Primeiro ponto a ser observado na filmografia de Curtis é como ele mesmo procurou brincar com os clichês da comédia romântica em Questão de Tempo, das típicas declarações de amor a cenas de casamento. O diretor arruma tempo inclusive para auto-referenciar alguns de seus trabalhos, seja de maneira cômica ou buscando outros fins narrativos.

    Interessante notar como o sentimentalismo excessivo de Curtis é deixado um pouco de lado. O grande interesse de seu protagonista é o amor como um todo, não apenas a afeição romântica entre duas pessoas. O personagem pode parecer antiquado e fora de tempo, e talvez até seja, mas o sentimento apresentado soa extremamente sincero e repleto de sutilezas, tanto pelo texto delicado do roteirista quanto pela excelente interpretação de todo o elenco.

    Domhnall Gleeson, após um grande trabalho de atuação em Anna Karenina, repete o feito em Questão de Tempo. Se nas comédias românticas anteriores de Curtis tínhamos Hugh Grant, agora o cineasta parece querer deixar essa faceta de lado e mostrar o homem comum, tão bem interpretado por Gleeson. O veterano Bill Nighy faz um trabalho impecável de pai e amigo de Tim, roubando a cena sempre que está em cena.

    Richard Curtis perseguiu o tema ao longo dos anos, tentou fazer uma versão definitiva em Simplesmente Amor em 2003, mas apenas dez anos depois, de maneira despretensiosa, conseguiu se fazer ouvido. Contagiante.

  • Crítica | Bastardos

    Crítica | Bastardos

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    Um suicídio de um homem abala o marinheiro Marco Silvestri (Vincent Lindon) por múltiplas razões: por ele ser seu amigo desde a época da escola naval, além de esposo de sua irmã, e claro, pelas circunstâncias misteriosas que o levaram a este triste fim. Como o cinema francês tende a se apresentar, Les Salauds não contém prelúdio ou introdução. O espectador já é jogado na trama logo de cara.

    O marítimo é obrigado a desembarcar para resolver as questões relacionadas ao acontecimento, mas acaba se envolvendo numa cadeia de eventos caóticos que intrigam o espectador pela aura misteriosa. Há um questionamento dos motivos que levaram o suicida a tomar a drástica atitude e, com o desenrolar dos fatos, Marco percebe que as pessoas próximas não lhe foram totalmente sinceras.

    O roteiro conta uma história deveras fragmentada, com uma porção de assuntos controversos. Ainda que haja uma linha em comum que os une, esta é explorada de forma bastante inusual, o que não seria um problema, mas se torna quando perde-se a ligação entre os acontecimentos na maior parte da exibição. Os signos, os insights e a maioria das situações passam batidas, com pouco ou nenhum significado nas entrelinhas, mesmo com o caráter lúdico de inúmeras cenas.

    Há um pequeno desenvolvimento dos personagens, o que poderia significar a vontade da realizadora em transmitir uma (forçada) universalidade, porém a intenção peca nesse sentido, visto que as situações tragicômicas exploradas pelo roteiro pouco têm coerência ou geram empatia. O guião de Jean-Pol Fargeau e Claire Denis tenta apresentar uma falsa sofisticação, apelando pra absurdos e fatos singulares a fim de sensibilizar, por meio de eventos-chave sensacionais, quem vê os acontecimentos e relatos chocantes. Tais recursos pouco querem dizer, estão lá unicamente para polemizar, sendo o efeito de reflexão muito pequeno. Salvos bons movimentos de câmera, com planos em primeira pessoa em que Marco adentra o submundo da cidade, os méritos do realizador não são muitos até os 20 minutos finais.

    Os últimos momentos de exibição guardam algumas reviravoltas, e, por mais contraditório que isto pareça, tais fatos são absolutamente previsíveis. Claire Denis traz à luz um filme confuso e indeciso para a história que quer contar, e, apesar de honesto, peca por sua pretensão. Os maneirismos que são propostos, em vez de acrescentarem à trama, soam presunçosos e jogam uma cortina de fumaça em uma realização deveras equivocada. No entanto, Bastardos não é um perda de tempo completa, graças aos planos de filmagem. No restante, pouco acrescenta.

  • Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Crítica | Azul é a Cor Mais Quente

    Azul é a Cor Mais Quente

    A adolescência é possivelmente a fase mais indefinida na vida do indivíduo, quase nenhuma certeza é concreta. O roteiro linear de Ghalia Lacroix e Abdellatif Kechiche (baseado nos quadrinhos de Julie Maroh) é pródigo em mostrar isso já no prelúdio. La Vie d’Adèle começa sem circunlóquios, mostrando o cotidiano de Adèle e discutindo algo básico ao que se tornaria a sua vida. Tal assunto é tratado por seus semelhantes como motivo de chacota, descaso e indiferença – para os mais jovens, é difícil definir algo tão abstrato quanto o amor.

    Diversas são as formas como Kechiche registra as cenas de sexo. Adèle (Adèle Exarchopoulos) fantasia uma transa com um parceiro completamente diferente ao que todos à sua volta sugerem a ela. Quando finalmente cede às pressões, se decepciona, seu gozo passa longe de ser alcançado e se frustra – as lágrimas após o rompimento com esta máxima são mais que simbólicas, são reais.

    Em um protesto, seu grito é grave, masculinizado. Sua persona atrai outras garotas com este desejo em comum. A câmera registra o constrangimento de Adéle de modo belo e tocante. A garota só volta a se sentir (ligeiramente) à vontade em uma festa onde praticamente só há gays masculinos, porém ainda há uma sensação de não pertencimento àquele mundo, sentimento de inadequação. Aos poucos, ela adentra no mundo underground, mergulha em sua própria consciência e libera-se para novas experiências, mudança esta representada pelo bar temático.

    Emma (Léa Seydoux) é extremamente gentil e compreensiva com a protagonista, cumpre um papel fundamental na psiquê de Adèle. Faz bem a ela, lentamente a descontrai – como o Id, desreprimindo o Ego – ao contrário de outras moças “pilotas de caminhão” (estereotipadas e sem receio de serem assim), que afastam Adèle do que Freud chamava de Ideal do Ego – uma superação do Ego, que chega ao ápice do que este deveria ser, sem os recalques primários e secundários. A reação de suas antigas amigas à primeira aparição pública de Emma justifica plenamente os receios de Adèle, e reacende a discussão do que é ou não natural a respeito da sexualidade, e do disfarce das ações mentais secundárias e primárias em originárias.

    Em determinado momento, Adèle passa a usar muito jeans cor índigo, remetendo à tonalidade de sua “musa”. Após 71 minutos, o clímax da relação é posto em realidade numa cena de aproximadamente 7 “ternos” minutos. A predileção de Adèle pelo magistério diz muito sobre sua personalidade. Ela afirma que na escola aprendeu muito, demasiados conteúdos não passados por seus pais – não nominados – e por seus amigos. A segurança do emprego a empurra a fazer essa escolha, ela prefere não arriscar. A apresentação de Emma aos pais da personagem principal é tímida e um pouco constrangedora – a distância entre as duas casas das moças é abissal. Até mesmo no entendimento da arte como trabalho, demonstrando o quanto os adjetivos acompanham e se atrelam ao conservadorismo como também quão artificial é o comportamento destes, especialmente se comparados às ações de Emma, uma pessoa desprendida aos olhos da protagonista.

    A macarronada (prato no qual o “pai” se especializou) é um signo para a inadequação de Adèle em diferentes momentos de sua vida. As cenas tórridas são pontuadas por sua forte respiração, expressando alívio, ocorrendo somente na intimidade, momentos em que nada precisa fingir. A decadência da relação é executada cruamente, assim como a tentativa de se socializar após o fim. As reações retratadas são muito verossímeis e realistas, além, é claro, sexual e emocionante. No entanto, no auge de seu desespero, Adèle rompe com o medo de se demonstrar, se rendendo aos excessos que a carne exige.

    Soma-se a isso uma fotografia com perícia, uma direção de arte das mais caprichadas, direção de atores competente ao extremo, e um roteiro não complacente em momento algum. Os nus são magistralmente registrados e são palatáveis até para espectadores de conservadorismo não tão extremo. Emma representa para Adèle a libertação, e para o filme, um instrumento de metalinguagem, pois ela costura de forma leve suas impressões sobre a arte. Kechiche usa esse capítulo da biografia para demonstrar a arte do corpo e da alma feminina, apelando para lugares comuns, sem se descuidar das nuances inerentes a cada indivíduo de singularidade latente. O filme é belo, real, tocante e feminino, sem medo de expor sua história com o máximo de sinceridade possível.

  • Crítica | O Hobbit: A Desolação de Smaug

    Crítica | O Hobbit: A Desolação de Smaug

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    Depois de dois filmes da nova trilogia de filmes de Peter Jackson-  baseada no livro O Hobbit, de J.R.R. Tolkien – totaliza-se, até agora, 343 minutos de filme, sendo que mais 150 estão a caminho. Após o imenso sucesso da trilogia O Senhor dos Anéis, a expectativa para O Hobbit era grande, e após um filme mediano na estreia, a segunda parte consegue decepcionar ainda mais.

    Apesar de se chamar O Hobbit, o personagem principal, Bilbo, vivido novamente pelo ótimo Martin Freeman, aparece menos tempo na tela do que deveria. Em grande parte do filme fica alheio aos acontecimentos, o que se agrava ainda mais quando os elfos entram em cena. Seu grande momento é a boa cena de diálogo com o dragão Smaug.

    O sucesso do personagem Legolas (e também do ator Orlando Bloom) na trilogia anterior fez Jackson trazê-lo de volta para protagonizar boa parte das também excessivas cenas de ação, que, apesar de bem feitas, soam desnecessárias pois repetem à exaustão movimentos rápidos e certeiros, mostrando o que já está mais do que estabelecido: elfos são excelentes guerreiros. Uma personagem nova, Tauriel (Evangeline Lily), também pouco acrescenta ao se engajar em um triângulo amoroso mal explicado e praticamente servir ao papel que Liv Tyler ocupou na trilogia original.

    Apesar de tanto tempo, também não conseguimos aprender o nome de metade dos anões. São muitos personagens e quase nenhum tempo de projeção é gasto para estabelecê-los e dar a eles alguma importância e personificação. Tudo o que vemos são eles correndo e ficando dependentes de alguém para salvá-los. Até mesmo Thorin, mostrado como líder no primeiro filme, tem seu papel reduzido neste. Cenas como a fuga dos barris na correnteza, apesar de divertidas, só acrescentam ao filme mais ação, não contribuindo em nada ao desenvolvimento da história.

    Gandalf também é imensamente diminuído na trama. O mago inicia uma investigação que destoa da proposta original do filme – de acompanhar Bilbo e os anões, os quais fazem questão de lembrarem a todo instante o quão incompetentes são sem a presença do mago, que acaba preso por Sauron em outra ponta solta para se resolver no terceiro filme. Aliás, outra explicação necessária é a de como Gandalf descobriu tudo sobre Sauron 60 anos antes dos eventos contados em Senhor dos Anéis e não fez absolutamente nada durante esse tempo.

    A sequência da cidade do lago conta com o maior excesso. Não havia motivos para entrarem escondidos no povoado. Não havia motivos para se esconderem. Não havia motivos para tentarem roubar armas. Ou seja, não havia motivo para essa parte do filme ser longa e ocupar tanto espaço na história. A população e seu governante ficam a favor dos anões desde o início, o que desmonta totalmente o fraco suspense construído anteriormente. Remetendo também à trilogia original, mais especificamente Theoden e Grima, se estabelece na relação entre o Mestre (Stephen Fry) e Alfrid (Ryan Gage) um pastiche da pior espécie.

    Jackson é um grande fã do universo criado por Tolkien, mas parece não dominar o básico em contar histórias. Suas tentativas de criar suspense raramente surgem efeito, e em momento algum conseguimos acreditar no risco que os personagens estão passando. Exemplo disso é quando os anões passam mais de um ano viajando e mostram desistir de tudo ao não conseguirem abrir o portão secreto após 5 minutos de tentativas, o que Bilbo consegue ridiculamente de forma fácil, rápida e conveniente.

    Ao entrar no castelo, Bilbo é encarregado de roubar a pedra, e uma boa sequência é mostrada com Smaug, caracterizado de forma tão imponente que sentimos o seu peso e tamanho a cada passo em um CGI que em poucas vezes é tão bem feito, mas que esconde através de efeitos a voz do excelente Benedict Cumberbatch. E mesmo assim, após toda essa meticulosa continuidade, tudo é transformado em outra cena de ação com os anões fugindo miraculosamente de Smaug sem nenhum arranhão e com um plano que soa ridículo: o de afogar em ouro um enorme dragão voador de pele grossa. Tudo isso para o filme acabar abruptamente e esperarmos mais um ano pelo final da história.

    Ao final da exibição, o que sobra, além do cansaço físico e mental, é uma sensação de que, apesar da longa duração, não entendemos muito bem por que Bilbo saiu em viagem, quem é cada anão, suas particularidades, sem entender muito bem o papel de cada um. Sobra também uma sensação incômoda de um amontoado de histórias e personagens aglutinados de forma artificial em algo que parece uma história, mas que na verdade é uma desesperada tentativa de um diretor voltar a ser falado no circuito comercial e no nicho de fãs que o lançou ao estrelato e que também o fez ganhar muito, mas muito dinheiro.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | The Pirate Bay: Longe do Teclado

    Crítica | The Pirate Bay: Longe do Teclado

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    Por trás do maior site de compartilhamento de conteúdo da internet, o documentarista Simon Klose segue os suecos Peter Sunde, Fredrick Neiji e Hottfrid Swartholm, fundadores do Piratebay. Segundo os próprios, o provedor possui 25 milhões de usuários, entre pessoas que sobem os arquivos em torrent e quem os baixa.

    O filme trata do julgamento dos três envolvidos, e de qualquer outro associado ao Piratebay. O processo movido contra eles tem em seu caráter o desesperador apelo dos grandes estúdios (Warner, Columbia, Fox, entre outros) motivado pelo prejuízo que o site de compartilhamento causou a estes, diminuindo as bilheterias, as vendas de produtos derivados, tudo através da violação dos direitos autorais, causando mal a população mundial. As alegações foram muitas e faltou pouco para associar a figura dos três a propagação também do satanismo.

    De forma superficial, o documentário mostra como a geração atual de usuários da grande rede enxerga o copyright e o quanto isto deixou de ser sagrado. Pontuando que a geração anterior foi instruída a enxergar o consumo dos produtos culturais de forma diferenciada e canônica. Com atitudes ligadas ao modo correto de viver, em um pensamento quase tão catedrático e fanático quanto o presente nas ideologias fundamentalistas religiosas. O objetivo de Klose é registrar o julgamento e seus bastidores, pois outras obras já haviam aprofundado a discussão dos direitos autorais violados (a série Steal this Film, de J J King).

    O documentário é um gênero cinematográfico que precisa de fatos para provar um argumento. É a verdade mostrada sobre um ponto de vista parcial. O argumento que o realizador tenta validar é a desmistificação da teoria da conspiração que as empresas multinacionais levantavam a respeito da ligação do TPB com conglomerados rivais, ainda mais quando a maioria dos estúdios – se não todos – se sentem lesados pelo site. A base de operações do grupo, em um escritório com condições paupérrimas, nunca era admitida como o possível local de tanta exploração de trabalho alheio e apropriação indevida do lucro. O anacronismo e alienação da indústria é a pauta secundária mais abordada, depois da intimidade dos acusados.

    Ao falar em uma feira de exposição, Peter Sunde é registrado pela câmera em um telão, ao lado do host do evento. Graças a projeção mal enquadrada, ele parece gigante ao lado do homem, e a lente o flagra dessa forma, desproporcional em relação ao resto da humanidade. Um dos depoentes, amigo de Sunde, afirma que após a Guerra Fria os EUA precisavam inventar novos inimigos que não poderiam matar, e o TPB era a bola da vez. No entanto a grandeza de Sunde e seus colaboradores cai por terra nos últimos momentos da película, onde se registra a prisão dos três criadores do site.

    O tom do final é absolutamente pessimista, apesar dos últimos depoimentos de Peter diante de uma grande mesa, composta por pessoas de várias nacionalidades. A última frase antes dos créditos é um apelo, para que o arquivo de vídeo seja compartilhado (Please share this film online) e para que a filosofia nele mostrada também passe adiante.

     

  • Crítica | Bad Ass: Acima da Lei

    Crítica | Bad Ass: Acima da Lei

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    O filme começa com um ar de conto, como se descrevesse uma estória, mostrando links da web que introduzem o público na lenda de Frank Vega, o justiceiro/herói local, para logo depois ser interrompido por uma narração, do próprio protagonista encarnado por Danny Trejo, um senhor de 65 anos, escorraçado pela vida desde que voltara do Vietnã, e que teve na fama instantânea o começo da notoriedade que sempre buscara, mas que sempre lhe foi negado.

    Trejo sempre foi conhecido pelas dezenas de papéis de coadjuvantes, sendo este sua segunda encarnação de herói da jornada, precedida pelo exploitation Machete, mas Vega é muito diferente do desbravador mexicano ex-agente secreto. Mesmo não sendo um primor, sua atuação é lúcida, carregada de nuances, toda a reticência e insegurança do personagem são justificadas, assim como o fato dele ser uma máquina de combate perfeita, o roteiro pressupõe que os veteranos de Nam, eram os combatentes perfeitos, escondidos sob uma capa de civil, adeptos da vida normativa, mas que por trás dessa máscara, ainda mostravam um enorme senso de justiça e vontade de fazer o que é certo – esta é uma ótima forma de encarar a má adaptação dos veteranos à vida normal, e é implacável ao mostrar como a sociedade os condena – sociedade esta representada pelos possíveis empregadores, ex-amantes e até a polícia.

    Frank Vega se enxerga como um sujeito comum, quem o vê como extraordinário é a imprensa e o povo. A câmera de Craig Moss flagra isso, pois mesmo quando ele espanca os malfeitores, ela permanece a meia distância, demonstrando que até os seus atos extraordinários são enxergados assim pelo grande público, não por ele, já que em seu raciocínio, a justiça que ele pratica nada mais é do que sua obrigação.

    A carreira de diretor de Moss não é muito extensa, e é quase toda composta de paródias bastante meia-bocas, como A Saga Molusco: Anoitecer e Um Virgem de 41 Anos Ligeiramente Grávido, o que faz desse Bad Ass algo ainda mais grandioso, visto que mesmo com o tom galhofa das lutas, a história em si é bem construída e perfeitamente passível de inserção do público.

    Todos os hábitos de Frank remetem a uma vida simples e tranquila, seus deslocamentos são vias de transporte público, seus hábitos os mais ordinários possíveis e o bem estar de cada pessoa importa como a coisa mais importante do mundo, é uma extrapolação do bom comportamento e moralismo, elevado a enésima potência de uma forma quase utópica se comparado ao comportamento das pessoas reais – Frank é Bad Ass, o sujeito idealizado, o exército de um homem só, a milícia como deveria ser (pelo menos de acordo com os desejos da população), incorruptível e sem máculas nas suas ações, e que inclusive, pede perdão ao Divino antes de um grande “pecado” de vingança.

    Frank Vega ataca os malfeitores de mãos nuas, como se a justiça fosse sua única arma. Toda a violência presente no filme é justificada pela código ético do herói resignado. O estilismo videoclíptico evoca uma contemporaneidade condizente com a geração MTV, o que reforça o deslocamento de Frank com este tempo em que vive. Ele é como um pária, uma peça de museu convivendo com as criaturas que pensam mandar no mundo atual, mas que têm em sua estrutura de “governo” uma fragilidade enorme, que cai por terra aos esforços de um sujeito durão de gerações anteriores. As condecorações que recebe vêm como uma recompensa justa aos seus combates à injustiça e a tudo que é errado, e demonstram que nunca é tarde para receber os louros pelas batalhas que foram travadas.

  • Crítica | Faroeste Caboclo

    Crítica | Faroeste Caboclo

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    A saga amorosa de João de Santo Cristo e Maria Lúcia é uma das histórias que os fãs do rock brasileiro reconhecem de antemão.  Uma canção longa que narra como um épico as desventuras de um herói marginalizado buscando mudar de vida ao encontrar um amor.

    No 15º aniversário de morte de Renato Russo, líder da banda Legião Urbana, duas produções cinematográficas foram lançadas: Somos Tão Jovens, partindo do início da carreira do músico para biografá-lo, e Faroeste Caboclo, dando vazão a uma versão baseada na trágica história escrita por Russo.

    Composta em 1979, a canção foi lançada no quarto álbum da banda, Que Pais é Este? 1978 / 1987. Mesmo com duração extensa e palavrões, a canção conseguiu chegar até as rádios e se popularizou como um dos hits da banda. Renato Russo produz uma letra narrativa ambientada em Brasília. São 168 versos que narram as peripécias de João de Santo Cristo, uma espécie de anti-herói marginal que, na capital, vive um embate que culmina em morte.

    A produção cinematográfica tenta desmistificar os versos de Russo, dando consistência às personagens, com destaque maior para João de Santo Cristo. Os entornos pops da canção são deixados de lado para um retrato mais cru de um jovem que sempre viveu em condições paupérrimas. Nas telas, os atos de Santo Cristo – interpretado por Fabrício Boliveira -, que modificam sua vida, se tornam menos plásticos, retratando com maior realidade as verdades que a canção esconde pela poética.

    Trechos inferidos pelas metáforas de Russo se transformam em cenas que traçam a vida da personagem central: o pai de João, morto por um policial racista, a vingança tardia que Santo Cristo realiza ao matá-lo e a fuga que o fez chegar até o Distrito Federal.

    Para sustentar o roteiro, o espaço de Pablo – um neto bastardo de seu bisavô –, e de Jeremias – um traficante de renome – são ampliados e a corrupção policial aliada ao consentimento do tráfico de drogas na região serve de justificativa além do embate amoroso que surge entre os rivais por conta de Maria Lúcia.

    Ao acompanhar com certa fidelidade a letra, a história nunca parece desenvolver-se confortavelmente. Fazendo de muletas os acontecimentos breves escritos por Renato até o primeiro encontro de João com Maria Lúcia. Os eventos conhecidos do público se desenvolvem, mas parecem desconectados. João se transforma em um personagem sem um objetivo e nem mesmo seu papel de pária tem a carga dramática inferida no original.

    Maria Lúcia, interpretada por Isis Valverde, permanece como o estereótipo da garota mimada criada em apartamento pelo pai, um senador (o diretor Global Marcos Paulo em sua última interpretação como ator antes de falecer vítima de um câncer). Até o encontro do casal, as cenas com a garota são apáticas: ainda que em companhia da juventude de Brasília, é alheia ao círculo, como se não soubesse direito seu objetivo próprio.

    Quando suas vidas se cruzam por acaso, em uma das poucas boas cenas do roteiro – João, fugindo, entra no apartamento da garota – parte da história acontece sem nenhuma química. Não chega perto da relação arrebatadora que parecia na canção.

    Ao chegar ao embate final, uma das partes mais emblemáticas da música, as modificações estruturais para compor a cena prejudicaram o que poderia ser um bom duelo cênico, vindo direto dos western. A mão frouxa na direção realiza uma sequência de planos que não só altera a história como faz da batalha épica uma troca de tiros com baixa carga dramática.

    Se uma adaptação de um romance ou de outras literaturas sempre cai na difícil tarefa de selecionar elementos primordiais a serem apresentados no filme, Faroeste Caboclo se estende além da música quando tudo o que poderia ser dito está inserido na canção de nove minutos e três segundos. Se recordarmos de outra recente homenagem às canções de Russo, o comercial da Vivo feito para a internet no dia dos namorados, o qual recriou visualmente a história de Eduardo e Mônica, perceberemos que, se contendo ao tema da canção, a proposta do comercial foi mais eficiente.

    Apesar de destacar em seu cartaz que a inspiração do roteiro tenha vindo da canção, o que denotaria adaptações necessárias, a trama segue à risca a história da música, chegando a uma cena que repete até mesmo os versos originais que não soam bem em cena. Presos demais à música da Legião Urbana, o resultado é menos inventivo do que se esperava com o bom material original.

    A melhor parte se concentra nos créditos, quando a canção é tocada na íntegra e toda a história desnivelada se dissipa para a potência musical da banda.

     

  • Crítica | Uma Noite de Crime

    Crítica | Uma Noite de Crime

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    A escalada da violência nos Estados Unidos culminou em uma lei radical que, durante 12 horas a cada ano, legaliza os assassinatos para que a população possa externar suas frustrações através da violência física. Durante este período, polícia, médicos e bombeiros cessam as atividades, deixando a população sem nenhum suporte.

    O interessante argumento de James DeMonaco, roteirista e diretor de Uma Noite de Crime, permanece na prateleira de histórias com potencial mal aproveitado. Ao fazer desta trama uma narrativa de suspense, a possível crítica a uma sociedade radical que abre mão de suas próprias leis como contenção da violência, transforma-se em mais uma história sem graça e sem nenhum susto.

    Os 30 minutos iniciais apresentam a família Sandin se preparando para a noite em questão. James, o patriarca, é um vendedor de sistemas de segurança que comemora as boas vendas para o evento anual. A família vive em uma região abastada, formada por uma população que é favorável à sanção da violência e tratam-na como uma mudança importante na sociedade.

    Nas doze horas referentes ao Expurgo, a família protegida em uma casa enclausurada vive seu cotidiano enquanto, na televisão, especialistas analisam o efeito da noite de violência e os reflexos positivos em relação às quedas de violência no país, explicando a necessidade animalesca interiorizada pelos humanos e a possibilidade de externá-la. Mais do que uma vazão a um sentimento agressivo, a noite funciona como uma limpeza da pobreza do país, já que somente os mais ricos são capazes de pagarem pela própria segurança.

    A crítica social se dissipa quando o filho da família oferece asilo a um homem machucado pedindo ajuda. O que se segue é uma sucessão exagerada que destrói um possível bom argumento, quando surge um grupo de adolescentes ameaçando a família para que devolvam o homem para que possam purificar suas almas de acordo com a lei.

    O expurgo é visto como uma absolvição quase divina. Sendo um ato oficial do governo, é direito dos cidadãos usufruírem a noite de liberdade. Fato que torna injustificável o uso de máscaras pelos jovens, se não como uma carga de efeito para plastificar ainda mais a violência  e produzir uma sensação aterrorizante.

    Na tentativa de obrigar a família a devolver o fugitivo, a energia elétrica é desligada e observamos um grupo capaz de se perder na própria casa. Mesmo que uma casa possua diversos cômodos e ambientes, é inverossímil que seus quatro integrantes se percam de maneira tão estúpida e não se comuniquem para encontrar um ao outro.

    Como a intimidação vinda de fora parece patética – adolescentes obrigando uma família, protegida por um caro sistema de segurança, a se render – o roteiro exagera na tensão dentro da casa ao fazer do homem abrigado uma possível ameaça. Como é necessária uma ação para desenvolver a história, o grupo de adolescentes adentra a residência destruindo o sistema de segurança com correntes e um carro potente. Uma solução esdrúxula.

    A curta duração da história ao menos não se estende além do que deveria, mas se desenvolve em elementos tão absurdos que em nenhum momento parecem ameaçadores. A violência que no interior do filme é banalizada também não causa nenhum incômodo para o espectador. A noite de crimes é fria, gratuita e mal construída.

    O baixo custo da produção e o sucesso de bilheteria garantiram uma sequência programada para o próximo ano. É possível prever que a história não apresentará nada de novo em relação a esta primeira produção que retira o único talento do argumento, a crítica contra a opressão invisível do sistema governamental, para entregar uma história de agressão e violência sem nenhum atrativo.

  • Crítica | Hannah Arendt

    Crítica | Hannah Arendt

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    Uma das grandes discussões da humanidade é  a origem do “mal” como ato de um ser humano contra outro, e como as sociedades modernas conseguem se organizar tentando conciliar o comportamento nocivo dos homens em meio ao avanço material da civilização. Nesse contexto, o debate trazido pela intelectual alemã Hannah Arendt é mais do que importante para nos fazer pensar sobre o papel de cada um nos mecanismos de reprodução dessas desigualdades e violências cotidianas.

    O novo filme de Margarethe von Trotta traz Arendt (Barbara Sukowa) em sua vida radicada nos EUA, na década de 1960, como intelectual e professora respeitada dentro do círculo universitário norte-americano e reverenciada por amigos judeus fugidos do Holocausto. Quando o nazista foragido Adolf Eichmann é preso e mandado ilegalmente para ser julgado em Jerusalém, Arendt oferece-se para ser correspondente do julgamento para o jornal New York Times, o que é prontamente aceito.

    O que todos esperavam ansiosamente era uma condenação simples e veemente, uma análise da sordidez e da maldade nazista sob o posto de vista de uma fugitiva judia. Porém, é publicado um livro, dividido em várias partes no jornal, que assusta toda a comunidade internacional ao mostrar que Eichmann não era um gênio do crime, mas um funcionário público burocrata que cumpria ordens, e, a partir de uma divisão moral que criou em sua mente, carimbava e arquivava documentos que autorizavam o envio de pessoas aos campos de concentração. Além disso, Arendt ainda faz uma crítica ao colaboracionismo judeu nas áreas ocupadas pelos nazistas.

    Apesar de o filme tratar a história com relativa simplicidade e fazer uma defesa também simplista de Arendt, a brutal reação às suas ideias mostra como a autocrítica é praticamente inexistente na sociedade, e como poucas pessoas conseguem enxergar além do senso comum e da lógica maniqueísta de fenômenos políticos, sociais e psicológicos complexos, como o nazifascismo. Sua ideia de “banalização do mal” também é pouco retratada no longa, mas deixa claro que o problema da sociedade atual não é a existência do mal, mas como ele se tornou banal e sem importância. Banalização do mal elevada a escalas estratosféricas pelo nazismo, que racionalizou toda uma operação de morte de milhões de pessoas em escala industrial, cuja colaboração não foi realizada por um criminoso contra a humanidade, mas por um funcionário público como Eichmann, que seria punido caso não o fizesse, e aí reside o problema do “só estou fazendo meu trabalho”.

    Tal relação atualmente pode ser levada a presidentes de multinacionais que exploram mão de obra infantil e/ou escrava em várias partes do mundo, além de políticos e também policiais que, ao vestirem o uniforme da normalidade, brutalizam o cotidiano com pequenas ações, rompendo o tecido da civilização até que não sobre mais nada além da pura reprodução irracional da violência sem sentido.

    Ao tratar de tema tão complexo, falta ao filme de von Trotta justamente a capacidade de diluir tal dilema entre as discussões e conflitos, que por vezes parecem menores do que realmente são, tornando-o mais interessante àqueles com um conhecimento prévio da história. Conhecida pelo seu panfletarismo de esquerda (o filme “Rosa Luxemburgo”, de 1986, que conta novamente com Barbara Sukowa como protagonista, também é dela), a diretora utiliza recursos narrativos puramente expositivos com o viés de convencer a plateia da mensagem que ela está passando, sem propor um debate real e, assim, prejudicando o entendimento sobre o significado do legado de Arendt a um público menos informado.

    A atualidade dos temas trazidos por Arendt é capaz de superar a narrativa retilínea e causar um impacto no espectador sensível a esses assuntos, o que sempre foi o objetivo da intelectual e também da diretora; isso deve ser o mais importante em tempos de tamanha banalização do mal.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | A Maldição de Chucky

    Crítica | A Maldição de Chucky

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    A intenção de Don Mancini em retornar ao terror na franquia Brinquedo Assassino é muito boa, simpática e agradável. Especialmente após as comédias de humor negro A Noiva de Chuck e O Filho de Chucky.  Mas – como a máxima de Mister Paretto já anunciava – “perde seu tempo com bobagem”, visto que, para o horror voltar à tela, deveria-se contratar um diretor decente para a sexta sequência: os maiores pecados de A Maldição de Chuck estão em sua direção.

    Nenhum personagem se encaixa de forma verossímil na trama, exceto Nica, feita pela belíssima Shakira, a genérica Fiona Dourif – obviamente, a filha de Brad Dourif, o boneco preferido de 11 entre 10 fãs de slasher movies – todas as atuações são fracas e muito piores que os porcos e tacanhos efeitos em CGI.

    Outro grave problema é a total ausência de clímax, suspense ou expectativa. O mistério é mal construído. Mesmo que o boneco demore bastante para tomar vida diante da câmera e não seja o piadista dos últimos dois episódios, carece de carisma – coisa que não faltava nos últimos dois episódios da série – não só do protagonista, mas também de suas vítimas, mortas de maneiras pouco criativas e plásticas.

    A fita tem uma cara de telefilme terrível e tem os cacoetes de Mancini os quais lembram as gags de comédia de O Filho de Chuck, mas que não são engraçados. A única parte de que se ri é da desgraçada movimentação do boneco. Porém, os closes nos pés e escorregões são inferiores até aos mostrados no filme de 1988.

    Quando o terror não assusta, é difícil imergir na trama. A melhor cena executada é a da facada no olho – ainda que nem tão interessante ou gore – e perde o significado ao ser seguida pelo globo ocular caindo pelos degraus da escada. A sequência anterior a isto, com Barb – sim, mais piadas intencionais com brinquedos – descascando o rosto do boneco e evidenciando as cicatrizes é de um mal gosto absolutamente desnecessário.

    O orçamento paupérrimo não justifica os equívocos de Mancini na direção. Tampouco valida a falta de qualidade da película, pois outros realizadores contemporâneos já fizeram melhor, com menos dinheiro e mais criatividade.  É risível ver um boneco de menos de meio metro manejar um carro sem ajuda de nada e de ninguém. A execução de Ian (Brennan Elliot) é mal feita e desnecessária. O combate entre a única personagem bem construída e o brinquedo é uma sequência horrorosa, mal filmada e anticlimática. Sem mencionar, é claro, na “insanidade” de Nica apresentada no final, numa das mais toscas cenas de tribunal da história do cinema.

    O flashback quebra a ação do final e traz uma ligação totalmente esdrúxula e filmada em preto e branco, numa fracassada tentativa de fazer um mashup com cenas do filme original. Os últimos minutos têm reviravoltas que poderiam ser épicas – com o cumprimento da profecia inaugurada no primeiro longa em 1988, mas até então jamais consumada – na tentativa de reverenciar os detalhes da franquia. Mas só faz compor ainda mais vergonha a tudo isso, sem mencionar o problema com o continuísmo e o final dúbio do filme. A cena pós-créditos é confusa e invalida a anterior. Deixa a cabeça dos fãs em polvorosa até para encaixar este filme na cronologia, ainda que os indícios levem a crer que se passe após O Filho de Chuck, visto que ele cita os Tilly como uma de suas “famílias preferidas”.

    O filme falha ao tentar encaixar-se na franquia sem ignorar os anteriores, ainda mais ao apoiar a história em uma trama paralela que deveria ter importância, mas é insípida em seu caráter. Tornando este sexto capítulo um pesadelo, ainda mais se pensarmos que pode dar prosseguimento a outras sequências.

    Em suma, absolutamente dispensável.

  • Crítica | Kill Bill

    Crítica | Kill Bill

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    Quentin Tarantino é, antes de revisionista ou mero imitador, um autor de remix: alguém que se apropria de características específicas de um gênero, chegando até mesmo a emula-las de modo literal, mas sempre ressignificando-as. Os filmes de gangster, o cinema black exploitation, os longas de guerra e os westerns já passaram pela lente única deste diretor que a cada novo trabalho endossa a construção de um legado que, nos termos de sua própria ambição, marcará a história da sétima arte. Dentre as obras de sua, até então, curta filmografia, apenas duas se debruçam sobre a mesma história: Kill Bill: Volume 1 e Kill Bill: Volume 2, que, a bem da verdade, compõem um único filme – condição na qual será tratado neste texto.

    Em uma grande homenagem aos filmes de artes marciais chineses e japoneses, com pitadas generosas de western spaghetti, Tarantino narra a história de Beatrix Kiddo, conhecida durante toda a primeira parte da saga somente como A Noiva, uma assassina que, após passar cinco anos em coma em razão da traição perpetuada por seu ex-afeto e mentor Bill, busca se vingar deste e dos outros quatro profissionais responsáveis pelo massacre que destruiu sua vida. Interpretada de forma altiva por Uma Thurman, a personagem protagoniza algo ímpar na carreira do realizador: não ostentando os longuíssimos e espirituosos diálogos que tornaram célebres seus primeiros trabalhos – não que estes inexistam por completo, uma vez que Tarantino não falha em entregar ao menos meia-dúzia de conversações marcantes ao longo da jornada –, Kill Bill é focado na ação sanguinolenta, propositalmente absurda e irreal, que se dá por lutas coreografadas de modo fluído e graficamente impactante.

    O impacto, aliás, revela-se como preocupação-mor do diretor no desenrolar dessa trama de vingança, na qual os eventos são apresentados em dez capítulos dispostos em ordem não cronológica, recurso empregado não para criar uma narrativa mais instigante, como ocorre em seus dois primeiros filmes, e sim para brincar com nossas expectativas, guardando as passagens mais espetaculares para os momentos mais oportunos, a fim de, justamente, causar o maior impacto possível. Essa escolha, longe de ser desonesta, funciona de modo ideal; a fuga de Beatrix da cova em que é enterrada viva não teria metade do efeito caso não fosse precedida pela icônica sequência de treinamento com Pai Mei, e o mesmo se pode dizer da introdução da Noiva, cena na qual, ao cometer um homicídio e, em seguida, conversar de modo afetuoso (sem, no entanto, demonstrar um pingo de remorso) com a filha de sua vítima, a personagem revela com precisão o caráter da assassina implacável, porém justa que acompanharemos durante as próximas horas.

    A violência exagerada, as técnicas sobre-humanas e os absurdos de toda espécie que permeiam a trama são também recursos utilizados no intuito de impactar o espectador, que a todo o momento se depara com decisões tomadas única e exclusivamente em função do estilo, dentre as quais se destacam uma sequência de combate em que são mostradas apenas silhuetas, e o flashback que entrega o passado da personagem O-Ren Ishii, no qual somos transportados para um anime excepcionalmente bem realizado pela equipe do Production I.G à época. Essa sequência em animação deixa patente a influência do entretenimento japonês na construção de Kill Bill, fato que, longe de ser segredo, é ainda referenciado por vezes sem conta, como percebemos na grande similaridade do roteiro com o de Lady Snowblood, filme de 1973 baseado no mangá homônimo – No Brasil, Yuki – Vingança na Neve –  de Kazuo Koike (mesmo autor de Lobo Solitário, obra também mencionada em um ponto avançado do filme), ou no uso demasiado de closes fechadíssimos nos olhos dos atores.

    Embalado por uma trilha sonora arrasadora, outra notória característica dos trabalhos de Quentin, a história caminha, ora esbarrando em belas canções como Bang Bang (My Baby Shot Me Down), de Nancy Sinatra, ora encontrando o som enérgico da banda japonesa The 5.6.7.8’s, para um desfecho que, propositalmente anti-climático, consegue ainda ser catártico, entregando o que promete o título. Tarantino se diverte ainda dando algumas pinceladas no que convém se chamar de seu universo, enfiando no roteiro uma participação do divertido xerife Earl McGraw, que morre no começo de Um Drinque no Inferno e dá as caras novamente em À Prova de Morte, ou colocando Samuel L. Jackson de modo misterioso na capela em que ocorre o massacre que motiva toda a vingança – o que muitos acreditam ser o trágico fim de Jules Winnfield, seu personagem em Pulp Fiction. Ousado e extremamente violento, na mesma medida em que é divertido, Kill Bill configura, enfim, um projeto ambicioso, que dificilmente será lembrando como um clássico, mas que, sem sombra de dúvida, será lembrado.

    Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.

  • Crítica | Dragon Ball Z: A Batalha dos Deuses

    Crítica | Dragon Ball Z: A Batalha dos Deuses

    DBZ

    Você não precisa ser nenhum profundo conhecedor de animação japonesa para conhecer esse desenho. Dragon Ball é um dos animes mais famosos do mundo tanto no oriente quanto no ocidente e seus personagens são reconhecidos dentro da cultura pop com uma facilidade incrível. Durante o início dos anos 2000, os personagens do desenho criado por Akira Toryiama eram uma verdadeira febre entre as crianças brasileiras e as aventuras de Goku e seus amigos permanecem até hoje na minha memória e na de outras milhares de pessoas da minha geração. Dragon Ball, sua fase “Z” e até mesmo a controversa série “GT” animaram as manhãs de crianças (e de alguns adultos) durante quase uma década no Brasil mas, feliz ou infelizmente, chegou ao final.

    Por se tratar de um produto deveras lucrativo e com uma legião de fãs gigantesca, o desenvolvimento de OVAS e longas-metragens nunca ficou completamente estagnado. A notícia de que, em 2013, Goku e seus amigos voltariam às telas de cinema em uma aventura inédita fez muitos fãs aguardarem ansiosos e implorarem à distribuidora para que uma cópia do filme fosse exibida em suas cidades. O filme de animação japonesa mais esperado do ano finalmente chegou ao Brasil, quase seis meses depois do tremendo barulho que fez nos cinemas japoneses, e minha expectativa quanto ao filme finalmente foi posta à prova mas, adivinhem só, mais uma vez ela não foi correspondida. E não foi pouco.

    Dragon Ball Z: A Batalha dos Deuses acontece entre os eventos de DBZ e DBGT. Nele, o Deus da destruição, Bills, acorda depois de 30 anos de descanso e busca um adversário à altura de seu poder. Durante seu sono, Bills sonha com um novo deus que pudesse bater de frente com o seu próprio nível de poder: o Deus Super Sayajin. Quando descobre que Freeza destruiu o planeta Vegeta e que quase todos os sayajins do universo foram exterminados, Bills decide encarar o assassino de Freeza em uma batalha um contra um. Certo de que um dos sayajins restantes já deveria ter despertado o poder supremo da raça, o Deus-cachorro parte em uma viagem pelo universo checando todos os guerreiros em busca do suposto Deus Super Sayajin. Na Terra, Bills finalmente se encontra com seu adversário e promete destruir o planeta caso vença a batalha contra ele. Mais uma vez, Goku deve despertar o poder supremo dos sayajins e vencer Bills para proteger a Terra e todos os seus habitantes.

    A ideia central contida nessa sinopse não é ruim, e não foi isso que me incomodou. Que conste, nessa crítica, que um fã de DBZ como eu nunca esperaria mais do que um adversário muito mais forte que o anterior impulsionando o poder do personagem principal ainda mais. Há muito tempo, o clássico “mais de oito mil!”, que Vegeta profere ao medir o poder de Goku no início da série Z, ficou para trás. Ao longo de toda a série animada, a estrutura do roteiro se repetia incansavelmente e era comprada por nós com muita facilidade. À medida que o nível dos inimigos de Goku ia subindo, o próprio sayajin ia adquirindo novas transformações que sempre o faziam superar os desafios. Isso tudo era manjado, mas nunca chegou a contar como um ponto negativo porque era muito benfeito. Este último longa de Dragon Ball é preguiçoso, mal construído e envergonha o cânone das séries em vários pontos.

    O antagonista de Goku, Bills, é um personagem raso e completamente imbecilóide. Não que o Majin Boo, vilão do último (<polêmica> e melhor </polêmica>) arco da série Z, tenha sido um personagem cheio de motivações, críticas e pensamentos, mas o vilão deste novo filme não representa absolutamente nada. Nem me incomodou o fato de ele ser desenhado como um gato bípede da raça Sphynx. O que irrita é sua posição na trama: uma entidade cósmica que destrói planetas e extermina civilizações sem nenhum critério, temido por todos os outros deuses sem qualquer explicação e sem nenhuma motivação real para fazer o que faz da forma que o faz. Serve apenas como uma forma fácil demais de trazer Goku de volta à ativa, mas que, na prática, acaba não demonstrando nem 1% da ameaça anunciada por todos os outros personagens do roteiro.

    E por falar em outros personagens do roteiro, com exceção de uma cena de luta do Vegeta (que não dura mais do que 1 minuto do filme), nenhum deles serve para mais do que um alívio cômico de baixa qualidade. No final, suas aparições se limitam a ocupar o tempo de filme com piadas de humor imbecilóide em sequências de comédia que tentam te fazer gargalhar o tempo todo, mas, pela qualidade dos diálogos e ações descritas no roteiro, conseguem apenas arrancar um ou dois sorrisinhos forçados. O filme poderia muito bem remover todos os personagens secundários que não têm absolutamente nenhuma utilidade na trama e deixar apenas Goku e Bills em um embate de 90 minutos pelo destino do universo, o que talvez atingisse um resultado melhor. É difícil de acreditar que personagens tão bem utilizados nas séries regulares tenham sido reduzidos a um alivio cômico que, de tão vergonha alheia, me entristeceu de uma forma que não achei que fosse possível.

    Como eu já citei nesse texto, Dragon Ball sempre foi sobre um alienígena que aumenta cada vez mais os seus poderes para salvar o planeta de inimigos cada vez mais fortes. Quando achávamos que a série já tinha atingido o ápice de sua escala de poder, decidem comparar Goku a um Deus. A ideia, a princípio, me deixou muito empolgado. Uma transformação de Super Sayajin Deus deveria ser uma coisa de parar o universo, mas nesse ponto o filme desanima também. Uma resolução fácil muito (MUITO MESMO) ridícula é utilizada para deixar o personagem principal em uma situação de igualdade com seu antagonista. O cuidado com esses minutos finais do filmes é tão podre e o design do famigerado Super Sayajin Deus é tão porco, que você sente pela representação em tela que o Deus Goku é ainda mais fraco que o Goku Sayajin. O que vem após a transformação ridícula é uma batalha entre os dois personagens principais que é animada numa sobreposição mal feita de animação tradicional e um cenário feito em CG que regride bastante em relação à batalha Boo X Gogeta, por exemplo. A transição dos cenários é feita também de uma forma porca, e a luta não empolga nem quando Goku ataca Bills com seu tradicional Kamehameha (algo que, na versão DEUS deveria ter sido muito mais massavéio).

    Um desserviço à série original, DBZ: A Batalha dos Deuses falha em praticamente todos os quesitos técnicos, tem um roteiro extremamente mal feito, cheio de remendos que emburrecem os fãs da série, e não cumpre seu único propósito: me mostrar que a evolução do poder do personagem principal não tem limites. A batalha de Bills contra Goku não se mostrou mais impressionante que o primeiro embate de Goku com Vegeta, por exemplo, que é uma das primeiras lutas da série animada. O roteiro recheado de humor nonsense de baixa qualidade trai tudo o que a série construiu para cada um dos personagens secundários durante os anos que ficou no ar.

  • Crítica | Um Tira da Pesada

    Crítica | Um Tira da Pesada

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    Somente o distanciamento temporal é capaz de mostrar definitivamente a qualidade de uma produção. É necessário afastamento para que observemos com melhores olhos e identifiquemos os aspectos que tornaram a produção algo original, inspirando outras obras no futuro.

    Desde o surgimento da sétima arte, reconhecemos a presença das fórmulas. A repetição maciça delas gera cansaço e a impressão de que, após um tempo, a mesma história está sendo repetida diversas vezes.  Porém, são estas mesmas fórmulas que estruturam estilos e obras que hoje se mantêm íntegras em detrimento do tempo.

    Produção que levou Eddie Murphy ao estrelado, Um Tira da Pesada revela uma das grandes fórmulas da década de 80. Murphy é o desbocado detetive Axel Foyley, um daqueles policiais que acusam primeiro e investigam depois. Malvisto no departamento de polícia e desolado pelo assassinato de um amigo, vai por conta própria a Beverly Hills investigar o crime.

    Inserida em um ambiente policial, a trama sintetiza a comédia de ação. Formula um híbrido de dois gêneros, trazendo o melhor de dois mundos em uma época em que os gêneros ainda eram separados com rigidez.

    Muito do sucesso deve-se a Murphy, bom naquilo que faz: um personagem falastrão que sempre sai de situações absurdas por conta de histórias mirabolantes. Um estilo que estigmatizaria Murphy, perseguindo-o até hoje em sua carreira em baixa.

    O papel de Foyley foi composto especialmente para o ator. Ainda que, antes de sua contratação, diversos atores fossem imaginados para a personagem. Até mesmo Sylvester Stallone se interessou pela trama, desejando transformá-la em uma história de um homem com sede de vingança. Quando Murphy entrou na produção, o conceito da obra retornou ao ponto de partida: um filme de ação com humor.

    Como a maioria dos filmes oitentistas, a história é simples, importando muito mais a maneira como ela é apresentada. Hoje parece inconcebível uma trama sem reviravoltas ou cenas épicas. Evidencia-se que a fórmula contemporânea exige maior agilidade e falsas surpresas do que a da década de 80 que, prezando pela simplicidade, executou muitas boas tramas.

    Um Tira da Pesada justifica com excelência a fama de seu protagonista, além de se popularizar também pelo tema de abertura. Representa bem uma fórmula não mais utilizada no cinema, mas que, ao se hibridizar, manteve a originalidade que muitos filmes contemporâneos não são capazes de produzir.

  • Crítica | Todos os Homens do Presidente

    Crítica | Todos os Homens do Presidente

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    O filme começa como uma reportagem jornalística, recurso metalinguístico usado por Alan J. Pakula com narração em off, mostrando o presidente Richard Nixon diante do Congresso Nacional. O objetivo era mostrar ao público a boa condição do político antes do escândalo, intenção alcançada plenamente. Em seguida, vemos o assalto ao prédio do partido democrata e o temor do grupo em ser pego em flagrante.

    A busca de Robert Woodward (Robert Redford) pelo cerne da notícia não tem como expectativa nem a metade do tamanho e magnitude da repercussão que o caso daria em um último momento, e apesar de não explicitar tudo de uma vez, todo o trabalho de apuração é mostrado minuciosamente. No entanto, a escrita de Bob é crua e sem a substância necessária para a grandiosidade dos fatos, e Carl Bernstein (Dustin Hoffman), um repórter mais experiente e sem muitos desafios nos últimos tempos, chama sua atenção para pôr o nome de um personagem importante na matéria no 1° parágrafo, e não no 3°, em uma discussão clara ao lead (termo jornalístico que designa as primordiais informações de uma notícia ou texto de jornal). Woodward dá suas notas a Bernstein para que ele faça os retoques de forma correta, grafando que o importante era a matéria ficar boa – demonstrando um desprendimento incomum entre os geradores de conteúdo como um todo – e, para surpresa dos dois, é anunciado que ambos estavam responsáveis pelo caso.

    A cada passo dado nas investigações da dupla, há mais negações de testemunhos e mentiras escondidas vindos à tona, o que causa nos repórteres uma avidez ainda maior pela solução do mistério. A recusa da 1ª página em uma das prévias do “fato maior” é um balde de água fria sobre as pretensões dos dois, mas os jornalistas decidem mergulhar ainda mais fundo e os contatos com as fontes passam a ser realizados cada vez mais às escondidas.

    A produção e o trabalho interno nas redações são mostrados à exaustão; Pakula evidencia que o trabalho do comunicólogo é também o de apuração e discussão. Após receberem muitas portas fechadas, Bob e Carl finalmente encontram uma testemunha colaborativa, como uma agulha em um palheiro, mas logo ela se mostra um engano, fruto de uma confusão com os sobrenomes dos envolvidos. Os depoentes que têm relatos importantes para o caso são sempre retratados como pessoas inseguras e reticentes, dada a gravidade dos fatos explicitados.

    Garganta Profunda (Hal Halbrook), a testemunha chave, sempre aparece às sombras, e a câmera só consegue flagrar com exatidão os seus olhos. Ao mesmo tempo em que a escuridão predomina em suas cenas, é ele quem os traz à luz, diante dos “homens da imprensa”.

    Quando a confirmação chega através de uma fonte comprovadamente confiável, Woodward e Bernstein correm até o editor e a lente passeia triunfante junto com eles pela redação, como a volta olímpica de um time campeão. A situação toma proporções tão drásticas que Deep Throat diz que Bob e Carl correm perigo de vida, assim como os editores do Washington Post. Mesmo a contragosto do editor Ben Bradlee (Jason Robards), Woods e Bern seguem imergindo na história. Nos últimos momentos registrados, a câmera mostra a máquina tipográfica datilografando a sentença de cada um dos envolvidos em Watergate e, claro, cita a renúncia de Nixon e a posse de Gerald Ford, mostrando que os esforços dos jornalistas renderam enormes frutos. Todos os Homens do Presidente é baseado no livro homônimo de Bob Woodward e Carl Bernstein e registra a investigação de um dos maiores casos de corrupção política comprovados na história da humanidade, e só é bem executado graças à perícia do elenco e do seu realizador, Alan J. Pakula, que demonstrou uma enorme evolução desde Parallax View.

  • Crítica | Ferrugem e Osso

    Crítica | Ferrugem e Osso

    ferrugem e osso - poster

    De repente, Alain (Matthias Schoenaerts) se vê obrigado a tomar conta sozinho do filho de 5 anos. Muda-se da Bélgica para a França, e vai morar em Antibes, onde a irmã e o cunhado os acolhem. Consegue emprego como segurança em uma boate e, ao apartar uma briga, conhece Stephanie (Marion Cotillard), uma treinadora de orcas no Marineland. O relacionamento entre os dois se delineia mais intensamente após Stephanie sofrer um acidente que causa a amputação de suas pernas.

    Dirigido por Jacques Audiard, o roteiro é baseado em dois contos do livro Rust and Bone, do autor canadense Craig Davidson. Suas estórias se passam num universo sujo, bruto, hostil, recheado por personagens com vícios variados – lutas, sexo, apostas, entre outros.

    Mantidas as devidas proporções, pode-se dizer que Ferrugem e Osso se assemelha a Intocáveis, pendendo mais ao drama enquanto este último tende mais à comédia. O modo como Alain age com Stephanie, sua atitude face à condição dela é similar à de Driss em relação a Philippe. Tanto um como outro não fazem concessões, não há compaixão exagerada. Não “aliviam a barra” só porque o outro tem um problema físico. Em certos momentos, Alain é rude e grosseiro demais, mas é sua natureza e ele não faz a menor questão de mudar isso. Felizmente, o filme não degringola para o dramalhão, não há cena alguma com um momento “ah, coitadinha, ela perdeu as pernas”. Esse é um dos aspectos responsável por “pegar” o espectador de jeito.
    Outro, é a diferença gritante – aparentemente – entre a vida dos dois. O espectador, que certamente viu o cartaz do filme e sabe que os personagens têm um relacionamento, fica se perguntando no início: “Como duas pessoas tão diferentes acabam se relacionando?”. Ele é pobre, mora de favor. Ela está num bom emprego, e tem uma beleza inegavelmente elegante. E, apesar de parecerem um casal improvável ao primeiro olhar, à medida que a trama se desenvolve percebe-se que há muito mais semelhanças entre eles do que o espectador pressupunha a princípio. Ambos estão, cada um a seu modo, presos a uma condição incômoda – sendo minimamente realista. Stephanie confinada à sua cadeira de rodas, Alain confinado à sua condição econômica e familiar. Tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão iguais.

    E o que seduz é essa audácia do diretor ao trabalhar livremente esses aspectos. Não há tentativa de esconder as amputações de Stephanie. Na praia, Alain a carrega até o mar, com os cotos bem à vista dos outros banhistas, que observam como se fosse algo surreal. E também não há tentativa de esconder o lado “troglodita” de Alain – sua rispidez, beirando a grosseria, ao conversar sobre sexo e relacionamento com ela. Seu jeito “garanhão pegador” é aquele e pronto. Mas há nessas cenas, assim como em outras, a insinuação de que não é apenas aquilo. E Audiard conduz o espectador através das entrelinhas e consegue fazê-lo ver além.

    Os personagens secundários também são bastante interessantes, mesmo tendo tão pouco tempo em cena. O instalador de equipamento de vigilância que oferece um “bico” a Alain, mas que também é agenciador de apostas em lutas clandestinas. A irmã de Alain, Anna, uma caixa de supermercado que complementa a alimentação da família trazendo para casa produtos com validade vencida. Estórias que se entrecruzam com a dos personagens principais, complementando-as na medida certa.

    Marion Cotillard, em mais uma performance inesquecível, dá a Stephanie a fragilidade e a força necessárias a cada momento. Schoenaerts encarna com bastante desenvoltura o brutamontes com força demais e raciocínio de menos. E a interação entre os dois funciona bem demais. Tão bem que suas interpretações convencem totalmente o espectador de que aquele casal é uma realidade possível.

    Enfim, um filme de superação que, felizmente, deixa a pieguice de lado e consegue ser tocante sem ser apelativo e sem tentar fazer o público chorar a cada dez minutos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.