Categoria: Cinema

  • Crítica | Ponto Zero

    Crítica | Ponto Zero

    Ponto Zero

    À primeira vista, contar a história de um jovem que sofre bullying multilateral – escola, família e amigos – pode parecer uma tecla já martelada diversas vezes no cinema, mas Ponto Zero traz, talvez, uma das leituras mais interessantes para esta temática e contextualiza muito bem uma Porto Alegre não tão feliz quanto o nome da cidade sugere.

    Acompanhar a rotina do jovem protagonista Ênio é uma tarefa quase que integralmente sufocante. Se na escola o bullying é seu principal rival, em casa o adolescente enfrenta ainda problemas com um pai ausente e potencialmente agressivo e os reflexos que esse comportamento gera na mãe, seja numa projeção dos problemas conjugais para o filho, seja numa espécie de alienação parental que coloca o jovem e o pai em rota de colisão, ainda que com uma postura sempre passiva do garoto.

    Dirigido por José Pedro Goulart, o longa conecta o espectador com um surrealismo pouco frequente nas produções made in Brazil. Em diversos momentos, os recursos adotados lembram nuances de David Lynch, como na cena em que céu e solo trocam de lugar, o que nos remete à confusão presente na mente do rapaz naquele momento.

    Ênio é basicamente invisível, os coadjuvantes dominam mais de 90% das falas presentes no roteiro. Trabalho dobrado para o ainda pouco experiente ator Sandro Aliprandini que precisou abusar de sua interpretação facial e corporal para traçar os contornos de um protagonista complexo e ao mesmo tempo tão simples que quase não é notado. Essa característica da personagem fica bem clara na cena em que o menino passeia de bicicleta pela casa, pela sala de aula e pela cidade sem que ninguém o repare, sem que as pessoas presentes em cena notem a sua existência.

    Um dos trunfos da produção é a trilha sonora, que pode ser sentida quase que desenhando e conduzindo a trama. O recurso, além de ocupar bem seu espaço mais que necessário num filme onde sobram silêncios, ainda cumpre um papel de contexto aplicando um tom ainda mais claustrofóbico para as cenas.

    A direção é bastante assertiva. O realizador fez uso de técnicas pouco convencionais para que o filme soasse o mais natural possível. Atores e parte da figuração só tiveram acesso ao roteiro poucos minutos antes de gravarem cada cena, o que confere maior naturalidade ao projeto. Uma atitude ousada, mas que pode ser encarada como um grande acerto diante do resultado.

    O maior problema no filme é algo já clássico de longas-metragens que possuem caráter surrealístico: o tempo psicológico. Algumas sequências poderiam ser inteiramente deletadas do corte final sem que houvesse perda significativa na compreensão do todo. O tempo de filme, apesar de bastante curto – cerca de 90 minutos – é pesadamente sentido em decorrência de seu estilo. Ainda assim, Ponto Zero é uma produção bastante competente, e Goulart um diretor promissor.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.

  • Crítica | Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos

    Crítica | Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos

    Warcraft 1

    Juntando as expectativas de dois eventos distintos, primeiro com a adaptação de um game muito popular e segundo com o prosseguimento da carreira de um diretor bastante promissor, Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos chega aos cinemas. Com um início interessante, remetendo inclusive ao visual de Mad Max: Estrada da Fúria, o filme de Duncan Jones prova que ele não esqueceu como realizar um filme, mas se perde em meio a muitos conceitos complicados pouco aprofundados ou sequer explicados.

    A história se passa entre dois reinos, Draenor, terra dos orcs e Azeroth, lar dos humanos comuns. As primeiras cenas mostram orcs atravessando um portal para este novo cenário, já que o ambiente onde a raça habitava estava sendo extinto. Liderados por Gul’Dan (Daniel Wu), os orcs agem como predadores dentro do território alheio, movidos pelo ódio de uma substância mágica genérica, ainda que seu povo esteja um pouco confuso em relação a essas motivações, especialmente o líder de clã Durotan (Tobby Kebell), que não enxerga com bons olhos essa expansão imperialista, sentimento que vai tomando conta de outros concidadãos.

    O problema do roteiro é que até esse alastramento de ideal é mal utilizado, bem como o conjunto de atores da raça humana. A configuração de poder de Azeroth é caricata, e encontra os mesmos arquétipos comuns aos jogos de RPG de mesa e virtuais, sem justificar qualquer dos dramas pessoais desses que deveriam ser os mocinhos da história. Como principal destaque negativo está o guardião, Medivh (Ben Foster), que possui poderes grandiloquentes e uma vida extensa que não lhe garante nem maturidade e nem ausência de vaidade, já que seu substituto está bem próximo dele, no personagem de Khadgar (Ben Schnetzer), sucessão essa também não trabalhada pelo argumento.

    A falta de carisma dos personagens e as coincidências de roteiro são muitas. A dupla protagonista de Preacher, Dominic Cooper e Ruth Negga, vivem o rei Llane Wyrin e a rainha Taria, e não causam comoção e nem inspiração, tanto nos personagens quanto no espectador. A configuração da nobreza também é confusa e composta por guerreiros, fator que faz até os esforços do personagem humano principal, Adulin Thonar (Travis Fimmel), soarem completamente sem sentido, inclusive em relação à sobrevivência de Garona (Paula Patton), uma bela mulher orc de feições menos grosseiras – até por não ter seu físico composto por CGI – o que faz acreditar que ela é mestiça, em mais um fato subentendido por meio de omissão de informação, e que serve basicamente de apelo erótico pueril, o que dificilmente não incomodará as plateias que buscam a aprovação do Teste de Bechdel.

    Todo o elenco faz lembrar muito os erros de Dungeons and Dragons, de Courtney Solomon, inclusive no conjunto de diálogos imbecis e nas motivações péssimas dos personagens. O texto é tão confuso que praticamente todos os personagens que precisam de alguma razão para lutar com mais afinco tem seus filhos assassinados ou retirados de si, mesmo que tais herdeiros não tenham sido mencionados até então, mostrando que a confusão dos roteiristas era tamanha que mal deu para esconder o novo sub plot acrescido há pouco.

    A história, que poderia ter sido a exceção dentre as péssimas adaptações de video game, resulta em algo tão ou mais risível do ponto de vista dramático quanto os filmes de Uwe Boll e os clássicos trash noventistas, como Street Fighter, Mortal KombatDouble Dragon e Super Mario Bros, não conseguindo salvar-se sequer pelos efeitos especiais, abusando da interação de atores reais com criaturas em CGI e pecando inclusive no design dos monstros, transformando-os em versões genéricas de Shrek, vilões de Senhor dos Anéis e até mesmo do anti-herói Drax, visto em Guardiões das Galáxias, causando no espectador de Warcraft um riso nervoso e irresistível, não combinando em nada com a ideia de um filme de ação e aventura que capturaria a ansiedade do público gamer cativo. A obra fracassa em quase tudo que propõe, inclusive na direção de Jones, que não deixa qualquer das marcas de seu cinema em tela.

  • Crítica | Alice Através do Espelho

    Crítica | Alice Através do Espelho

    alice atraves do espelho“Se você não sabe onde quer chegar, então qualquer caminho serve”, disse o Gato Que Ri à Alice, que conta suas aventuras pelo País das Maravilhas no livro de Lewis Caroll. E é exatamente esse conselho que a direção de Alice Através do Espelho, de James Bobin, parece seguir no longa. A obra original, Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá, é uma espécie de sequência que simplesmente ignora a fonte, e embora possa ser “mais do mesmo” acaba por ser uma leitura agradável no fim das contas. Já o filme está bem longe disso. Do material original, apenas o título e a passagem pelo espelho se mantiveram. De resto, nada tem a ver com o livro, ignorando passagens memoráveis como o conto da Morsa e o Carpinteiro, ou a conversa com as flores no jardim.

    A maioria das adaptações da obra não seguem-na ao pé da letra, é verdade, e muitos filmes misturam o primeiro livro com o segundo – como os próprios estúdios da Disney fizeram nas duas versões anteriores a essa – mas sempre guardam alguma semelhança. Dessa vez, apenas o título mesmo foi usado. Fica claro desde o começo que não passa de uma forma de ganhar dinheiro com um produto já conhecido do público, com um esforço mínimo de trazer personagens memoráveis ou sequer significantes para a trama. Revemos velhos conhecidos, como o Coelho Branco ou a Lebre de Março, que apenas desfilam pela tela sem qualquer relevância.

    Logo no início, como de costume, vemos Alice (Mia Wasikowska) no “mundo real”, como capitã de um navio enfrentando perigos, e em seguida, resolvendo negócios de família e sendo ridicularizada por ser mulher. Se tivéssemos mais tempo com a Alice do mundo real, talvez poderíamos até mesmo ver uma história interessante. Infelizmente, esses problemas são tratados de forma superficiais e sequer arranham a superfície das questões que poderiam ser levantadas, mesmo que de forma anacrônica, por uma personagem feminina forte. Isso não ocorre, talvez pela falta de carisma da protagonista ou do raso desenvolvimento de sua personalidade. Temos que ser informados por sua mãe de que ela é “teimosa”, quebrando uma das regras fundamentais das artes cênicas de mostrar, não contar.

    Alice ouve a voz da Lagarta, agora transformada em Borboleta, que a guia até um espelho. Ao atravessá-lo, Alice volta para o Mundo Subterrâneo (Underland no original, fazendo um trocadilho com Wonderland). Se algo se salva nessa cena é a voz da Borboleta, interpretada pelo finado Alan Rickman, o eterno Professor Snape de Harry Potter, em seu último papel. Essa cena, que deveria ser de extrema importância por estar no título do filme, é totalmente banalizada. Alice simplesmente atravessa o espelho e pronto! Não existe encantamento, deslumbre, motivação… nada! Talvez por puro fan service, vemos um tabuleiro de xadrez senciente e Humpty Dumpty (o homem-ovo da rima infantil inglesa), em uma breve aparição, fazendo a única coisa que ele sabe fazer.

    Alice se encontra então com a “turma antiga” (seus amigos de Alice no País das Maravilhas), que estão todos tomando chá e se mostram felizes por vê-la. Assim, ela fica sabendo que o Chapeleiro Louco caiu em desgraça e precisa muito de sua ajuda. Ao conversar com o conturbado Chapeleiro (Johnny Depp, que parece querer reprisar mais uma vez o papel de Jack Sparrow) descobre que ele está abatido devido a um drama familiar. Alice, para ajudá-lo, vai até o Senhor do Tempo (Sacha Baron Cohen, ainda mais caricato que seu famoso personagem Borat) atrás de um artefato que a permita voltar no tempo. E é aí que a trama se torna genérica de uma vez!

    A Rainha de Copas interpretada por Helena Bonhan Carter é a vilã novamente – e novamente é mesclada com a Rainha Vermelha do livro – e também quer o mesmo artefato, chamado cronosfera, e para isso isso envolve-se em um relacionamento com o Senhor do Tempo. O desenrolar da história é tão mal-feito que descobrimos que tudo que acontece é por causa de uma… torta! Sim, a torta que faz parte do julgamento no primeiro livro e é apenas um recurso narrativo para parodiar os absurdos e arbitrariedades do sistema de Justiça, aqui é um elemento principal da história. E mais uma vez vemos o recurso narrativo da “escolhida” sendo usado, pois Alice é a única que pode salvar o mundo e por aí vai…

    O filme carece de uma lógica interna, o que torna seu desenvolvimento ainda mais sem sentido. Durante as viagens no tempo, ficou estabelecido que não se pode mudar o passado, mas mesmo assim, o passado é mudado! Os personagens são simplesmente desperdiçados e as piadas até tentam fazer rir, mas não funcionam. A melhor parte do filme é quando Alice volta ao mundo real pela primeira vez e quase temos um plot twist – bastante sombrio e que levantaria muitas questões a serem discutidas sobre a veracidade das viagens da personagem – mas que sequer é comentado no fim, quando ela volta de vez e resolve os problemas que havia deixado pra trás.

    No fim das contas, o filme não parece ir para lugar nenhum. Além da parte estética e fotografia, que emulam muito bem o estilo que Tim Burton imprimiu no também sofrível primeiro filme, não há nada que justifique o tempo perdido com essa película. Se a ideia era realmente não ir a lugar nenhum, então todos os envolvidos na produção estão de parabéns por atingir o objetivo.

  • Crítica | Dossiê Jango

    Crítica | Dossiê Jango

    Dossiê Jango

    Organizado por Paulo Henrique Fontenelle, Dossiê Jango traça o perfil de João Goulart. Iniciando com uma narração poetizada, a obra estabelece o histórico de Jango desde a época em que foi vice-presidente da república, em 1956, com Juscelino Kubistchek no cargo máximo da política nacional. Carlos Lyra, Cacá Diegues, Jair Krischke e outros famosos falam sobre a era dourada pela qual passava o Brasil, tanto política quanto artisticamente, com a ascensão do Cinema Novo. Quando se passa a falar dos eventos pós renuncia de Jânio Quadros em 1961, curiosamente o entusiasmo dos entrevistados é derrubado.

    Segundo o longa, a viagem de Jango para a China foi fundamental para a tomada de poder que ocorreria na disputa que duraria até 1964. Há um destaque quase didático do roteiro em explicar que a excursão era justificável, visto que o país era um mercado interessante de se tratar, tanto em importações quanto em exportações. O longa utiliza um tempo demasiado detalhando a movimentação de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, a fim de defender a volta ao país e subida ao planalto de Goulart, contra o recrudescimento dos militares que se iniciava ali.

    Contra as suposições de que iria implantar um regime comunista – já refutado no filme de Silvio Tendler, Jango – o documentário mostra a coalizão contraditória de Goulart em apresentar, de modo muito pacífico, as reformas estruturais e de base, além de propostas de reforma agrária, a um estilo capitalista, distante da visão socialista moderada ou não.

    O filme não tem receio em associar a interferência dos Estados Unidos, mostrando inclusive ligações do presidente Lyndon Johnson e Sr. George Ball temendo que o Brasil se tornasse uma nova Cuba, com proporções continentais. Da parte de pensadores políticos brasileiros, havia o receio de dividir o país, como se fez no Vietnã e Coreia, factoide pouco explorado em filmes documentais antigos.

    A frase do assessor de Jango, Cláudio Braga de que ‘o exilado é um morto vivo’ resume a melancolia do político, que era aos poucos deposto pela tentativa primeiro de parlamentarismo, bem-sucedida em vias práticas, depois pela tomada de poder militar, mesmo que, segundo o Ibope, as intenções de voto subissem para mais de 78%. A gravidade da situação para Jango pioraria de vez com a execução da Operação Condor e a queda da democracia uruguaia e demais nações do cone sul.

    Dossiê Jango é bem mais pessoal em relação ao biografado do que em Jango, de 1984. O mergulho na intimidade ganha importância pela distância temporal entre filme e acontecimentos. Mesmo o escritor Carlos Heitor Cony destaca que a perseguição a Goulart era só mais um eco do auge da Guerra Fria.

    O longa dá vazão a uma teoria da conspiração, logo após tratar sobre o falecimento de Jango, discorrendo sobre a morte quase seguida de Carlos Lacerda, Juscelino e do próprio personagem-título, unindo a tentativa de envenenamento de Brizola no Uruguai, o que justificaria o caráter de dossiê presente no nome oficial do filme, mostrando que um dos motivos do filme foi fortalecer a hipótese e tese de que havia uma mini chacina dos políticos influentes brasileiros, teoricamente capazes de destituir os militares do poder.

    A contestação à palavra dos historiadores ocorre especialmente por parte de seu filho, João Vicente Goulart, que destaca que são estes mesmos estudiosos que defendem a manutenção da anistia. Gasta-se um tempo demasiado, na teoria do amigo uruguaio de Goulart, Foch Diaz, que teria procurado a família do mesmo e que foi ignorado. A partir daí, um relatório seria aprovado e assinado pelo parlamentar Miro Teixeira, que associa o nome do presidente a uma lista de assassináveis, ainda que não confirme que o óbito veio por esses meios.

    A animação, vista no final do filme de Fontenelle, passeia por corredores mal iluminados, repletos de arquivos enferrujados, trancados e lotados de segredos estatais, intactos graças à decisão de não serem violados de modo algum. Dossiê Jango não expõe verdades absolutas, mas serve muito bem ao intuito de gerar discussão e expor conjecturas normalmente ignoradas tanto pelo oligopólio midiático da época, quanto pelos membros atuais da imprensa, que tendem sempre a desmerecer os argumentos a respeito dos contestáveis laudos da morte de Jango.

  • Crítica | Jogo do Dinheiro

    Crítica | Jogo do Dinheiro

    Jogo do Dinheiro

    Jogo do Dinheiro é um produto que se vale de paralelos com a realidade, pervertendo ligeiramente os acontecimentos verossímeis, ainda fazendo um comentário sóbrio sobre paranoia, comunicação e manipulação. O longa foca no programa televisivo Money Monster, o mesmo que dá nome ao filme, um programa sensacionalista e pseudo jornalístico que faz um show de avisos sonoros e atrações teatrais, enquanto discute os rumos da bolsa de valores e demais espectros da economia americana.

    O âncora do programa é o canastrão decadente Lee Gates (George Clooney), que logo percebe que sua parceira de trabalho, Patty Fenn (Julia Roberts) está de saída da direção de seu programa, deixando-o em uma posição ainda mais degradante do que a já vista neste início de trama. No último programa que a dupla comandaria acontece um evento entrópico, com a entrada de um homem revoltado no estúdio de posse de uma arma de fogo e uma bomba. O personagem é interpretado por Jack O’Connell, e suas motivações são expostas aos poucos, inclusive incorrendo a identidade do atirador (chamado de Kyle Budwell), os motivos que o fizeram ameaçar a vida dos membros da produção e instaurar o caos ao vivo e em rede nacional.

    Jodie Foster consegue harmonizar dois estilos de direção diferentes, primeiro dando vazão a um cinema de protesto, que desdenha do american way of life, semelhante ao executado pelo cinema alternativo europeu com o cunho político de desconstrução do capitalismo clássico como meio de vida e economia ideal, ao mesmo tempo que remete à economia tanto orçamentária quanto de exploração sensacionalista, típica dos filmes mais politizados de Clint Eastwood e Robert Redford, especialmente Leões e Cordeiros e Poder Absoluto, emulando também a estética do cinema clássico norte-americano.

    Em seu quarto filme dirigido, Foster consegue reunir uma adrenalina avassaladora com uma discrição assustadora, o que facilita e muito no brilho tanto de Clooney, que está inspiradíssimo, quanto de Roberts, que consegue reunir um conjunto de nuances enormes mesmo em um papel muito comedido. A direção de atores da realizadora já havia sido posta à prova em Um Novo Despertar e segue firme, sem permitir qualquer vacilo na apreensão causada no espectador.

    O roteiro de Jamie Linden, Alan DiFiori e Jim Kouf ainda possui dois pontos de absurda inteligência, que é a desconstrução da solidariedade gratuita, normalmente apontada pelos veículos comunicacionais mais conservadores, mostrando que mesmo a audiência de Gates pouco se importa com a vida do showman, assim como traça paralelos no comportamento de Kyle com a faceta do Justiceiro recentemente trazido para o audiovisual com a série do Demolidor e com a história do Anjo Exterminador. O personagem é tão rico que mesmo ele reconfigurando as noções de poder, ainda há espaço para mostrar uma impotência crônica com os seus conhecidos, em especial com sua noiva, que faz desconstruir sua moral de assassino assim que ganha voz, o que faz salientar ainda mais a fragilidade do sistema.

    Jogo do Dinheiro consegue fugir dos clichês dos termos técnicos e ser ácido, mostrando a crueza da alma humana e como os ditames econômicos servem aos poderosos e oneram a classe trabalhadora comum, construindo um arquétipo invertido visto no clássico de Gillo Pontecorvo Queimada!, ainda se valendo do método socrático maiêutico, além de ironizar os chavões típicos de filmes sobre televisão, como a presença de uma equipe fiel independente das adversidades. E, claro, alfinetar os finais adocicados, com um pouco de esperança mesmo para os personagens que não merecem redenção moral. Ainda assim, os últimos momentos soam realistas e pragmáticos. Mesmo com todo o rebuliço, a rotina continuará privilegiando os que já detêm o poder, tanto político quanto monetário.

  • Crítica | Adeus, Lenin!

    Crítica | Adeus, Lenin!

    1_zoomResponsável por liderar a safra recente de filmes alemães como Barbara e A Vida dos Outros, que se propuseram a revisitar o passado da ocupação soviética, Adeus, Lenin! se tornou uma grata surpresa pela originalidade da história em um filme que reverencia o próprio cinema.

    A mãe socialista de dois jovens alemães orientais entra em coma meses antes do Muro de Berlim cair e o país se reunificar, e quando acorda seu filho faz de tudo para protegê-la do choque criando uma nova realidade.

    O bom roteiro do diretor Wolgand Becker em parcecia com Bernd Lichtenberg, Achim von Borries, Hendrik Handloegten e Christoph Silber tem como premissa discutir a diegese do próprio cinema de ficção através de uma fábula sobre o tempo. A narrativa precisou encontrar um tom levemente fantástico para que fosse possível construir situações pouco realistas e chegar em uma das duas grandes discussões que o filme se propõe.

    Da mesma forma que nós espectadores só aceitamos entrar em um universo irreal onde pessoas se passam por outras se certos elementos forem verossímeis, o mesmo vale para a mãe de Alex. Para que ela aceite a nova realidade proposta pelo filho, ele tem de criar diversos elementos que façam com que seja verossímil, entre eles a produção de programas de TV, emular embalagens de produtos que não existem mais e etc.

    O tempo é a outra grande discussão do roteiro, e ela surge nas vezes em que a mãe entra em choque com a realidade quebrando a proposta por Alex, forçando soluções narrativas interessantes, como nos casos em que ela saía do quarto com o símbolo da Coca-Cola à vista. Esse embate trazem à tona os motivos nobres de Alex: a princípio seus atos se revelam pensando em preservar a mãe de ter um novo ataque cardíaco, mas através da grande revelação no terceiro ato, quem sempre esteve preso ao passado e não aceita as novas transformações do mundo é ele.

    Por último, o revisionismo histórico sobre o trauma soviético a que o filme se propõe é essencial e reabriu as discussões sobre a outra grande ferida no passado alemão. Apesar de ser uma comédia, o roteiro abraça os problemas tanto da ocupação soviética sob o governo socialista, que cerceava os direitos humanos e dava poucas opções de liberdade e consumo, quanto da mudança radical para o capitalismo, que aumentou o desemprego de funcionários e causou o fechamento de lojas.

    A direção de Wolfgang Becker é sólida e mantém o clima de comédia o filme todo, levemente alternando com o drama quando da necessidade do roteiro. Os leves toques de fantasia nas sequências em que Alex produz a nova realidade para a mãe são o ponto alto do filme, junto com a direção de atores.

    O ótimo Daniel Brühl foi a grande revelação na época interpretando o jovem Alex; Katrin Sass como a mãe, e as participações menores de Maria Simon, sendo a irmã Ariane e Chulpan Khamatova o seu interesse amoroso, Lara, trouxeram qualidade à obra.

    A fotografia de Martin Kukula é levemente fantasiosa e abusa do marrom e principalmente de tons secos que remetem ao passado. A edição de Peter R. Adam mantém o bom ritmo e as duas horas passam sem serem percebidas. Por ser um filme de época, o departamento de arte se destaca bastante graças ao ótimo trabalho de Matthias Klemme como supervisor, no desenho de produção de Lothar Holler, e dos figurinos de Aenne Plaumann.

    Adeus, Lenin! é um dos filmes que se tornou referência nos anos 2000 e traz tantas discussões relevantes que transforma seu tema universal e atemporal.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Amor por Direito

    Crítica | Amor por Direito

    010220161609161Coincidência ou não, Amor Por Direito estreou no final de 2015, alguns meses depois da Suprema Corte dos Estados Unidos aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que só ajudou a reforçar a importância da discussão do tema de direitos civis.

    Após a descoberta de um câncer terminal, uma detetive da polícia de Nova Jersey e sua companheira registrada por união civil lutam para estender o direito da pensão após a sua morte à sua parceira.

    O roteiro bem estruturado do competente Ron Nyswaner, o mesmo de Filadélfia, se baseia no documentário de mesmo nome lançado em 2007 e que ganhou Oscar de curta-metragem. Toda a trajetória de Laurel e Stacie é muito bem conduzida ao longo do roteiro, a evolução das protagonistas é bem desenvolvida. Laurel inicia como uma mulher que esconde a sua sexualidade dos colegas do trabalho e termina como uma defensora do casamento igualitário, ao passo que Stacie vai de destemida porém retraída e acaba como uma mulher forte que aprendeu a lidar com a perda.

    Outro acerto de Nyswaner é trazer a importante discussão da luta de direitos igualitários para os dias atuais e assim levantar perguntas pertinentes. Por que a esposa de uma profissional competente não pode ter o seu direito reconhecido? A crença dos políticos deve se sobrepor aos direitos individuais? Até aonde a vontade da maioria pode prevalecer em detrimento a direitos?

    Porém, o roteiro apresenta alguns problemas. A já dramática batalha de Laurel Hester e Stacie Andree acabou ganhando um maniqueísmo desnecessário com o melodrama. Seria mais interessante trocar os vilões rasos que pouco acrescentam por personagens humanizados para justamente mostrar o absurdo que é a homofobia. O preconceito contra gays é praticado por pessoas comuns, amorosas, com falhas e não somente por vilões caricatos. O que poderia ser um grande filme político universal como o já citado Filadélfia (1993), de Jonathan Demme, Milk (2008), de Gus Van Sant, e Carol (2015), de Todd Haynes, acaba sendo um filme com questões importantes, porém limitado a uma militância que deseja catarse acima de tudo.

    A direção de Peter Sollett é sólida e o seu forte é a direção de atores, ainda mais quando dirige as duas protagonistas. Porém, ele peca ao apelar para a canastrice nas situações maniqueístas em os personagens se inserem. A composição dos enquadramentos nas cenas da praia também são o outro ponto alto.

    A atuação de Julianne Moore é de longe o melhor elemento de Amor por Direito, a evolução da personagem é bem pontuada pela atriz ao longo da narrativa, e do meio para o final do filme quando ela fica doente só reforça seu ótimo trabalho. Ellen Page como Stacie só mostrou a boa atriz que é, contribuindo para a sua versatilidade, e destaque ainda para Steve Carell que interpreta o alívio cômico Steve.

    A boa fotografia de Maryse Alberti é naturalista boa parte da obra, se permitindo um tom onírico nas belas cenas da praia e da sequencia final. A edição de Andrew Mondshein é invisível e cadenciada, mantendo o filme em um bom ritmo, se destacando igualmente nas cenas da praia e no final.

    A boa direção de arte de Patrice Andrew Davidson teve a ajuda do cenário de Joanne Ling, a cenografia de Jane Musky e o figurino de Stacey Battat, além da ótima maquiagem feita por um ótimo time que lembrou a transformação de Tom Hanks em Filadélfia.

    Amor por Direito é daqueles filmes importantes e que merecem ser assistidos mais pela importante história e os temas que levanta do que pela dramaturgia que apresenta.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Horas Decisivas

    Crítica | Horas Decisivas

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    Baseado no livro homônimo de Casey Sherman e Michael J. Tougias – com roteiro de Scott Silver e Paul Tamasy, e direção de Craig Gillespie – o filme conta a história, ocorrida em 1952, do naufrágio de dois petroleiros durante uma nevasca na costa de Cape Cod, Nova Inglaterra. Um barco de pequeno porte da Guarda Costeira consegue resgatar boa parte da tripulação de um deles, o SS Pendleton. O navio foi partido ao meio durante a tempestade, e a tripulação restante na metade que não submergiu luta para mantê-lo flutuando enquanto aguarda o resgate incerto.

    Uma vez que os oficiais do SS Pendleton estavam na parte que afundou, coube ao primeiro-engenheiro, Ray Sybert (Casey Affleck), a responsabilidade de orientar e comandar o restante da tripulação a fim de evitar o desastre iminente. Enquanto isso, no litoral de Massachussets, em Chatham, o oficial Daniel Cluff (Eric Bana) ordena que o capitão Bernie Webber (Chris Pine) organize uma operação de resgate apesar das condições adversas – por que não dizer? – suicidas.

    É uma temática que, mesmo sem saber qual estúdio produziu, seria fácil identificar como “filme Disney”. Há ali toda a ideologia de superação, de trabalho em equipe, de perseverança característicos das produções do estúdio. Os temas não são problema. O problema é a forma como são explorados no filme, do modo mais clichê possível, com frases de efeito que poderiam estar em para-choques de caminhão. E ainda há o agravante de que, por ser baseado em fatos reais, o espectador já começa a assisti-lo sabendo que os personagens terão sucesso e sobreviverão. Parte da tensão e do suspense já se vai aí.

    A narrativa alterna entre o navio prestes a afundar e Bernie com seus companheiros enfrentando o mar furioso em um barco diminuto. O que ocorre com a tripulação é extremamente tenso, com ótimas sequências de ação e momentos de suspense, contando com uma boa atuação de Affleck e dos demais, que conseguem manter o público interessado no futuro desses personagens. Por outro lado, Bernie é um personagem fraco, interpretado por um ator que carece de carisma, não conseguindo dar a Bernie a importância devida e, provavelmente por conta disso, incapaz de causar empatia com o público. Sem contar que o filme se inicia como se fosse uma história de romance água-com-açúcar, algo que talvez desencoraje muitos a continuar a vê-lo. E mesmo a única cena tensa na pequena embarcação – quando estão tentando ultrapassar os bancos de areia – perde força, pois já sabemos que eles conseguirão. Os roteiristas despenderam tempo mostrando as inúmeras tentativas de Bernie, enquanto poderiam ter optado por prolongar as cenas da tripulação do navio, onde realmente estava a tensão da narrativa.

    Não há dúvida de que os personagens são estereotipados. De um lado, Bernie, um oficial cujos companheiros não confiam e que não consegue impor respeito, principalmente por fazer tudo conforme as regras, mas que no final se redime ao tomar atitudes que garantem o resgate dos 32 tripulantes. De outro, Sybert, o engenheiro confinado à sala de máquinas do petroleiro, desprezado pelos demais e que acaba se tornando o herói relutante, por ser o único em condições de juntar a tripulação, já que era o único a ter ideia do que fazer para mantê-los vivos. A diferença é que Affleck dá a Sybert tridimensionalidade e torna-o um personagem que gera interesse do público. Enquanto que a atuação de Pine não muda de tom, mesmo depois de infringir as regras para efetuar o resgate ou após conseguir resgatar a todos.

    Ainda que visualmente o filme seja agradável, com a direção de fotografia de Javier Aguirresarobe – conhecido por seu trabalho em Os Outros -, o roteiro falha em manter o ritmo da narrativa, resultando em excessos que dão vontade de abandonar a história antes do desfecho. E se a fotografia é boa – exceto nas cenas românticas -, o mesmo não se pode dizer da trilha sonora que, excessiva, quer se fazer presente a qualquer custo, insistindo em conduzir os sentimentos do espectador.

    Longe de ser um épico, longe mesmo de ser memorável, é uma aventura Disney que enaltece o heroísmo e o espírito de equipe. Deixe-se assistir, apesar do romance mal encaixado e da falta de ritmo nas cenas do barco de resgate.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | A Vingança Está na Moda

    Crítica | A Vingança Está na Moda

    A Vingança Está na Moda

    Depois de quase uma década sem dirigir longas-metragens, Jocelyn Moorhouse retorna à condução no drama The Dressmaker, pessimamente traduzido para A Vingança Está na Moda, fato que faz vender o filme como se fosse uma comédia. O roteiro acompanha a chegada de Myrtle ‘Tilly’ Dunnage, vivida por Kate Winslet, que retorna a sua cidade natal na Austrália, um lugar desolado de distância mesmo entre as casas. A volta da protagonista é em grande estilo, e seu intuito logo fica evidente: provar aos seus antigos convivas que seus feitos foram muito além do que os camponeses julgavam.

    Tilly age como uma autêntica femme fatale, a despeito da idade de sua intérprete, que se vale exatamente de sua bela forma para perverter os ideais conservadores da comunidade rural, tirando a atenção até dos jogadores de rúgbi. Seu primeiro ato ao chegar no ponto de seu nascedouro é tentar arrumar os modos e vestimentas de sua mãe Molly (Judy Davis), fazendo do lar de sua infância a base para seu plano.

    A trama é atravessada por flashbacks, que mostram a personagem principal na infância, sendo maltratada por outras crianças, pelas mesmas que compõem o status quo do lugarejo, com referências inclusive a abuso sexual ainda quando criança e segregação tanto da vingadora quanto de sua mãe, com demonstração de conivência por parte dos vizinhos já adultos. Através de máquina de costura, Myrtle passa a vender a moda que a fez trabalhar quando estava em Melbourne estudando alta costura.

    A forma escolhida pela personagem para aproximação envolve troca de favores e cessão de trabalhos para os poderosos, mas Dunnage não os trata como os nobres que esta versão da classe média acha que é, mas ao contrário: é hostil mesmo prestando serviços de moda. Não há condescendência por parte de Tilly. A única pessoa que foge desse escopo de desprezo é Teddy McSwiney (Liam Hemsworth), que serve como uma das poucas alternativas à moral dentro da localidade, tendo por fim um destino trágico.

    A direção de Moorhouse varia entre a discrição e o glamour, acentuando a duplicidade da literatura de Rosalie Ham, tornando ainda mais importantes as questões familiares conflituosas entre mãe e filha e a cadeia de necessidade previamente estabelecido e pervertido próximo ao final. O tom agridoce valoriza ainda mais as viradas de destino presentes em A Vingança Está na Moda, fazendo dele um diferencial, ainda que moderado em meio a tantos filmes mornos dentro desse subgênero.

  • Crítica | Mogli: O Menino Lobo (2016)

    Crítica | Mogli: O Menino Lobo (2016)

    mogli-o-menino-loboQuando anunciado pela Disney, que estaria refilmando um de seus clássicos de animação, Mogli – O Menino Lobo, de 1967, em uma versão live-action repleta de efeitos computadorizados e dirigida por Jon Favreau, poucos foram os que não tiveram ressalvas com a decisão do estúdio, afinal a animação clássica permanece bastante viva no imaginário das pessoas como um dos filmes mais queridos do estúdio, além de ser uma das grandes obras do estúdio nos anos 1960 ao lado de 101 Dálmatas – também adaptado em live-action em 1996.

    Convém lembrar que a decisão de refilmar esses clássicos tem sido uma constante do estúdio Disney nos anos de 2010: Cinderela, de Kenneth Branagh, Malévola (releitura de A Bela Adormecida), de Robert Stromberg, e Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton. Apesar do sucesso de bilheteria, todos os filmes dividem opiniões da crítica, e por muitos soam como uma tentativa cínica de arrecadar dinheiro à custa da nostalgia de muitos. Mogli: O Menino Lobo, apesar de ter esse objetivo, felizmente é um desses exemplos de obra que, apesar de seus imperativos comerciais, pode ser repleto de originalidade, criatividade e paixão em sua realização.

    A história do longa-metragem é uma adaptação de um dos contos do livro de Rudyard Kipling, O Livro da Selva (compre aqui), que traz a história de Mogli (Neel Sethi), uma criança que tem como protetora a pantera Bagheera (Ben Kingsley) e é criada por uma matilha de lobos após ter seu pai morto nas selvas da Índia. A história ganha novos contornos quando a selva indiana passa por um período de seca e todos os animais se reúnem em um pequeno vale, onde ainda se encontra água. Por conta disso, é evocada uma das leis da selva que obriga uma trégua temporária naquela região onde nenhum animal precisaria temer em se tornar uma presa de outro animal.

    No entanto, a chegada do tigre Shere Khan (assustadoramente dublado pelo grande Idris Elba) coloca em risco a vida de Mogli, e Bagheera não vê outra escolha a não ser levar o menino de volta a uma aldeia de homens para que ele possa crescer em segurança. A partir de então, o filme ganha contornos de um “road movie“: a jornada de Mogli até a aldeia dos homens. Como nos típicos filmes de estrada, há um ponto de chegada pré-definido, no entanto não definitivo, já que a própria jornada do protagonista se torna mais relevante. A jornada é mais importante que a chegada, e a verdadeira finalidade das personagens.

    mogli - o menino loboEm sua jornada, Mogli se depara com vários animais, e cada um deles oferece ao protagonista um caminho diferente a ser traçado. Bagheera é marcado pela preocupação benevolente, prezando unicamente pela segurança de Mogli e deixá-lo entre os seus; Kaa (Scarlett Johansson) oferece um desfecho rápido através de seus olhos hipnotizantes e sedutores; por sua vez, Baloo (Bill Murray) entrega uma visão de mundo inicialmente escapista, mas que ao longo da trama se mostra repleto de ternura, enquanto o Rei Louie (Christopher Walken) surge como a demonstração da ganância e a ambição humana. Além disso, dentro da matilha de lobos, Akela (Giancarlo Esposito) e Raksha (Lupita Nyong’o) são as representações das figuras paterna e materna de Mogli.

    Os efeitos visuais abrangem quase que exclusivamente não só todos os personagens -exceção feita a Sethi interpretando Mogli – mas também todo o ambiente do longa-metragem. O filme se mostra extremamente bem-sucedido nesse esplendor tecnológico, apesar de, em alguns momentos, o nível cair e deixar um pouco a desejar. O trabalho do diretor de fotografia Bill Pope ao lado de Favreau é consistente, evocando cenas belíssimas e dando um clima mais sombrio se comparado à animação de 1967, mas de maneira alguma deixa de ser um filme bem-humorado.

    Diferente da animação clássica, Mogli: O Menino Lobo, conta apenas com dois números musicais, o já clássico The Bare Necessities, canção de Baloo e interpretado com a leveza de Murray; e I Wan’na Be Like You, em um belo bepop interpretado por Walken em sua personagem Rei Louie; e aos não-adeptos de musicais, importante dizer que ambas as canções interpretadas são dois grandes momentos do filme, não se tratando de casos que retirem o espectador da imersão do filme, mas muito pelo contrário.

    No final das contas, Mogli: O Menino Lobo é um longa repleto de ternura, sensibilidade e intensidade. Curiosamente, um filme praticamente desprovido de seres humanos, mas repleto de humanidade.

  • Crítica | Espaço Além: Marina Abramovic e o Brasil

    Crítica | Espaço Além: Marina Abramovic e o Brasil

    Espaço Além 2

    Nascida na Sérvia e famosa por suas intervenções artísticas altamente performáticas, a artista Marina Abramovic é despida diante do público no documentário do diretor Marco Del Fiol. Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil conta em detalhes a incursão da artista pelo país entre os anos de 2012 e 2015 e a maneira como as suas vivências em terras tupiniquins influenciaram diretamente sua espiritualidade e, consequentemente, seu trabalho, dando destaque para os rituais xamânicos, candomblecistas e de tantas outras vertentes religiosas que parecem conectar Marina com um “outro lugar”, onde encontra inspiração e direcionamento para a sua arte.

    Em alguns momentos, as imagens captadas chocam por sugerir dor, sofrimento e angústia. Mas não poderia ser diferente em se tratando de uma das mulheres mais famosas por reconhecer e traduzir o sublime através do doloroso. A sensação é de estar diante de uma grande exposição, passeando pela mente controversa da artista e sendo alvo das emoções que ela desperta.

    A escolha de roteiro ajuda muito a contar essa história, ainda que não haja muito o que contar. O contexto aqui é aberto e multidirecional. São imensos, coloridos e sinestésicos recortes de um Brasil amplo em nuances, significados e sentidos aliados à força do místico. É como se Marina se colocasse como um fio condutor entre o mundo tátil (real) e esse “outro lugar” trazido pelo oculto. A narração em primeira pessoa torna o filme mais digerível, ao passo que aproxima o público tomando-o pela mão e conduzindo o caminho. Não fosse essa a estratégia e muito provavelmente seria difícil quebrar a dureza de algumas sequências.

    Sem dúvidas, Espaço Além não se trata de um documentário de fácil aceitação do público, pois trabalha assuntos e abordagens muito incomuns para a maioria dos espectadores. É um filme de experimentações, de descobertas, de liberdade de pensamento e exercício criativo. Um prato cheio para aqueles mais próximos de uma sensibilidade artística. Talvez um dos melhores documentários-arte desde Pina, de 2011.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.

  • Crítica | Os Anarquistas

    Crítica | Os Anarquistas

    Na virada do século XIX para o século XX, o anarquismo era a ideologia revolucionária mais radical, com mais adeptos e consequentemente a mais perseguida, tanto na Europa quanto na América. A forma com que se organizavam e viviam a política, sempre apaixonados, serviu de fonte de inspiração para várias histórias românticas, que muitas vezes terminaram de forma trágica, ainda mais no período de refluxo das lutas operárias após a queda da Comuna de Paris e consolidação da Terceira República. É nesse contexto histórico que o diretor Elie Wajeman escolhe para nos contar a história de Os Anarquistas, com roteiro de sua autoria juntamente de Gaëlle Macé.

    Situado na França de 1899, o filme conta a história do policial Jean Albertini (Tahar Rahim) quando é recrutado pelo chefe de polícia para se infiltrar e passar informações sobre um grupo local de anarquistas parisienses. Jean aceita imediatamente e logo é colocado para trabalhar em uma das tantas fábricas para fazer contato com os supostos líderes do movimento. Dotado de carisma, ele logo faz amizade com Elisée Mayer (Swann Arlaud), Biscuit (Karim Leklou), Marie-Louise (Sarah Le Picard) Eugène Levèque (Guillaume Gouix) e a bela e jovem Judith (Adèle Exarchopoulos), por quem logo se sente atraído.

    Logo, Jean conquista todo o grupo, enquanto continua provendo informações vitais para a polícia a respeito das ideias e das ações do grupo, o que torna confuso para o espectador entender as suas motivações, pois ao mesmo tempo em que o mostra preocupado e suscetível às ideias anarquistas e acolhido pelos ativistas, Jean não hesita em momento algum em continuar a informar seus atos à polícia. Ele não tenta esconder ou mesmo dar informações falsas. Continua sem problema algum, mesmo estando apaixonado por Judith.

    Filmes sobre política com casais apaixonados como protagonistas raramente resultam em algo positivo, e nesse caso não é diferente. Apesar de todo o rico contexto histórico da época, os anarquistas do grupo não fazem muita coisa além de reuniões e festas. Ao mesmo tempo, as investigações policiais não oferecem muito risco a eles, a não ser no desfecho da história. O que parece é que todo o contexto foi utilizado apenas para contar a história de Jean e Judith, dois apaixonados de lados diferentes que não poderiam ficar juntos. Se esse fosse o caso, chamar o filme de algo diferente de Os Anarquistas teria sido mais interessante. Porém, a força de tal título, mesmo sem embasamento na história, era mais sedutora.

    Mesmo que visualmente o filme seja vislumbrante com a tonalidade opaca e azul, de tempos sombrios que o grupo e a França estavam vivendo, assim como a brutalidade da vida do pobre da época (que também poderia ser mais explorada), Os Anarquistas falha até mesmo em nos fazer sentir cativados pelo grupo, transformando o anarquismo numa série de bordões e frases bonitas que mais parecem desculpas de jovens para um estilo de vida alternativo do que realmente uma ideologia política. No final, sobra apenas um vazio que a história não conseguiu preencher.

    Para quem procura uma história rica tanto no sentido político, ou no sentido romântico, ou mesmo na soma destes dois elementos, infelizmente Os Anarquistas deixa a desejar em todos eles.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | A Batalha de Argel

    Crítica | A Batalha de Argel

    A Batalha de Argel

    Ambientado no ano de 1957, apenas nove anos antes da feitoria do filme, A Batalha de Argel registra em preto e branco o quão anacrônicos eram os métodos utilizados pelo exército francês a fim de tentar esmigalhar os ativistas políticos pró-independência argelinos, liderados pela Frente de Libertação Nacional. Com tema musical de Ennio Morricone e direção de Gillo Pontecorvo, a obra ajudou a remontar a urgência por identidade buscada pelo povo e nação, fazendo do filme mais um marco do cinema político clássico.

    Pontecorvo tem um cuidado sui generis em retratar tanto a violência dos conflitos, fatos inegáveis em se tratando de um levante popular – indo na contramão do discurso politicamente correto a respeito de manifestações sem confusões que acomete alguns discursos pós modernos – como também guarda espaço para desenvolver a docilidade do povo, que dá prosseguimento a sua vida comum e ordeira, realizando seus ritos religiosos e enlaces matrimoniais e humanizando os revoltosos, que normalmente são execrados por quem conta as histórias, em especial europeus que perderam o embate.

    Não há glamourização da luta pela libertação. As bombas que contemplam o território argelino são colocadas em pontos estratégicos. Os detalhes da câmera mostram a sujeira dos locais, o temor dos revolucionários e o medo, tanto de ser pego quanto de fazer mal ao homem comum do país.

    Há uma sequência que mostra de maneira didática a alienação que acomete parte da população. Há uma explosão de bomba em um estabelecimento comercial genérico, perto de uma danceteria que toca música caribenha. Quando ocorre o estouro, todos vão para fora a fim de ver o que ocorreu, mas movidos unicamente pela curiosidade e não pela empatia, uma vez que, assim que a música volta a tocar, retornam rapidamente ao entretenimento, até ocorrer outro atentado exatamente naquele lugar, fazendo a alegoria bíblica de que o salário do pecado é a morte, e a omissão, injúria.

    Após uma hora e meia de exibição, as discussões estratégicas, lideradas pelo coronel Mathieu (Jean Martin), dão lugar a demonstrações de tortura como arma de condicionamento do povo cansado dos desmandos dos antigos poderosos. Ao menos nesse instante, não há preocupação com sutileza, ainda que um mundo de nuances e emoções conflitantes estejam presentes nos espectadores dos atos cruéis contra seus compatriotas, observados pelos closes certeiros que enquadram o olhar dos civis atemorizados.

    O período compreendido no clássico de Pontecorvo é bastante curto e pontual: o início da revolta que daria fim à opressão europeia sobre a nação africana, como um retrato do embrião da soberania local sobre a bruta colonização externa. O período conflituoso se arrastaria por mais dois anos. A Batalha de Argel mostra um levante popular, sem romantismos ou utopias, registrando de modo pragmático o martírio de uma população cansada de ser explorada gratuitamente. E sem respeitar o distanciamento muitas vezes empregado em relação à crítica aos antigos chefes de colônia da Europa.

  • Crítica | Se Deus Vier Que Venha Armado

    Crítica | Se Deus Vier Que Venha Armado

    Se Deus Vier Que Venha Armado

    Luis Dantas orquestra o drama policial Se Deus Vier Que Venha Armado, munido da experiência que teve com Mauro Baptista Vedia no média-metragem A Performance. Seu novo filme acompanha Damião (Vinicius Oliveira), um homem em breve liberdade condicional, que ao encontrar seu irmão Josué (Clayton Mariano) tem também de cumprir uma tarefa para seus colegas de prisão, enquanto está no lado oposto das grades.

    O entorno dos personagens é formado por personagens toscos, pastiches da vida real, pessoas cujo arquétipo fala mais alto do que qualquer construção de personagem. Os habitantes do lugarejo pobre e suburbano de São Paulo são formados por pessoas moralistas ou religiosas. O fato da história se passar em uma área carente pretensamente ajuda a explicar o discurso maniqueísta, que não leva em conta as injustiças sociais comuns aos menos abastados, tratando quem é ligado ao crime como seres execráveis, não importando o contexto.

    A construção da moral do filme é falha. Toma-se um cuidado excessivo em tornar os métodos de contravenção e tráfico de drogas como alvos naturais dentro da rotina dos habitantes dos locais explorados pela câmera, o que não justifica em momento algum o juízo de valor que o roteiro faz dos que praticam atos marginais, quase culpando-os por completo, em uma demonstração de visão que beira o fascismo, ao julgar tudo e todos através do argumento dos personagens que são policiais, os quais, por sua vez, também não são trabalhados.

    Há uma pífia tentativa de poetizar os momentos dos excluídos, emulando uma letargia provinda da anestesia causada pelo torpor das drogas usadas por eles, ao menos segundo a ótica tacanha e piegas pensada pelo filme. Sobram gírias e atitudes intempestivas na vã tentativa do filme em parecer minimamente realista na abordagem. O conteúdo do roteiro é praticamente nulo, o que mina as possibilidades de Oliveira, Ariclenes Barroso e o restante do elenco conseguirem qualquer reação que fuja do usual ou que destoe do péssimo exploitation de violência utilizado no longa.

    Existe uma intenção em representar o dia a dia dos meninos que vivem sob o risco de morte o tempo inteiro, na eterna guerra entre poder paralelo e o corpo policial, mas tal sentimento não é nunca atingido dentro do longa de Dantas, já que a representação de ambos os lados desse conflito prima pelo vazio e pelo clichê.

  • Crítica | Campo Grande

    Crítica | Campo Grande

    campo garnde 7Apoiado em temas comuns ao cinema e à literatura, Campo Grande de Sandra Kogut usa o abandono de infantes como base para sua história: as dificuldades de gerar vida e de consolidá-la. Rayane (Rayane do Amaral) é uma menina deixada na porta da casa de uma família abastada de Copacabana, e que em sua tenra infância precisa lidar com a rejeição de sua progenitora e da mulher que a recebe, Regina (Carla Ribas), uma senhora que, ao menos aos olhos dos empregados, aparenta grande poder, mas que tem em seu comportamento um forte ranço discriminatório.

    O drama cresce quando surge o irmão mais velho, Ygor (Ygor Manuel). O menino revela a tentativa de ambos de encontrar a matriarca que os abandonou. A jornada dos pequenos envolve primariamente uma busca pelos pontos comuns dos bairros nobres cariocas, sem rumo ou planejamento graças à inexperiência do primogênito, que crê piamente que sua mãe retornará, e que tal regresso será por ali.

    As conclusões entre patronado e serviçais flertam com o tema de Que Horas Ela Volta?, ainda que a contestação no filme de Kogut seja mais incisiva e voltada para o preconceito observado entre áreas nobres do Rio de Janeiro e o subúrbio carioca. Os cenários são reprisados em segundo plano, ambientando as brincadeiras que demonstram a ingenuidade e alienação dos meninos em relação ao caos que os cerca. A falta de conhecimento e ciência do que vivem servem de frescor para sua própria atemorização.

    O debate estabelecido envolve as cercanias das crianças, como a urbanização dos pontos cruciais da antiga Guanabara e a despersonalização do indivíduo, exibindo em tela o quão banal se tornou a presença humana nas grandes cidades, especialmente nos arquétipos de moradores de rua. Ygor é um personagem absolutamente invisível à primeira vista, mesmo por pessoas cuja caracterização e poderio econômico tenham se aproximado dele, basicamente, por ele se assemelhar com os meninos de rua que habitam o asfalto da parte rica da cidade, ignorados também por homens não abastados financeiramente. Tal aspecto levanta mais uma fala secundária, mas ainda assim importante sobre a inexistência dessas pessoas perante os olhos do cidadão comum, do mesmo que se preocupa em ser filantropo com os que estão distantes  (em terras não menos assoladas que o seu derredor) mas que é incapaz de olhar além da vidraça de seus luxuosos carros.

    Ao adentrar o bairro de Campo Grande, Regina se sente habitando um novo mundo, diferente demais do seu próprio universo. A selvageria que ela acreditava existir no bairro suburbano é trocado pelo volume enorme de pessoas transitando entre o asfalto e passarelas, confusão que assusta o humano que não a habita, mas que em momento algum justifica tal desprezo.

    O choque emocional pelo qual passa a mulher é equivalente a um golpe na hipocrisia costumeira de muitos endinheirados, e a transformação por que passa Regina age prodigiosamente nesse sentido, uma vez que o roteiro só a premia com edificação após provar e sentir o mesmo que Ygor e Rayane, atingindo finalmente a real empatia que pretensamente deveria acompanhá-la.

    O desfecho não se permite cair na saída tranquila de dourar a pílula, tampouco os personagens se tornam perfeitos ou plenamente encaixáveis em formas agradáveis ao grande público. Toda a acidez do roteiro de Sandra Kogut e Felipe Sholl está em um subtexto que só é plenamente usufruído caso o espectador se concentre nos detalhes dramáticos. A camada superficial usa uma polidez em formato de despiste ao tratar do detentor da grande renda como ser afável somente com as crianças, que são aquelas ainda capazes de angariar inocência – e, portanto, sem culpa pelo caos que o mundo de Campo Grande apresenta.

  • Crítica | Certo Agora, Errado Antes

    Crítica | Certo Agora, Errado Antes

    Certo Agora, Errado Antes

    Filme leve, com pitadas de romance, Certo Agora, Errado Antes é o mais recente trabalho do diretor coreano Sang-Soo Hong, o mesmo de Montanha da Liberdade. A história persegue o cineasta Ham Cheon-soo (Jae-yeong Jeong), que acidentalmente chega cedo à cidade de Suwon, que serviria de base para um debate a respeito de seu mais recente filme. A partir desse evento entrópico, o homem trava contato com Yoon Hee-Jeong (Kim Min Hee), uma artista plástica que conhece em um restaurante-palácio e com quem tem conversas francas que elucubram sobre o nada.

    O breve nível de conhecimento sobre um e outro não impede o casal de passar pelos estágios de crise inerentes a uma convivência amorosa tradicional, com direito a brigas e entreveros típicos de quem tem relação por longo tempo. Perdas e ganhos ocorrem entre os dois, além de uma gangorra emocional capaz de mudar toda a programação de prioridades de Cheon-soo.

    Com o desenrolar da trama, o realizador deixa de se preocupar com a exibição e passa a se dedicar mais a sua nova paixão, deixando de lado a necessidade de discutir sua própria arte com outrem. A abordagem que Hong dedica ao seu filme é peculiar, quase ausente de efeitos provindos de trilha sonora e música, usando a monotonia e o tédio para poetizar sobre a existênci, e fazer mover os entes em direção da mudança de seus status, fazendo-os procurar algo próximo do bem estar.

    O cinema de Sang-Soo Hong fala sobre a efemeridade da vida através de anedotas, e no caso deste longa o foco é na solidão e rejeição, usando um personagem que não consegue compreender a perfeição e usa as próprias limitações para gerar na dramaturgia e no espectador um sentimento de empatia, apelando para a impotência de quem tentar alcançar o ideal amoroso, normalmente sem êxito. Certo Agora, Errado Antes consegue atingir essa nuance e trata de modo leve uma questão de gravidade extrema, servindo com retrato fiel da filmografia de seu realizador.

  • Crítica | Fique Comigo

    Crítica | Fique Comigo

    fique comigo-minGosta de filmes como Contos de Nova York, de 1989, dirigido por Woody Allen, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola? Ou quem sabe a HQ de Will Eisner com crônicas urbanas cotidianas? Não sei se foi intencional mas Fique Comigo, dirigido e roteirizado por Samuel Benchetrit, recolhe o espírito dessa narrativa cotidiana e a mistura com um pouco de nonsense para seu filme.

    Na trama, o filme traça pequenos contos que se passam entre os moradores de um prédio, dando a impressão que vão focar em prioridade o morador do primeiro andar, Sterkowitz (Gustave Kervern), que se recusa a ajudar a pagar um elevador novo para os condôminos e acaba precisando dele mais que todos eles. Também acompanhamos um garoto (Jules Benchetrit) que acaba construindo uma pequena relação com uma nova moradora, interpretada por Isabelle Huppert; além de um astronauta americano na sua rotina monotonamente diária (Michael Pitt) e que por um acidente cai em em cima desse mesmo prédio e é abrigado por uma dona de casa (Tassadit Mandi).

    Se não fosse o pequeno incômodo da tela propositalmente quadrada, a progressão dos primeiros minutos do longa seria sem dúvida a principal barreira para um olhar menos acostumado com o cinema francês. Esse início é lento e não faz questão de manter o interesse imediato dentro de uma possível história, preferindo o silêncio. Apesar disso todas as tramas começam a fisgar um estranho interesse entre os núcleos da película até o fim. O pior dos desenvolvimentos ainda consegue dar pleno suporte a uma narrativa natural, mas esse mesmo cuidado por parecer legitimamente interessante apenas do meio da história em diante também soa proposital, assim como uma trilha sonora que ressoa em cada uma das passagens.

    Quem sabe seja essa a real natureza de Fique Comigo: pequenas histórias individuais que não fazem muito sentido a não ser que você consiga capturar a essência do que exatamente está querendo ser mostrado pelo todo. Eu não consegui, mas é algo familiar.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | X-Men: Apocalipse

    Crítica | X-Men: Apocalipse

    x-men apocalipse posterA quarta empreitada de Bryan Singer na franquia dos mutantes da Marvel inicia-se um pouco atrapalhada, com a introdução ao personagem de En Sabah Nur, o primeiro mutante conhecido, que vivia no Egito como um deus, acompanhado de seus quatro cavaleiros, referência ao livro bíblico das revelações (Apocalipse). A sequência ocorrida no império egípcio, além de fraca, parece ter sido retirada das cenas adicionais de Deuses do Egito, mas logo recobra a sobriedade da franquia, quando remete a uma citação à abertura de X-Men: O Filme, também dirigido por Singer.

    X-Men: Apocalipse segue o rastro do início do reboot em X-Men Primeira Classe, retornando às origens da franquia, praticamente levando em conta somente os filmes que Singer fez parte do controle criativo, ainda que reinventando muito dos momentos clássicos. Já no início é mostrada uma luta na jaula, em muito semelhante à introdução do Wolverine, de Hugh Jackman no filme de 2000. Outro aspecto repetido é a importância do aprendizado, dessa vez usando Scott Summers, de Tye Sheridan, como a Vampira da vez, servindo ao arquétipo de orelha ao espectador como elemento novo desse universo já estabelecido.

    X-Men-Apocalipse

    Como já havia ocorrido em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, há uma exploração interessante para a discussão da discriminação, nesse caso utilizando o homo superior, ainda que a gravidade do conteúdo das discussões seja um pouco mais fraca. Os dois avatares principais dessa questão são a nova Ororo Munroe (Alexandra Shipp), uma ladra africana que está aprendendo a usar seus breves e pequenos poderes, se esgueirando pelos becos, e a tímida Jean Grey (Sophie Turner), que é vista com maus olhos até por seus colegas, graças às manifestações estranhas de seus poderes magnânimos – aspecto já demarcado em X-Men 2 e mal aproveitado no filme de Brett Rattner – e claro, pela atenção que ela recebia do Professor X (James McAvoy), que serve de mentor a ela e a muitos.

    Apesar de consumir um bom tempo com este novo elenco, fazendo funcionar muito bem a transição – que neste caso faz lembrar bastante o espírito de Star Wars: Despertar da Força –, o mesmo não se pode dizer dos membros antigos. Tanto a Mística de Jennifer Lawrence quanto o Magneto de Michael Fassbender se envolvem em tramas desnecessárias, com uma piora no caso da personagem feminina, que se torna uma figura digna de inspiração mas que não consegue sustentar esse ideal de lenda viva, mesmo que tal situação gere um argumento de dicotomia, desconstruindo a figura do herói idealizado.

    Nesse ínterim, é até esperado que um vilão que não tem qualquer carisma consiga dominar corações e mentes. A versão ressuscitada de En Sabah Nur (ou Apocalipse) ocorre após uma coincidência incômoda, quando faz despertar o personagem de Oscar Isaac em uma situação boba e que poderia ter ocorrida em qualquer momento da história, bastando somente que o artefato mágico recebesse luz solar, como aconteceu com a invasão de Moira MacTaggert (Rose Byrne).

    X-Men Apocalipse ciclope noturno jean grey

    Dentre os elementos irritantes da trama rivalizam a inteligência limitada de MacTaggert, que tanto nos quadrinhos quanto nos filmes anteriores havia se mostrado uma pessoa hábil e inteligente, enquanto neste revela apenas uma moça com bons contatos. Além disso, claro, o overacting terrível que Isaac desempenha, com direito a distorção de voz comparável aos efeitos usados por programas de entrevistas famosos a fim de esconder a identidade do interrogado. Apocalipse falha como figura de ódio e temor, especialmente quando recruta seus asseclas e exceto no trato com Magneto, convencendo-o não por força, mas por ideologia, se aproveitando da fragilidade de sua alma com a perda recente de sua nova tentativa de vivência normativa.

    Ao menos no quesito ação, Bryan Singer está afiado. A cena de aparição de Wolverine é interessante e ajuda a explicar o elo deste com Jean e Ciclope. A violência da curta cena arrebata o público, e não tem qualquer pudor em mostrar sangue, adrenalina e a fúria assassina do personagem selvagem, ainda que seja moderada, quase como uma reprise de X-Men 2.

    X-Men-Apocalipse magneto

    Apesar de ser um filme de equipe, a jornada heroica certamente é mais focada em Xavier, em uma superação do patamar de herói clássico, que também ajuda a construir a figura de orientador e mestre. Na mesma medida em que Lawrence e Fassbender não são exigidos pelo roteiro, o desempenho de McAvoy consegue sobressaltar, inclusive, a falta de inspiração costumeira de Nicholas Hoult como Fera, servindo como peça fundamental não só da obsessão do vilão – aliás, único aspecto justificável em seu grandiloquente plano master – como também da relação com os alunos, em especial com a jovem Jean.

    X-Men: Apocalipse é a prova cabal de que a proximidade entre lançamentos de filmes semelhantes pode denegrir o produto, em especial para o público geral, que pode, ao final da sessão, entrar em outra sala para assistir a Capitão America: Guerra Civil, mesmo que seu tema não tenha tanto a ver com o de seus concorrente. Os retcons e mudanças na concepção soam mais irritantes que no filme anterior dos mutantes, e mesmo a versão de Singer para o mito da Fênix é tímida e explorada fracamente, possivelmente sendo guardada para o futuro.

    A pieguice toma a construção da conclusão, sendo o desfecho mais fraco da cine-série, mas que não denigre a parte escapista e descompromissada do drama. Com momentos de ação de tirar o fôlego e apuro bem competente nos efeitos especiais, também possui uma quantidade exorbitante de fan service, que, ao menos, são entregues em momentos cabíveis, compondo um filme óbvio, mas não decepcionante.

  • Crítica | Victoria

    Crítica | Victoria

    victoria-posterO plano-sequência consiste em um único take para se filmar uma sequência inteira, sem cortes. É uma técnica cinematográfica que cada vez mais gera polêmica, ainda mais que recentemente tomou a atenção do público devido às campanhas promocionais para filmes que a utilizam. O caso mais famoso seria Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância), mesmo não sendo um único long take (termo inglês), é um filme que, por se promover a partir da ilusão de que o havia, foi visto como “vazio” por muitos. Como se a ferramenta não fosse ligada ao significado e não ressoasse com a mensagem. Outros cineastas utilizam-se dela para testar os limites do cinema; limites da fotografia e sua ordem visual.

    Entretanto, se por um lado muitos encontram no plano-sequência visceralidade e imersão, outros o enxergam como uma forma do diretor exaltar o próprio ego. Uma difícil tarefa cujo único objetivo é fazer por fazer, fazer para se mostrar capaz. Tal argumento indica falta de flexibilidade para com outras técnicas por parte do argumentador. Uma posição natural para aqueles que enxergam o cinema como algo formulaico, os “puristas”. Outras técnicas já foram, também, vistas como passageiras ou desnecessárias. O fato é que o long take é como qualquer outro artifício da sétima arte. Como a cor, como o slow-motion, como o som, como “montagens”; lista que segue. Ainda há muito a ser explorado, especialmente por diretores que desejam o avanço da arte. E fazer por desejo de revolução não desmerece o trabalho. Qualquer tentativa inovadora demanda conhecimento e capacidade por parte de quem o faça e, supondo ineficácia, irá se delatar na própria execução.

    victoriaVictoria não é um filme, não é sobre um assalto a banco, Victoria É um assalto a banco. (Sebastian Schipper, inspirado no que Francis Ford Coppola disse sobre Apocalypse Now).

    Dirigido por Sebastian Schipper, a produção surgiu com intenções de tentar algo novo, arriscar com a forma. Sua narrativa se realiza com uma simples premissa: é sobre um assalto a banco. Não há um roteiro tradicional. Há somente uma história base que demanda dos atores flexibilidade e naturalidade. Entendimento das motivações de seus personagens e situações. Uma execução de mais de duas horas que produziu um longo período de ensaio. O que fez muitos rotularem o filme como teatro, mas esses argumentos se demonstram fracos diante da fotografia de Sturla Brandth Grøvlen que foi, por acaso, creditado em primeiro nos créditos devido a seu esforço e eficiência.

    O filme segue, durante pouco mais de duas horas, Victoria (Laia Costa) que se encontra, logo na primeira cena, dançando em um clube subterrâneo. A utilização das luzes e fumaça já é suficiente para introduzir o público ao estilo de filmagem e abordagem natural e livre da personagem. Na saída ela se encontra com um grupo de amigos que são Sonne (Frederick Lau), Boxer (Franz Rogowski), Blinker (Burak Yigit) e Fuß (Max Mauff). Ela, estrangeira, anda pela rua com eles e logo se entrosam. Há uma boa química presente entre eles e o próprio diretor de fotografia. Sabem quando falar, como falar; casualidade aconchegante e fluida.

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    O que se percebe é cálculo, planejamento. Ainda que apresente deslizes em relação à constante câmera na mão, já que alguns momentos não chegam a sua máxima eficiência devido a isso, não há como negar a precisão. Os momentos em que a música sobe com sua leveza ressoante da personagem principal. As cordas e o piano. Quando os personagens se mostram, mais do que qualquer outro momento, como se não fossem observados. E como esses momentos fazem falta na segunda metade do filme, após o estabelecimento dos personagens e a entrada da problemática do banco.

    Victoria faz do plano-sequência algo primordial para sua qualidade. É algo intrínseco a existência da obra. Faz de tal maneira que não se é possível imaginar o filme de outra forma. Com atores moldados, também, ao formato. E a boa administração entre momentos de movimentação e quietude. Imerge o público de forma a fazê-lo ansiar por mais minutos daquela câmera. A câmera que nunca desliga e nunca desiste de capturar. Até que acaba. E só resta a saudade.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | Angry Birds: O Filme

    Angry Birds o FIlme

    Adaptações de vídeo games comumente apresentam filmes vazios de conteúdo e qualidade narrativa risíveis. Coube a Clay Kaytis e Fergal Reilly adaptar o jogo para a plataforma mobile Angry Birds, usando como base o roteiro de John Vitti, que reúne a experiência como roteirista no The Office americano, Os Simpsons e Alvin e os Esquilos. A história é focada em Red, um dos pássaros primários nas missões do game. Na versão original é dublado pelo ator Jason Sudeikis, que já havia trabalhado com Vitti antes, em Saturday Night Live.

    Angry Birds: O Filme é a estreia na direção de Kaytis e Reilly, que já haviam cooperado com o departamento de arte de Detona Ralph, Frozen: Uma Aventura Congelante e Hotel Transilvânia. A história do filme é bem simples, mostrando uma sociedade de aves, que não têm capacidade de voar e que vivem seus dias em torno da busca cega pela felicidade, ignorando seus sentimentos de raiva, tristeza e amargura, exceção feita ao entregador solitário e órfão Red, que somente dá vazão a essas sensações graças ao fato de ser órfão e não ter tido contato com seus pais jamais, não sabendo seu paradeiro ou se ainda estão vivos.

    O tema musical de Heitor Pereira é repaginado logo nos primeiros instantes, mas é praticamente ignorado no resto da duração do filme, que basicamente se dedica a discutir conceitos de alegria obrigatória, em muito semelhante ao estudo de Luiz Felipe Pondé em Tirania da Felicidade, ainda que neste argumento tais ideias sejam muito mais sugeridas do que aprofundadas. Neste ínterim, Red é levado a uma terapia para controlar seus impulsos, então conhece os outros pássaros que formam os atacantes do game.

    A persona de Red é basicamente a única que se permite ser complexa, já que ele é crédulo o suficiente para acreditar no personagem da Mega Águia – uma ave lendária, que ainda voava, e que viveria no topo da montanha da ilha – e ainda assim é cético com as boas intenções dos porcos viajantes que abarcam a praia, autênticos piratas que ludibriam o povo bobo e roubam seus ovos a fim de comê-los, não sem antes entreter com pão e circo os animais alados.

    Ao mesmo tempo em que a trilha sonora funciona muito bem, com hits como Paranoid do Black Sabbath e I Will Survive, atua também como desconstrução do tema infantiloide, a dublagem brasileira faz perder o foco das piadas, apelando demais para gírias e expressões de linguagem atuais que basicamente fazem o texto ficar datado, com possibilidade de expirar qualidade em poucos meses. O grupo de dubladores é liderado por Marcelo Adnet, que, como em Os Penetras, serve de escada para outro humorista, no caso, aqui, Fábio Porchat.

    Angry Birds – O Filme apresenta uma velha história de superação, vista em dezenas de outros produtos tradicionais de animação infantil. Não tenciona reinventar coisa alguma e consegue distrair facilmente o público alvo. Evidentemente, não traz um texto muito filosófico para os adultos, como nos filmes da Pixar, o que dá ainda mais significado ao feito do longa, que consegue superar demais o estigma de ser um filme sobre games.

  • Crítica | O Conto dos Contos

    Crítica | O Conto dos Contos

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    É sempre peculiar assistir como o mitológico, o lendário, é reciclado e moldado nas possibilidades pictóricas dos estilos de Cinema que resgatam reinações, hábitos e exercícios em prol de uma experiência cada vez mais refinada, na melhor das hipóteses, numa arte secular, palco de larga miríade de contos, crônicas e tantos outros compêndios narrativos.

    O Conto dos Contos não carrega o estigma de clássico imediato, isso só o tempo para afirmar. Tampouco carrega uma exasperante mise-en scène ou outros atributos de milhões de dólares, e muito menos o hype europeu e o preciosismo visual de outra fábula recente, A Assassina, o mais sublime dos catetos de Hsiao-Hsien Hou. Mas talvez seja esse “menos” que permita que o filme seja tão bom quanto poderia ser. Quando um rei e uma rainha desejam cegamente um filho, no seu reino de bobos-da-corte, um gatilho emocional e tão ligado às necessidades de uma família real, o diretor Matteo Garrone (Reality: A Grande IlusãoGomorra) convoca seus exageros e vaidades, e então a história começa a perder fôlego, fazendo o filme ostentar constante e humildemente uma vitalidade, mitologia e identidade próprias, e certamente, do começo ao fim das histórias interligadas, acima do lugar-comum.

    Um repertório de esmeros e elegantes encenações, elevando a perspectiva cármica dos tediosos contos de Cinema que apenas galgam a superfície de suas dimensões, seus potenciais às vezes desperdiçados, como por exemplo a decepcionante trilogia das Mil e uma Noites de Miguel Gomes, em sua versão autônoma e desalmada dos clássicos ramo-sírios contados por Xerazade. O Conto dos Contos comporta, senão luxo em sua produção, o respeito mais nobre e satisfatório pela tradição de se contar uma história, simples assim, e nos apresentar, economicamente, pouco mais do que precisa para ser um ótimo filme, de grandes inspirações e atores (Salma Hayek, destruidora).

    Um filme-primavera, desses que nascem para trazer respiro a um subgênero mais interessado em mostrar, do que saber contar. Garrone sabe onde pisa, e não se explica através do que filma, mas filma para poder explicar, no caso a confiança que possui e alimenta enquanto cineasta, melhor a cada obra. Um filme com um frescor criativo que Terry Gilliam e outros veem como ode e desculpa para traduzir suas bizarrices e besteiras de carnaval. O infortúnio em O Conto dos Contos (filme que de pretensioso tem só o título), no âmbito do uso de sua mitologia criada para o filme não existe, e, se o há, há senão no gosto de cada um de nós, críticos por natureza. Garrone apenas abre um leque tangencial para o deleite dos públicos mais diversos, e exigentes, num conto de situações e condições das mais empáticas possíveis – em especial, se comparado com outras produções de hoje em dia.