Categoria: Cinema

  • Crítica | Brooklyn

    Crítica | Brooklyn

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    Baseado no livro de sucesso de Colm Tóibin, Brooklyn chegou como um dos filmes mais aguardados de 2015 para os fãs de romance e filmes de época. A história apresenta uma imigrante irlandesa em Nova York que fica dividida entre um amor com um neto de imigrantes italianos ou o retorno para sua casa, onde melhores oportunidades de emprego e amorosa a esperam.

    O bom roteiro de Nick Hornby acerta ao seguir a trajetória de Eilis, uma jovem irlandesa sem personalidade. Todos à sua volta decidem por ela, até o momento em que se torna uma mulher com próprio controle de sua vida ao fazer suas próprias escolhas. Inserida em um ambiente de opressão religioso e moralista, além do machismo da época, a personagem aceita a proposta de emigrar para a América e acaba encontrando um ambiente com mais liberdade.

    O roteiro foca no tema do lar, através da saudade extrema de casa e a conexão da protagonista com o passado, porém estes vão sendo aos poucos substituídos por novas conexões e novas casas, ou seja, novos amores, novos relacionamentos. Por ser um país formado por imigrantes de diversas nacionalidades, os Estados Unidos se tornam o local perfeito onde ela consegue se encontrar no meio de desconhecidos. A premissa de Hornby é bem clara: casa é onde você está.

    O princípio da liberdade da personagem e o início do processo de autodescoberta já se encontram dentro da própria pensão. Ao ter contato com outras imigrantes irlandesas sexualmente ativas, ela se vê obrigada a se tornar alguém para ganhar a vida e conhecer outras pessoas. Não à toa ela conhece o jovem encanador que vira seu interesse amoroso. Porém, a interferência externa ainda permeia a sua vida através do padre Flood, que a matricula em um curso de contabilidade, e de Tony, que vai além da insistência com um pedido de casamento.

    Outra interferência externa a faz voltar a Irlanda, a morte da irmã. Porém, ao decidir pela viagem, é no regresso que termina a jornada de Eilis. A jovem precisou retornar à sua origem para poder, enfim, começar a viver em plenitude. A cena que marca este momento é no encontro com sua antiga chefe, além daquela em que dá dicas para uma jovem imigrante.

    John Crowley conserva o clima uniforme da obra; é um diretor de atores competente e só. O cineasta não consegue se destacar em nenhum momento. Soa como um contratado por estúdio para filmar uma história, o que não chega a ser um problema em um filme comercial, mas não é o que pede esta narrativa. A falta de personalidade de Crowley acaba refletindo no produto final: Brooklyn poderia ter sido um grande filme de romance, como Carol ou Pontes de Madison, se essa boa narrativa não fosse tão mal aproveitada.

    Saoirse Ronan está bem como protagonista; sua atuação contida consegue mostrar a angústia e a dúvida de sua personagem, porém ela ainda carece de maturidade artística. Ainda precisa evoluir mais como atriz para entregar, por exemplo, o que Rooney Mara e Cate Blanchett nos ofereceram em Carol. Destaque ainda para as aparições rápidas de Jessica Paré, a Megan de Mad Men, do sempre bom Jim Broadbent como padre Flood, e de Domhnall Gleeson, o General Hux de Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força.

    A fotografia de época de Yves Bélanger, diretor de fotografia do bom Clube de Compras Dallas e Livre, mantém tons neutros e um realismo na maior parte do filme, conseguindo se sobressair de forma poética nas sequências do navio e da imigração, nas cenas intimistas e na do cantor durante o trabalho voluntário. A edição de Jake Roberts mantém o filme em um bom ritmo, e é invisível na maior parte da narrativa, também aparece como destaque nessas sequências.

    A direção de arte de Irene O’Brien e Robert Pale conseguiu transmitir, através do visual, a diferença gritante entre a Irlanda e Nova York. No entanto, destaca-se o figurino de Odile Dicks-Mireaux, em que podemos ver como o tom monocromático das roupas da protagonista passa a ter cor à medida que ela adquire novas experiências de vida.

    Mesmo com uma direção sem personalidade, Brooklyn vale a pena para quem gosta de filme de época e de uma grande história universal sobre as escolhas que nos marcam.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | A Garota Dinamarquesa

    Crítica | A Garota Dinamarquesa

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    E se a Viúva Negra dos Vingadores se assumisse lésbica no meio do filme? Imagina a confusão depois da sessão, e a discussão na fila do McDonald’s, dialogando sobre o que, de fato, quase não se discute. São filmes bonzinhos e comportadinhos como A Garota Dinamarquesa que obrigam a levantar uma pergunta básica: Qual o lugar do “diferente” no cinema comercial? Vamos supor que seja nenhum (a menos que o filme use de esteriótipo para criar polêmica e lucrar com isso), mas então onde, em que lugar um casal gay pode ter sua história contada? Nos filmes de sub-gênero, ou em livros de sebo, tipo O Terceiro Travesseiro e Bom Crioulo, só pra citar um pouco de literatura brasileira LGBT e contemporânea. Basicamente, hoje em dia, a Marvel ainda não lançou um(a) protagonista negro e gay porque o diferente só ganha lugar para uma plateia diferente. Ou quando a Globo abre quotas e encaixa o Félix na novela.

    O universo LGBT luta para não ser heteronormativo, pois luta a favor das diversidades. E não é que no ano do espetacular Tangerina, de Sean Baker, somos obrigados a engolir um filminho brando de Tom Hooper sobre diversidade sexual? Nas mãos sem vida de Hooper, a história da primeira transex do mundo (reconhecida assim, melhor dizendo) foge de qualquer militância, de qualquer riqueza documental sobre o assunto ou estudos estruturais sobre orientação de gênero e identidade sexual, beirando o medo de levantar qualquer interpretação sobre os tópicos, beirando a indiferença, e faz apenas alimentar todos os mitos e todos os vícios baratos do público sobre esse universo, ainda muito, mas muito pouco explorado no Cinema. Um olhar como de Pedro Almodóvar faz falta, já que com Hooper a tal ideologia de gênero, um assunto tão vasto e interessante quanto nossa própria sexualidade, a sexualidade humana, vira quadrinho de feira com moldura chique, toda blasé.

    A pessoa nasce com um pênis e não se vê como homem. Não age e não se sente, pois sabe que o drama dos cowboys de Brokeback Mountain é pequeno perto do dele, numa época que nem o racismo ainda não se discutia, amplamente. A Garota Dinamarquesa é de pobrezas contextuais, referente a seu tempo, costumes datados e ideologias que surpreendem muito mais que suas boas atuações, além de beirar ser um desserviço à representatividade honesta e plural de um recorte social eclipsado o tempo todo. É claro que o casal principal está excelente, dois atores impecáveis atuando com corpo e alma por baixo de belos figurinos, esvoaçantes, sensibilidade no ar, mas que não se vê, se sente. Hooper extrai o sensível de uma situação sensível, ou seja, o óbvio, filmando o superficial (como se essa não fosse sua especialidade) em direção ao lugar-comum. Como cineasta, é um estilista, só que Tom Ford fez um trabalho mais interessante em 2011.

    […] pois, no cinema, não se pode interpretar o papel de um judeu, é preciso ser um!”, esclareceu Carl Dreyer, um dos pais do Cinema falado numa entrevista de 1933. Pois imaginemos um ator transgênero no papel principal feito por Eddie Redmayne, nas vias do cinema naturalista de uma indústria que não exclui as diferenças, mas jamais sai da linha “burguesa-heterossexual-branca”. Por essas e por outras, a partir da impossibilidade escolhida de uma representação social justa e diversificada, A Garota Dinamarquesa é uma caricatura que desconstrói qualquer possibilidade de amplos debates em torno do assunto, maquiando as facetas da sexualidade aquém dos devaneios mais ralos e primários de Sigmund Freud e de seus devotos, todos tateando na escuridão da ignorância.

    Cópia irregular de Laurence Anyways, de Xavier Dolan, numa visão britânica e mais correta, de época, copiando na tela o que é esperado de bonitinho, num mural de tons pasteis e de preguiça, o filme irrita quem não deixa o espírito crítico de lado. Pois sempre se espera mais de um bom livro quando este é adaptado ao Cinema. Porque extrair o elemento frágil de uma natureza em conflito é tão injusto, e insensível, quanto dar ênfase ao lado preto-e-branco das cores. Exceto os poucos bons momentos pincelados que, curiosamente, não dependem de uma trilha-sonora, sorrindo feito imagens livres, o filme joga na senzala dos clichês os destaques que formam a nossa individualidade, e como esses destaques, como esses aspectos sempre vêm à tona, ao longo de uma vida vivida.

    Tom Hooper é a figura típica de uma classe média que defende a consciência humana, ao invés do Dia da Consciência Negra, sem contar o fim das paradas gays. Isso é tão interessante e digno de conversa quanto a hipocrisia de “certos filmes” em relação a temas que nunca alcançam a plenitude total de seu potencial, onde por mais que obras recentes sobre AIDS ou racismo falhem nas suas concepções, nunca que deixam a peteca cair, representando fragmentos de uma sociedade irrevogavelmente fragmentada. Assim, enquanto alguns enxergam a busca por igualdade a favor do respeito aos nossos direitos como motivo de lágrimas, como no filme, numa perspectiva fria e limitada até mesmo sobre a transfobia que o transexual sofre ao ser atacada por homens simplesmente por existir, para muitos é um esforço que merece festa e celebração por não sermos iguais, num mundo de tonalidades, livre de homogeneidades e cheio de diversidades e filmes melhores do que esse. Minha sinceridade também anda de salto.

    – Escrito no Dia Nacional da Visibilidade Trans, dia 29 de janeiro.

     

  • Crítica | O Albergue 2

    Crítica | O Albergue 2

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    Lançado dois anos após o sucesso original da franquia – e estabilizando ainda mais a Lionsgate como casa de bons filmes de terror – O Albergue 2 marca o retorno de Eli Roth ao sanguinolento mundo estabelecido em 2005, mostrando já no início os eventos recorrentes da parte original, igualmente “apresentada” por Quentin Tarantino, que faria do jovem cineasta seu pupilo.

    Paxton (Jay Hernandez) retorna a narração dos fatos, ainda no trem que o levaria para a fuga do inferno em que ele e seus amigos se meteram. As marcas dos abusos que sofreu são vistas não somente na lembrança dos assassinatos, mas também em seus dedos decepados pelos açougueiros com tatuagens de cães na mão, unicamente para demonstrar o seu sonho recheado do terrível trauma que teve.

    Após discussões bobas, a câmera retorna às paragens europeias, focando em um novo grupo de protagonistas, uma reunião de belas mulheres amantes de arte, que se diferenciam em conteúdo dos estudantes fúteis ao estilo Euro Trip do primeiro. Whitney (Bijou Phillips), Lorna (Heather Matarazzo) e Beth (Lauren German) são pintoras, que, ao traçar quadros nus, encontram a modelo Axelle (Vera Jordanova), a qual, com toda sua lábia e sedutora figura, faz convidá-las para o mesmo hostel, para as mesmas situações, ganhando a confiança delas de modo muito suspeito, evocando segurança e bissexualidade.

    A narrativa segue igual, com doses menores de erotização explícita em um primeiro momento, por se tratar de personagens mais maduras e de backgrounds diferentes, não negando evidentemente seus apetites sexuais, mas que têm as manifestações de líbido em algo mais tímido e contido. A virada rumo ao gore acontece bastante tardiamente, quase na metade da duração total.

    No entanto, a liberação da violência é muito mais sanguinolenta já nas primeiras cenas de execução, reforçando o ideal de sexualização sacrossanta com doses cavalares de homoafetividade feminina, bem ao modo Súcubo, exatamente como visto em tantos fetiches masculinos.

    O cenário de torturas é mais variável, ainda que recorra ao ambiente “familiar” da franquia e tenha na heroína uma figura de ação muito mais enérgica do que Paxton; Beth consegue sair praticamente limpa de sua sessão, em uma cena curiosa que inverte por completo o paradigma estabelecido, além de garantir um momento de humor escrachado, conseguindo resgatar, em seu desfecho, uma faceta mais original.

    O argumento obviamente retoma semelhanças ao roteiro de O Albergue, por ser toda a equipe criativa reprisada no capítulo segundo. Mas a fita consegue ter uma identidade própria, transpirando unicidade mesmo em se tratando de uma continuação. O Albergue 2 consegue fugir da mediocridade comum as demais continuações atuais, com momentos até mais inspirados do que o original, aumentando o escopo de discussão ácida, fazendo anedotas com outros tantos grupos que discutem a hipocrisia, mas que vez por outra caem sobre esta.

  • Crítica | Deadpool

    Crítica | Deadpool

    Desde que foi anunciado, em 2014, o filme solo do controverso e falastrão Deadpool, os fãs de quadrinhos ficaram com sentimentos divididos. Se por um lado Ryan Reynolds já tinha interpretado o papel de forma ridícula no desastroso X-Men Origens: Wolverine, por outro os spots, imagens e depois trailers trouxeram um certo alívio ao mostrar que as origens do personagem seriam respeitadas. Mais do que isso: o filme parecia ser bom.

    Deadpool é um personagem criado nos anos 90 por Rob Liefeld (citado no filme) e Fabian Niciesa. Apesar de ter surgido como paródia do vilão da DC Exterminador, Wade Wilson logo ganhou uma personalidade própria, com um humor ácido e extremamente irônico, incapaz de levar qualquer situação a sério. Esse fato, e também o de ser mentalmente instável, o fez participar dos mais variados grupos de heróis dos quadrinhos da Marvel, mas também incapaz de permanecer lá. Esse fato torna sua trajetória nas HQ’s um tanto quanto errática.

    Nas telonas, o filme dirigido pelo novado Tim Miller mantém todas as características do personagem, o que irá agradar à maior parte dos fãs de filmes baseados em super-heróis, que começaram nos últimos anos a dar sinais de desgaste. Com baixo orçamento em comparação aos filmes do mesmo tipo, Deadpool se foca quase exclusivamente no protagonista, e Reynolds felizmente consegue carregá-lo inteiramente de forma competente. Ciente de suas limitações, sente-se bem à vontade no papel do personagem que satiriza tudo e todos à sua volta, os quais servem como escada para seu incessante repertório de piadas.

    Wade Wilson no filme é algo próximo de um “mercenário do bem”, que aceita pequenos serviços de pessoas comuns (geralmente não muito dentro da lei) em troca de pagamento. Em uma das noites em que passa no bar (que também funciona como o balcão de agendamentos de seus serviços) conhece Vanessa (Morena Baccarin), e a partir dali a vida de ambos muda para sempre. Porém, ele descobre que tem câncer terminal e tem pouco tempo de vida. Desiludido, recebe uma proposta de um misterioso homem prometendo curar seu câncer e lhe dar habilidades especiais. Wilson deixa Vanessa com pesar e se submete ao processo, que se mostra totalmente diferente do que havia imaginado, com sessões de tortura cujo objetivo era ativar um gene mutante nas cobaias e transformá-las em super soldados, tudo conduzido Por Ajax (Ed Skrein) e Angel (Gina Carano). Tal processo deforma Wilson fisicamente. Ao conseguir fugir, promete vingança e dedica sua vida a encontrar Ajax e fazê-lo reverter o processo que o deixou assim.

    Tudo isso é explicado ao espectador através de flashbacks que vêm e vão no início do filme enquanto Deadpool tenta capturar Ajax após uma implacável perseguição, que termina com a participação de outros X-Men, Colossus (Greg LaSalle / Stefan Kapicic) e Negasonic Teenage Warhead (Brianna Hildebrand), que buscam capturá-lo e tentar conscientizá-lo de que suas ações são irresponsáveis. Colossus inclusive garante uma ótima participação como o grandalhão forte, ingênuo e de bom coração em contraste com o escrachado Deadpool. Em alguns momentos sua ingenuidade chega até a lembrar Drex, de Guardiões da Galáxia. Sua luta com a personagem de Gina Carano também é um ponto alto do filme, inclusive mais interessante que o próprio combate entre Deadpool e Ajax, que, por não ser um vilão com muita profundidade, não deixa o espectador investido emocionalmente em seu destino. A grandiosidade um pouco desnecessária dessa batalha final também não ajuda, a não ser em criar um espetáculo visual que destoa da simplicidade do filme. Afinal, destruir tanta coisa assim é coisa dos Vingadores.

    Deadpool se encaixa bem nos tempos atuais, onde a seriedade sombria dos heróis da DC/Warner se contrasta com a linguagem divertida e engraçadinha dos heróis da Marvel. Neste contexto, ele chega justamente para tirar sarro de todos esses filmes e seus clichês, por isso funciona muito bem. As piadas com as escolhas do ator no passado, tanto de sua interpretação anterior do mesmo personagem quanto com o seu Lanterna Verde em 2011, são explícitas e tiram risadas do espectador antenado na cultura pop. As referências também passam pelos filmes do X-Men, de ambas as linhas do tempo, e de vários outros heróis, filmes e personagens icônicos da atualidade. Tantas referências acabam deixando o filme com um certo gosto enjoativo da preguiçosa série The Big Bang Theory, cujo roteiro inexistente é compensado justamente pela devoção dos fãs às referências ao que eles já conhecem. A sorte é que Deadpool ao menos tem uma história a ser contada e não se deixa levar por essa fácil saída.

    Mas é justamente em seu ponto forte reside um pequeno porém. O humor do protagonista funciona, mas é cômodo e em momento algum arrisca. As piadas sempre possuem o mesmo pano de fundo sem desafiar o espectador. Isso não é um problema em si, mas um filme que quer se destacar pela violência em si, poderia se arriscar mais neste quesito, tendo no roteiro um pouco mais de coragem. Alguém também poderia criticar avanços temporais, onde Wilson aprende sozinho a fazer uniformes e a conduzir investigações minuciosas sobre figuras grandes do submundo do crime, aparentemente do dia pra noite, mas por se tratar de uma adaptação totalmente fiel aos quadrinhos, e por ao mesmo tempo homenagear e satirizar esta mídia, essas sequências acabam integrando justamente o imaginário coletivo de tantos filmes de origem que já vimos com os mesmos clichês.

    Ao quebrar toda hora a “quarta parede” e conversar com o espectador da mesma forma que fazia nos quadrinhos (e ao mesmo tempo em que diz que faz isso), Deadpool subverte não só os padrões estéticos da onda recente dos filmes de herói da Marvel e DC, como também padrões narrativos. Ele nos lembra a todo instante que super-heróis são bregas, ultrapassados e infantis. E tudo bem ser assim.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | A Onda

    Crítica | A Onda

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    Em diversas passagens históricas a humanidade vivenciou o horror causado pelas ideias e comportamentos extremos de grupos que se julgavam superiores aos demais. No início do século XX, o nazismo imperou como um dos episódios mais cruéis já reportados e seu legado nocivo é lembrado até os dias de hoje. Nos Estados Unidos da década de 60, Ron Jones, um docente do ensino médio, tentou mostrar que um regime parecido poderia ocorrer novamente caso houvesse manipulação efetiva dos alunos, exigindo deles disciplina e comprometimento com uma causa. Esse acontecimento inspirou A Onda, filme alemão dirigido por Dennis Gansel.

    Em seus primeiros minutos, a obra mostra o professor Rainer Wenger (Jürgen Vogel) entoando Rock ‘n’ Roll High School, música dos Ramones, trazendo um ar contestador, porém descontraído logo de início. Visando ensinar aos alunos que uma ditadura poderia surgir atualmente, Rainer os insere num regime liderado por ele e que possui suas próprias regras e objetivos. O carisma e a proximidade que tem dos jovens faz com que muitos deles participem ativamente de suas aulas. No entanto, alguns alunos questionam tal método e ponderam sobre o risco que ele pode acarretar.

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    O núcleo estudantil é a representação ideal dos nichos a partir dos quais a narrativa irá desenvolver seu argumento; baderneiros, ‘populares’ e abastados são alguns dos grupos que possuem suas próprias regras, comportamentos e objetivos. Vemos também que os incapazes de integrarem esses grupos são rejeitados; o ‘bullying’ figura como um dos pontos debatidos ao longo do filme através do personagem de Tim (Frederick Lau); o rapaz não consegue se enturmar e é constantemente rechaçado por alguns colegas. Outro argumento levantado é a personalidade frágil de jovens sem perspectiva e carentes de uma causa pela qual lutar, que se deixa conduzir por um discurso inflamado e pela ideia de ser superior aos outros. Desse modo, Tim vê na doutrina de Rainer o estilo de vida ideal a seguir, e passa a envolver-se profundamente com ela.

    A trama se desenvolve ao longo de cinco dias, durante os quais os alunos se dedicam inteiramente a tornar a Onda uma ideologia forte. Porém seu modo de agir passa a ser incisivo e, por vezes, agressivo, como hostilizar colegas ou outras pessoas que não concordam com suas diretrizes. Ao presenciar incidentes alarmantes dentro e fora da escola, Wenger decide concluir seu projeto ao final do quinto dia.

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    Reunindo todos os membros do experimento no auditório da escola, numa passagem da película que parece aludir às grandes concentrações de pessoas guiadas por homens vis e sedentos de poder, Rainer decreta o fim da Onda, num discurso corrosivo e esclarecedor de que a ascensão de um regime totalitário seria possível nos dias atuais. O grande erro começa exatamente no ponto em que nos julgamos imunes a rendição perante um ideal, uma causa e aceitação no coletivo, e ao que faríamos para perpetuar esse status quo.

    À exemplo de grupos radicais e governos tiranos que recrutam suas forças armadas através de promessas e garantia de grandes conquistas, e usam do extremismo para alcançar seu propósito, o desfecho no âmbito escolar de A Onda é estarrecedor e amargo. A lição é ensinada, os semblantes incrédulos e pesarosos de professores e alunos presenciam-na em sua forma crua, sem meias palavras ou amenidades. A última visão que temos do filme é a expressão aflita de Wenger, que parece temer o futuro pela culpa que irá carregar para o resto de sua vida e pela desolação em saber que atos extremos sempre vão acontecer.

    Texto de autoria de Carolina Esperança.

  • Crítica | De Cabeça Erguida

    Crítica | De Cabeça Erguida

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    Desde os primeiros momentos de fita, Malony aparenta ser um peso para o adulto que lhe é designado como responsável, incluindo o período que deveria ser sua tenra infância. Em seu filme, a atriz Emanuelle Bercot estabelece o pesar que a custódia do rapaz, interpretado por Rod Paradot, exerce sobre seus guardiões, primeiro mostrando-o cometendo delitos leves, para depois mostrá-lo destratando por completo os que lhe conferem sentimentos de cuidado.

    De Cabeça Erguida é um filme que não faz concessões, mostrando a delinquência juvenil sob um viés real e sem inflar na personagem uma aura de coitadismo e descontrole de suas próprias ações, não caindo no erro comum de tratar o rapaz como exclusiva vítima das mazelas sociais. O lugar comum do roteiro é a completa falta de paciência do Estado com as delinquências que o menino pratica, a ponto de ameaçá-lo por meio do procurador legal de prender o garoto na próxima infração cometida.

    O conjunto de atitudes de Malony denota uma psique confusa, fruto de um repertório sem qualquer possibilidade de exemplo adulto saudável. A única figura constante em sua rotina, desde sua infância, é uma juíza interpretada pela veterana Catherine Deneuve, cuja natureza do trabalho a impede de criar laços emocionais com o rapaz. Mesmo as poucas pessoas que conseguem ultrapassar a carapaça de proteção emocional do garoto lhe são tiradas, a exemplo de Séverine (Sara Forestier), a única pessoa da idade do rapaz que consegue qualquer conexão com ele.

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    Os adultos no filme são quase todos tratados sem nome, com aparências e vestimentas genéricas, emulando a incapacidade de Malony em enxergar em qualquer um deles a autoridade para frear sua fúria e sua violência descabida. A postura hostil que predomina em seus olhares e gestos reflete um conjunto de sentimentos que têm por base o conflito, refletindo-se praticamente no único modo de relação que o rapaz teve em seus curtos 17 anos de vida.

    No ato final, um acontecimento faz a postura de Malony mudar por completo, uma vez que suas responsabilidades aumentam para muito além de suas necessidades pessoais e egoístas. A cena de despedida da sua antiga juíza, prestes a se aposentar, mostra através de ângulos contínuos um novo caminho a traçar, com uma paz que o jovem homem jamais conseguiu alcançar enquanto era tutelado por alguém. O encontro com este fato novo muda as perspectivas do protagonista de De Cabeça Erguida, dando a ele um novo sentido para seguir vivendo, mostrando não uma ínfima evolução, e sim uma possibilidade plausível de redenção poucas vezes tão bem construída, em especial dentro do escopo de filmes recentes.

  • Crítica | Numa Escola de Havana

    Crítica | Numa Escola de Havana

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    Cuba sempre foi um tema polêmico, ainda mais na atual conjuntura política do país, portanto, falar da ilha sem resvalar em paixões ideológicas se mostra uma tarefa muitas vezes inglória. Se Cuba possui seus inúmeros defeitos, as maiores qualidades sempre citadas são o sistema educacional, o de saúde e o cinema, mesmo que não conheçamos muito a respeito de nenhum deles.

    Numa Escola de Havana é um filme de 2014 dirigido por Ernesto Daranas que conta a história de Chala (Armando Valdes Freire), um garoto de 11 anos que vive causando problemas na escola, porém, conta com a disciplinadora, porém, carinhosa professora Carmela (Alina Rodriguez) para ajudar a resolver os inúmeros problemas que aparecem em sua vida, especialmente ligados à sua mãe que o negligencia e todo um sistema que o ignora.

    A constante tensão entre a vitalidade de uma criança que descarrega no mundo toda a violência que recebe em sua vida e um sistema rígido e arcaico é o mote principal do filme. Enquanto Carmela tenta dialogar e mostrar que pode se responsabilizar por Chala à margem do sistema, os representantes oficiais do sistema acham que a melhor solução para ele é mandá-lo para uma escola mais rígida, que dá nome ao título original da produção, Conducta.

    Tal conflito poderia ser conduzido de formas menos sutis, carregadas de moralismo de um lado ou do outro, mas Daranas consegue se manter em uma linha tênue mostrando que ambos os lados estão corretos em suas perspectivas e querem o melhor para Chala, mas só conseguem mostrar isso através das ferramentas que possuem, sem conseguir entender muito bem o outro lado. As encarregadas do sistema educacional representam a visão oficial de uma estrutura burocrática que não pode se organizar de acordo com o romantismo e o sentimento de cada professora do país para cada aluno. Ao mesmo tempo, uma professora com anos de experiência não deveria ser vista como um empecilho a esse sistema, mas sim justamente como a voz de quem sabe o que está falando e que poderia ter algo a acrescentar no caso. A questão mostrada nesse recorte específico é a constante tensão presente na ilha (e em qualquer país com problemas sociais) da vida normal das pessoas e a pressão irracional da burocracia sobre elas, como quando o pai de uma das colegas de classe de Chala é mandado embora de Havana por não ter autorização estatal para estar ali.

    Chala é mostrado ao mesmo tempo como um aluno que poderia ser categorizado como “indisciplinado”, mas ao mesmo tempo é praticamente o responsável pela sua casa, ao criar pombos e cuidar dos cachorros feridos da rinha que seu conhecido organiza, o que garante uma renda a ele, já que a mãe tem problemas com alcoolismo. Este traço, apesar de ajudar a construir a contradição do personagem, resvala no clichê dos “filmes de escola”, em que o heroísmo do personagem justifica mentalmente suas ações, mas não deixa de ser uma exceção em realidades assim. Um personagem um pouco mais comum talvez pudesse ajudar a tornar a história mais palatável nesse sentido.

    Outra característica que também ocorre no mesmo erro é o de Carmela incorporar o professor herói que toma para si a resolução dos conflitos, como se a solução para a educação fosse mágica e dependesse de vontades pessoais. O filme não é carregado neste aspecto, mas o imaginário coletivo já infestado de produções assim nos conduz automaticamente essa imagem ao ver o filme. Neste caso, o ponto forte continua sendo a relação Carmela x Chala x Estado. Carmela, aliás, possui a frase mais forte e impactante do filme a respeito do garoto: “Se você quer que ele seja um delinquente, trate-o como um”.

    Porém, o grande mérito do diretor Ernesto Daranas é justamente nos mostrar uma face desconhecida da realidade cubana, a das escolas, e das relações sociais entre sua população comum, que geralmente são deixadas de lado. Ao mostrar a decadência física do espaço urbano do país, o diretor também mostra a decadência do sistema que em um determinado momento trouxe melhoras para uma população completamente abandonada, mas que rapidamente ficou ultrapassado e preso em um passado rígido que não existe mais. Ao abordar tantos temas, o filme poderia ter uma mão pesada na mão de alguém mais insensível ou preocupado com outras coisas além da história, mas felizmente Daranas foca nos personagens e em contextualizar os pequenos conflitos e dramas das pessoas, em suas lutas diárias, pela sobrevivência em um país com tantos problemas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Um Senhor Estagiário

    Crítica | Um Senhor Estagiário

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    Produtora e roteirista desde a década de 80, a diretora de Nancy Meyers – que atualmente é composta por seis produções – possui uma carreira relativamente nova em relação às suas outras funções. Uma filmografia voltada a histórias leves focadas no humor de situação. Nos últimos filmes, personagens adultos se destacavam vivendo conflitos de um mundo maduro.

    Lançado em 2016, Um Senhor Estagiário, com Robert De Niro e Anne Hathaway no elenco, mantém a unidade temática ao escolher como um dos personagens centrais um viúvo aposentado. Aos 70 anos de idade, Ben Whittaker leva uma vida monótona e decide se inscrever em um estágio para a terceira idade. Escolhido para trabalhar com Jules Ostin, a criadora de um bem-sucedido site de vendas, as personagens caem no tradicional choque de gerações. Inevitavelmente, a figura de De Niro se transforma em uma espécie de pai conselheiro que ajuda Jules a manter o equilíbrio diante de situações difíceis.

    O embate evidente de lideranças distintas se destaca inicialmente, porém Ben se torna mais um apoio para o desenvolvimento de Jules do que um personagem central. O drama primordial centra-se na moça e reacende a antiga discussão da força de trabalho feminina. Um argumento coerente devido às notícias na mídia sobre o direito das mulheres e a luta pela igualidade dos sexos no mercado de trabalho, entregando à personagem uma escolha evidente entre a carreira consolidada e uma família frágil com um provável marido adúltero.

    Ao sair dos tipos costumeiros de seus roteiros, Meyers evita o tom cômico de suas produções anteriores, resultando em uma trama menos inspirada que soa como qualquer outra produção do gênero. O humor de situação focado em temas adultos sempre foi o aspecto diferente de suas tramas, ainda que a leveza na trama esteja presente.  Ao menos, a história evita armadilhas comuns a outras narrativas semelhantes, e em nenhum momento sugere uma relação amorosa entre o casal, ampliando a completude no vínculo entre os dois sem a necessidade de fundamentar um óbvio relacionamento. Ainda assim, prossegue uma trama sem nenhuma novidade ou evolução narrativa mostrada nos filmes anteriores.

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  • Crítica | Carol

    Crítica | Carol

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    Carol se tornou um dos filmes mais aguardados de 2015 por causa do retorno de Todd Haynes à direção desde Não Estou Lá, além de ser baseado no famoso livro de Patricia Highsmith, a mesma criadora de O Talentoso Ripley.

    O bom roteiro de Phyllis Nagy (amiga de Patricia Highsmith e que lutou mais de 20 anos para a história ser produzida) baseado no livro de mesmo nome (do original The Price of Salt) é pontual no seu recorte: a narrativa pretende discutir a pureza do amor. Como é amar alguém? Mais importante, do que é feito o amor? De um olhar, de um gesto, de um contato físico, da convivência, da doação de uma pessoa à outra ou de tudo junto?

    Por mais que enfrentem as resistências diversas de uma sociedade machista e moralista dos anos 50 que dá mais valor a convenções sociais, o roteiro não vai pelo caminho fácil do melodrama e muito menos pelo maniqueísmo. Ele acertadamente humaniza todos os personagens inclusive os mais rasos, como o marido vingativo amargurado pelo divórcio ou o namorado que não aguenta a rejeição.

    Em tempos de intensa militância virtual, o filme foi acusado de abordar a homofobia de forma superficial. No entanto, parte da premissa do roteiro reside justamente no fato de que a homofobia é um dos grandes obstáculos para um relacionamento homoafetivo, mas não é o único ou o maior deles. Primeiro cada uma das partes precisa estar em sintonia, cada uma delas precisa querer. Desta forma, a história nos mostra que as dificuldades para um relacionamento maduro se encontram em todos os lugares e assim o roteiro consegue ser universal e atemporal.

    Uma das cenas mais bonitas do filme

    A direção de Todd Haynes é muito interessante. A sua escolha por ângulos inusitados em boa parte do filme pretende mostrar ao espectador o quão única é aquela narrativa e aqueles personagens. Ao mostrar os detalhes em cada plano fechado e nos closes, Haynes mostra do que o seu cinema é feito: dos pequenos gestos. O diretor nos dá a grande metáfora da sua obra, na curta cena do trem de montar: ela representa as chegadas e partidas de um relacionamento, os encontros entre as duas, como também os desencontros.

    Hábil como poucos, Todd Haynes também consegue extrair o melhor do seu elenco. As interpretações não são canastronas ou excessivas; mesmo nos momentos mais tensos, elas são contidas e soam críveis. As atuações em Carol vêm do detalhe, como dito acima.

    Cate Blanchett e Rooney Mara entregam uma das maiores atuações de suas carreiras. Impressiona a forma como as duas executam com destreza cada gesto, seja através de como andam, da forma como colocam um casaco, de um sorriso e principalmente de um olhar. Não é exagero dizer que a entrega das duas para este filme chegou perto do sublime. Destaque ainda para Sarah Paulson e Kyle Chandler, que acrescentam o filme nas poucas cenas em que aparecem.

    A boa edição de Affonso Gonçalves manteve a uniformidade da obra, ela está invisível na maioria do filme e se destaca nos detalhes da cena do trem de montar além das cenas íntimas entre as protagonistas.

    A ótima fotografia de Edward Lachmann, que também foi diretor de fotografia do bom Longe do Paraíso, além de ser tecnicamente impecável, a influência das pinturas de Edward Hopper e das fotografias urbanas de Vivian Maier é nítida. A escolha pela paleta de cores amarelo, laranja e marrom, além da falta de saturação, ajuda a ressaltar o intimismo e a melancolia que poucos conseguiram alcançar. Ela se destaca também na cena do trem.

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    Exemplos das referências de Hopper

    Outro grande destaque do filme é a direção de arte na composição da locação e dos cenários, além da maquiagem e figurino. O trabalho competente de Jesse Rosenthal, Sandy Powell e Heather Loeffer conseguiu não somente ambientar os anos 50, mas dar personalidade a cada um dos personagens e ressaltar o conflito interno das duas protagonistas.

    Carol vale a pena por ser um daqueles filmes que marcam o espectador, seja através de boas atuações, de um roteiro bem escrito, ótima direção ou de uma melhores trilhas sonoras dos últimos anos. Isso tudo combinado faz da obra um dos filmes norte-americanos mais bonitos dos últimos 20 anos, desde As Pontes de Madison.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | O Cavalo de Turim

    Crítica | O Cavalo de Turim

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    A narração em off que abre o filme extingue qualquer referência ao filósofo Friedrich Nietzsche. Afinal, não é ele o tema da obra. A última frase, mencionando a falta de informações sobre o cavalo, é exemplo. O Cavalo de Turim descreve – mais em imagens que em diálogos – o cotidiano do animal, de seu dono e de uma moça que, passados quase 30 minutos de filme, ficamos sabendo que é filha do camponês.

    A obra mostra o cotidiano extremamente miserável, austero e cheio de privações dos personagens. Todos os dias pela manhã, a filha se levanta, veste-se, vai ao poço, volta com dois baldes de água, cozinha duas batatas que pai e filha comem usando as mãos, alimentam o cavalo, limpam o estábulo, voltam para casa. E isso se repete por todos os seis dias retratados na tela, indicados por letreiros brancos num fundo preto – “Primeiro dia”, “Segundo dia”, e assim por diante.

    A fotografia é excepcional: a filmagem em preto e branco enfatiza a austeridade da vida dos personagens. Mas mesmo assim, as imagens são belíssimas. Cada fotograma poderia, sem esforço, ser “transformado” numa foto de qualidade acima da média. É, literalmente, fotografia em movimento. A trilha sonora, quase imperceptível e praticamente encoberta pelo som da ventania contínua, reafirma o cotidiano repetitivo dos personagens.

    Por filmar as mesmas ações repetidas vezes, o diretor consegue a cada dia mostrar algum detalhe a mais, um pouco mais de cada personagem e do ambiente em que vivem. Mesmo que tudo seja sempre igual – inclusive o clima inóspito e o vento incessante -, fatos externos à vida deles acabam afetando sua rotina. Desde a ida inesperada do vizinho – com seu discurso quase apocalíptico -, à sua casa, passando pela “visita” dos ciganos, o poço que seca, mas principalmente a debilitação do cavalo – que parece entregar-se à morte. E, aparentemente, sem outra possibilidade, a vida em torno deles é arruinada, sem que nenhuma ação contrária seja tomada.

    Justamente a falta de qualquer ação que permite ao diretor seu exercício de estilo. Há sim, uma razão para os planos extremamente longos e silenciosos. O próprio Tarr declarou que “não acredita nas palavras, e sim nas imagens, já que trabalha com cinema”. O filme é, em essência, sobre a imagem. Um puro exercício de cinema.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Hotel Transilvânia 2

    Crítica | Hotel Transilvânia 2

    Hotel Transilvania II 1

    Genddy Tartakovsky prova seu extremo cuidado com seu antigo produto, ao realizar novamente a direção de Hotel Transilvânia 2, que por sua vez começa com a festa de casamento de Jonathan (Andy Semberg) e Mavis (Selena Gomez), claro, sob os olhos atentos do controlador Drácula (Adam Sandler), que se encarrega dos preparativos, como tradicionalmente ocorre com o pai da noiva.

    Os gracejos começam a partir da introdução, quando a noiva e o pai não conseguem sair nas fotos, aludindo a questões canônicas desde Bram Stoker. Após o matrimônio, nasce o pequeno Dennis – ou Denisovich, como nome vampiresco – o que novamente afeta Drack na proteção excessiva e na tentativa de repetir a própria identidade em um descendente, tentando replicar no rapaz aparentemente humano.

    Ao conviver em casal, Mavis percebe a necessidade de conhecer mais profundamente a cultura humana e experimenta uma vida dos seres sem capacidades  e poderes monstruosos. O desespero faz Drack apelar, levando seu neto para uma aventura com seus parentes, finalmente fazendo uso das figuras coadjuvantes, subaproveitadas no primeiro filme, a exemplo de Frankenstein (Kevin James), Wayne (Steve Buscemi), Griffin (David Spade) e Murray (Keegan-Michael Key). O momento de interação serve basicamente para mostrar os bons tempos de cada um dos monstros, exibindo sua forma já idosa como pretexto para a diminuição dos sustos ao longo dos anos.

    O desenrolar dos fatos traz à tona o personagem Vlad, um vampiro ancião que foi responsável por uma pausa na reclusão de Mel Brooks, dublando novamente, como em Robôs e As Aventuras de Peabody e Sherman. O papel escolhido para o veterano humorista beira a perfeição, visto que reúne o sarcasmo em forma de desprezo típico de seus antigos papéis, bem como apresenta uma extrema reverência dos personagens – e intérpretes – a sua figura.

    O desfecho é tão adocicado quanto foi o do filme original, apresentando mais uma pequena história de redenção e aceitação por parte de figuras normalmente encaradas como vilanescas. O trabalho de Tartakovski em apresentar histórias infantis que não subestimam seu público prossegue pontual e mais competente em cada capítulo, não recorrendo sequer aos defeitos comuns de continuações.

  • Crítica | A Bela Estação

    Crítica | A Bela Estação

    A Bela Estação 1

    Parte do engajamento da diretora francesa Catherine Corsini em retratar um cinema de gênero ligado a sexualidade homoafetiva,  A Bela Estação tangencia movimentos panfletários, ainda que o caráter de seu roteiro não caia para tal. A trama gira em torno de Delphine (Izïa Higelin), em um primeiro momento uma mulher bastante jovem, embrutecida pela natureza de seu trabalho na fazenda, que sofre problemas em assumir sua identidade sexual, graças à terrível mentalidade setentista predominante no ambiente rural.

    As mudanças no ideal de Delphine começam em uma viagem inocente para Paris, onde encontra por mero acaso um grupo de manifestantes feministas, já em seu primeiro ato ajudando-as a não serem agredidas por um homem. Das mulheres mais maduras, quem lhe captura a atenção é Carole (Cécile De France), uma mulher heterossexual e casada, que tem em seu repertório um vasto conjunto de reclames revolucionários e igualitários.

    O encantamento da personagem não é com o ativismo, como o próprio roteiro faz questão de pontuar, mas com a sua musa particular. A despeito até das convicções de ambas, começa ali uma nova relação, engraçada e descompromissada no começo, se agravando com o tempo, piorando demais quando a protagonista tem de voltar ao campo, acompanhada logo depois por sua amada.

    O não abraçar à causa feminista e a briga contra o reacionarismo se vê na dificuldade da fazendeira em falar abertamente sobre suas preferências, se importando muito mais com os afazeres do campo e com o status quo conservador da comunidade agrícola e de sua família, do que em relação ao seu novo namoro. A gravidade nos defeitos do filme estão na obviedade das situações, que se avolumam tanto a ponto de tornar óbvio o final, muito tempo antes do desfecho de fato.

    O choque de universos é sentido na pele de alguns personagens, mas claramente faltam cenas de confronto para a heroína da jornada, o que serve para mais uma vez fortificar a ideia de covardia da personagem, fator bastante comum em quem tenciona assumir-se. Infelizmente a premissa interessante não é plenamente alcançada, mas A Bela Estação ainda funciona como retrato comum de muitas pessoas, assim como funciona belamente como um embate entre repertórios distintos.

  • Crítica | Ralé

    Crítica | Ralé

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    Dependendo fundamentalmente da inserção do espectador em sua proposta, Ralé, ficção que usa alguns elementos documentais para fortificar seu texto é uma ode à anarquia e à parcela da cultura popular normalmente ignorada pelo público conservador e purista das regiões Sul e Sudeste do Brasil, iniciando sua narrativa a partir de um conhecido áudio que se tornou meme nos últimos anos, a diretora Helena Ignêz – realizadora de Feio, Eu? e prolífica atriz de Belair e Dejaloh – já demonstra o caráter de seu longa em sua introdução.

    O roteiro de Ignêz explora uma trama metalinguística, envolvendo a feitoria de cinema e teatro, aludindo à peça Ralé, de Máximo Gorki. Apesar do formato episódico, que se mistura entre um quadro e outro, nota-se um caráter de road movie, que discute o nada e o vazio da existência, versando através da abstração sobre ócio, criatividade, sexo e paixão.

    A tentativa de reinventar o formato pode até não ser alcançado, especialmente porque isso só é confirmado após uma análise distanciada temporalmente, mas o texto ensaísta funciona por tentar ousar em direção a uma arrogância dadaísta, exibicionista como o exercício fílmico dentro do roteiro.

    Na camada superficial, há algumas alegorias junto a Cecil Bem Demente, de John Waters, ainda que o escopo seja sob um olhar crítico, típico do analista de artes. A escatologia real faz assustar, especialmente pela entrega de alguns membros do elenco, como Ney Matogrosso, Ariclenes Barroso e Simone Spoladore, todos expressando o auge de seus talentos e corpos. Ralé trata fusão de tesão, anarquia, sexualidade e punk, em um formato que louva o cinema.

    RALÉ – Trailer from Mercúrio Produções on Vimeo.

  • Crítica | O Desejo de Jack

    Crítica | O Desejo de Jack

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    Aventura que parece ser igualitária O Desejo de Jack, dirigida por Anne de Clercq, é um longa simples que se baseia em um protagonista infantil carismático, com uma missão estranha, porém plausível dentro da proposta direta.

    O aniversário de 8 anos de Jack (Matson Motsan) se aproxima, e suas duas mães Sanne (Jelka van Houten) e Lea (Georgina Verbaan) o tiveram por meio de inseminação artificial, usando um artifício comum, não explicando da onde os bebês vêm. O problema é quando o menino deseja incessantemente um novo irmãozinho, alvo inalcançável, o que faz o menino buscar por conta própria um possível candidato a reprodução assistida.

    O problema maior é a quantidade de incongruências dentro da nova jornada do menino, espantando o público atrás dos “willes” – um eufemismo para a semente masculina. Atrás do fator reprodutor, ele encontra uma série de seres trapalhões, em um nível de galhofa que faz lembrar demais os piores personagens das atrações Discovery Kids.

    Apesar de aventar a questão da filiação de lésbicas, e do claro amor presente na unidade familiar, o fato delas serem do mesmo sexo não faz qualquer diferença na trama, dado o modo genérico que é apresentado, ao contrário, já que as neuras das personagens envolvem até o clichê básico da mulher se sentir insegura por causa de um leve sobrepeso.

    Fora o carisma de Motsan, não há praticamente nada que fuja da mediocridade, já que nem a questão sexual não infere em nada, e sequer o uso indiscriminado da internet por crianças é discutido, perdendo uma oportunidade potencial tremenda. A diversão também não garante ao público infantil uma indiscutível forma de entretenimento, mas uma vez jogando O Desejo de Jack na vala comum.

  • Crítica | Hotel Transilvânia

    Crítica | Hotel Transilvânia

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    A carreira de Genddy Tartakovsky em animação é dedicada a discutir estereótipos. Foi assim em Samurai Jack e até em sua versão de Clone Wars, onde apresentava uma interseção entre os episódios II e III de Star Wars. A ideia por trás de Hotel Transilvânia mistura a moda recente de tornar antigos vilões em protagonistas bonzinhos, fugindo do maniqueísmo habitual, junto a premissa do clássico Deu A Louca nos Monstros, ao se focar na figura do Conde Drácula (Adam Sandler) como dono do estabelecimento que abriga criaturas monstruosas, ao estilo dos filmes antigos da Universal.

    A diferença báscia entre essas e outras paródias está na construção do repertório de Drack, como um pai super protetor, deixando sua filha Mavis (Selena Gomez) longe de qualquer possibilidade de interação com os temíveis humanos, que perseguiram a si e aos seus amigos no passado. A trama passa a amadurecer, quando o morto vivo permite a sua saída, ainda que breve em seu aniversário de 118 anos. A realidade mostra um ardil, preparado pelo patriarca ancião, que acaba por convencer sua herdeira de se recolher. O chamado à aventura ocorre quando Jonathan (Andy Samberg), um humano tenta se hospedar no negócio familiar de Drácula, sem poder ser recusado, graças a grande movimentação das festividades.

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    O roteiro, repleto de coincidências e viradas bobas de amor é somente um pretexto para Tartakovsky apresentar referências a literatura de terror e para figuras do cinema de David Lynch, David Cronenberg e Ken Russell. Em algum ponto, o argumento se permite ousar um pouco mais, antevendo questões de reversão de expectativa, vistas futuramente em produções como Malévola, ainda que neste, a prerrogativa seja bem menos pretensiosa.

    Hotel Transilvânia possui todas as gags visuais típicas das animações infantis, abusando da cor chamativa e da docilidade das falas, se apoiando também em um protagonista a príncipio visto como malvado, e claro, em um romance improvável da mocinha no forasteiro. Mas a perversão do status quo conservador é bem mais interessante neste do que nas comédias que beiram a imbecilidade vistas na trilogia Meu Malvado Favorito (incluindo ai Minions) e nos demais pares, surpreendendo pelo subtexto de aceitação não só da própria identidade, como da influência externa de um mundo hostil.

    Compre: Hotel Transilvânia

  • Crítica | The King Of Fighters: A Batalha Final

    Crítica | The King Of Fighters: A Batalha Final

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    Se valendo da figura pseudo-famosa de Maggie Q, laureada ao extremo pela popularidade do seriado Nikita, o filme Gordon Chan não demora muito para apresentar sua faceta involuntariamente trash, já demonstrando uma briga completamente descaracterizada da obra original. The King Of Fighters não poderia ter um subtítulo brasileiro mais genérico e condizente com seu caráter,  coincidindo A Batalha Final com seu primo noventista Street Fighter.

    Q interpreta a voluptuosa Mai, que nas versões em árcade era uma lutadora mortal, cujo busto chamava mais atenção que suas habilidades de luta. Apesar da bela aparência da atriz, seu tipo físico não casa com a da personagem nem de longe, mas a não semelhança passa longe de ser o principal fato execrável de filme. Em cenários que mais lembram os de produções pornográfica softcore, o lugar onde uma palestra sobre um torneio de lutas é permeado por cores gritantes, com assentos de cor roxa, postos ali somente para combinar com as vestes de Mai.

    Os diálogos, de uma pobreza poucas vezes vista, tenta dar uma sobriedade ao texto que não condiz em nada com a pompa de sabedoria da mistura esdruxula de artes marciais,games e ficção cientifica. O discurso conciliatório vem de Iori Yagami, também mal caracterizado (nem ruivo o rapaz é) por Will Yun Lee. O salão é invadido pelo perigoso Rugal, que nos quadrinhos é um gigante, e é interpretado por Ray Park, um ator hábil em artes marciais, conhecido por ter a altura equivalente a de um gnomo.

    A grande ameaça do pretenso “chefão” é a de levar um revolver a um hall, escondido até da segurança e dos detectores de metal, tudo para ter em mãos, para então se auto ferir, fazendo de seu flagelo o início da maldição dos mocinhos ser pior ainda com o roubo que faz de algumas relíquias sagradas tão genéricas quanto todo o entorno.

    Ao longo da fita, Rugal vai mostrando toda sua malignidade, convocando lutadores para enfrenta-lo em ambientes extremamente coloridos, em interações completamente risíveis, que emulam cenas de desenho animado, onde o pretenso guerreiro de veste com estilos misturados, variando entre um jogador de hockey e um skatista. Seus golpes, contam com o elemento fogo, o que na prática só serve para pôr em tela CGIs modorrentos, de chamas alaranjadas saindo de seus pés e mãos.

    A variação de comportamento entre os personagens ultrapassa a já asquerosa caracterização baseada em clichês, apresentando também um sem número de fetiches mal arquitetadas, que além de ofender severamente qualquer dos grupos retratados, ainda reforça a idéia machista de facetas sexuais ligadas a homossexualidade feminina. O arquétipo apresentado exacerba o voyeurismo.

    Para o espectador é difícil escolher qual é o aspecto mais irritante, entre a canastrice de Rugal/Park e a pretenso incorporar de poder de Iori, executado em cenas de cunho vergonhoso, sem qualquer grafismo nas lutas ou verossimilhança de espaço. A régia de Gordon Chan se assemelha demais a vista em programas infantis do Discovery Kids, ainda que Hi-Five e Lazy Town sejam produtos feitos com conteúdo infantado propositalmente.

    A batalha final envolve alguns atores fantasiados de personagens clássicos dos jogos da SNK, mas que não tem qualquer semelhança maior com Kyo, Terry Bogard ou qualquer outro. Mesmo os cosplays baixa renda vistos em convenções de fãs de anime conseguem ser mais parecidos com as péssimas caracterizações vistas em tela, tanto em semelhança física quanto em essência, já que nenhum dos ditos heróis tem o mínimo comportamento inspirador, não abarcando nem o arquétipo paladino e nem o do anti-herois. The King of Fighters não consegue sequer divertir na base do deboche, como havia sido com Mortal Kombat e Street Fighter, no fim é só um exercício de paciência e irritação.

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  • Crítica | O Albergue

    Crítica | O Albergue

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    Começando a partir da premissa xenofóbica, tipicamente americana, de que o imaginário europeu é repleto de promiscuidade e “livre amor”, O Albergue se inicia exibindo uma futilidade atroz de turistas, que só pensam em maneiras de consumir sexo a qualquer custo. As liberais moças holandesas escondem uma estranha intensão, na verdade uma reprimenda para os bobos que buscam ficar entorpecidos e transar indiscriminadamente.

    Mochilando, Paxton (Jay Hernandez) e Josh (Derek Richardson) buscam experiências no período em que estão de férias pela Europa. Apesar da clara diferença de ethos, já que Paxton é aberto a qualquer tipo de relação com mulheres e Josh apresenta uma maior timidez, até por ter recentemente terminado um namoro, ambos só tencionam o escapismo, unidos ao islandês Oli (Eythor Gudjonsson). O roteiro de viagens muda, e eles resolvem ir até a Eslovênia, perto de Bratislava, a fim de encontrar moças de corpos esculturais e que tenham intenção de se incluir em eventuais aventuras sexuais sem compromisso.

    No caminho até o famigerado local, o trio se depara com figuras de gostos duvidosos, tendo quase uma premonição do mau agouro que viria. Decidem então se hospedar em um albergue, acompanhados por mulheres desnudas que escondem atrás da volúpia um cenário grotesco, do capitalismo, capaz de tornar infantes em marginais e moças bastante novas em viciadas, que se prostituem por muito pouco.

    Após o sumiço  do amigo estrangeiro, e uma visita ao chamado museu da tortura, a dupla de amigos fica preocupada, tentando burramente reunir as pistas que lhe são apresentadas. Um submundo de passatempos turísticos se “apresenta” diante dos olhos vendados e/ou arrancados dos arrogantes americanos, que se acham superiores aos outros homens, um parque de diversões protagonizado pelos que podem pagar para brincar de açougueiros ou cirurgiões.

    Os cenários onde ocorrem as cirurgias são cavernosos, onde a sujeira das instalações faz lembrar a imundície da alma dos que lá frequentam, dando vazão à podridão de caráter por meio da glamourização da tortura. O tom do roteiro é sério, apesar de provocar no público algumas gargalhadas involuntárias, e o gore gradativamente aumenta com o desenrolar da trajetória de Paxton. A denúncia vista em O Albergue inclui o prazer quase sexual que os  homens endinheirados tem em provocar agonia, amputamentos e dilacerações em suas vítimas compradas.

    Aos poucos, o personagem principal se vê sozinho em uma pátria que não é a sua, lidando com línguas que não entende e com idiomas de dor jamais provados, contextualizados de modo tosco pela atuação fraca de Hernandez, que se debate estranhamente ao ter seus dedos amputados. Apesar das atuações fracas, Roth consegue gerar uma atmosfera de medo e penúria, unidas a um extremo humor negro, que compreende até a tentativa vã do personagem em resgatar seus dois dedos retirados à força, na esperança de conseguir novamente uni-los ao seu debilitado corpo.

    O cinema de Eli Roth é muito reverencial, uma bela reimaginação de Evil Dead e A Noite dos Mortos Vivos. Como emCabana do Inferno, O Albergue reconta os melhores pontos de Jogos Mortais, fita do ano anterior, ainda que seu caráter seja muito mais violentamente explícito. As sensações experimentadas vão desde o desprezo pela decadência a que o homem se submete até uma sátira poliglota ao fetiche dos americanos por sangue, que tem em seu âmago a função de açougue e clínica improvisada em closes nas vítimas, que deveriam não ter outra preocupação a não ser as trivialidades cotidianas das instituições de ensino.

    Perto de completar 90 minutos de exibição, o filme se entrega ao tom escrachado, não se preocupando mais em fazer sentido em um tom mais sério, apesar de ainda guardar laços com a sanidade mental da estética padrão, tendo no sacrifício de Kana (Jennifer Lim) seu maior indício de acontecimento.

    O argumento martela no ideal do espectador a mensagem de que o vilão – escolhido como a figura do estrangeiro – enxerga as suas vítimas como meio de consumo. O discurso de um dos algozes faz ligação direta com isto, reiterando que o homem tem uma distância enorme daquilo que o mesmo ingere. O tom de profecia se torna ainda mais real, quando a presa e o membro da elite trocam seus papéis, através de uma louca inversão de valores anunciada durante e após os créditos do filme, servindo como recurso metalinguístico, uma vez que essa faceta do cinema de terror começaria a adentrar o mainstream do cinema, mantendo a essência dos efeitos práticos de Greg Nicotero, graças a figuras bastante controversas, como Eli Roth, que dedica a sua filmografia a dar eco aos desejos de quem vê na barbárie uma alternativa de prazer.

    Compre: O Albergue

  • Crítica | Rainha do Mundo

    Crítica | Rainha do Mundo

    Rainha do Mundo

    Funcionando como um espelho, ao retratar basicamente dois momentos temporais distintos – apesar da distância de apenas doze meses entre um e outro – Rainha do Mundo mostra o background e micro universo de Catherine (Elisabeth Moss) e Virginia (Katherine Waterston), duas antigas amigas que têm por tradição viajar juntas para uma casa de campo, no período de férias, mas que nas duas oportunidades vivam cada uma o seu próprio inferno astral.

    O clima chuvoso, se passando no presente, serve visualmente a reproduzir o estado de espírito mais baixo das mulheres. A direção de Alex Ross Perry – que conduziu o recente Cala a Boca, Philip – prioriza um clima de tensão que faz lembrar filmes de terror psicológico. A relação, que devia ser conhecida pelo caráter amistoso, demonstra tensão e desequilíbrio emocional, em que o colapso comportamental é a maior representação do estado depressivo, mais focado em Catherine evidentemente.

    A quantidade de brigas compete com os eventos sociais que a casa recebe, sendo frequentes em ambos os casos. A animosidade acontece fundamentalmente entre a mulher que está mal e o par da outra. A personagem de Moss ainda tem o agravo de, no período mais recente, estar mergulhada em um momento de luto, por seu pai (e patrão) e pelo término de sua relação amorosa, na qual era absolutamente dependente.

    O escopo de misantropia é tão grande que resvala até nos personagens periféricos, inclusive nos completamente desnecessários, como Rich (Patrick Fugit), que é usado como informativo universal, quase pondo a perder toda a experiência de inteligência do texto. No entanto, a verborragia da baixa autoestima que faz do roteiro algo diferenciado põe à baila uma grande discussão sobre os conflitos internos do indivíduo.

    A melancolia mostrada em tela é focada nas doenças da alma, focadas no antissocial e numa discussão liminar sobre ser mimado ou não, em comparação com o embate entre desapego e egoísmo. Virgínia e Catherine estão no mesmo patamar de loucura e de falta de compaixão por quem supostamente deviam amar. A troca de gracejos, ofensas e especialmente de fraternidade, especialmente no revide de desprezo, como se a vida servisse de lição moral, determina a pobreza de espírito de ambas, retratando de modo visceral uma faceta bem comum ao espírito humano.

  • Crítica | Aspirantes

    Crítica | Aspirantes

    aspirantes

    Silencioso e curto, o novo longa de Ives Rosenfeld fala sobre um tema muito caro ao brasileiro, usando o futebol como pano de fundo para exprimir uma história tocante. Aspirantes vai na mesma esteira do antigo Esse Amor Que Nos Consome, não tanto em formato, mas muito em espírito desbravador e emotivo.

    Junior, vivido pela revelação Ariclenes Barroso – que encanta a cada nova participação em filmes – é um jovem jogador de futebol, que demonstra na cena inicial seu gênio pouco fácil e agressivo, através dos frames de uma festa noturna, onde se envolve em uma mini confusão. O estado de espírito desalinhado prossegue na intimidade do rapaz, que faz descarga de caminhão durante a  noite a fim de angariar dinheiro para sustentar seu filho que está prestes a nascer.

    O texto de Rosenfeld e Pedro Freire abarca de maneira magistral o ambiente machista e simplista do esporte bretão, com discussões tipicamente masculinas e com uma rejeição absurda a quem demonstra sentimentos, o que justifica o silêncio e comportamento casca grossa de Junior sempre que confrontado ou perguntado sobre como está. Mesmo a oferta de ajuda, por parte do seu amigo Bento (Sergio Malheiros), que tem uma melhor sorte na busca por talentos esportivos, é recusada de pronto, uma vez que o protagonista pretende conseguir seu sustento por méritos unicamente próprios.

    Aos poucos o ambiente que aparentava perfeição e tranquilidade vai desmoronando, com o peso das responsabilidades começando a pesar, bem como o nível das discussões que ocorrem. Tudo se acalora, e mesmo nos diálogos agressivos e expositivos o enfoque é todo em Junior. Seu silêncio é o que predomina, é como se todo o entorno não valesse o esforço de captura da câmera, exceto o conjunto de emoções e sensações do jovem aspirante a jogador da Região dos Lagos.

    As partidas de futebol têm um acompanhamento acústico interessante, usando os sons da bateria como base para toda a adrenalina e carga de stress inerentes ao certame, não tanto do jogo em si, mais da busca por uma trajetória mais brilhante, e claro, por dias melhores que aqueles. As reviravoltas do roteiro são cabíveis diante do drama que se avoluma, inclusive na dor que somente se manifesta nas expressões faciais da personagem.

    Os gritos de incentivo de uma multidão imaginária servem somente para ratificar as prioridades de Junior, salientando qual é a pauta de seu repertório, quais são suas intenções com o futuro e seus sonhos. A vontade por evoluir e a forma como isso é conduzido dribla até os momentos de mornidão na fita de Rosenfeld, que cada vez mais evolui como diretor.

  • Crítica | 45 Anos

    Crítica | 45 Anos

    45 Anos - poster

    As relações amorosas e a convivência diária são comumente associadas em uma equação paradoxal. O tempo sempre é citado como aquele que desgasta a base das relações e, salvo a possibilidade de uma renovação constante, é natural que afetividades se arruínem. Se a maturidade possível do crescimento carrega uma maior carga de sabedoria, a qual se imagina certo manejo ao lidar com adversidades, nem sempre o equilíbrio entre a razão e o lado emotivo é funcional. A dúvida atinge a todos, independente da idade, ainda que na maturidade a trajetória do casal seja significativa para eclipsar qualquer armadilha sentimental.

    Baseado em um conto, Another Country do escritor britânico David Constantine, 45 Anos apresenta em cena um casal maduro formado pelos competentes Tom Courtenay e Charlotte Rampling. Prestes a completar 45 anos de casado, o marido recebe uma carta da Alemanha informando que o corpo de sua paixão juvenil, Katya, morta em um acidente nas montanhas, foi encontrado por bombeiros e, devido ao gelo, está preservado como se o tempo fosse inexistente. A partir deste acontecimento e da reação excessiva de Geoff, a esposa Kate coloca em perspectiva sua longa relação sobre a dúvida de ter sido amada de fato ou se viveu à sombra desta paixão anterior.

    A história foi baseada em um acontecimento real na França sobre um pai desaparecido na década de 30. Ao ser encontrado anos depois com o corpo intacto, o filho, que nunca conhecera o pai, teve um choque psicológico traumático irrecuperável. Constantine move o mesmo impacto para uma relação amorosa, espaço mais passível de efeito dramático pela ausência de um laço sanguíneo.

    O roteiro de Andrew Haigh, que também dirige a produção, focaliza um recorte de uma semana na trajetória desse casal, uma semana anterior à comemoração das bodas de platina. Contrapondo um espaço de tempo ruim, despertado pela revelação do corpo, há um casamento duradouro que, no início da história, é inferido como bem-sucedido. A contraposição é delicada e parece executada para gerar uma discussão sobre o desgaste das relações e a desconstrução que a memória nostálgica é capaz de realizar.

    A narrativa conduz o público aos conflitos internos da mulher, denotando, assim, uma maior ênfase em sua defesa. Em nenhum momento se conhece os sentimentos do velho Geoff em relação a este fatos. A interpretação contida dos atores abre espaço para esta discussão. É presumível que um casal que permanece tanto tempo unido possui laços fortes. Em cena, porém, fica claro que o tempo, acrescido de fatos que naturalmente promovem um choque momentâneo, causa rupturas.

    A falta de comunicação entre o casal reside nas entrelinhas. O homem chocado com a informação recebida age de maneira indelicada com a parceira; ela, por outro lado, mergulha em um medo interno e se torna incapaz de compreender o quão impactante a notícia foi para o marido. A trama aponta afirmativas universais sobre uma relação como a impossibilidade de conhecer por completo o ser amado, bem como o incômodo do passado, principalmente aquele nostálgico e afetivo, causa impacto mesmo em uma relação vivida intensamente. A discussão é deixada ao público para ponderar se a relação das personagens foi ou não sustentável. Apesar de uma semana parecer incapaz de abarcar toda a relação de quase 50 anos, o longa suscita a fragilidade de cada um diante de seus lugares escuros e a incompletude de que qualquer casal será vítima.

    Sutil como uma boa prosa narrativa, cujo tema está em suas entrelinhas, 45 Anos trabalha com qualidade os dramas das personagens, os quais se elevam graças às intensas interpretações de seus atores, não à toa indicados e premiados em diversas premiações por estes personagens.

  • Crítica | O Filho de Saul

    Crítica | O Filho de Saul

    Filho de Saul 1

    Concorrente forte ao Oscar de melhor filme de língua estrangeira, O Filho de Saul narra uma história em Auschwitz-Birkenau, por volta de 1944, focando em judeus concentrados através dos olhos de Saul Ausländer (Géza Rohrig), um húngaro membro do Sonderkommando, que na prática é um grupo de presos que ajuda os soldados nazistas a organizar os cativos. O roteiro mostra o protagonista atrás de um objetivo que aos poucos se desenvolve, quase sempre de modo bastante silencioso, aspecto que faz eco com a falta de voz que os religiosos do judaísmo sofriam enquanto eram maltratados no período da Segunda Guerra.

    A direção de László Nemes é bastante inventiva, ainda mais para um iniciante em longas-metragens. É o estilo de filmagem que garante os piores defeitos da fita, já que em quase todo momento a câmera acompanha o movimento de Saul em busca de seu estranho objetivo, tentando emular sua obsessão em busca do objetivo que lhe cabe.

    A tentativa de apresentar planos contínuos sofre com a constante quebra do estilo, e soa cansativa pelo uso extensivo da técnica. A harmonia da história é quebrada, restando um preciosismo extremo, sensação completamente inversa da empatia que deveria imperar em um filme que apresenta uma faceta interessante sobre o holocausto.

    Piora a situação pelo desempenho de Rohrig, que varia entre o sujeito traumatizado e o homem com uma missão impertinente. Não há como sentir empatia pelo personagem, e a ambiguidade que deveria ocorrer no ideário acaba prejudicada pela incapacidade de equilíbrio entre atuação e direção. Há um potencial enorme a se explorar, desde o ingresso de Saul no limbo que ocorre em estar, Sonderkommando, e a clara dicotomia entre servir aos opressores e entregar seus comparsas, bem como em sua missão de tentar achar um rabino, para encomendar a alma de seu filho morto.

    Existe até uma tentativa de incorrer à possibilidade de stress pós-traumático, não deixando claro se a motivação do protagonista é real ou fantasia de sua mente já perturbada. O que segue pelas quase duas horas de filme – e que aparentam ser bem mais, dado o enfado que provoca no espectador – é uma trajetória retilínea, redundante e nada inovadora, que facilmente seria bem contada em um curta-metragem, e que teria muito mais impacto se houvesse uma preocupação em não apelar para alternativas gratuitas de filmagem, que resultariam em uma maior apreciação do produto e maior aderência e compadecimento ao sofrimento dos homens.

    A sensação que predomina em O Filho de Saul, tanto em métrica quanto em história, é a prepotência em contar de modo diferenciado um drama já muito alardeado pelo cinema mainstream, em nada diferenciado dos muitos filmes temáticos executados nos Estados Unidos.