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  • Resenha | Uma Porta para um Quarto Escuro – Antonio Cestaro

    Resenha | Uma Porta para um Quarto Escuro – Antonio Cestaro

    uma porta para um quarto escuroO selo Tordesilhas, da Editora Alaúde, tem sido interessante novidade no mercado editorial brasileiro. Tem resgatado grandes obras em belas edições, lançado nova traduções de clássicos e dado espaço para a literatura brasileira, tanto em relançamentos quanto novos escritores.

    Empresário e músico, Antonio Cestaro aproveita a potência de sua editora para lançar no mercado uma primeira obra de ficção: Uma Porta Para Um Quarto Escuro.

    Desde seu trabalho gráfico a composição do livro é diferenciada. A capa sem título tem apenas a imagem de uma porta envelhecida, tão detalhada que possui alto-relevo na superfície. Além de um marcador de páginas em cetim, a edição é composta em páginas pretas, com ilustrações de Amanda Rodrigues Cestaro, produzindo no leitor um sentimento maior do que a simples leitura de memórias.

    Composto por trinta pequenos contos, o livro é construído pela memória sentimental. Em uma primeira observação, o título e a composição gráfica do livro podem remeter aos lugares escuros da memória. Mas a porta que se abre é a saudade de tempos imemoriais. Escuro pela falta de linearidade da memória, dos elementos sensitivos que mesmo quando lembrados guardam somente uma parcela da verdade.

    Transitando entre a crônica e certo lirismo poético, o livro inicia-se com pequenas pontuações sobre a vida cotidiana. Os sentimentos internos que cada um de nós projetamos, mas que guardamos para si. São rememorações da infância, de outras percepções sobre as quais somente um homem maduro é capaz de ponderar. Enquanto reflete, Cestaro conta causos mediados pelo humor, mantendo uma linguagem coloquial como quem conversa com um amigo próximo. Cada narrativa é acompanhada por uma ilustração de Amanda Cestaro que, nos traços infantis, parece explicitar a máxima da memória afetiva, sempre lembrada mais pelo seu lado iluminado.

    Diferentemente do que se pode inferir, a brevidade dos contos não significa uma leitura rápida – um erro em que muitos leitores incorrem pelo tamanho do texto. Os contos e suas ilustrações devem ser saboreados no tempo necessário, como exige uma literatura com mais páginas, compreendendo cada memória e misturando-as com as dos leitores.

  • Crítica | 13 Assassinos

    Crítica | 13 Assassinos

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    O ano é 1844. O Japão passa por um período de relativa estabilidade e a maioria dos samurais aposentaram suas espadas. Essa estabilidade começa a ser ameaçada por Lord Naritsugu, irmão do atual Shogun, um nobre sádico que abusa, estupra e mata os mais pobres ao seu bel prazer. Um oficial do shogunato, por revoltar-se com relação às atitudes do tirano, temendo pelo Japão caso ele se tornasse o próximo Shogun, reúne um grupo de samurais para o matarem.

    13 Assassinos é um remake do filme homônimo de 1963 de Eiichi Kudo, trazido à luz em 2010 pelo aclamado Takashi Miike. Seus filmes são conhecidos por sua violência extrema, mas aqui Miike dá atenção para um modelo clássico de filmes de samurai. Ao mesmo tempo em que não abandona a violência gráfica (porém aqui não tão visceral como de costume), dá atenção para planos contemplativos, diálogos ricos e atuações expressivas.

    A narrativa do filme começa com os samurais angariando companheiros para enfrentar o lorde maligno. Samurais de mais experiência e que viveram na época das guerras se juntam com alguns de seus aprendizes para lutar pelo Japão e não pelos seus nobres, por isso acabam se tornando assassinos. A influência de Sete Samurais de Akira Kurosawa é evidente, até mesmo quando um ronin se junta à causa do grupo de samurais, representando o ar descontraído da seriedade e disciplina dos demais companheiros.

    Aqui temos uma divisão bem definida entre o bem e o mal, característica marcante em filmes de samurai. No primeiro ato do filme vemos tortura, assassinato, estupro e mutilação. O espectador está preparado psicologicamente por quem torcer no segundo ato, quando os samurais estão recrutando aliados, e finalmente no terceiro, em que a grande batalha acontece.

    O que vemos é uma cidade inteiramente construída pela produção simplesmente para ser totalmente destruída durante 45 minutos de batalha sem interrupções e coreografadas, se afastando positivamente de efeitos especiais por computação, tão utilizados atualmente. A atuação conjunta de uma dezena de pessoas ao mesmo tempo é simétrica em diversas cenas do filme.

    O pensamento de que 13 assassinos lutando contra 200 homens da guarda real poderia parecer forçado cai por terra nesta produção grandiosa. Takashi Miike consegue fazer com que seu remake seja um dos filmes de samurai mais significativos dos últimos anos e reafirmar sua competência como diretor. Esta é talvez sua obra mais madura.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Resenha | Assassin’s Creed: Renascença – Oliver Bowden

    Resenha | Assassin’s Creed: Renascença – Oliver Bowden

    Assasssin’s Creed – Renascença, de Oliver Bowden, é o primeiro romance de uma série de livros baseada na franquia de jogos homônima – mais precisamente, adaptação direta de Assassin’s Creed II. O livro explora toda a história do segundo jogo, além de preencher algumas lacunas não exploradas.

    Como no jogo, o livro é ambientado em Florença, no ano de 1476. Lá conhecemos Ezio Auditore, um jovem impulsivo e inconsequente, com um certo talento natural para brigas: ele vive em atritos constantes com Vieri, um garoto de uma família rival. A família de Ezio faz parte da aristocracia italiana, seu pai é um banqueiro local, e tudo caminha para que o ofício do pai seja herdado por Ezio.

    No entanto, a vida do personagem muda drasticamente quando uma conspiração cruza o caminho de sua família. O pai e os dois irmãos de Ezio são acusados de traição e enforcados em praça pública; sua casa é destruída, junto com boa parte de seus bens; sua mãe e irmã são salvas da morte certa, mas o preço ainda é alto demais. A única coisa que resta para Ezio é se vingar dos algozes de sua família.

    Para conseguir sua vingança, Ezio conta com importantes aliados, entre eles, importantes figuras históricas como Leonardo da Vinci e Nicolau Maquiavel. Além deles, Ezio inicia um treinamento com seu tio, buscando um aperfeiçoamento de suas habilidades. No meio disso tudo, descobre os fundamentos de uma ordem de assassinos que perdura há anos.

    A narrativa de Assassin’s Creed – Renascença é realizada em terceira pessoa, sempre com enfoque no seu protagonista. Essa escolha proporciona uma amplitude para o leitor analisar tudo o que ocorre à sua volta. As inserções de locais e personagens reais, como os já citados Da Vinci e Maquiavel, além de outros, como o Papa Alexandre VI, Lorenzo de’ Medici e Caterina Sforza, dão um clima de romance histórico à leitura, imprimindo um tom de realidade ao livro.

    O autor consegue conduzir o leitor por uma narrativa ágil e coesa. Ao longo da história, páginas se tornam anos, e ao final do livro temos um Ezio maduro, com mais de 40 anos. Ao longo do tempo, conseguimos notar mudanças na personalidade de Ezio: o jovem impulsivo e apaixonado se torna um assassino frio, mas com uma motivação que representa algo muito maior do que a vingança que buscava.

    Apesar de sugerir que Assassin’s Creed – Renascença seja um romance histórico, não acho propício enquadrá-lo como tal, já que esse tipo de leitura utiliza uma narrativa bastante descritiva e rebuscada, o que não é o caso em questão. A escrita é simples, sem grandes devaneios do autor narrando uma cena de ação ou descrevendo as cidades-estado da Itália renascentista, o que acaba pecando numa questão primordial dos romances históricos, a caracterização de uma época. Essa “descaracterização” não torna o torna um livro menor, apenas diferente.

    Os personagens apresentados são inúmeros. Alguns deles esbanjam carisma mesmo com pequenas participações. Devido ao grande número de personagens, o livro possui uma lista com a relação de boa parte deles, para relembrar o leitor, caso necessário. Além disso, conta com um glossário de termos em italiano e latim que são utilizados durante o livro. O desfecho da história é bastante interessante e pega o leitor de surpresa, deixando uma série de possibilidades em aberto para o segundo livro.

    As principais críticas que tenho lido são de que o livro é uma transposição do jogo. No entanto, como nunca joguei o segundo jogo, não tenho base de comparação para tal. Portanto, minha análise se baseia exclusivamente no livro e, analisando-o per si, foi uma ótima leitura.

    Assassin’s Creed – Renascença traz um dinamismo e agilidade que um épico leve pede, com um tempero especial para a inclusão de algumas personalidades, tudo isso numa história de busca por reparação. Leitura leve, com alguns escorregões do autor ao longo do caminho, mas nada que prejudique o resultado final.

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  • Crítica | O Ditador

    Crítica | O Ditador

    O Ditador

    Ao começar O Ditador com a dedicatória “À memória do querido de Kim Jong-il”, Sacha Baron Cohen mostra novamente a que veio. Dessa vez ele deixa de lado as situações pseudo-reais dos anteriores, Brüno e Borat, mas novamente coloca um estrangeiro nos EUA fazendo piadas machistas, escatológicas e politicamente incorretas com o objetivo de fazer graça da nossa sociedade, modo de vida, governo e hipocrisia com alguma crítica social entre uma piada e outra.

    Sacha Baron Cohen interpreta o líder supremo, Aladeen, da república de Wadiya – nome que em português ficou ainda melhor. Somos introduzidos às excentricidades de seu general, como reduzir o dicionário de Wadiya e introduzir vários significados para a palavra Aladeen (uma referência clara a 1984 e à novilíngua), trazendo uma piada instantânea, com um médico dizendo que a um paciente que ele é HIV-Aladeen, e este em dúvida se chora ou se ri. Além disso, carros folheados a ouro, jardins esculpidos com a face do líder e um próprio discurso em que o general não consegue conter a risada ao dizer que seu programa nuclear será usado apenas para fins pacíficos e medicinais.

    Dirigido por Larry Charles, o filme tem roteiro do próprio Sacha Baron Cohen, além de Alec Berg, David Mandel e Jeff Schaffer. A maior parte do filme se passa nos EUA, onde Aladeen pretende discusar para a ONU, “colocando-os em seu lugar”, mas acaba caindo em uma conspiração para tirá-lo do poder, organizada por seu tio e conselheiro, Tamir (Ben Kingsley). Este o entrega para um agente americano interpretado por John C. Reilly (que não é creditado no filme), e ambos protagonizam uma cena hilária na qual, além de cortar a “barba sagrada” do opressor supremo, passam por uma discussão sobre os equipamentos de tortura ultrapassados do agente.

    A partir daí, Aladeen é obrigado a se passar por um qualquer, já que não é reconhecido sem sua barba, e é quando conhece Zoey (Anna Farris): uma ativista vegetariana, feminista e completo oposto do ditador, mas que o completará e, mesmo sem saber, o ajudará a retomar o poder. Além disso, ela e sua loja de produtos orgânicos são o estopim de uma quantidade imensa de piadas machistas e politicamente incorretas, que atingem em cheio defensores de ecologia, feministas, entre outros grupos. E tudo isso funciona, muito por todos esses estereótipos e o sarro tirado serem em função do próprio humor e uma crítica aos seus exageros, e não apenas por agressão banal a um grupo determinado.

    Além de Zoey, outro personagem importante é Omar (Sayed Badreya), um físico nuclear exilado de Wadyia que, nos EUA, trabalha como Apple Genius. Juntos eles farão planos mirabolantes para que o ditador volte ao poder, e assim ele terminará seu projeto nuclear “pacífico”.

    O roteiro tem seus problemas, seus furos, não é original – afinal, a mesma estrutura do estrangeiro deslocado já foi usada tanto em Borat quanto Brüno -, mas é aceitável, tanto pelo nonsense do que vemos na tela como por ele cumprir exatamente o que se propõe: fazer o espectador rir, por mais escabrosa que seja a situação representada.

    Outro ponto positivo para O Ditador é a trilha sonora com várias músicas de sucesso regravadas em arábe, como Everybody Hurts, do R.E.M., ou The Next Episode. As versões muito bem inseridas no filme já são motivo de riso imediato.

    O Ditador finaliza, então, com aquela figura infantil, mimada pelo poder e completamente deslocada da nossa própria realidade, que é Aladeen, fazendo um discurso contra a democracia e a favor de sua ditadura, usando argumentos que são justamente a realidade que vivemos em nossas democracias modernas: 1% do povo com toda a riqueza, a mídia manipuladora e controlada por apenas uma pessoa e suas famílias, entre outras. A cena me parece uma homenagem ao estilo Sacha ou até mesmo uma antítese do clássico de Charles Chaplin, O Grande Ditador, de 1940, que nos levanta o questionamento: mesmo tantos anos depois, talvez os nossos problemas continuem sendo os mesmos, apenas com outras figuras e uma nova roupagem.

    Não espere, é claro, o filme mais engajado e político dos últimos tempos. Ele é apenas uma comédia com um bônus bem-vindo que é sua crítica social, e que muitas vezes espera que o próprio espectador se sinta culpado por achar aquilo tão engraçado. Vale lembrar que Sacha é judeu e algumas das melhores piadas do filme são justamente anti-semitas.

  • Resenha | A Garagem Hermética

    Resenha | A Garagem Hermética

    Uma das obras primas do quadrinista Moebius (Jean Giraud), falecido em 10 de março de 2012, A Garagem Hermética foi originalmente publicada na revista francesa Metal Hurlant entre 1976 e 1980 em episódios de duas a quatro páginas. Foi republicada no Brasil pela editora Nemo, com nova tradução e um belo trabalho editorial. Portanto, hora mais propícia para uma resenha de um dos maiores clássicos dos quadrinhos europeus provavelmente não haverá. Embarquemos, então, nessa viagem lisérgica de Moebius.

    É uma tarefa árdua falar do plot de Garagem Hermética, tanto pela estrutura da história – com idas e vindas que saem do desconhecido e te levam para pontos que “desconhecido” não é o suficiente para definir – quanto porque, notadamente, talvez o último interesse do autor fosse realmente contar uma história quadrada, fechada, seguindo uma estrutura narrativa comum, com início, meio e fim. Ele próprio descreve um pouco do desenvolvimento da história de Garagem Hermética: “Todo mês eu tentaria recriar uma trama coerente, com os elementos já existentes na história. E então separaria tudo para me sentir inseguro novamente, e então no mês seguinte unir os pedaços pra começar tudo de novo”.

    Com esse espírito de liberdade de desenhar e criar universos e deixar que o leitor os complete em sua própria experiência, Moebius continua a contar a história de Major Grubert – e digo “continua” pois era um personagem já existente em Major Fatal, e publicado pela primeira vez em A caçada ao francês de férias. Dessa vez, Major Grubert e seu antagonista, Lewis Carnelian, protagonizam uma trama transcendental, mística, em que adentram um planeta com diferentes níveis de realidade, cada vez mais complexos e distantes da nossa própria realidade, deixando o leitor sempre um passo atrás da compreensão de tudo aquilo que está acontecendo, mas ainda assim envolto e imerso naquele universo de nonsense, belas imagens e criatividade quase infinita.

    Sobre a arte de Moebius: eu compararia sua arte e os planos que ele apresenta em Garagem Hermética ao Cinema Scope dos quadrinhos. Planos abertos, às vezes até ocupando uma página inteira, com detalhes suficientes para que o leitor dê uma pausa na leitura e na evolução da trama apenas para analisar cada trecho e minúcia desenhada. Observar e apreciar cada referência e inspiração que o quadrinista deixa ali em seu traço: por exemplo, uma cena em que Major e Lewis estão voando, o próprio autor cita como referência direta ao Homem de Ferro. Como se já não fosse o bastante, alguns dos ângulos de observação daqueles planos já seriam muito inovadores nos dias de hoje. Considerando então a época em que Garagem Hermética foi escrita e desenhada, podemos com certeza considerá-la um marco que viria a influenciar quase toda, se não toda, a produção de quadrinhos subsequente.

    Fora que toda essa arte remete, é claro, ao nosso mundo real, mas ainda assim cria um universo próprio, com suas regras particulares, o que dá ainda mais liberdade e criatividade para suas criaturas, paisagens, construções, todas belíssimas e únicas. Os desenhos em preto e branco conferem ao leitor o uso da imaginação para que aquilo tudo se torne ainda mais vivo e real, sem perder, porém, um aspecto de sonho e imaginação que muitas obras em preto e branco sugerem.

    A Garagem Hermética, mesmo que não agrade àqueles que preferem uma estrutura narrativa mais linear e fechada, com certeza vale por seu desenho.Em muitos momentos ele é a motivação para a continuidade na saga que, por suas idas e vindas, muitas vezes sem muito nexo e lógica, dá a impressão de que a história não sai do lugar, e que cairá para algo em que não há solução possível. Portanto um clássico como esse, quase uma experiência, é obrigatório para todos os fãs de histórias em quadrinhos, e também como uma introdução a esse mestre da nona arte, Moebius, junto com suas histórias iniciais do Major Grubert.

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  • Crítica | Intocáveis

    Crítica | Intocáveis

    Intocáveis

    A França tem uma tradição forte em cinema: filmes franceses frequentemente levam prêmios nos festivais importantes, Oscar de melhor filme estrangeiro e boa parte dos grandes diretores da história do cinema trabalhou no país. Mas de vez em quando um filme francês acaba se destacando por conquistar uma inesperada bilheteria mundial. Foi o caso de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (provavelmente o filme francês mais visto fora do país), Albergue Espanhol e agora Intocáveis.

    Baseado em uma história real, Intocáveis apresenta Philipe, um milionário que ficou tetraplégico em um acidente de parapente e precisa de um assistente em tempo integral, para ajudá-lo com coisas como tomar banho, comer, ir ao banheiro e se vestir. Inusitadamente, Philipe contrata Driss, um jovem da periferia, pobre e sem qualquer experiência para o cargo.

    Em um diálogo com o irmão, Philipe afirma que contratou Driss porque pela primeira vez alguém não o olhou com pena, e é exatamente esse aspecto da relação entre os dois que torna o filme notável. Driss não tem pena de Philipe, ele reclama de boa parte de suas obrigações, responde ao chefe e faz piadas como “onde você encontra um tetraplégico? onde você o deixou pela última vez”. E é justamente essa falta de crença nas limitações de Philipe que o leva a ultrapassá-las.

    O filme lança um olhar divertido sobre a amizade entre Philipe e Driss e, assim como o jovem, evita o melodrama e uma delicadeza extrema, que poderia transformá-lo em algo piegas ou previsível. O maior mérito de Intocáveis é justamente olhar para seus protagonistas, ambos “condenados” de uma certa forma, com leveza e buscar o potencial cômico de uma história que parecia um drama. A própria narrativa do filme brinca com essa expectativa: a primeira cena deixa o espectador tenso, preparado para uma tragédia e ao final se mostra só uma piada.

    Há momentos delicados e mesmo emocionantes, mas eles se mantêm leves e o tom geral é de comédia. Intocáveis poderia ser um filme óbvio, mas essas escolhas, aliadas aos bons diálogos e o carisma dos atores, o tornam inesperado, divertido e um dos melhores exemplos do cinema francês recente.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.

  • Agenda Cultural 45 | Neil Gaiman, Indie Games e Mercenários 2

    Agenda Cultural 45 | Neil Gaiman, Indie Games e Mercenários 2

    Bem vindos à bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira),Rafael Moreira (@_rmc),  Pedro Lobato (@pedrolobato), Jackson Good (@jacksgood), Isa Sinay (@isasinay) e Carlos Brito se juntam para comentar as indicações do mês. (mais…)

  • Crítica | Indie Game: The Movie

    Crítica | Indie Game: The Movie

    indie game the movie

    Indie Game: The Movie, é um premiado documentário (Sundance 2012), criado, produzido, dirigido, filmado, fotografado, editado e escrito por apenas duas pessoas, James Swirsky Lisanne Pajot. Ou seja, bem ao padrão de uma produção independente. O filme foi financiado por dois projetos no kickstarter, o primeiro em maio de 2010, levantando os fundos necessários (U$ 15.000) em 24 horas e atingindo 23.341,00 ao final do funding. O segundo “financiamento”, para finalizar o filme, com objetivo de (U$ 35.000), conseguiu quase 200% de sua meta inicial, atingindo mais de 71 mil dólares. Provas de que a comunidade de games independentes, apoiam uns aos outros não faltam. Essa foi só mais uma.

    O filme não cai na fácil armadilha da comparação, colocando a indústria de games triple-A como vilões, e o pessoal do independente como os salvadores da cultura gamer. Pelo contrário, aqui o foco é total nos independentes e de seus valores por eles próprios, e não pela análise comparativa.

    O documentário tem entrevistas com Jonathan Blow, criador de Braid, Edmund McMillen e Tommy Refenes, criadores de Super Meat BoyPhil Fish, criador de FEZ. Além de algumas outras participações menores, todos relacionados a cena indie. Além de uma série de extras, como a entrevista com Alec Holowka, da Infinite Ammo, que foi a centelha inicial do filme. Algumas pequenas entrevistas com outros desenvolvedores. Além de adicionais sobre a própria produção do documentário, entre outras coisas. Todas usadas como material de divulgação entre o período de produção e financiamento do projeto.

    Com Jonathan Blow, o documentário explora a veia mais filosófica e artística dele próprio, tentando trazer à tona o que motiva, e o que é em sua essência o desenvolvimento de games, que não tem uma forte pressão de estúdios e a necessidade de vender milhões de cópias. Já com os outros participantes principais é mais explorada a motivação e a condição deles próprios, como desenvolvedores independentes.

    Os produtores tentam nos mostrar, que aquilo que está sendo produzido não é apenas um jogo, feito apenas para diversão pueril e nada mais. A obra produzida é um reflexo das pessoas nela envolvidas. É a forma que eles melhor têm pra se expressar. Dizer algo para o mundo, algo que representa eles próprios. O próprio Jonathan, em dado momento fala o seguinte (em tradução livre):

    Parte de tudo isso, é sobre não ser profissional. Muita gente vem pros jogos indies, tentando ser uma grande empresa. E o que essas empresas fazem, é criar produtos muito polidos, que atendem ao maior número de pessoas possível. Removendo todas as imperfeições possíveis. Se há um canto afiado, você confere se esse canto não vai ferir ninguém, ninguém irá se machucar com o seu produto. Criar esses produtos, polidos e comerciais é o oposto de se criar algo pessoal. O que é pessoal tem falhas, vulnerabilidades. Se você não vê a vulnerabilidade de alguém, você provavelmente não conhece essa pessoa o suficiente, ou de uma maneira verdadeiramente pessoal. É a mesma coisa com o Game Design, em que fazê-lo, é pegar minhas próprias falhas e vulnebilidades mais profundas, colocá-las no jogo, e ver o que acontece.

    Além disso,  o documentário investe uma carga bastante dramática, sobre o que tudo aquilo representa pra vida desses desenvolvedores e também para aqueles que estão no seu entorno. O que significa aquela realização, e tudo que foi deixado de lado na busca por esse sonho.

    Um outro ponto muito interessante, é que o documentário acerta em cheio com as escolhas daqueles que serão entrevistados e acompanhados no desenvolvimento, diria até que foi uma jogada de sorte, já que as filmagens começaram antes do lançamento dos jogos em questão. E o contraponto foi excelente, ao pegar o Team Meat (Super Meat Boy), um sucesso estrondoso de crítica e vendas, e FEZ, um jogo que passou quase 5 anos em desenvolvimento, prometia ser um dos maiores, mas que acabou perdendo muito da força, quase por um abandono da base de fãs que havia conseguido, que desistiram da espera.

    Enfim, Indie Game: The Movie, deve ser assistido, gostando você ou não de jogos de videogame. Porque além de sua ótima construção, também defende essa forma de expressão artística que muitos ainda teimam em desqualificar, considerando apenas como uma forma menor de entretenimento, muito porque não consegue enxergar o que está por trás do “apertar botões”, e entender o significado, o objetivo, que o game designer quis passar com aquela experiência.
  • Crítica | Batman: O Cavaleiro das Trevas – Parte 1

    Crítica | Batman: O Cavaleiro das Trevas – Parte 1

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    Neste mundo injusto, qualidade e sucesso comercial nem sempre coincidem. Após o triste anúncio do fechamento da Warner Premiere, divisão da empresa responsável por animações lançadas direto para o home vídeo, ficou a expectativa em relação à última produção do selo: nada menos do que a adaptação da obra máxima do Homem-Morcego, O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, que não só redefiniu o personagem como toda a indústria dos comics (ao lado de Watchmen) após sua publicação em 1986.

    Somente os mais ingênuos esperariam uma transcrição cem por cento fiel de todo o estofo presente no material original, mesmo numa animação voltada a um público mais adulto. Afinal, são 200 páginas de uma narrativa extremamente densa, aprofundada não apenas na psicologia perturbada do herói, como também em ferrenhas críticas ao governo, à mídia e à própria sociedade norte-americana. Mesmo com a acertada decisão de dividir a história em duas partes, é preciso ter isso em mente e fazer certas concessões para poder apreciar este grande trabalho.

    Na trama (que é um futuro alternativo a partir do que o Batman era nos anos 80), Bruce Wayne se aposentou da função de vigilante urbano após a morte do segundo Robin, Jason Todd. Na casa dos 50 anos, ele vive como uma fera enjaulada, esforçando-se pra ignorar seu interior enquanto assiste Gotham se afundar cada vez mais num caos social. A numerosa e sádica gangue dos Mutantes domina as ruas e, com o Comissário Gordon prestes a ser aposentado compulsoriamente, parece não haver esperança, visto a total incapacidade das autoridades. Até que o retorno de um velho inimigo motiva Bruce a vestir mais uma vez a capa e o capuz e voltar à ação mais violento do que nunca, com uma ajuda inesperada.

    Batman: O Cavaleiro das Trevas – Parte 1 não foge da lei suprema de qualquer adaptação de uma obra fechada: parecer, aos olhos de quem conhece o material original, uma versão resumida e simplificada. Ainda assim, grande parte da força da história se mantém, como a construção de todo o cenário levando gradativamente ao retorno do Batman. Alguns elementos são bem datados, como as gangues com visual punk, mas o retrato de uma sociedade em frangalhos, praticamente entregue ao poder paralelo do crime, sem dúvida é atemporal.

    Houve um exagero, porém, na forma por demais explícita como o poder constituído na figura do prefeito é retratado com um imbecil incapaz. Compreensível, pois um cuidado maior nisso levaria mais tempo e arriscaria prejudicar o ótimo ritmo que a animação conseguiu ter. Nessa linha, a opção por reduzir ao mínimo as inserções televisivas na história foi provavelmente a melhor coisa da animação. Parêntese pessoal aqui: por mais que isso sirva pra situar o impacto que o Batman tem sobre a cidade (e criticar o tendenciosismo e desinformação da mídia), preciso dizer que na graphic novel era maçante e cansativo todo o espaço dedicado aos telejornais. Se o objetivo é cumprido sem cair no tédio, ponto para a animação.

    Mas nem tudo são flores. É preciso apontar a falha maior: a ausência das narrações em off dos pensamentos do herói. Marca registrada de Frank Miller, era através desse recurso que tínhamos noção do quão próximo da psicopatia estava Bruce Wayne. Da forma como ficou, isso pode até ter passado um tanto despercebido pra quem não conhece a HQ. Ainda que a violência exacerbada tenha permanecido, ao menos visualmente, algumas cenas perderam muito. Em especial, sem dúvida alguma, o momento em que o Batman é acuado por um inimigo armado e analisa suas opções, descartando as que desarmam com mínimo contato e optando pela que ALEIJA.

    Apesar de tudo, há que se destacar que a animação trouxe excelentes cenas de ação: as lutas contra o líder mutante por si só já valeriam o filme. O visual ficou num válido meio termo entre o estilo oriental padrão nas produções animadas da DC e uma reprodução do traço “quadradão” característico de Miller, embora muito mais “limpo”.

    Como se ainda precisasse, a Warner/DC mostrou mais uma vez que sua especialidade são as produções animadas, muito mais do que os filmes live action (polêmica mode on). Só nos resta lamentar o fim desse inspiradíssimo filão da empresa, enquanto aguardamos até o início de 2013 para conferir a segunda parte de Batman: O Cavaleiro das Trevas, com os aguardados confrontos contra o Coringa (dublado por Michael Emerson) e Superman.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Resenha | O Primeiro Cinema: Espetáculo, narração, domesticação – Flávia Cesarino Costa

    Resenha | O Primeiro Cinema: Espetáculo, narração, domesticação – Flávia Cesarino Costa

    o primeiro cinemaTomei conhecimento da segunda edição deste livro primeiramente em 2005, quando estava escrevendo o meu Trabalho de Conclusão de Curso no término da faculdade de cinema. Eu havia discorrido sobre a forma como o diretor norte-americano D.W. Griffith havia conseguido atingir o efeito dramático em seus filmes por volta de 1908. Nos dois anos seguintes tentei o mestrado, onde a ideia era abordar o início das práticas do cinema no Brasil, em especial no Rio de Janeiro.

    Acontece que, na primeira vez, ele se revelou uma preciosa fonte de ambientação histórica para tentar se entender o contexto sócio-político-econômico-cultural, além de todas as transformações que ditaram a mudança nos EUA do século XIX para o XX (principalmente as científicas e urbanas), onde Griffith se inseriu antes de mudar, e moldar, todas as formas conhecidas de cinema desde então; nas duas seguintes, ele me foi um modelo de análise historiográfica a ser seguido.

    O livro foi escrito pela professora Flávia Cesarino Costa baseando-se na sua dissertação de mestrado, defendida na PUC-SP em 1994.

    Uma curta sinopse: a autora faz uma análise da produção, comercialização, distribuição e exibição de filmes nos EUA no período compreendido entre 1894 e 1908, designado por ela como “primeiro cinema”, seguindo a corrente historiográfica dos autores do Simpósio de Brighton (nesta cidade inglesa em 1978 ocorreu o 34ª encontro de preservação de filmes da FIAF, onde jovens autores da época propuseram um revisionismo histórico deste período nos seus respectivos países, como EUA, França, Inglaterra e Canadá).

    O mais fascinante no livro está nos diversos detalhes do período que Flávia ressalta, apontando também as particularidades envolvidas e relacionando-as com a época, ainda promovendo reflexões acerca delas. O saldo final acaba sendo um competente retrato de uma época que se revela tão rica em experimentações, além de anárquica no seu processo de ser, o que a torna tão única em toda a história do cinema.

    Por exemplo, a autora comenta que já em 1895 o cinema se misturava a outros divertimentos da época mais importantes do que ele (p. 29), se marginalizando para percorrer caminhos obscuros para não ser extinto; ela também cita que, até 1900, os exibidores tinham autonomia no processo, podendo cortar ou aumentar a duração de um filme (p. 45); vemos a descrição dos ‘trick films’ (p. 48, filmes feitos com trucagens) e dos ‘filmes de perseguição’ (p. 49, primeiras formas de narrativa a partir de 1903); um dos pontos mais interessantes é quando Flávia começa a abordar a era dos ‘nickelodeons’ (p. 59, de 1906 a 1915), período final do primeiro cinema.

    Significativa também é a escolha para o subtítulo do livro: “espetáculo” se refere à época inicial do cinema, em que qualquer forma de atração era absoluta e a anarquia ‘ditava as regras’; “narração” diz respeito à transição que foi ocorrendo gradualmente na experimentação da edição de filmes sem compromisso nenhum com a narrativa até Griffith; e a “domesticação” se dá quando se tenta legitimar o cinema como espetáculo de massa perante a sociedade deixando os nickelodeons mais agradáveis a classe média, limpando o local e restringindo o acesso ao local a todos que não fossem “pessoas de bem”.

    Um extra bem interessante são informações dos principais filmes e frames de cenas durante o livro inteiro.

    Por último, deve-se louvar a coragem da autora em abordar uma época do cinema tão pouco estudada e difundida entre os interessados pela arte, em função de outros estudos que discorrem sobre os fervilhantes anos 60 ou sobre obras de diretores/atores renomados e/ou premiados que dispensam apresentações de suas obras.

    O único ponto negativo que ressaltaria é a origem do livro: de vez em quando a leitura fluente volta a ser uma dissertação acadêmica, quebrando um pouco o ritmo e prejudicando talvez uma melhor apreciação dos leitores que não se interessam por uma abordagem mais técnica.

    Vale a leitura? Sim, para quem gosta de cinema, a curiosidade de conhecer essa época tão fascinante se torna o chamariz principal. Agora, se você for um amante do cinema, é mais do que obrigatório conhecer e ter este livro na prateleira, até mesmo como eventual consulta, para saber o contexto da época em que surgiu e, o mais interessante, como ele se desenvolveu através dos caminhos percorridos, e os motivos que o levaram para tal.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Resenha | Os Passarinhos e Outros Bichos

    Resenha | Os Passarinhos e Outros Bichos

    Em 2009, o cartunista Estevão Ribeiro, enquanto aguardava pelo início de uma reunião, criou por acaso dois passarinhos em uma folha de papel. Com os personagens desenhados, o autor pensou que eles teriam potencial para boas histórias e, com o tempo, passou a publicar tiras com esses personagens em seu blog. O sucesso foi inevitável, e logo passou a publicá-las em formato impresso, na revista Mad.

    Um ano depois, veio a proposta para publicar um livreto com suas tiras para a inauguração da Balão Editorial. Assim surgiu Hector e Afonso –  Os Passarinhos. O livro foi um sucesso, esgotou, ganhou reimpressão com tiras inéditas e ainda foi indicado ao prêmio HQ-Mix de melhor publicação de tiras. Um ano depois, chegaria o segundo volume.

    Os Passarinhos e Outros Bichos apresenta novos personagens do universo concebido por Estevão, não focando apenas nos protagonistas, Hector e Afonso. Além de contar com o retorno de Piu Gaiman, Paulo, o Coelho e outros, novos personagens são introduzidos, como Damião, um joão-de-barro pedreiro; Agatha Triste; Patrício, o pato pobre e muitas novidades.

    Além disso tudo, o livro conta ainda com participações de grandes quadrinistas nacionais: Danilo Beyruth, Mario Cau, Lu e Vitor Cafaggi, Leo Finocchi são apenas alguns dos nomes que você encontrará neste segundo volume de Os Passarinhos.

    O trabalho de Estevão é brincar com as mais diversas situações do comportamento humano, mesclando o ar ingênuo de Hector com o sarcasmo de Afonso. Estevão ainda encontra espaço para fazer homenagens constantes à cultura pop e a outros quadrinistas, tudo isso num traço leve e descontraído. Altamente recomendada.

    Compre aqui.

  • Resenha | Cantando um Blues – Isaac Soares de Souza

    Resenha | Cantando um Blues – Isaac Soares de Souza

    cantando um bluesCantando um blues, livro de Isaac Soares de Souza, autor de Zé Ramalho: o poeta do terceiro milênio, poeta e letrista, se apresenta como um amigo pessoal de Raul Seixas, e  isso terá muita influência nessa obra.

    O livro traz uma breve introdução ao ritmo negro do sul dos Estados Unidos, destacando suas origens – como a música dos escravos, com o objetivo de amenizar o sofrimento por sua condição, que tornou-se posteriormente algo como a voz dos oprimidos em busca da igualdade, voz essa melancólica e boêmia. Nas palavras do autor: “O Blues é tudo aquilo que a alma humana almeja: Liberdade, igualdade e fraternidade”.

    O livro traça também um histórico do ritmo com essa introdução, colocando suas origens geográficas, as vertentes e os rumos que tomou ao se espalhar pela América e pelo mundo e, com isso, toda a influência na cultura musical que o Blues exerceu e exerce até hoje.

    A partir daí, o livro traz uma série de mini-biografias, dividas em três categorias: “A origem”, “O blues e o Rock’n Roll” e “O Blues no Brasil”. É por meio dessas curtas passagens sobre a vida daqueles que são os personagens principais do Blues, as próprias pessoas, que o autor conduz a história do som do Delta do Mississipi, indo de Charley Patton, Koko Taylor, passando por Muddy Waters até Bob Dylan, Janis Joplin, Eric Clapton e muitos outros.

    Esse modo de conduzir o livro é interessante, pois podermos conhecer nomes importantes para a música que nem sempre são conhecidos do grande público. O autor, inclusive, parece-me tentar mesclar um pouco disso, colocando nomes altamente expressivos ao lado de figuras menos conhecidas. Além disso, fazer um livro dessa forma já o torna interativo quase que automaticamente: assim que lemos sobre um determinado músico, instantaneamente vamos à internet conhecer pelo menos um pouco de sua obra, buscar mais informações, fazendo com a leitura fique ainda mais dinâmica e prazerosa.

    Essa estrutura de pequenas biografias tem dois problemas que não tornam o resultado final ruim, mas que devem ser destacados. O primeiro deles, é que em alguns músicos, pouco é falado da obra em si, focando apenas em alguns aspectos da vida daquele personagem, deixando a obra em segundo plano. Não é o que se espera quando se lê algo sobre expressões artísticas em geral, mas é plenamente compreensível, por questões práticas e limitações de espaço, que sejam feitas algumas escolhas em detrimento de outras. O segundo problema é o questionamento das escolhas do autor. Isso porque ele não deixa claro, em nenhum momento, qual é o critério utilizado para colocar em sua obra determinado músico, talvez de menor expressão, e deixar de fora, por exemplo, um gigante do Blues como B.B. King, que é naturalmente citado diversas vezes no decorrer do livro, tal qual Muddy Waters – mas este segundo tendo o seu “verbete” exclusivo, enquanto B.B. King não. Outro questionamento desse tipo levo no cenário brasileiro, com a inclusão de Raul Seixas, mas deixando Celso Blues Boy de fora. Porém, esse assunto retomarei à frente.

    Um outro ponto altamente positivo do livro é o grafismo e a diagramação de Cantando um blues. Diversos blueseiros contam com a sua caricatura nas páginas – desenhadas por Walter Tierno e Thiago Ivanildo Lima –, todas muito bem desenhadas, que dão um toque de humor e leveza à obra. Além disso, várias páginas contam com um plano de fundo com notas ou instrumentos musicais, feitos com bastante cuidado, o que dá um visual especial para o livro, mas sem comprometer a leitura. Outro ponto ainda ligado ao grafismo são as páginas “especiais”: páginas pretas com letras de músicas icônicas do Blues, ou poemas e letras do próprio autor. Some tudo isso à capa, e até mesmo aos marcadores de página, tudo de extremo bom gosto. Temos um dos livros com um trabalho visual mais belos que já tive em mãos.

    Cantando um blues funciona como uma boa introdução a esse gênero musical importantíssimo não só para a música, mas para toda a cultura ocidental moderna. Porém, isso não quer dizer que está livre de problemas. Então vamos a eles.

    O primeiro problema de Cantando um blues, é uma certa necessidade especulativa do autor. Explico. Quando falando de Bob Dylan, o autor faz comparações entre ele e Raul Seixas, dizendo que o primeiro só é superado pelo segundo. Ele coloca então que Dylan só é mais cultuado que Raul por ser americano, enquanto Raul é um brasileiro, baiano, portanto relegado à condição de sucesso apenas no Brasil. Em fazer comparações eu não vejo problema nenhum, é algo natural. O problema que eu percebo são as bases que você usa para fazer essa comparação. Nesse caso, a base não foi musical ou alguma análise crítica do trabalho artístico, mas uma percepção particular, ou suposição, do próprio Isaac, ligado muito mais a uma questão de fé, ou crença, ou até mesmo devoção pelo próprio amigo (Raul Seixas), do que a uma questão racional lógica.

    Outro problema, infelizmente também ligado ao próprio Raul Seixas: por mais que o autor defenda que este era um fã do Blues, e sua música tenha um quê desse ritmo, sabemos também que esse genero têm influência em praticamente toda a música moderna, o que não faz com que toda música moderna seja Blues. Portanto, evocar em demasia um artista cuja obra definitivamente não se caracteriza pelo ritmo do Blues, agravando-se ainda o público alvo, desejando uma introdução ao que é esse ritmo, me parece uma tentativa de imputar algo que não condiz com a verdade.

    Não me entendam mal, gosto muito de Raul Seixas, acho sua obra inestimável para a música nacional. Porém, não o considero um expoente do Blues, pelo simples motivo de que ele não o é. Também não acredito que o autor o faça de má fé. O que penso apenas é que ele deixa extravasar sua amizade com Raul Seixas para suas palavras, para o papel, prejudicando assim a própria qualidade do trabalho – que seria mais completo, e mais condizente com a realidade, incluindo outros nomes do Blues nacional, como o já previamente citado Celso Blues Boy (que começou sua carreira com o próprio Raul Seixas), ou Blues Etílicos, entre outros, estes sim verdadeiros expoentes do Blues brasileiro.

    Um último problema que vejo em Cantando um Blues é o texto referente J. J. Jackson. O texto destoa, e muito, do restante do livro. O estilo passional e vibrante do autor dá lugar a um texto frio, distante, com aspectos publicitários até. Ao final vejo uma nota dizendo que realmente a autoria do trecho é de Esmeralda Nascimento e não de Isaac Soares de Souza. Fui à internet saber um pouco do tal J. J. Jackson, que, de acordo com o texto, seria um dos maiores estouros musicais do Brasil. Eu já tinha ouvido falar dele por sua regravação de Stand By Me, mas nada além de ouvir falar. E qual não foi a minha surpresa ao ver que o texto era uma reprodução idêntica da página do músico. Segue o link: http://www.jjjackson.com.br/historia.html. Eu não entendi os possíveis motivos de uma inclusão como essa. O fato de ser escrita por um terceiro não é o problema, o problema é que sai completamente do tom do autor e do livro, causa estranheza imediata, tanto que me motivou a buscar e encontrar a fonte original do texto. Ou teria o site do músico transcrito integralmente o trecho do livro? Não sei, mas é algo que gostaria de esclarecer.

    Exceptuando esse problema com J. J. Jackson explicado no último parágrafo, eu diria que, apesar de alguns deslizes aqui e ali, ainda assim é uma leitura introdutória bem interessante para aqueles que gostam ou querem conhecer um pouco sobre esse ritmo de doze compassos marcantes e envolventes que é o Blues. Gênero esse que, segundo Clint Eastwood, juntamente com o Jazz, é o único estilo musical verdadeiramente americano. Cantando um blues conta ainda com um bônus primoroso que é o trabalho gráfico impecável. Somando ainda a escassez de obras sobre o tema na nossa língua, com certeza é um livro a se indicar.

    Atualização: Minhas ressalvas anteriores sobre a indicação do livro, que se davam à inclusão de um texto do músico J.J. Jackson, em tom oposto  ao restante da obra foram esclarecidas no segundo comentário da postagem, pelo próprio autor do livro. Peço então que ao final da leitura, seja lido também o comentário do próprio Isaac Soares de Souza, em que ele reconhece meu apontamento. Com isso, retiro minha ressalva anterior em que questionava a indicação do livro, e agradeço a transparência do próprio autor e editora, que se dispuseram a esclarecer o assunto.

  • Crítica | Sobre Meninos e Lobos

    Crítica | Sobre Meninos e Lobos

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    O cinema de Clint Eastwood sempre se aproximou da Tragédia: seus personagens parecem operar em um universo cruel e aparentemente sem sentido, onde ainda assim alguns desfechos se mostram inescapáveis. E talvez em nenhum de seus filmes isso seja tão claro quanto em Sobre Meninos e Lobos.

    Jimmy, Dave e Sean são amigos de infância que acabaram se afastando, mas convivem com a lembrança de quando Dave foi levado por um carro e passou três dias desaparecido, durante os quais foi repetidamente estuprado. A lembrança é carregada como trauma por Dave e como culpa pelos outros dois.

    A escolha de Dave é aleatória, qualquer um dos outros dois meninos poderiam ter sido levados, mas não foram. Ao mesmo tempo é possível questionar se Jimmy teria entrado no carro ou saído correndo, ou se os homens escolheriam um menino capaz de sair correndo. A linha fina, e por vezes invisível, entre aquilo que é possível escolher e aquilo para o qual somos inevitavelmente conduzidos parece ser o principal tema de Eastwood aqui, mais do que nunca o diretor se pergunta o que nos faz o que somos e porque.

    Os três personagens se reencontram quando a filha de Jimmy é assassinada e Sean se torna o detetive responsável pela investigação. Desde o início o espectador é levado a crer que Dave é o responsável pelo crime e Eastwood manipula com maestria o que vemos ou não, os ângulos de câmera e recortes de montagem que incriminam Dave cada vez mais. No fundo, ele está condenado antes de qualquer investigação, o espectador já o julgou quando a câmera passa dos seus olhos para a menina dançando sensualmente na mesa.

    Assim, Eastwood começa construindo uma história de vingança, um mundo razoavelmente ordenado em que o dano gerado por uma violência se desdobra em mais violência. É cruel, mas faz sentido. Aos poucos o cineasta subverte seu próprio filme e no fim o assassinato de Katie nada mais é que um azar cujas condições foram criadas por uma série de escolhas e circunstâncias aparentemente desconexas.

    Eastwood também desconstrói seus personagens conforme se aproxima deles: vemos a fraqueza em Jimmy e o trauma de Dave ganha contornos mais nítidos e a repulsa inicial causada por ele vai se transformando em compaixão e finalmente dor quando fica claro o quão inescapável é seu final.

    Em Sobre Meninos e Lobos, mais uma vez Clint Eastwood assume um filme de gênero, nesse caso o policial, e distorce seus elementos: não há lógica ou ordem moral aqui, como na maior parte dos filmes policiais, apenas personagens quebrados que agem de acordo com suas próprias limitações e tentam fazer escolhas, mas é questionável até que ponto eles realmente tem a liberdade de fazer essas escolhas.

    Ao mesmo tempo o diretor constrói seu filme com planos mais bonitos: é notável quando a câmera se afasta e vemos Sean Penn desesperado, cercado de policiais, impotente e angustiado. Em diversos momentos a câmera assume um ângulo a partir de cima, diminuindo seus personagens ou criando sombras estranhas e distorcidas, quase expressionistas. Sobre Meninos e Lobos é uma obra sobre ilusões e manipulação, e Eastwood imprime isso impecavelmente na forma do filme.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.

  • Resenha | Wolverine Noir

    Resenha | Wolverine Noir

    Chegou às bancas mais um lançamento do selo Marvel Noir. Depois de Homem-Aranha, X-Men e Homem de Ferro, a editora Panini traz agora ao Brasil a reinterpretação sombria do mutante mais famoso e casca-grossa dos quadrinhos. Wolverine Noir tem roteiros de Stuart Moore e desenhos de C.P. Smith e, ainda que tenha seus problemas, traz uma aventura que parece ter se encaixado melhor do que seus antecessores na proposta da linha.

    Enquanto os autores das citadas histórias concentraram-se em transpor os elementos de cada herói para a estética noir (entre acertos e equívocos), aqui temos uma trama verdadeiramente desse gênero, na qual a presença de Wolverine e de seus coadjuvantes parece mera coincidência. Para isso, o roteiro parte dos clichês mais monumentais do estilo: Jim Logan é um detetive particular, sentado na escuridão de seu escritório tendo pensamentos melancólicos sobre esta droga de mundo e querendo matar seu parceiro, o grandalhão simplório chamado Cão. Quase dá pra ouvir sua narração com uma trilha de jazz ao fundo e sentir o cheiro da fumaça. Eis então que surge a femme fatale Mariko Yashida, que vai arrastar Logan para um caso em que as coisas definitivamente não são o que parecem.

    A partir daí, a história se divide entre duas linhas temporais. Enquanto o presente incorpora diversos elementos das passagens de Wolverine no Japão, temos flashbacks de alguns anos antes que são uma adaptação fiel e bastante interessante da minissérie Origem. James é mostrado como um tímido filho de um pastor cujo tema preferido para sermões é o conflito do homem com seus instintos bestiais. Quem conhece um mínimo de Wolverine já imagina o quanto isso afeta o caráter do jovem James, consumido por uma sede de violência que não compreende, além de desejos pouco puros pela bela ruiva Rose. Ele aprende a controlar seus impulsos com as lições do jardineiro Smitty, que o instrui na técnica e filosofia dos samurais. Mas a presença de Cão desencadeia uma tragédia.

    A opção por contar duas histórias em uma tem um resultado ambíguo. O passado acaba engolindo o presente, torna-se mais interessante. Embora isso possibilite um bom desenvolvimento do personagem Logan e do conflito interno que o move (ou o impede de se mover na vida), a trama no presente se torna rápida e apressada demais no espaço que lhe é dedicado. Não há uma investigação aprofundada, um grande trabalho detetivesco. As coisas simplesmente acontecem e pronto, com direito inclusive a sub-aproveitamento do vilão Creed (pra quem não sabe, o Dentes de Sabre, arqui-inimigo do herói) e do inusitado plot de ninjas agindo na New York dos anos 1930.

    Pode-se dizer que temos um conto noir no lugar de um romance, algo não necessariamente ruim, mas que poderia ter rendido mais. Vale ressaltar, porém, que a fidelidade à proposta é mantida com louvor: o tom é pessimista e profundamente amargo do início ao fim. Sobre a arte, houve uma certa inconstância. Alguns momentos são brilhantes dentro dos já citados clichês, ao trabalhar muito bem luz e sombra (ou sombra e sombra), focando apenas nas silhuetas. Mas em outros o artista apresenta um traço “sujo” burocrático, chegado a ser feio e com anatomias questionáveis. Reflexo talvez da variação do próprio roteiro. No saldo final, Wolverine Noir não é uma obra magnífica, mas tem qualidades que a fazem merecer ser lida.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Resenha | Habibi

    Resenha | Habibi

    habibi - craig thompson

    Habibi é o trabalho mais audacioso de Craig Thompson desde que ele começou a nos deleitar com Graphic Novels que são verdadeiras obras de arte.

    Depois de seu último trabalho em 2004, Craig encarou uma jornada de 7 anos de pesquisas e experiências no mundo árabe para conceber Habibi e nos transbordar com muito conteúdo histórico, mítico, religioso, filosófico e sobretudo humano.

    Acompanhamos aqui a história de dois escravos, Dodola e Zam, unidos por circunstâncias nada aprazíveis para ambos. Estes são os pilares da nossa viagem e servem de base para Craig explorar os variados temas aqui abordados. A história se passa nos tempos atuais, em uma cidade mítica de origem arábica, mas isso pouco importa, pois grande parte da obra tem um tom muito mais mágico e antigo, remetendo a sabedoria oriental e as práticas antigas que muitas vezes fará você se perguntar realmente em que época a história se encontra.

    Uma das marcas em suas obras são as belíssimas metáforas casando perfeitamente o seu texto com os desenhos. E aqui a influência da cultura arábica se mescla sem igual, pois os intrincados mosaicos, caligrafia oriental e os belíssimos textos fluem em uma cadência de páginas e mais páginas muitas vezes deixando o leitor em transe com tamanha sensibilidade.

    Sempre com uma relação bem comedida entre o racional e o intangível, como por exemplo, as diversas conexões entre a milenar matemática oriental e a sua simbologia dentro da cultura islâmica.

      Outra particularidade interessantíssima de Habibi, a influência islâmica. Encontramos aqui muito do Corão e da “obra das histórias”, As Mil e uma Noites. Um dos grandes prazeres ao se ler Habibi é justamente esse, histórias dentro de histórias. Isso abre um leque de opções ao autor e o faz passear pelos variados temas aqui tratados, além de não seguir uma linha narrativa linear com os protagonistas, algo que já havíamos experienciado em Retalhos. Em tempos onde o extremismo sobre os árabes se destaca e apenas a visão reduzida e maniqueísta tem lugar, Craig volta às origens dos principais mitos dos três grandes livros (Torá, Bíblia e Corão) para mostrar a beleza poética ou narrativa de muitas de suas histórias.

    A sexualidade está bastante presente na obra e se alguns críticos torceram o nariz para o fato das metáforas muitas vezes associando o desejo sexual a algo pecaminoso, vale notar que em outros momentos encontramos também a visão mais hedonista, simples e bela de como lidamos com a nossa sexualidade. Para quem leu Retalhos (obra autobiográfica), sabemos o quão complicado foi a questão do erotismo acoplados a sentimentos de culpa durante o crescimento de Craig.

     O mais impressionante quando se lê Habibi é o modo como a consumimos. Os desenhos são muitas vezes absorvidos além de uma compreensão que possa ser colocada em palavras, ou mesmo dentro de um “contexto consciente”. Sua arte é inebriante, suas formas, linhas e “cores” parecem forjadas para serem impressas em nossas mentes e ao mesmo tempo tocar o nosso cerne. As imagens formam uma linguagem ininteligível, mas ao mesmo tempo completamente compreensível de alguma forma quase que metafísica. Os diversos momentos nos quais ele flerta com a caligrafia arábica e seu intrincado desenho, associando as palavras ao âmago dos sentimentos primordiais, à natureza e a nossa relação com ela. Sim, há espaço na obra para também se discutir como a nossa insaciável luxúria se alimenta do que o planeta pode nos entregar.

    No fim, fica claro que as 672 páginas parecem pouco para a magnitude das histórias aqui contadas, para os sentimentos aqui sentidos e para os pensamentos aqui refletidos. Você com certeza revisitará as histórias de Dodola e Zam e notará os detalhes despercebidos em uma primeira leitura, ou mudar de opinião ao refletir mais sobre os muitos temas de Habibi. Afinal somos também mutáveis e parte da água que flui como as letras de uma bela caligrafia, das ondulações que acompanham o inspirar e expirar rítmico, do sexo e do amor que queima, e do poder das histórias que nos eleva da terra.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Review | Gosick

    Review | Gosick

    gosick

    Gosick me foi vendido como um anime totalmente diferente dos shonen comuns. Lembro como se fosse hoje, as letras do título do post de algum blogzinho sobre animes diziam, em CAPS: “GOSICK: DEATH NOTE DE CALCINHA!!”. Na época, não me lembro de ter lido todo o post, mas como gostei muito de Death Note, esse título marcou minha memória.

    Mas o que eu gosto de Death Note tanto assim que faria ver novamente em Gosick? Essa pergunta é muito fácil: Gosto da relação entre o criminoso e seu perseguidor, gosto de nunca saber quando os perigos enfrentados pelo personagem central fazem ou não parte do plano, gosto de como ele aposta em sua inteligência e arrisca sem medo de perder tudo que conquistou. Isso me surpreendeu em Death Note, e era justamente isso que eu esperava ver em Gosick. Não esperava violência e nem sangue, lutas violentas ou perseguições frenéticas como em Death Note, afinal o anime não era direcionado a mim, não era sua obrigação me agradar neste ponto. Impressionante como a linha título de um blog que eu nem me lembro mais o endereço me arrastou para dentro de Gosick, vendeu-me o anime tão bem que o começo arrastado do anime não me fez desistir. Vale dizer, ainda, que sou um fã de animação japonesa e assisto tudo até o final, independente de ser bom ou não. No caso de Gosick, fui adiante mais interessado do que decepcionado com o ritmo do desenho, esperando o momento “puta que pariu, velho, por essa eu não esperava!!”. Acho que estou me adiantando sobre as impressões do desenho, então vamos fazer uma pequena pausa para que eu possa contar o que anime tem a oferecer.

    A trama de Gosick foca seus acontecimentos em torno de um jovem japonês chamado Kujou Kazuya. Kujou é o terceiro filho de um oficial do exército japonês e o anime começa com sua chegada ao reino fictício de Saubure (um pequeno país no centro da Europa) para realizar intercâmbio na famosa Academia Santa Margarida. A academia reúne muito alunos de diferentes lugares e possui uma forte ligação com histórias folclóricas (que fazem muitas referências ao folclore japonês). Uma dessas histórias conta que o visitante que chega à academia durante a primavera traz, consigo, a morte e a destruição. Por ter chegado à Saubure justamente no início da primavera, Kujou passa a ser conhecido como “Shinigami Negro” e é evitado por quase todos os alunos da escola. Em uma de suas caminhadas solitárias pelo terreno da academia, Kujou encontra uma jovem garota loira de cabelos muito compridos. Esta jovem garotinha chama-se Victorique e, não se sabe por que, é evitadas por todas as pessoas da cidade. Para boa parte dos alunos e funcionários da escola, Victorique sequer existia, sendo tomadas por todos como a “fada dourada da biblioteca” (mesmo nome de um personagem em um dos muitos contos que fazem parte do cotidiano dos habitantes da Saubure). Durante boa parte de sua vida, Victorique ficou restrita ao ambiente da biblioteca da academia, por este motivo possui um vasto conhecimento e consegue as respostas para praticamente qualquer desafio que lhe propõem. Seu humor é sempre ácido e ela não se relaciona muito bem com outros humanos, evitando-os a todo o custo e afastando praticamente todos o que tentam se aproximar dela. Por ser muito inteligente e adorar desafios, A Fada Dourada trabalha prestando consultoria ao detetive de polícia Grevil de Blois. Com a chegada de Kujou, estranhos assassinatos e outros crimes começam a acontecer nos arredores de Santa Margarida e o detetive precisa constantemente driblar o mau humor da loirinha para fazê-la ajudar nos casos, enquanto os três (Kujou, Grevil e Victorique) procuram estabelecer uma relação entre os crimes e desvendar o mistério por trás dos acontecimentos misteriosos que arrastam o país para uma iminente guerra.

    A animação da série de mangás criada por Kazuki Sakuraba (Gosick foi o segundo trabalho da autora e o único que fez mais sucesso) ficou a cargo de Nanba Hitoshi (diretor de um OVA de Hajime no Ippo e algumas outras obras bem menores) e do estúdio Bones (Full Metal Alchemist, Soul Eater). O traço aproveitado do original ficou excelente, a coloração é muito bem feita. Victorique tem traços extremamente infantis e, por vezes, passa-se até mesmo por uma boneca, e neste ponto o estúdio acertou bastante no desenho. A animação é bem feita, visto que o roteiro não apresentava grandes dificuldades para ser adaptado. Ainda sobre o roteiro, devo dizer que não me agradou tanto quanto eu esperava, mas tem os seus momentos inteligentes. A comparação com Death Note é injusta e não deveria ter sido feita. Gosick possui um andamento infinitamente mais lento (com exceção de um ou outro episódio que tem uma cena acelerada) e as sacadas de Victorique saem muito mais de uma cartola mágica do que dedução lógica. Durante todo o anime, a loirinha tenta desmistificar o pensamento dos envolvidos nos casos, que tendem sempre a dizer que o que aconteceu foi alguma maldição ou magia. De fato, a única magia do anime está na linha de dedução impossível que Victorique traça em todos os casos. Durante todo o anime, ainda, você observa a Fada e o Shinigami enfrentando casos aleatórios, mas continua assistindo com a esperança de que, ao final dos 24 episódios, todos os crimes vão se cruzar em uma trama maior de algum supervilão, e isso não acontece como você espera. De fato, a única dúvida que anime deixa durante alguns episódios é se Victorique existe no mundo real ou é um produto da mente de Kujou. Neste e em alguns outros pequenos pontos da trama, Gosick consegue exalar um ar “Sherlockeano” e isto é o segundo melhor ponto a se destacar.

    Gosick, ao contrário de Death Note, não é sobre os crimes ou sobre a caça aos criminosos. Ao final do desenho, fica muito claro que a animação fala sobre a interação de dois personagens. O temperamento forte e ácido que Victorique ostenta durante os primeiro episódios do anime vai sendo quebrado pela insistência de Kujou em protegê-la e ajudar nos casos. Como era de se esperar em um anime para menininhas, Gosick fala sobre o casal principal, e sua transformação de dois desconhecidos que convivem apenas para se alfinetarem em um casal que não admite sua relação mas que está profundamente ligado. Provavelmente, se tivessem feito a comparação de Victorique com o doutor Gregory House ao invés de confrontá-la com o personagem L de Death Note, teriam conseguido um resultado mais correto: Victorique é genial e tem conhecimento de sua genialidade. Durante inúmeras situações no desenho, assim como o personagem vivido por Hugh Laurie, a loira se irrita com a ignorância daqueles que estão ao seu redor. Seus sentimentos por Kujou e por Grevil ficam sempre atrás de uma parede espessa feita de ironia, sarcasmo e irritação, tal qual o médico que dá nome à série.

    Se, na época, o título daquele post naquele blog fosse “Gosick: as Aventuras da Dra. House!” eu não criaria expectativas de ver mais um Death Note. Criar expectativas quando se vai começar a ver alguma série geralmente traz problemas para a avaliação ao final mas, neste caso, a comparação com a série da Fox apenas o prepara para o que virá na tela: Um anime que trabalha ao redor um tema (crimes e puzzles em Gosick, doenças em House M.D.) mas que se propõe a mostrar a relação entre personagens e como uma pessoa pode mudar seu comportamento, dependendo de como for tratada pelos que a cercam. Um ótimo anime sobre pessoas, um mediano drama policial.

    gosick poster

  • Crítica | Assim Caminha a Humanidade

    Crítica | Assim Caminha a Humanidade

    giant

    Em 1956, chegava aos cinemas Assim Caminha a Humanidade, uma obra épica que acompanhava a vida de personagens no Texas ao longo de gerações, passando por conflitos sociais, políticos e étnicos, além do drama pessoal carregado por esses personagens, tudo isso somado a deslumbrantes panorâmicas do oeste dos EUA.

    George Stevens, diretor de clássicos como Um Lugar ao Sol, Os Brutos Também Amam e tantos outros, foi o responsável pela adaptação do romance de Edna Ferber, Giant, de 1952. O best-seller de Ferber foi alvo da indignação dos texanos, pela forma como a autora os retratava e pela abordagem que decidiu dar à nova classe de texanos que fazia fortuna de uma hora para a outra, graças ao descobrimento de poços de petróleo em suas terras.

    Adaptar o romance de Ferber não seria uma tarefa fácil para Stevens. Por isso, o diretor contou com o apoio de Fred Guiol e Ivan Moffat na adaptação do roteiro de Assim Caminha a Humanidade, que, assim como o livro, sofreu duras críticas durante a pré-produção do longa-metragem.

    Na trama, o filme percorre a história de três gerações. Ao longo dos anos, conhecemos seus dilemas, conflitos e comoções. A história tem início em 1923, quando conhecemos Leslie (Elizabeth Taylor) ainda sendo apresentada a Bick (Rock Hudson), um texano dono de muitas posses. Ambos se apaixonam, se casam e partem para o Texas. Chegando lá, Leslie tem de se mostrar uma mulher forte para a irmã durona de Bick, Luz (Mercedes McCambridge), enquanto enfrenta a postura ríspida e tradicional de seu marido. No meio disso tudo, ainda conhecemos o empregado de Bick, Jett Rink (James Dean), que será fundamental no decorrer da trama, deixando de ser um mero coadjuvante para ganhar espaço como um protagonista.

    Ao longo de mais de três horas de filme, conhecemos o íntimo desses personagens e como eles são moldados ao longo dos anos. A prepotência da juventude se torna a sabedoria dos mais velhos. O que inicialmente tratava apenas de conflitos familiares, disputas por terras e petróleo, ao longo das décadas dá lugar a temas mais importantes como a intolerância racial. Um dos grandes méritos do roteiro de Assim Caminha a Humanidade é o fato de podermos acompanhar esses personagens e suas constantes mudanças. As relações pessoais se tornam reais, seus personagens criam vida e, com eles, seus problemas.

    Nos dias de hoje o filme pode soar um tanto manipulador e maniqueísta em suas escolhas, mas, em plena década de 1950, certamente tocou fundo ao abordar temas como sexismo, exclusão social e, como já citado anteriormente, intolerância social. Algumas dessas críticas surgem com passagens sutis, outra abusam no melodrama, o que de forma alguma invalida sua mensagem.

    Elizabeth Taylor faz um papel belíssimo interpretando uma jovem doce, e aparentemente frágil, que abandona sua família para se casar e morar longe de casa. Liz mostra sua personalidade forte e seu feminismo em um ambiente tipicamente masculino. Rock Hudson entrega o papel do fazendeiro texano que possui qualidade dúbias, mas que no decorrer da trama se mostra capaz de mudanças, tudo isso de maneira bastante convincente.

    O destaque é sem dúvida James Dean, com apenas 24 anos de idade e em seu terceiro (e último) filme. Jett Rink, interpretado por Dean, cresce em tela cada vez que surge e, assim como Bick, também passa por mudanças ao longo da trama e se deixa levar por sentimentos negativos (mera semelhança com o protagonista de Sangue Negro?). Difícil não ser cativado pelas cenas em que James Dean está presente.

    Stevens faz um trabalho de direção que o consagra como diretor de grandes épicos. Apesar da direção clássica, sua câmera discreta captura com muita intensidade as mudanças do Texas ao longo do tempo, tudo isso somado à excelente direção de fotografia de William Melor. Stevens tinha um filme com mais de 3 horas de duração e quem em momento algum se mostra como algo enfadonho, longe disso: o filme é puro sentimento.

    Assim Caminha a Humanidade é um grande clássico, obrigatório para todos os cinéfilos, e que ainda serve como aula de como contar uma história longa sem perder seu foco narrativo, tudo isso ainda discutindo temas relevantes até os dias de hoje.

    PS: Não poderia deixar de mencionar uma das minhas cenas preferidas do James Dean. A imagem fala por si só:

  • Crítica | Vidas Amargas

    Crítica | Vidas Amargas

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    O distanciamento criado pela temporalidade de um filme antigo produz uma apreciação diferenciada. O costume ao estilo de narrativa, espaço, composição de personagens contemporâneos, indiretamente potencializa o efeito de estranhamento. Não estranhe se, ao assistir um filme antigo, você permanecer mais reflexivo do que comumente.

    As tramas antigas não eram tão explícitas ou não necessitavam de razões extensas sobre motivações. Enredos eram contados de maneira inteligente, em que o público inferia situações pela funcionalidade da fotografia, do ângulo escolhido para filmagem.

    Longe de afirmar um detrimento da indústria cinematográfica – a reflexão caberia em outro espaço – é necessário conceituar que os tempos são diferentes. Com eles, a maneira de apresentar uma história para o público também se tornou mais rápida, eficiente e, assim, mais pasteurizada.

    Vidas Amargas é uma daquelas produções erigidas em uma tríade inesquecível. Interpretação de James Dean – primeira com destaque e também a primeira indicação póstuma ao Oscar. A direção precisa e sempre sensacional de Elia Kazan. E a obra de John Steinbeck, na qual se baseia.

    A referência bíblica da produção se perde no título brasileiro, mas está presente no original. Ao leste do Éden foi o local em que viveu Caim, após discussão com o criador. Não à toa a referência é explícita. Mesmo inserido no contexto americano, em época de guerra e recuo econômico, o embate central da trama se desenvolve entre a família Trask, formada por um pai e seus dois filhos.

    James Dean interpreta Cal Trask, elemento rebelde da família. Ele é o errante que deseja a demonstração do amor paterno quando este tem olhos apenas para Aaron, o cidadão modelo, trabalhador e noivo. É a amargura do não reconhecimento que permeará a construção de toda a trama.

    Ao contrário do livro de Steinbeck, que perpassa gerações de duas famílias da guerra civil à Primeira Guerra Mundial, o filme de Kazan centra-se apenas em um dos embates: a bíblica briga entre pais e filhos. A exclusão de boa parte da obra funciona para gerar maior dramaticidade e demonstra bem uma época em que uma adaptação não necessariamente significava contar toda a história original.

    Kazan tem domínio do elemento dramático. É preciso nos pequenos detalhes que fazem do elemento visual um primor espantoso. Evidencia sombras em cenas dúbias, retrata com ângulos obtusos o equilíbrio instável da relação paterna e utiliza o scope para cenas em amplitude. Sequências belíssimas da cidade do Vale de Salinas, onde se ambienta a história. Nada é estabelecido por acaso, mas gerado em uma teia de inferências que enriquecem a experiência do espectador.

    O talento do jovem novato James Dean é impressionante. Tem nas mãos a personagem mais densa da história e foi capaz de realizá-la de maneira crível com a dramaticidade fatalista da trama. Mesmo que se tente fugir de comparações, é notável que a maneira de se interpretar um papel situava-se em outro patamar. Mais explícita, centrada em outras nuances se comparada à maneira contemporânea, com uma atmosfera que ampliava a potência do drama. Suas três atuações perpetuavam começo, meio e fim de um rebelde que, não por acaso, tornou-se uma lenda e um sinônimo para o ator que morre em seu auge, muitas vezes sem conhecê-lo.

    Ecoando silêncio no espectador, Vidas Amargas é uma experiência aterradora. Uma necessária jornada devastadora.

  • Crítica | Juventude Transviada

    Crítica | Juventude Transviada

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    Nicholas Ray é um nome tão importante no cinema moderno que Jean-Luc Godard disse uma vez que “o cinema é Nicholas Ray” e Wim Wenders acompanhou seus últimos dias e transformou-os no excelente Um Filme Para Nick. Não é a toa que seu filme mais famoso revolucionou o cinema americano e transformou James Dean em um ícone.

    Juventude Transviada começa com Dean deitado no chão, bêbado, brincando com um macaquinho de dar corda. Ele em seguida deita o boneco, o cobre com um pedaço de papel, como se o pusesse para dormir, e deita ao seu lado. A cena é estranha, incômoda e diferente de tudo que o cinema americano tinha feito até então. Essa sequência inicial, uma espécie de prólogo antes do início real do filme, também marca o que será o personagem de Dean: um misto de fragilidade, insolência e estranheza.

    A trama apresenta uma série de adolescentes de subúrbio, todos eles com casa, família e uma situação confortável. No entanto, há uma sensação de desconforto que passa pelos personagens do filme e mostra de forma sutil a parcela de trágico e dolorido que existe na juventude média americana.

    Esses adolescentes buscam um lugar, uma espécie de entendimento e conforto que não encontram em casa: Jim se divide entre uma mãe histérica e um pai extremamente passivo; Judy entre uma mãe apática e um pai que a repele porque já é “muito crescida”; e os pais de Plato, milionários, estão sempre viajando. Ray coloca seus personagens em um lugar delicado: já são grandes o suficiente para terem consciência das fraquezas de seus pais (e no caso de Judy para despertar um tipo de desejo que deve ser afastado), mas incapazes ainda de romper com a estrutura familiar.

    Nicholas Ray é o primeiro cineasta a olhar de perto a adolescência e, mais que isso, a leva-la a sério suficiente para lhe dar ares de tragédia. Desde o início, quando ouvimos na delegacia que Plato atirou em cachorrinhos, sabemos que há algo de incontrolável e violento nele. Buzz, o namorado “popular” de Judy, morre tentando provar que é mais corajoso que Jim: provar algum valor, ser aceito, é algo tão importante que vidas são postas em risco. Ao mesmo tempo a morte de Buzz serve para acentuar o rompimento dos adolescentes com seus pais: eles habitam em um mundo perigoso, onde tragédias ocorrem, mas seus pais mal sabem, eles estão definitivamente sozinhos.

    Juventude Transviada toma o adolescente como símbolo daquele que não encontra lugar na sociedade, que não está em nenhuma das caixas delimitadas e explora com sensibilidade a tensão entre querer permanecer à margem e querer se encontrar. Esse olhar para personagens desajustados ou incompreendidos é parte do que torna o filme tão inovador e um elemento que acompanha todo o cinema independente americano e o cinema francês da década de 60.

    Com esse filme Nicholas Ray criou um ícone e mudou o cinema, ao mesmo tempo que fez um clássico que, embora com alguns elementos datados, ainda diz respeito a uma certa experiência universal.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.

  • VortCast 18 | James Dean

    VortCast 18 | James Dean

    Flávio Vieira (@flaviopvieira), Rafael Moreira (@_rmc), Mario Abbade (@fanaticc), Carlos Brito, Isa Sinay (@isasinay) e Douglas Fricke (@dwfricke), o Exumador do Podtrash, comentam sobre um dos grandes ícones do cinema e de gerações, James Dean.

    Duração: 113 mins.
    Edição: Flávio Vieira e Rafael Moreira
    Trilha Sonora: Flávio Vieira

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    Comentados na edição

    Comercial da Pepsi
    Hill Number One – Primeira aparição
    The Dark, Dark Hours – James Dean contracena com Ronald Reagan
    Ten Thousand Horses Singing – Trecho comentado da cena do elevador
    Public Safety Announcement – James Dean
    Mostra James Dean – Eternamente Jovem

    Filmografia comentada

    Crítica Vidas Amargas (Compre aqui)
    Crítica Juventude Transviada (Compre aqui)
    Crítica Assim Caminha a Humanidade (Compre aqui)

    Materiais sobre James Dean:

    James Dean (Documentário)
    James Dean, o Mito Sobrevive
    Almost Salinas
    Sal
    Joshua Tree, 1951: A Portrait of James Dean
    James Dean: Race With Destiny
    James Dean – Forever Young (Documentário)
    The Untold Story of a Passion for Speed (Quadrinhos)
    James Dean – George Perry (Livro)
    Live Fast-Die Young: Remembering the Short Life of James Dean

  • Crítica | O Legado Bourne

    Crítica | O Legado Bourne

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    Era grande o desafio da Universal Pictures ao continuar sua lucrativa franquia Bourne, uma vez que tanto o diretor Paul Greengrass quanto o astro Matt Damon decidiram não retornar após o terceiro filme. Sobrou então para Tony Gilroy, presente desde o início na trilogia como roteirista e produtor, assumir também a direção e descascar o abacaxi. Felizmente, ele não optou por transformar de vez Jason Bourne em James Bond, trocando simplesmente o intérprete e contando uma história qualquer. Isso jamais funcionaria num série tão bem amarrada quanto esta. A solução foi partir para uma trama paralela e, entre a necessidade de conectar-se ao que veio antes e ao mesmo tempo desenvolver vida própria, pode-se dizer que O Legado Bourne tropeçou um pouco mas conseguiu esse complicado equilíbrio.

    A história começa em paralelo aos eventos de O Ultimato Bourne, quando a merda cai no ventilador e a imprensa começa a divulgar informações sobre Jason e o Projeto Treadstone. Uma equipe governamental chefiada pelo Coronel Eric Byer (Edward Norton) se encarrega do controle de danos, e o principal temor é quanto à exposição de outros projetos secretos destinados à criação de super-espiões. O mais ameaçado deles é o chamado Outcome, que, além das técnicas de reprogramação psicológica vistas nos filmes anteriores, envolve até mesmo alterações genéticas nos pacientes. Quando começa a queima de arquivo, um dos agentes, Aaron Cross (todo espião tem nome maneiro, isso é regra), e a Dra. Marta Shearing se unem na fuga pela sobrevivência.

    Seria inevitável comparar este filme com os anteriores, sendo eles tão bem conceituados pela crítica. Mas o quarto capítulo não faz feio diante dos demais, principalmente por apresentar uma história mais complexa, com mais cenários e desdobramentos políticos. Ponto positivo: dessa vez não ficamos limitados a ver perseguições e incessantes cenas da central de monitoramento. Os dois protagonistas são desenvolvidos antes de se encontrarem, e mesmo depois têm um objetivo mais claro do que puramente fugir e buscar informações. Por outro lado, essa preocupação comprometeu um pouco o ritmo do filme, que oscila entre o interessante o maçante. Também questionável é a decisão de eliminar de forma radical o Projeto Outcome: ficou a impressão de que uma abordagem mais cirúrgica eliminaria os riscos e permitiria manter o programa.

    Jeremy Renner segue tentando se firmar como astro de ação e, após várias participações como coadjuvante após Guerra ao Terror, finalmente tem um filme pra chamar de seu. Ainda não foi dessa vez que ele chegou lá – não tem o carisma de um Tom Cruise ou Jason Statham -, mas se mostrou competente e conseguiu segurar o rojão. Está bem à frente de Sam Worthington ou Taylor Kitsch, por exemplo (não que isso seja algum mérito, mas enfim). Edward Norton, se é que alguém tinha alguma dúvida, interpreta ele mesmo e o faz bem, mesmo com o espaço limitado. Rachel Weisz, já meio veterana mas ainda linda, até no automático é uma atriz fantástica, e ganha como bônus alguns momentos para brilhar. De resto, uma pena que Joan Allen e David Strathairn tenham aparições relâmpago; seria legal ver mais desses ótimos atores.

    Em linhas gerais, este poderia ter sido um filme à parte, já que Jason Bourne serve simplesmente como uma desculpa para tudo acontecer. Só que aí seria quase um plágio, pois o plot de projetos secretos de aperfeiçoamento de agentes e o clima de conspiração política justificam (ou quase) o “Bourne” no título. E, próximo ao final, temos as célebres marcas da franquia: parkour numa cidade exótica, perseguição no trânsito com a câmera fechada, e a música Extreme Ways, do Moby, chamando os créditos. Só faltou, e esta foi provavelmente a maior falha do filme, o épico combate mano-a-mano com um rival do mesmo nível, apesar da finalização desse inimigo ter sido muito inspirada. Com o final aberto, claramente deixando a intenção de prosseguir a franquia dentro da franquia, é triste que O Legado Bourne passe um tanto despercebido em meio aos vários lançamentos do verão norte-americano. Mas, como sonhar não custa nada, bem que Matt Damon podia mudar de ideia pra termos Jason Bourne ao lado de Aaron Cross num quinto filme.

    Texto de autoria de Jackson Good.