Tag: cinema italiano

  • Crítica | Cinema Paradiso

    Crítica | Cinema Paradiso

    Poesia e reverência à arte se confundem na execução que Giuseppe Tornatore propõe em Cinema Paradiso. Longa-metragem de 1988, conta a historia de Totó, vivido na infância por Salvatore Cascio e mais velho por Jacques Perrin, um rapaz que desde a infância humilde é fascinado pelo cinema e suas histórias.

    A gênese do filme dá conta de uma procura infrutífera do protagonista. Seus familiares querem avisá-lo do falecimento de alguém. É curioso como um filme que prima tanto pelo lúdico, começa de maneira tão esquemática. A estrutura do roteiro não é inventivo, não se demora a mostrar que ele sempre foi um rapaz incompreendido e ávido pelo novo. Ainda no início, conhecemos um pouco de sua relação com o rabugento projetor Alfredo (Philippe Noiret), mas além desta, também se estabelece o modo conservador como se enxergava a arte e a dramaticidade na época, onde a censura de demonstrações tímidas de afeto era empregada pelos religiosos.

    Para os puristas, que encaram o cinema como um templo sagrado, há alguns choques de realidade durante a exibição. Naquela Itália, ainda sem o advento da televisão as pessoas iam aos cinemas e faziam toda sorte de coisas que a parcela mais chata da cinefilia acharia errado e discordante com a postura correta dentro da sala escura. Há gente bebendo, mães amamentando, manifestações sexuais e libidinosas. Tornatore traz um quadro real e muito pessoal – uma carta de amor a arte –, mas também uma mostra de como eram aqueles tempos, sem receio de explorar as contradições entre o conservadorismo e a libertinagem.

    A obra foi muitíssimo premiada, participando do Festival de Cannes de 1989 e ganhando o prêmio do Júri (concorreu também a Palma de Ouro), sendo vencedor do Globo de Ouro e Oscar no ano de 1990 por conta do lançamento fora da Itália, além de inúmeros outras lembranças a premiações em festivais internacionais prestigiosos como Locarno, o Bafta, César, Academia Japonesa de Cinema etc. É natural que seja assim, seu elenco é muito dedicado, a direção é correta e o roteiro louva grandes nomes do cinema como Michelangelo Antonioni e Federico Fellini.

    A relação entre Alfredo e Totó é uma boa demonstração de como são os elos familiares, cheios de altos e baixos, com momentos de ternura e outros de ofensas mútuas, dissabores e afetos, sonhos e frustrações. Pai e filho tem na maioria das vezes uma rotina que varia entre os dois polos de amor e ódio e o que se vê em torno do Cinema Paradiso é isso, um homem velho e uma criança que guardam em comum o amor pelo cinema, um verdadeiro substituto para a solidão de ambos, seja pela condição de órfão do menino ou da ausência de companhia do velho.

    Há de destacar que existe uma versão maior, que explica alguns dos relacionamentos do filme, com aproximadamente meia hora de cenas extras, repleta de explicações um tanto desnecessárias e que comprometem boa parte dos momentos mais inspirados da trama. O corte de cinema é indiscutivelmente mais bem resolvido.

    O filme não tem um final tão potente quanto seus atos iniciais, mas a construção dessa mitologia compensa até os pequenos erros e problemas de ritmo do filme. Cinema Paradiso reflete bem sobre a tradição de consumo da arte e sobre a identidade de um povo junto as suas manifestações sentimentais e criativas, usando como meio de discussão a arte da qual faz parte, com o cinema como centro do palco das ações humanas e do jogo emocional proposto.

  • Crítica | Um Homem, Um Cavalo, Uma Pistola

    Crítica | Um Homem, Um Cavalo, Uma Pistola

    Os filmes do velho oeste americanos foram tão populares que se transformaram em um gênero temático próprio, as histórias clássicas mostravam mocinhos de boa índole prendendo malfeitores e bandidos nos cenários áridos de um país que demorava a se civilizar. Isso evidentemente não representava bem a sujeira e a moral baixa típica desses cenários, coube aos cineastas italianos, décadas depois, trazer uma releitura sobre o subgênero, que ficou conhecida como Western Spaghetti. Um Homem, Um Cavalo, Uma Pistola é uma desses exemplares.

    Um cavaleiro de vestes pretas corta a areia, interpretado por  Thony Anthony, natural de West Virginia, diferente de outros tantos heróis desses filmes, como Franco Nero ou Giuliano Gemma naturais da Itália. O realizador Luigi Vanzi (que também usava o pseudônimo Vance Lewis a fim de se vender melhor para o mercado americano) utiliza demais de super closes e de mudanças de ângulo muito rápidas, uma marca registrada do estilo, além de mostrar uma violência tão intensa, que beira a caricatura. O personagem de Anthony, chamado de Estranho pelos que o rodeiam, tem como primeira inteiração encontrar um cadáver no bebedouro.

    O modo natural com que o personagem encara a situação mostra o quanto ele é preparado mentalmente, mesmo cercado por homens armados ele age com humor e um sorriso no rosto enquanto planeja atacar seus recém-apresentados novos inimigos, tal qual uma serpente se preparando para dar um bote. O mocinho aqui é sacana, dissimulado e esperto, é fruto de seu meio, do tipo de linguagem cinematográfico comum ao tipo de western executado na Itália.

    A música assinada por Silvio Cipriani ajuda a aumentar a atmosfera do imprevisível se tornando tangível. Cada  feito do Estranho é pontuado pela música tema ou por outras onde o agudo predomina. Fora alguns incômodos evidentes, como o cabelo de Anthony com um tom loiro parafinado como os dos surfistas, e outras tantas questões financeiras que demonstram que o filme não tem grandes recursos, o que Vanzi apresenta aqui é uma obra bastante madura que se vale dos cenários de Cinecittá, resultando então em um conto de justiça torto, mas com personagens que subvertem questões de honra sem qualquer cerimônia.

  • Crítica | Réquiem Para Matar

    Crítica | Réquiem Para Matar

    De Carlo LizzaniRéquiem Para Matar é mais um dos muitos filmes de vaqueiro feitos na Itália, como parte da subcultura do Western Spaghetti. Lou Castel vive Réquiem, o único sobrevivente de um massacre quando ele ainda era criança. Sua missão de vida é básica e muito comum ao gênero: buscar vingança pelos seus, em busca de George Bellow Ferguson (Mark Damon).

    O início do filme se dá com um confronto de forças bem ao estilo do jogo Forte Apache, com pistoleiros confederados esperando a chegada dos mexicanos, um dos assuntos mais abordados nos filmes de faroeste italiano. Os tempos selvagens no oeste passaram por muitos momentos e minirrevoluções, como o aprimoramento da polícia, o início do crime organizado e a construção das linhas férreas. O advento das grandes metralhadoras também se fez presente, e essa é mais um longa que utiliza a capacidade de atirar muitos projéteis para instalar o terror, mostrando o povo mais pobre sofrendo a perseguição dos mais poderosos — brancos.

    A música de Riz Ortolani é bem característica, utiliza sons agudos nos momentos de embate, com guitarras altas e estrondosas, e outras mais calmas e inofensivas, mostrando Réquiem tentando lidar com os homens comuns. O trabalho do compositor foi tão único que o fez ser escolhido por Quentin Tarantino para estar na trilha de Kill Bill – Volume 1.

    Não há quase gordura nenhuma na história, Lizzani leva seu filme de maneira muito direta ao alvo, Réquiem não demora a encontrar com um dos homens que comandou o ataque a sua família. De qualquer forma, o texto soa confuso pelo rumo que quer tomar com seu personagem central, que parece mas um rapaz guiado pelo destino e tem a fortuna de cruzar o caminho de seus malfeitores. Ao mesmo tempo, o diretor parece estar debochando o tempo inteiro do estilo, a começar por seu herói, um homem que não tem aparência respeitosa de maneira alguma, seu talento para o tiro parece surgir do absoluto acaso, e por fim, conta as piores mentiras possíveis e ainda assim faz seus inimigos confiarem nele. Além disso, alguns homens usam uma maquiagem muito forte, tão caricata que obviamente não se faria perdurar em um ambiente tão quente quanto este cenário.

    Um dos personagens é vivido pelo diretor  Pier Paolo Pasolini, sujeito que também é tido como um dos colaboradores do roteiro não creditados, talvez caiba a ele a função  dos exageros visuais que mais lembram peças teatrais shakesperianas do que uma cínica história do velho oeste americano.

    No desenvolvimento final, Castel justifica sua escalação. Seu desempenho como cavaleiro vingativo é ótimo, e os embates que ele tem com Dean Light (Carlo Palmucci) e os demais capangas de Ferguson são carregados de emoção, onde o senso de urgência é alardeado em uma sequência emocionante. Réquiem Para Matar é um filme cuja identidade não é muito bem definida, variando entre uma produção séria e o tom de paródia, melhorando muito próximo do final graças ao conflito final.

  • Crítica | O Bandido Giuliano

    Crítica | O Bandido Giuliano

    Mais de dez anos após Luis Buñuel tecer a marginalidade, os escândalos e a podridão social nas ruas do México, no meio do século, no clássico visceral Os Esquecidos, foi a vez de Francesco Rosi, cineasta muito querido pelo mestre moderno Martin Scorsese, de apresentar do mesmo modo cru e objetivo as motivações, os exageros e as consequências dos vários tipos de brutalidade humana, e a degradação do seu habitat relativo no estupendo O Bandido Giuliano, exemplar italiano “esquecido” ao longo da história da arte. Inserido em um forte cenário histórico, é possível desde o início da projeção atestar sua influência em um sem-número de produções mais famosas por também reproduzirem o júbilo de Giuliano, tais quais os ultra realistas O Poderoso Chefão II, Tragam-me a Cabeça de Alfonso Garcia, e Caminhos Perigosos – grandes obras que ainda estavam por vir, nos anos 70.

    O maestro Rosi, aqui em seu melhor e mais poderoso filme, se portou como um verdadeiro arqueólogo, vasculhando constantes que não sobreviveriam fora do conturbado contexto político implícito; personagens destemidas quanto a suas condições, derivativas dos ambientes que alimentam com seus atos desumanos de sobrevivência, e barbárie. Sem pudores é apresentado esse mundo europeu nada glamoroso, e nem um pouco paralelo para quem anda pelas calçadas do século XXI sem fones de ouvido: Um universo onde interesses se chocam em ciclos de vida e morte, condenações e danação. Um faroeste urbano, onde saem os cavalos e comparece a roda do capitalismo selvagem e arrebatador que John Wayne sonhava, ainda inocente, em combater com revólver e chicote. O mundo estava mudando, e aqui, já havia mudado com grande força, e impiedade.

    O Bandido Giuliano é cinema clássico apoiado na bengala da mais pura representação histórica, sem recriar a Sicília que centenas de outros filmes já haviam mostrado, remodelando a realidade. O alvo da “arqueologia” aqui era o elemento excluído ao invés do previsível, o que combinou perfeitamente com a história, na época da libertação política e conturbada da Sicília, na Itália, quando a trama se desenrola mediante o óbito do criminoso homônimo Giuliano. Seus feitos são revelados em ampla escala expansiva (Cidadão Kane, Rashomon), e seu bando aos poucos vem à luz, o que acaba por afetar a vida de dezenas de famílias e cidadãos impotentes, e humildes, que não aceitam ou entendem as consequências da violência por não beberam dessa mesma fonte. Isso dá margem a uma fantástica cena, na ocasião, onde um grupo de mulheres – mães, irmãs, esposas e afins, revoltadas pela polícia ter levado seus parentes masculinos por serem todos suspeitos de ligação a Giuliano – parte pra cima da organização armada, reivindicando a posição de sexo frágil por um bem maior.

    Essa é a única demonstração revolucionária de um grupo inferiorizado, sendo nítido ao longo do filme que a revolução política que o bando criminoso na região tanto queria promover foi estendida também em outras várias cenas de grande impacto jurídico – tudo filmado com uma intensidade que Scorsese e outros mestres iriam empregar nos anos seguintes, nos outros clássicos a serem produzidos. Nas fantásticas sequências de tribunal, palco de crimes inafiançáveis, os acusados são mantidos em jaulas em um verdadeiro zoológico marcial – Rosi, seletivo e complexo, não era adepto da singeleza argumentativa ou da redenção fácil, expondo a imoralidade e invocando, assim, a nossa própria moral diante de cada caso. O cineasta sabia que “filmava” o apocalipse do homem a partir do seu próprio ambiente, e com isso, realizou um dos melhores tratados dos efeitos do socioeconômico sobre a mentalidade de um cidadão comum.

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  • Crítica | A Doce Vida

    Crítica | A Doce Vida

    Federico Fellini realizou três tipos de projetos. Filmes pra saciar sua alma (A Cidade das Mulheres, 8 ½ …); em nome do público (A Estrada da Vida, Amarcord…) e sobre a arte de se produzir a tão amada sétima arte (Julieta dos Espíritos, A Voz da Lua…); não necessariamente, é claro, fazendo jus ao artista diverso que suas visões, as quais ele julgava serem sempre semelhantes, resgatam através da película e proposta, cada uma dessas impecável. Particularmente, este escritor encaixa A Doce Vida (soa melhor em italiano) na segunda categoria sugerida acima, em especial. Vejamos: Caso fosse na primeira hipótese, o artista teria feito esse perfeito documento das relações humanas, nos mais altos patamares de ficcionalização, para discursar seus próprios valores humanos no mundo de cristal das celebridades? Válido, desde que o diretor de Cinema é um dos tipos mais egoístas do mundo.

    Contudo, o alvo de Fellini desta vez não era si próprio, e sim uma valorização fora do comum à arte que usou como base e plataforma por boa parte da vida. A crítica e a adoração aqui é sempre externa, se apoiando nas beiradas da janela pela qual a assistimos; mesmo que sob as grossas cortinas da metalinguagem que o maestro aprimorou. Isso porque os filmes, assim como o homem, e a mulher ainda mais, têm alma que não pode ser vista nem mesmo em vista da mais bela fotografia – ainda que sentida por uma trilha de Nino Rota, em alguns casos. Não existem meias verdades da essência do audiovisual, esse enquanto não transcendental naquilo que cumpre, onde faz parte. Após isso, quaisquer perspicácias ficam a cabo do ponto de vista alheio, uma vez que diante dos prismas de Fellini o que é ambíguo brota da contemplação e arrebata as plateias sem o auxílio de nenhuma apologia, ou arrogância. Em A Doce Vida, Fellini já era mestre aqui, e exerce seu poder com todo o esplendor possível.

    Na jornada do jornalista Marcello (Mastroianni, debutando na carreira com o cineasta) adentro o universo individualista dos flashes, a riqueza da vida é extraída das extremidades da mesma. Personagens que correm em cordas bambas por serem incapazes de controlar suas veredas, numa sociedade colocada em microscópio por planos cênicos cirúrgicos e iluminação prateada, muitas vezes, ao invés do preto, brancos e matizes cinza normais até meados dos anos 60 na filmografia mundial. O que é imprevisível na narrativa multiplot reflete e combina, por fim, na mise en-scène arquitetada vigente; atores entrando e saindo de quadro simultaneamente em meio a diálogos que não falam mais alto que as mensagens evocadas pelas imagens do mural, este eternamente vivo e pulsante, como qualquer legítimo Fellini.

    Se A Doce Vida fosse uma ficção-científica, seus integrantes ou personas ficariam orbitando a Terra na grande missão de suas vidas: Encontrar um sentido no vácuo, o vácuo amargo, azedo, nem mesmo agridoce de suas existências interligadas. Na verdade, para um filme o qual o próprio anúncio é uma ironia ao conteúdo, não que seja trágico no que não é subjetivo, uma metáfora mais óbvia é só aquela que afirma a desglamourização da elite num filme sobre ela, no amor e na dor de pertencer a tal classe, como em qualquer outra. Um conglomerado de cenas síntese a trama existencialista, em prol de um público mais vasto que o filme almeja alcançar, e apaixonar, arrebatando a todos com imagens dignas de uma representação dionisíaca.

    Ao mesmo tempo, o mais reverenciado dos cineastas italianos profetizou em larga escala dramática a mentalidade pós-Beatles, ou seja, o tipo de público do século XX que venera a revista Caras e os besteiróis de fofoca e degradação humana no rádio, TV e internet. Por outro lado, Fellini ilustra excentricidades não apenas em A Doce Vida, sem esquecer o elemento do fascínio por parte de quem admira as cores desse circo por fora. Um filme que realmente mereceu ser filmado em PB… Por essas e por outras, o mistério que toda esfera chamada de mundo contém, seja esse rico ou pobre de intenções, “autêntico” ou “teatral”, é mantido e nutrido em forma de arte, aqui através do alter-ego do diretor numa equilibrada e emotiva posição de Mastroianni, e elenco ao todo – um fato generalizado. Isso porque no poético e balsâmico A Doce Vida, Fellini colocou com prazer a audiência no picadeiro do seu circo, domando-nos com o chicote que viria a emprestar a seu grande ator, mais tarde, e gritando desde já com ele: Ação!

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  • Crítica | A Mansão do Inferno (1980)

    Crítica | A Mansão do Inferno (1980)

    Dario Argento e seu Suspiria, de 1977, marcaram a história do cinema de horror e o filme sobrevive como um grande clássico até hoje, mas o que muita gente não sabe é que o cineasta continuou essa história no desejo de criar uma trilogia. O segundo longa foi o A Mansão do Inferno, de 1980, esse que prometia expandir a mitologia criada por Argento a partir do livro Suspiria de Profundis (Thomas de Quincey, 1845) mostrando a segunda mãe das Três Mães, responsáveis por afundar o mundo em suspiros, lágrimas e trevas, residente em uma Nova York sinistra e barroca.

    Mesmo que o filme pareça ser dividido em três momentos e em três personagens, pode-se dizer que  sua trama principal se inicia quando a jovem Rose Elliot (Irene Miracle), que mora em um misterioso prédio na cidade de Nova York, compra o livro de um arquiteto que diz ter construído um lar para cada uma das bruxas intituladas Três Mães, desconfiada que está morando em uma dessas construções ela pede a ajuda de seu irmão Mark (Leigh McCloskey).

    É interessante perceber que o longa acaba repetindo os erros e acertos do teu antecessor, o apreço visual é ainda mais presente e refinado, enquanto o roteiro parece não se resolver nunca.  Cores invadem os cenários e fazem com que tudo pareça um pesadelo sedutor que se materializa em ambientes muito bem projetados para criar uma Nova York diferente, um pouco envelhecida e fantasmagórica. Os efeitos práticos nesse novo capítulo também se destacam, um belo trabalho de maquiagem deixa as cenas de violência mais trabalhadas e detalhadas, acabam satisfazendo os mais loucos por sangue.

    Já a trama não sabe para onde ir, é possível ter o longa em uma perspectiva que a narrativa não seja o real objetivo, e sim a megalomania da violência e as matanças dessas bruxas, como um bom filme trash, mas se o longa se inicia aprofundando na mitologia dessa história é impossível não esperar um roteiro no mínimo coerente. As ações das personagens são duvidosas, as histórias entrelaçadas não fazem sentido e no fim parecem um desperdício de tempo, além do final apressado, tal qual Suspiria.

    Ao desfecho de A Mansão do Inferno a sensação que fica, felizmente, não é negativa, pelo contrário, mesmo tendo esses tropeços de roteiro o filme ainda é bastante divertido. Sendo visualmente bem acabado e tendo uma trilha-sonora eficaz em criar uma atmosfera singular, o segundo capítulo da trilogia das bruxas de Argento pode acabar se tornando o preferido de alguns e respeitado por muitos, acaba sendo uma pena perceber que ele carrega um potencial não alcançado.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | Dogman

    Crítica | Dogman

    Dogman, filme mais recente de Matteo Garrone, é exaustivo. Dividindo o mesmo cinismo relativo à derrocada moral da população suburbana da Itália com Gomorra, a obra que catapultou seu nome ao co-protagonismo do cinema europeu, trata-se de uma epopeia massacrante sobre o crime e a cultura de intimidação que o cerca – bem como sobre as chances nulas, quase além da compreensão, de dignidade e serenidade por parte de quem abraça esta vida dura a despeito das circunstâncias.

    Acompanhando a vida de Marcello (vivido por Marcello Fonte, premiado como Melhor Ator em Cannes por esta interpretação), um fragilizado e simplório tratador de cães em uma decadente cidade costeira não-especificada, Dogman nos insere no contexto quase idílico dos seus dias (cuidar atenciosamente de cães, jogar futebol com amigos, fazer nada na companhia de amigos, entreter a filha pequena, Sofia, que teve com uma mulher com a qual não há mais reparação) mas logo revela a faceta sombria inescapável de alguém detido em um lugar tão impróprio para um cotidiano saudável: por baixo dos panos, Marcello é um traficante. E esta atividade paralela, embora pague por uma convivência mais agradável do que seria esperado para alguém de possibilidades tão ínfimas, acarreta também problemas que excedem a ginga do protagonista para resolvê-los, exemplificados na figura de Simone (Edoardo Pesce, também em grande atuação), um violento e insuportável ex-boxeador absolutamente entregue à cocaína, mais parasita do que cliente, e que Marcello a muito custo consegue manter a uma distância nada segura, tentando evitar ocasionais explosões de implicância e ignorância. Obviamente Simone não tem meios de manter seu vício cada vez mais glutão, mas assim como faz com todos ao redor, ele prensa Marcello com brutidão a esticar a paciência com seus calotes e não tarda a fazer com que o mesmo participe de alguns de seus crimes.

    Ao contrário do que consegue fazer com paciência e gentileza com os cães dos quais cuida, Marcello não consegue estabelecer algo além de uma relação de submissão com Simone; a dinâmica entre ambos é a mais sufocante possível, e tanto a integridade física quanto a resolução civil de Marcello parecem sempre a um passo (dado por Simone, logicamente) da implosão completa. Marcello, afinal, é incapaz de se desvencilhar do magnetismo maldito de Simone, conservado através do mais puro bullying – e não somos surpreendidos, conforme a trama avança, quando atitudes mais e mais tóxicas e violentas produzem ocorrências mais e mais arriscadas e danosas, enquanto Marcello é tragado pelo vórtice de destruição que o indiferente Simone deixa como rastro.

    Garrone exerce uma precisão absurda pra construir atmosferas e estabelecer personas em seus mergulhos no submundo do crime de baixo clero; dispensando sutilezas mas compensando esta exposição com imensa naturalidade de diálogos (o roteiro é assinado pelo próprio Garrone, junto a Ugi Chiti e Massimo Gaudioso) e situações (méritos de Garrone como diretor, em especial de atores, e dos próprios atores, incrivelmente à vontade em seus papéis), o realizador incrementa vários desdobramentos do longa, que poderiam soar melodramáticos demais, como incidentes adequados dentro da escalada súbita (mas nada imprevisível) das inconsequentes incursões de Marcello nos golpes e roubos de Simone — desfechos coerentes com os crescentes riscos e sanguinolência. À medida em que Marcello começa a ser encurralado pela estupidez que segue Simone onde quer que ele vá, e seus atos desencadeiam reações onde até mesmo a morte de Simone por seus amigos é discutida, Garrone conduz a claustrofóbica narrativa dando pequenos sinais de que Marcello zarpou em direção a um destino nada alentador, e que a passividade covarde diante de Simone provavelmente só será rompida quando as consequências forem graves demais para serem ignoradas.

    Através de um desfecho duro e violento (e não seria de outra forma), porém sensato pro realismo desumano da saga de Marcello e Simone, Dogman reserva uma clareza total para as pretensões de Garrone: assim como acontecia nos núcleos de Gomorra, há uma colisão inevitável entre o que as personagens pretendem e o que de fato são capazes de empreender diante das próprias maquinações do mundo do crime e dos excessos que invariavelmente alcançam quem dança rente ao precipício. Que Marcello esperasse domar e acalentar Simone como a um cão descontrolado, em nome da própria estima, já seria insolência suficiente naquela realidade avilanada; que como resultado disso ele se torne apto (e adepto) a detonar o que lhe sobra de humanidade e civilidade, é o cerne do mundo que o longa apresenta, onde o crepúsculo da sociedade eventualmente devora a todos.

    Texto de Henrique Rodrigues.

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  • Crítica | Suspiria (1977)

    Crítica | Suspiria (1977)

    Um dos mestres do horror no cinema, o italiano Dario Argento é responsável por um dos filmes mais importantes e cultuados do gênero, Suspiria de 1977, clássico que influenciou décadas e ganhou remake pelas mãos de Luca Guadagnino em 2018. Argento baseou-se no livro Suspiria de Profundis de Thomas De Quincey para criar a mitologia iniciada timidamente no longa, na qual três bruxas milenares espalham dor e morte sob o mundo, a Mãe das Trevas que reside em Nova York, a Mãe das Lágrimas em Roma e por fim, a Mãe dos Suspirios na Alemanha, esta última presente nesse primeiro capítulo da Trilogia das Três Mães, composta também por Inferno (1980) e Mother of Tears (2007).

    No longa, a dançarina americana Suzy Bannion viaja até Fribourg na Alemanha para começar seus estudos de especialização em uma renomada academia de dança, mas sua chegada é conturbada ao ver uma aluna fora de si correndo do lugar durante uma tempestade. No dia seguinte, a notícia do destino da moça recai sobre a academia enquanto Suzy conhece as misteriosas mulheres que coordenam a instituição, aos poucos mais pessoas vão sumindo e a protagonista passa a desconfiar que o lugar possa ser morada para uma antiga irmandade de bruxas.

    Uma coisa interessante revendo o longa é perceber o quanto a atmosfera criada por Argento é marcante, gostando ou não, é uma produção que permanece por muito tempo no espectador. De fato, o maior acerto do filme é o seu visual surrealista baseado em cores fortes e brilhantes, presente em iluminações com o pé no fantástico e em cenários perfeitamente realizados, em linhas e formas. Forma-se uma imagem tão original e hipnotizante que assistir ao filme é como assistir a um pesadelo tão belo quanto sinistro, uma experiência imersa em paisagens sonoras incríveis, são sequências inteiras acompanhadas de murmúrios, gemidos e suspiros, com uma música poderosa criada pela banda de rock progressivo “Goblin”.

    Da parte do elenco, as mulheres que cuidam da escola são responsáveis por uma boa estranheza, algumas não tiram sorrisos assustadores dos rostos e
    outras assustam pelas palavras mansas e mascaradas, já as alunas da academia entregam ótimas cenas de perseguição quando Argento brinca de slasher, brincadeira essa que resulta em sequências memoráveis do longa, seja pelos gritos estridentes, o sangue estilizado ou pela violência gráfica que chega a arrancar risadas nervosas. A protagonista Suzy tem uma interpretação esforçada de Jessica Harper, é nela que o roteiro chega a funcionar pontualmente ás vezes, expondo sua personalidade quase sagaz e sua coragem.

    Porém o roteiro não volta a agradar em outras situações, é um argumento interessante que não sabe se desenrolar, os dois primeiros atos soam rasos
    narrativamente, e o final se apressa e não entrega o clímax que Argento parece ter a intenção de construir nos minutos finais, mas além desses últimos momentos o longa não perde em ritmo e nem em suspense. Mesmo expondo pouco do universo que se passa essa história, Argento sabe implantar doses de mistério que fazem o engajamento ir até o fim. E quando aparecem os créditos é muito fácil entender porque Suspiria é o que é, um suspiro refrescante num gênero que Argento tanto contribuiu.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | Uma Questão Pessoal

    Crítica | Uma Questão Pessoal

    Desde que Guerra ao Terror ganhou o Oscar, e Clint Eastwood fez uma ode ao vício estadunidense por auto bajulação, com Sniper Americano (um dos 50 filmes mais lucrativos nas bilheterias americanas de todos os tempos), poucos filmes no mundo tentaram e de fato foram bem-sucedidos em mostrar conflitos de proporções bélicas alarmantes, em diversos cenários onde ainda explodem e devastam a pacificidade que pessoas, suas tribos e culturas precisam ter para resistir, sobreviver, e por fim, se isso é possível em lugares como Israel e Palestina, viver.

    Agindo como se todo tipo de visão já tenha sido destilada ao público de Cinema, os “filmes de guerra” hoje em dia (com exceção de Os Campos Voltarão em 2014, o último filme do mestre Ermanno Olmi antes da sua morte) focam mais nas consequências paralelas e/ou posteriores de se passar por uma situação dessas; como se o centro da problemática não fosse mais o foco nas bombas e seus dramas de campo de batalha, e sim as suas questões periféricas, familiares, suas marolas, seus efeitos no homem ou na sociedade que sempre o torna quem ele(a) é, e que colhe os frutos do conflito armado que soldados e seus comandantes presenciam a ferro, fogo e sangue.

    Essa manobra discursiva, algo simbolizado por Stanley Kubrick nos dois filmes que existem dentro de Nascido para Matar, abraçando tanto o lado dos fuzis e das explosões (a violência gráfica de uma guerra), quanto o stress psicológico resultante de uma constante tensão onipresente, e suas avaliações dentro de um quartel general norte-americano, essa abordagem desse último lado menos icônico mas com grande potencial de aprofundamento dramático, estudando o comportamento das pessoas vivendo dia após dia uma situação desumana, deve-se a incrível capacidade de toda obra de arte de nos impactar, na forma que for, e dialogar com as nossas experiências de vida – sejam elas quais forem.

    Uma Questão Pessoal é uma boa prova disso, conectando-nos em pleno solo italiano a uma segunda grande guerra mundial cujas lembranças latentes a fazem respirar eternamente, encontrando por isso fortes ecos hoje e amanhã num sem-número de produções culturais ao redor do nosso pequeno grande globo que, para a raça humana, poucas vezes foi tão complexo quanto no conturbado vigésimo século D.C. Tendo como contexto histórico a luta contra o nazifascismo em 1943, o filme da dupla Paolo e Vittorio Taviani, adaptando de modo deliciosamente visual uma das mais importantes obras da literatura italiana, o homônimo livro de Beppe Fenoglio, foca na luta interna do militar Milton, vagando pelas colinas e campos de Langhe no noroeste da Itália, dividido entre ajudar seu país e se prender de vez no amor que ele sabe ser a mulher da sua vida.

    De espírito benevolente, Milton vaga entre a danação do seu povo, e o resistir militar do mesmo, mas sem nunca conseguir colocar em segundo plano a história que viveu e ousa resgatar a quase todo momento com a doce e bela Fulvia, aquela que dança em tempos em que isso é proibido. Assim, o título de Uma Questão Pessoal ironiza o ótimo equilíbrio que tanto livro e filme conseguem atingir entre as esferas militares e particulares de um homem que se arrisca e se devota sem descanso a duas questões, uma nacionalista e muito mais ampla, e a outra invariavelmente emocional e pertinente só a si mesmo e mais ninguém (a cena na qual Milton encontra seus velhos pais, muito próximo de soldados inimigos, e os abraça como um raio, partindo em questão de segundos para não chamar a atenção, é dolorosamente maravilhosa).

    A narrativa imagética da adaptação do livro de Fenoglio merece um capítulo à parte, sendo que o filme faz uso aqui de um ótimo e contido trabalho de câmera, ainda que por vezes ousado e totalmente participativo de uma dramaticidade acionária que nunca descansa, nunca deixa de nos surpreender, principalmente nos minutos iniciais e que nos fazem submergir as forças reais que movem a história: Medo político, a expectativa de estar sempre passos à frente dos inimigos fascistas, os aliados à resistência, o mundo externo que chama para as incertezas da neblina e que não deixa Milton relembrar seu passado, mais simples e infinitamente mais feliz. Por essas e por outras, eis aqui uma história (e filme) muito maior que os seus rótulos, e que por mais que guarde semelhança com uma típica obra de conflitos armados, carregando todos os seus típicos elementos de gênero, consegue ir além dos limites do seu gênero, tal como o recente e magnífico Timbuktu. Outros cenários políticos, mesmos dilemas humanos.

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  • Crítica | A Aparição

    Crítica | A Aparição

    É interessante para nós, brasileiros, falarmos sobre o papel de um jornalista num dos países mais intolerantes do mundo para com o seu trabalho investigativo, e que por tantas vezes auxiliou a história humana a tomar novos rumos, e a conhecer novos caminhos diante de certos absurdos, e polêmicas carentes de elucidação. A revelação aqui é clara, e objetiva: o renomado profissional francês Jacques Mayano, desligado de quaisquer práticas religiosas e focado apenas nos aspectos mais mundanos possíveis da realidade das coisas, sempre envolto a livros e casos bem-sucedidos de investigação jornalística, mergulha de cabeça no caso de Ana (uma jovem noviça francesa que afirma ter contato com a própria Virgem Maria), após requerimento do próprio Vaticano para que ele se envolva nos desafios dessa premissa, e dela venha a retirar a verdade como já está habituado de fazer.

    Nada mais do que a verdade, e da maneira mais confidencial possível. Nas mãos de Hollywood, com certeza esta seria uma oportunidade perfeita para brincar com os típicos arquétipos do Cinema de horror, ou melhor, mais uma das intermináveis homenagens (e plágios não-oficiais) de O Exorcista, clássico de 1973. Contudo, A Aparição se beneficia por demais de uma visão mais cult e intelectualmente instigante da relação entre um homem mundano, e a fé, sem exageros ou algo do tipo. É notável o quanto o filme, contido em sua plenitude, consegue criar e manter, fluindo por sua trilha-sonora e no seu inteligente uso de simbologias religiosas, uma aura tanto mística quanto de interesse por sua história de inegável sobriedade artística quanto a direção que a trama vai tomando, no desenrolar constante das verdades que Jacques extrai de um novo mundo, para ele.

    Um mundo em que qualquer evento sobrenatural não é visto com tanta surpresa e estranheza, assim. Ao passo de sua aceitação do trabalho, Jacques, junto de outros jornalistas encarregados do mesmo, mantêm relações com as provas da existência de um sagrado de uma forma que prontamente eles sequer imaginaram vir a passar. Tal situação vai ao encontro de uma moral jornalística que faria qualquer profissional da área delirar com as possibilidades que um caso desses oferece, e com o nosso protagonista não é diferente. Mesmo não acostumado com esse universo “assombrado” pelo “inexplicável”, Jacques usa de sua paixão pelo ofício e age como arqueólogo trilhando as veredas (e as incertezas) de um atraente desconhecido. Tanto que podemos ver nos olhos do ator Vincent Lindon (de O Valor de Um Homem), em ótima atuação, o quanto o cristianismo pode ser um mar insondável e traiçoeiro aos que nele ainda estão aprendendo a nadar.

    O que fazer, que medida tomar diante do que não pode ser cientificamente comprovado, mas que se manifesta diante de olhos despreparados ao manifesto? Eis o dilema que desafia o ceticismo do homem, e a imparcialidade do profissional. Tal roteiro, que passa a evocar cada vez mais a curiosidade do jornalista e sua desconfiança por vezes para com a veracidade dos fatos, quase não dá margem para o lúdico e o poético que tanto habitavam, intrínsecos, os espetaculares e antigos filmes de viés religioso de Luis Buñuel, por exemplo, o que de maneira alguma é algo prejudicial. Ao invés de injetar realismos no sobre humano, aqui temos o contrário, mixando até o final o que pode ser irreal dentro da lógica da realidade, através de uma bela ótica cinematográfica que pouco se vê na produção contemporânea fora do cenário europeu.

    Quando Anna, a garota santificada pelos olhos da igreja e parte do mundo vai até um shopping, experimenta então o ambiente do fútil pela primeira vez. O consumismo que verte dos manequins e que faz as pessoas tão reféns de suas compras, quanto a mesma do seu contato com o sagrado. Já quando Jacques a vê, vê nela exatamente isso: uma garota normal nesse mundo moderno e frio, cuja missão que diz ter é grande demais para seus ombros amparados apenas pela fé do que ela diz ser real; quase palpável. O filme de Xavier Giannoli se interessa pela investigação do intangível, e do improvável, enquanto elementos que desnorteiam a nossa percepção da realidade. É justamente especulando a existência do que vai além das nossas certezas que A Aparição se constrói como um verdadeiro suspense dramático sobre a relação imprevisível, simbólica e por vezes tensa que o ceticismo pode viver casando-se com o oposto que tanto o atrai, e que pode vir a consumi-lo por inteiro. A luta de poderes é grande, e da forma elegante como o filme a constrói, de fato chega perto do grau de excelência almejada que se propõe, desde o início, a alcançar.

    https://www.youtube.com/watch?v=EXjvWjGXFTY

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  • Crítica | A Garota na Névoa

    Crítica | A Garota na Névoa

    A Garota na Névoa, filme de Donato Carrisi, se inicia mostrando o dia dia das investigações policiais em uma cidade isolada. O responsável pela investigação é o agente Vogel, vivido pelo veterano Toni Servillo, e já ao chegar a cidade, coisas estranhas ocorrem. Sua mudança de recinto ocorre graças ao desaparecimento de uma jovem, fato bastante incomum de ocorrer, evidentemente, ainda mais em um comunidade pequena e pacata.

    Há algumas tramas paralelas, entre os cidadãos comuns da cidadela, que na maioria das vezes, soam bastante desinteressante, apesar de obviamente enriquecer a trama e trazer possibilidades e pistas sobre o paradeiro da menina, no entanto, é nos trechos em que Servillo aparece que o filme claramente sobe de patamar, se capturando ainda mais a atenção do espectador.

    Ao menos no quesito suspense, Carrisi acerta bastante. O desenrolar do mistério é gradativo, lento, mas não enfadonho, tampouco é genérico, ao contrário, os aspectos técnicos são muito bem empregados, a trilha não é invasiva, a fotografia ajuda a causar uma sensação de sufocamento, emulando assim as sensações que os membros da cidade tem ao se deparar com tamanha barbárie. Aliás, a participação de Jean Reno faz lembrar Rios Sangrentos, embora esse seja bem mais comedido que o longa citado.

    O desfecho faz o filme ganhar ainda mais força em mistérios, com uma abordagem que conta não só com uma escalada de suspense, mas também com cenas com planos e contra-planos interessantes e belos. Há momentos em que o espectador parece estar apreciando um quadro clássico em movimento. É uma pena que o roteiro de Carrisi (baseado no livro do próprio) não seja tão potente quanto sua capacidade com a câmera nas mãos, mas ainda assim, A Garota na Névoa é um grande exemplar de thriller europeu.

     

  • Crítica | Stromboli

    Crítica | Stromboli

    Numa perspectiva e parâmetro mais contemporâneo (e popular), lembro de assistir como se fosse ontem ao filme Mad Max: Estrada da Fúria numa sala de cinema, em 2015, onde a extensão de toda a dimensão cinematográfica do espetáculo é verdadeiramente (re)pensada, e por nós sentida, expressa pela regularidade típica de um telão – e seu cúmplice sonoro. Me recordo ainda do impacto (um tanto até documentário, para muitos) que toda aquela ambientação desértica e árida possuída por uma imensidão de extensões masculinas brutais e motorizadas proporciona a percepção tão nossa, tão sensível àquela corrida maluca da Furiosa, e cia.

    Pois bem: voltando a quase quarenta anos no tempo mundano, numa União Soviética há muito perdida, Stalker, o filme-mito de Andrei Tarkovsky, já vivia e exalava seu espaço como poucos filmes antes ou depois de sua criação já conseguiram. O mesmo pode ser dito do gigantesco (essa é a palavra para) Stromboli, no distante ano de 1950, mais atual e referencial que nunca, joia oriunda da mentalidade e perícia artísticas do nosso eterno maestro, peça-chave do neorrealismo italiano e um dos grandes estetas por trás de uma câmera: Roberto Rossellini.

    Caso raro em que tudo é fruto do casamento romântico e inabalável de uma história com a sua própria dimensão; de um conto um tanto melancólico com a ambientação que o embala e o constitui; da empatia entre pegadas e o seu rumo invocativo a tudo que delas pode e (deve) ser extraído. Disso, dessa fusão harmoniosa entre O quê, e o seu Aonde, nasce um filme ironicamente contrário a fusão romântica, consciente e sintonizada entre dois corpos interessados um pelo outro frente as vicissitudes espaciais onde convivem – no caso, Karen e seu marido António, “presos” numa ilha ainda que tragicamente distantes sob o mesmo teto.

    O impacto da vida na ilha de Estrômboli, ao norte da costa da Sicília, sob a constante ameaça do seu ativo vulcão de matar a tudo e todos, leva Karen a uma constante vida de escapatória e outros sentimentos destrutivos a toda relação. Aqui temos a majestosa Ingrid Bergman, uma das maiores atrizes do cinema mundial mais uma vez se entregando com toda a devoção humanamente possível ao papel difícil de uma mulher traída pelas condições de uma rotina dura, logo aos pés do vulcão mais desafiador do continente europeu, e/ou sem qualquer identificação com o próprio homem trabalhador que um dia, talvez, já tenha amado.

    Stromboli na verdade é famoso não apenas pelo desempenho extraordinário de Bergman, uma diva com tudo o que pode envolver tal adjetivo, mas pelo casamento mais que fortuito que o seu trabalho com o mago Rossellini resultou em suas vidas pessoais. Além do mais, é deveras um marco em preto-e-branco (qualidade que espanta hoje o público do século XXI) especialmente ligado a matrimônios – a suas contradições análogas à sua natureza desafiadora. Já historicamente apontando, a própria relação impactante dos personagens com seu ambiente conflitante que os diminui, diante da ostentação e poderio faraônicos da natureza, culminando nas dramatizadas cenas vulcânicas, ainda hoje insuperáveis, dialoga com a recusa do rebelde Rossellini em seguir os convencionalismos artísticos de sua época, em voga até então no cinema eurocêntrico da década de cinquenta.

    De posse das possibilidades de uma história com tamanha e devida conexão ao seu entorno provocativo, e tão metafórico as dimensões de um drama conjugal, e pessoal, Rossellini talha uma epifania sem-igual não apenas na comparação com a produção audiovisual de seu país, ou mesmo continente. Certamente um clássico imortal digno de inúmeras análises e paixões observacionais, Stromboli merecia um reconhecimento ainda maior por parte do grande público, voltado apenas ao mainstream publicitário de sempre. Mais que belíssimo. Um exercício mesmo da exuberância existencial que alguns filmes, apaixonados pelo potencial de eternidade que neles existem, e resistem, podem proporcionar, a todos nós.

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  • Especial | Sergio Leone

    Especial | Sergio Leone

    “Durante anos, um homem povoa um espaço com imagens, províncias, reinos, montanhas, baías, navios, ilhas, peixes, quartos, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas. Pouco antes de morrer, ele descobre que o paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto”. (Jorge Luis Borges)

    Qualquer criatura que tenha optado por estudar e decupar a obra de um cineasta feito Sergio Leone pode ter encontrado limites e desafios intrínsecos ao seu discurso apodítico, empregando elogios ou algum tipo de censura estilística sobre algum expoente de uma carreira invejável. Isso porque falar de Cinema, tido aqui pela visão específica que o italiano tinha de sua arte nos anos de 1950, é encontrar limites no poder da dialética que tenta conjurar sentidos extravisuais e literais para com um compêndio de imagens e sonoridades que conservam diálogos próprios, exclamando por si só. Um trabalho de análise ingrato como de praxe, inclusive sendo franco ao leitor-espectador aqui presente, mas que sempre faz justiça ao longo dos anos às noções e viés de um gênio da linguagem cinemática que revolucionou e aperfeiçoou a roda propulsora não somente do gênero de faroeste, deixemos isso claro desde o começo, mas do Cinema, assim como tantos outros mestres de sua geração que surgem para esgazear o normal.

    O Vortex Cultural, assim, baseando-se nas obras atemporais reunidas logo a seguir, em suas reflexões construtivas, espera traçar aqui um ponto de referência, convidando a todos que ainda não conhecem, ou ainda teimam a não reconhecer a importância vital e estrutural de Leone às resoluções artísticas do século passado e contemporâneo para que o façam. Para que se sintam convidados(as) a experimentar a linguagem histriônica e deliciosamente inconfundível de um tremendo arquiteto de imagens em movimento, e que na sua maestria, não deveu ou deve nada a outros titãs visionários, tais como Sam Peckinpah, Sergio Corbucci e/ou Damiano Damiani, cujas biografias devem ser merecidamente tratadas com respeito similar. Eis aqui, a partir do marco Por Um Punhado de Dólares, as dimensões Leônicas da forma de expressão moderna que lhe serviu de ninho para poder germinar a sua típica visão carismática dos conflitos que nutrem a experiência humana, do ser. Estamos pousando neste ninho de bravatas.

    Em 1964, Leone achou com Por Um Punhado de Dólares o crepúsculo de sua voz, ainda trôpega em busca de uma base sólida de expressão. Ao narrar a primeira grande aventura do marrento Clint Eastwood, indissociável ao papel que representa, um homem fora da linha de eventos temporais que regem a humanidade, e posto a vagar sem rumo em lugar algum, a iconicidade de sua postura e dos eventos que se desenrolam a partir de sua presença. Saem de cena os cowboys de sempre para entrar pistoleiros barra pesada, sem um pingo daquela moralidade dos heróis de John Wayne, Henry Fonda ou James Stewart.

    Apesar de aos 18 anos ter largado a faculdade, e ter ido trabalhar com cinema com Vittorio de Sica, a sensação de ser um outsider no meio era presente. Inspirado pelo filme japonês Yojimbo, de Akira Kurosawa, de cavalo, arma em punho e mais nada, o tempo nos mostrou como as aventuras do homem sem nome refletia a verdadeira condição de Leone enquanto principiante, intruso num cenário ainda desprovido dos efeitos de sua ambição. Leone ainda tinha alcunha de reles artesão de personagens com um universo por tecer e desdobrar, mas após esse debute tímido já nos presenteando com a parceria do maestro Ennio Morricone, seu estilo ainda em formação já começara a ser interessante a críticos e espectadores dos mais entusiastas.

    Um ano depois, todos já tinham percebido que, de Leone, não iria vir submissão ou rendição ao classicismo de um Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann. A trilogia dos dólares, hoje tida como uma das melhores da história, já tomava corpo e identidade postulada na figura de Eastwood e seus coadjuvantes. O cenário em Por Uns Dólares a Mais era habitual, espécie de purgatório onde aquelas almas pareciam coexistir sem compaixão ou remorso diante dos seus atos escabreados e espontâneos. No limiar de um universo imprevisível de caçadores de recompensa, enquanto personas do calibre de um Lee Van Cleef estão mais preocupados com seus quinhões sujos de sangue, Leone discursa afinal sobre quanto vale o destino de quem vive para a cobiça, para puxar o tapete do outro numa selva sem regras, e ainda sem um amanhã, sequer.

    Num esperto diálogo sobre pistoleiros em ação, o que os motiva num mundo ultra masculinizado, o verdadeiro discurso situa-se nas chagas de um nada existencial, insuflado por elementos criativos como close-ups e efeitos sonoros icônicos para ganhar riqueza de significados e brilhantismo, na tela. Por Um Punhado de Dólares é a primeira obra Leônica onde se denota o ótimo domínio de fluxo narrativo por parte do mestre, contudo ainda em lapidação entre uma divertida sequência, e outra das mais trágicas possíveis. Tudo antes de 1966, quando Leone já era encarado pela grande indústria com um respeito que já o permitia fazer filmes maiores.

    Um exemplo de genialidade precoce: Promover um simples personagem coadjuvante (o homem dos caixões) como um exercício de dualidade, em meio aos estereótipos dos protagonistas e das paisagens no filme de 64. Dois anos depois, o tamanho da evolução se faz presente em infindáveis momentos de Três Homens em Conflito, talvez o filme mais famoso e simbólico de Leone, em especial na sequência do triplo duelo final. Puro Cinema, numa cena que só poderia se dar do jeito memorável que se imortalizou através de um poderoso esquema audiovisual. Sobretudo seria este o primeiro filme Leônico que melhor evidencia e elucida o método particular do diretor.

    Um método que emula seus mitos em prol de um equilíbrio entre o lado do chiste e o lado mais dramático do sistema capitalista que se fez sinônimo enraizado nas fundações da América. Também por isso, suas obras sem exceção casam perfeitamente bem com o solo americano que estão, pois foram feitas sob a égide do capitalismo do Tio Sam, um sistema econômico onde inclusão e exclusão social são lados inevitáveis da moeda. É a corrida do ouro por essa moeda que contamina tudo, e é nessa corrida aonde os aspectos de um belo, de um feio e de um mocinho se mesclam que Leone configura seu filme mais célebre, sórdido e barroco, tendo chegado talvez aonde queria para lançar voos mais altos, mais especificamente, em 1968.

    O ano em que Kubrick rasgou nosso manto celeste, e foi ao espaço. Quando duas garotas românticas assolavam o cinema francês, Rosemary tinha um bebê, e Cassavetes fazia examinar suas faces fantasmagóricas sem puder algum. Foi justamente neste ano que Leone escolheu revisitar os seus mitos, já sem a responsabilidade de uma trilogia, e os elevando ao expoente máximo numa ópera monumental de cavalos, suspense, revólveres e lágrimas de alegria e pesar que, por quase 3 horas, extravasa a tela e nos arrebata devastadoramente. Chegamos ao ponto deste dossiê em que palavras não carregam muito poder, mais, apelando contudo as do próprio Leone: “O ritmo do filme pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Ele é, do começo ao fim, uma dança da morte. Todos os personagens do filme, exceto Claudia (Cardinale), têm consciência de que não chegarão vivos ao final”. Depois de 1968, depois de Era Uma Vez no Oeste, sem dúvida um dos grandes filmes já feitos, em solo norte-americano ou não, o cinema não seria o mesmo.

    Depois de quatro filmes insubstituíveis na carreira de qualquer um, Leone continuou fazendo um Cinema tão materialista quanto cheio de subjetividades debaixo de suas aparências que seduzem qualquer um, em especial na sua possível magnum opus que veio antes de 1971, quando já era visto como um mestre de irrefutável presença ornamental para as produções, da época. No referido ano, ao adentrar uma década menos prolífica pra ele, o cineasta reciclou seus elementos e fez os bem menos conhecidos Quando Explode a Vingança, obra que ele queria produzir, somente, se não fosse um desentendimento com o diretor Peter Bogdanovich, e a comédia Meu Nome é Ninguém, de 1973, provavelmente seu filme mais fraco e digno de problematização quanto ao bom gosto que ronda as questão da produção, uma espécie de ode lânguida, pretensa e até mesmo nostálgica do seu próprio cineasta com seus códigos.

    Que as crias de Leone ganham afinidade total com o tema da ilegalidade que infla o gênero policial no mundo inteiro, disso ninguém duvida. Basta contemplar, indo apenas um pouco além disso, o mote que rege quem encarna suas narrativas cheias de tiros ricocheteantes, e dívidas a quitar muitas vezes com a própria vida. Os dois “Era Uma Vez” do cineasta são um capítulo à parte por objetivarem um levante e um refinamento de sua voz, constituindo-se como dois sucessores superiores a tudo que veio antes. Focando no seu título fabulesco mais voltado a urbanização dos seus elementos, é aquela tragicomédia até agora ambientada nas províncias e desertos de sol quente, recolocada entre prédios modernos e becos ainda mais traiçoeiros. Era Uma Vez na América conseguiu ser, deveras, o pináculo da formação de todos os sentidos de toda a ótica Leônica de se encarar o mundo.

    Um conto substancial e formalmente épico de um bando de pistoleiros de terno tão imorais quanto aqueles pistoleiros de poncho e cigarrinho na boca, lidando com a mesma selvageria de antes. Um diamante que rivaliza com O Poderoso Chefão nas listas de melhores do gênero. No mais, é um canto de cisne onde mais se pesa o quesito da espacialidade do cinema do velho mestre vítima de um ataque cardíaco, em 1989, e que nos deixou, cedo, aos 60 anos, uma dezena exata de joias, algumas em estado bruto, outras mais bem lapidadas, a formar seu legado infilmável por qualquer outro(a), senão pelo bilheteiro do trem que podemos ver neste seu último filme. Aliás, sua única aparição na frente das câmeras, artifícios que usou tão bem para desencadear certo sentido a sua vida; uma vida que nós do Vortex esperamos que o leitor-espectador faça jus a esse termo e averigue, pela própria concepção, os seus ideais mais fundamentais e valiosos possíveis.

    Filmografia (Diretor)

    (1961) O Colosso de Rodes
    (1964) Por Um Punhado de Dólares
    (1965) Por uns Dólares a Mais
    (1966) Três Homens em Conflito
    (1968) Era Uma Vez no Oeste
    (1971) Quando Explode a Vingança
    (1984) Era Uma Vez na América

    (Não Creditado)

    (1948) Ladrões de Bicicleta – Assistente de Diretor
    (1959) Os Últimos Dias de Pompéia – Assistente de Diretor
    (1959) Ben-Hur – Diretor de Unidade
    (1962) Sodoma e Gomorra
    – Diretor de Unidade
    (1973) Meu Nome é Ninguém
     – Diretor de Unidade
    (1975) Trinity e Seus Companheiros
     – Diretor

    Artigos

    Dossel dos Dólares – A Trilogia do Oeste

  • Crítica | A Espera

    Crítica | A Espera

    O roteiro, de Giacomo Bendotti e Ilaria Macchia, é uma adaptação bem livre de uma peça de Pirandello. Anna (Juliette Binoche) mora numa vila da Sicília, cuja manutenção é feita pelo capataz faz-tudo, Pietro (Giorgio Colangeli). Jeanne (Lou de Laâge), namorada de seu filho Giuseppe (Giovanni Anzaldo), chega para passar alguns dias ali, até o feriado de Páscoa. Mas Giuseppe não está lá. A pedido de Anna, que afirma ter sofrido uma perda recente, Jeanne acaba ficando à espera do namorado, que não aparece nem responde às suas mensagens no celular. Com o passar dos dias, as duas vão se conhecendo e se tornando mais íntimas. Ao mesmo tempo vai ficando mais claro – ao menos para o público – de que Giuseppe nunca chegará.

    E é isso que gera incômodo no espectador, pois tem-se a impressão de que o título refere-se à espera – forçada – pelo momento em que Jeanne entende o que houve. Quem está assistindo, mata a charada em menos de 10 minutos. Algo que Jeanne vai demorar praticamente os 90 minutos de duração do filme para concluir: Giuseppe não vai aparecer e o que ela tem a fazer é pegar o próximo avião e voltar para Paris. Some-se a isso o fato de que praticamente nada ocorre na trama. Ok, é uma villa no interior, não uma metrópole. A fotografia é linda, há planos maravilhosos, daqueles que dá vontade de emoldurar. Contudo, por mais belas que sejam as paisagens e os enquadramentos usados no filme, é frustrante para o espectador ficar olhando para o céu ou para o lago esperando que algo aconteça.

    Apesar de o diretor, Piero Messina, tentar criar um clima intimista, com longos silêncios e diálogos enxutos, essa tentativa é frustrada pela falta de empatia com Anna. Até faz sentido que ela, de luto, veja um alento na chegada inesperada de Jeanne. De certa forma, a ignorância de Jeanne sobre o que houve, chegando à vila pensando que o namorado está esperando por ela, é uma maneira de Anna prolongar a presença do filho. Mas há um ranço de egoísmo nessa atitude que impede o espectador de se identificar com sua forma de agir. O que gera, em vez de empatia, vontade de obrigá-la – assim como Pietro tenta – a contar tudo a Jeanne e acabar logo com essa espera. Pois, com que direito ela priva a moça da verdade, por mais dura que seja?

    Espera-se por Giuseppe, assim como se espera Godot na peça de Beckett. Os personagens evoluem a partir dessa espera por Giuseppe, que não chegará assim como Godot nunca chega. E a vida continua.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Capital Humano

    Crítica | Capital Humano

    capital humano

    “Tudo o que era estável e sólido desmancha no ar; tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados a encarar com olhos desiludidos seu lugar no mundo e suas relações recíprocas.” – Karl Marx

    O economista Thomas Piketty em seu livro O Capital no Século XXI desenvolve uma tese histórica minuciosa sobre a “natureza” intrinsecamente rentista do capital financeiro, sua valorização fictícia e suas dinâmicas de acúmulo e a distribuição do capital, demonstrando que o sistema capitalista possui uma tendência inerente de concentração de riqueza nas mãos de poucos e que, ao longo dos tempos, há um aprofundamento cada vez maior de desigualdade ao redor do mundo. O tema, caro para o diretor italiano Paolo Virzì é abordado de forma tragicômica em seu mais recente longa, Capital Humano.

    Baseada no livro do crítico de cinema americano Stephen Amidon, a trama se inicia de maneira simbólica, dentro de um luxuoso salão, no qual uma equipe de limpeza trabalha arduamente para organizar a bagunça deixada após uma festa ocorrida no local. O que impulsiona a história é quando um dos trabalhadores se nega a trabalhar além de sua jornada e vai embora em sua bicicleta, no entanto é atropelado por um veículo em alta velocidade. A mensagem não poderia ser mais clara. Em um sistema como o nosso, a sujeira deixada pela classe alta atingirá as camadas mais baixas de maneira catastrófica, como bem demonstrado em A Grande Aposta, O Capital, Trabalho Interno e tantos outros.

    Em decorrência do atropelamento e da falta de socorro, o trabalhador vem a óbito, e a partir deste evento núcleos de personagens se estabelecerão para a construção de um mosaico de situações. Apesar de não ser o centro do filme, o acidente será fundamental para movimentar a narrativa, unir esses núcleos e reforçar a ideia de que um simples acaso é determinante na vida de cada um de nós, algo muito bem retratado na filmografia de Woody Allen. Este mosaico estrutural é composto em quatro capítulos.

    No primeiro deles, somos apresentados à figura de Dino (Fabrizio Bentivoglio), um corretor de imóveis ambicioso, prestes a ser pai pela segunda vez, que decide se lançar no mundo dos altos negócios através de um suposto fundo garantido do sogro de sua filha, o empresário Giovanni Bernaschi (Fabrizio Gifuni). Para isso utiliza sua própria casa como garantia de um empréstimo de 700 mil euros. O deslumbramento de Dino por ser parte de uma alta sociedade não o permite perceber os problemas vividos por sua família.

    O segundo capítulo se desenvolve através de Carla (Valeria Bruni), esposa de Bernaschi, e certamente uma das personagens mais interessantes construídas ao longo da trama. O desconforto de Carla é perceptível em sua primeira sequência, mas não sabemos bem o motivo, já que ela se mostra apenas como alguém fútil, incapaz de uma proximidade com as pessoas que a cercam e que passa seus dias em compras pela cidade e em salões de beleza. O esmero do roteiro e do trabalho de atuação na personagem se torna evidente ao desenvolvimento do filme, no entanto o véu sobre Carla é retirado. Quando ela adentra em um teatro abandonado e completamente destroçado, entendemos suas escolhas, seu comodismo, suas abdicações e minimizações em troca de um status. Os capítulos finais se desenvolvem apresentando novos pontos de vista e amarrando pontas soltas dos capítulos interessantes, entregando um final condizente com a proposta da obra.

    Um ponto interessante trabalhado em Capital Humano é sem dúvida a construção dessas personagens: todos aparentam algo que não são. É neste esfacelamento de relações, hipocrisias e de decadência moral e social que o filme tem mais a oferecer. Cru, impiedoso e realista, o longa tem uma beleza fria, e isso é expresso até mesmo pela fotografia, com quadros de pouca luz, seja em sequências internas ou externas, como também nos ambientes que os rodeiam.

    Paolo Virzì entrega um longa repleto de dilemas morais, questionamentos e um crítica cheia de ironia ao sistema capitalista. As respostas para as questões levantadas estão nas entrelinhas, nas atitudes de cada personagem, nas alegrias e amarguras de cada um de nós. Afinal, quanto vale a vida?

  • Crítica | Gomorra

    Crítica | Gomorra

    Sem qualquer pudor. A violência real, imediata, crua, com assassinatos em lugares cotidianos e cometidos por um elenco sem atores profissionais. Emula realidade com a mesma crueza do livro de Roberto Saviano. No filme de Matteo Garrone, os criminosos são pessoas comuns, sem o glamour dos romances de Puzo, vestem-se como maltrapilhos, habitam casas ordinárias e amam o cinema, referenciando a todo momento Tony Montana, um dos papéis marginais mais conhecidos de Al Pacino, a despeito até de seu Michael Corleone. A identificação com o cubano é mais fácil, dadas as condições paupérrimas dos napolitanos.

    Mesmo com o caráter de improviso, a face da Camorra mostrada em tela tem a sua hierarquia, que tem de ser respeitada, mesmo pelos adeptos que habitam a ralé. A linha narrativa funciona como uma colcha de retalhos, com períodos em formatos de pseudo-esquetes que são coladas pela violência visceral da fita. Os dramas mostrados servem para compor um quadro depressivo, do quanto sofre a população com as ações do Sistema, que se sente dono de todo lugar onde pisam.

    Desde cedo as crianças e jovens são doutrinados na feitura de assassinatos e crimes. Os becos escuros não são imundos somente em seus concretos e tintas gastas, mas também em seus espíritos, sujos como as almas daqueles que amedrontam e extorquem os ordinários. As marcas de balas que ficaram nos coletes são marcas de guerra, fruto da síndrome da iniciação.

    Os tiros na região pantanosa, sem roupas, despidos quase como quando vieram ao mundo revela uma inserção de corpo e alma dentro do ideário do Sistema – nome dado pelos camorristas ao seus clãs e modo de governo. Os meninos quase sem pelos ou sinais de vida adulta já voltam suas forças para um destino preponderante e errático, cuja vida certamente será bem curta dada a alta taxa de mortalidade comum a essa parcela da população.

    Afora o elenco amador, há dois papéis preponderantes, que impõe respeito a fita mesmo com seus papéis secundários. O tecelão Pasquale, vivido por Salvatore Cantalupo mostra o deslumbramento que um civil tem em receber toda a atenção dada pelos mafiosos, além é claro das benéces do trabalho de alta rentabilidade, mas é pródigo em mostrar também o quão efêmera pode ser esta subida e como a queda é devastadora. Toni Servillo vive Franco, um executivo, um chefe comorrista bastante diferente do arquetipo honrdo do anti-herói Don Corleone de Brando. A tal honra mostrada no filme do Coppolla não é tão presente nesta versão moderna, sinal dos tempos, sinal de verossimilhança.

    A fórmula que mistura ficção de documentário, hoje absolutamente laureada e comum, não era tão corriqueira pelos idos de 2008. A realidade impressa, com os resquícios de western spaghetti, vista nos rostos suados dos personagens, emula também o cotidiano sincero das ruas napolitanas, onde a tragédia habita e vive lado a lado comm todos os fatos corriqueiros, habitando as mesmas terras do proletário e fazendo valer seu domínio sobre os que eles exploram.

    O resultado esmagador no destino de Pasquale é amedrontador, com a redução de sua auto-estima a zero, a despeito até do seu talento rarissimo. As humilhações que o conterrâneo sofre são muitas, variadas, onde o Sistema demonstra sem qualquer misericórdia quem manda, quem dá as cartas, quem rege os destinos e quem é o dono da vida, desde a dos camorristas até a alheia. Não há muita menção ao governo ou ao Estado, visto que o poder deste é mínimo perto do que faz valer a organização. Gomorra mostra uma realidade tão ímpar e digna de combate que se assemelha as piores imaginações sonhadas por romancistas, contistas e contadores de histórias, como um forte golpe na face da sociedade, que entre outras tantas hipocrisias, permite a livre ação dos homens denunciados por Roberto Saviano.

  • Crítica | La Sapienza

    Crítica | La Sapienza

    A definição da palavra sapiência refere-se ao excesso de conhecimento, algumas vezes relacionado a onisciência, típica do Divino. O novo filme do francês Eugène Green apresenta esta sensação, se valendo de arquétipos que a priori são vazios e frios, mas que ao longo da fita exibem curvas dramáticas atrozes e vidas repletas de angústias e anseios, quase sempre não alcançados.

    A câmera de Green em La Sapienza contempla monumentos europeus, artes barrocas e clássicas, antecipando o ideal arquitetônico dos personagens que mais tarde serão explorados pela lente inconformista do diretor. As relações mostradas a partir do casal Alexandre (Fabrizio Rongione) e Aliénor (Christelle Prot Landman), cuja aproximação está claramente deteriorada graças a rotina de anos lado a lado, uma postura vinda de ambos os lados, o maior catalisar dessa condição.

    As relações frias, formais, rígidas e distantes seguem por todo o roteiro, especialmente quando a dupla resolve mudar para a Itália. A troca de país os faz discutirem a respeito da rigidez da língua francesa que serve mais como uma alegoria à insensibilidade do casal médio francês. O enquadramento de fala individual mais uma vez remete à distância entre as linguagens, onde microcosmos tão distintos teimam em se tocar.

    A rotina insossa do par é cortada por uma dupla de irmãos, cuja menina desmaia em meio a rua, tendo em Aliénor o seu socorro. Agradecidos, Goffredo (Ludovico Succio) e Lavinia (Arianna Nastro) oferecem a hospitalidade do estabelecimento comercial de sua mãe para que a dupla se instale. Ali há uma convergência entre duas gerações distintas, separadas por um abismo de interesse totalmente diferente, ainda que tenham nos dois homens – Goffredo e Alexandre – a mesma paixão pela arquitetura.

    Depois de “discutir” de um modo tão civilizado que mal parece uma briga, dada a quietude de ambos, Aliénor manda seu marido viajar com Goffredo, para estimular o rapaz nos estudos do ofício em ser arquiteto. O homem de meia-idade prefere ainda manter uma longitude segura, encerrado em sua autossuficiência discutível, mas aos poucos começa a se afeiçoar ao rapaz, revelando até os motivos que o fizeram se apartar de sua esposa, levantando até a hipótese de um herdeiro indesejado como catalizador de uma reaproximação.

    O pupilo e o mestre finalmente se encontram e se aceitam dentro de seus arquétipos, após longas divagações e negações, que remetem a uma profunda reflexão de suas vivências separadas e mais tarde, conjuntas. A troca de experiências entre os amantes da arte é como uma relação, não sexual, mas de emoção e sentir, que consegue fechar o seu ciclo, dentro da relação entre o jovem e o ancião, e entre as partes do par focado desde o início, levado por um roteiro que se fecha assaz poético.

  • Crítica | Viva a Liberdade

    Crítica | Viva a Liberdade

    Viva-la-libertà

    Thriller político iniciado com uma corrida na direção de um discurso político protagonizado pelo palestrantes e seus assessores, seguido de uma apresentação repleta de discussões, tão sanguíneas como a verve italiana: um belo estereótipo de como os italianos agem em sua intimidade. Viva a Liberdade, de Roberto Andò, é o retrato do quão difícil é fazer política na Itália, especialmente quando se é oposição. Nesse ponto, reflete a realidade de muitos países, inclusive a do terceiro mundo tupiniquim, “república das bananas”, Terra Brasilis. Os mesmos argumentos falaciosos que denigrem a parte esquerdista de ver o quadro sócio-econômico atingem os protagonistas do filme.

    Toni Servillo faz Enrico Oliveri, o secretário principal do partido oposicionista, que por dar ouvidos aos seus inimigos políticos, mostra-se um sujeito inseguro e repleto de dúvidas, algo que para um candidato é muitíssimo refutável e repreensível. Seus momentos de intimidade são quase todos melancólicos, e a postura remete a um derrotismo que sequer foi anunciado ainda. A equipe criativa responsável pelos discursos do político põe em pauta também a fraca motivação do sujeito, escolhendo saídas plausíveis para o seu estado depressivo. Enrico parece envolvido em um irresistível invólucro de depressão o qual só poderia evitar caso tivesse uma ação bastante radical e de natureza externa.

    É bastante curioso o modo como a fita transita entre o gênero dramático e a comédia, variando de modo fluido e espontâneo. As preocupações com o futuro de Enrico podem ser concentradas no personagem Andrea Bottini, de Valerio Mastandrea, o assessor mais próximo do imberbe candidato. Quando Enrico some dos olhos de seus conhecidos, Bottini o procura na casa de um parente, encontrando um membro do clã, Giovannni Ernani, absolutamente igual a ele, tão parecido com o sujeito que a confusão entre ele estar interpretando ou não um papel é considerável. Após uma série de tropeços e, claro, após uma corajosa iniciativa, os membros do partido decidem prosseguir a campanha com Ernani no centro das articulações.

    A diferença de espírito é notada logo no início. Giovanni não titubeia diante dos abutres da imprensa e consegue se desviar como um autêntico membro do governo, usando de sutileza quando precisa, mas também distribuindo coices quando julga necessários. A mudança transforma completamente o esforço de campanha, tornando todo o trabalho menos penoso e mais alegre e positivo e, por isso, com maiores chances de lograr êxito.

    O verdadeiro Enrico prossegue em seu exílio levando uma vida bucólica e idílica, em nada parecida com a rotina difícil e estressante da zona urbana onde normalmente reside. Essas novas experiências servem para recarregar as baterias, reunir forças novamente, para retomar seu lugar de direito quando necessário. No entanto, seu sósia vai tão bem que aqueles que sabem da farsa pensam muito se vale destruir a encenação, substituindo este pelo eleito de direito mesmo que este direito seja discutível.

    O jogo de sedução imposto pelo candidato deveria envolver somente o eleitorado, mas isto se alastra para outros campos. O homem popular capta a feminilidade de cada uma das mulheres que o encontram, graças a sua persona sempre carismática e que nesse momento torna-se afrodisíaca e irresistível. O que não fica exatamente claro é se isso já ocorria antes da mudança de corpos ou se foi essa transmutação que causou toda a alta na popularidade do possível eleito.

    É interessante notar a aura e o clima surreal que envolve o desenrolar do quadro eleitoral, sendo este quase sobrenatural dada a irrealidade em seu caráter . A sensibilidade proposta no enfrentamento das situações é flagrante, especialmente por humanizar um processo que é (e sempre foi) muito burocrático e que, mesmo assim, ainda guarda uma enorme parcela de conduta emocional. O foco nesta exata parcela é uma escolha muito feliz do roteiro. A paródia de Roberto Andó sobre o seu próprio romance contém um fino equilíbrio de crítica social, humor ácido e leveza de espírito, com uma sensibilidade poucas vezes vista em fitas políticas.

  • Crítica | Uma Vida Simples

    Crítica | Uma Vida Simples

    still life

    Em um tour pelos enterros esvaziados, nota-se o emprego curioso do senhor John May. Um inventariante de pessoas que morreram sozinhas, à procura dos parentes próximos daqueles que tiveram um fim solitário. A impressão de que a tônica é agridoce se conclui em menos de dez minutos de cena. A rotina pessoal do personagem de Eddie Marsan é tão insossa e meticulosa quanto o modus operandi de seu trabalho. Tudo em sua vida é milimetricamente calculado e ele tem métodos normativos até para o estresse diário.

    Apesar de May cuidar de pessoas e da solidão todos os dias, ele permanece austero, distante, como se inserido em uma redoma que visa impedi-lo de sentir qualquer emoção pela comiseração alheia. Enquanto apela aos que podem auxiliá-lo, John é convincente, sanguíneo e se envolve na história à qual está encarregado. Ainda assim, se lacra em roupas que o impedem de se contaminar com a vida alheia. Seu esmero é algo único e o modo de operar o faz muito singular. Tudo vai bem, até que seus superiores mudam e May é considerado demasiado lento e, apesar de ser meticuloso, é mandado embora.

    A nova rotina do protagonista é em um serviço comum, em um estabelecimento comercial. Porém, sua mente ainda o obriga a agir lentamente até na hora de se vestir. Com um serviço generalizado e padrão, acha que suas funções serão poucas, ao contrário do faz tudo que usualmente se exerce nestes lugares. A oportunidade de mergulhar na rotina de um sujeito ordinário passa por John, mas ele permanece distanciado, agarrando a primeira oportunidade de voltar ao trabalho anterior, mesmo que sem receber por isso.

    A introspecção esconde uma empatia imensa, além de um interesse genuíno em exercer seu trabalho. Talvez seja pela crença em um destino ou qualquer designação prévia, ou só porque May não sabe fazer outra coisa. Movido pela saída forçada, a atitude de manter-se distante é quebrada. A nostalgia o faz presenciar sensações ainda mais catastróficas dos que as vividas. Mesmo não demonstrando, seu drama pessoal é real e notam-se pequenas mudanças que expressam desagrado, ainda que tais impulsos não sejam óbvios.

    A história de vida de John muda quando se envolve com a filha de seu último cliente. Ao pesquisar o drama do pai da moça, finalmente sente algo e, sem o costume de tais sensações, transita de um polo a outro do sentimento humano: sente vontade de dar fim a própria vida para, logo depois, abrir mão das vestes pretas, típicas dos momentos fúnebres, e finalmente ter sentimentos por alguém ainda em vida.

    Sua existência é interrompida por um fatídico acontecimento e, em seu enterro, não há a presença de nenhuma alma viva, a despeito de todo esforço em trazer conforto a família dos que se foram. Quem presencia o seu funeral são seus iguais, aqueles a quem dedicou os seus 44 anos de vida e que saíram de seu descanso eterno a fim de homenagear quem tanto se importou com suas causas. Apesar de um final sem uma redenção concluída – por falta de tempo ou talvez omissão, isso é discutível – a carga emocional do filme de Uberto Pasolini é altíssima, e a abordagem é tocante em todos os sentidos.

  • Crítica | Quando Explode a Vingança

    Crítica | Quando Explode a Vingança

    quando explode a vingança

    O italiano Sergio Leone se tornou um dos principais nomes no faroeste, não só por dirigir alguns dos filmes clássicos como a Trilogia dos Dólares ou Era Uma Vez No Oeste, mas também por ser um dos principais cineastas que ajudou a modernizar o gênero. É o que ele fez neste Quando Explode a Vingança.

    Sinopse: um irlandês perito em explosivos e ex-membro do IRA se alia a um bandido mexicano e acabam sendo jogados no meio da revolução mexicana e acabam ajudando na luta.

    O filme começa com um impressionante assalto à uma diligência por Juan Miranda, interpretado por Rod Steiger, e logo depois promove um encontro explosivo entre os dois protagonistas que se estranham, dando a entender que se trataria de mais um filme com história similar à da trilogia dos dólares. Felizmente, o diretor segue por outro caminho ao escolher uni-los em favor da revolução mexicana, trazendo algo diferente ao espectador.

    Os traços da direção de Sergio Leone, que o acompanham desde Por Um Punhado de Dólares (1964), mostram porque ele se tornou um dos principais nomes do faroeste: os closes e planos detalhes, além dos característicos zooms, são filmados para tornar a edição fluida nos momentos de tensão; a direção de atores com pouca ou nenhuma marcação, aliado as improvisações deixa os atores soltos para construir os personagens e tornar a mise-en-scene mais realista, menos conservadora, sem as interpretações teatrais dos filmes clássicos. No entanto, Leone também filma demais algumas das cenas, elas acabam sendo mais longas do que deveriam. O filme de 2 horas e meia poderia ter menos 40 ou 50 minutos que não faria muita diferença para a narrativa.

    James Coburn interpreta o irlandês John Mallory, enquanto Rod Steiger faz com que o bandido mexicano Juan Miranda ganhe vida. Ambos os atores fazem o que é exigido deles, no entanto, sem tornar nenhuma cena memorável ou digna de nota para a história do cinema do ponto de vista da atuação.

    Já do ponto de vista do roteiro a coisa muda de figura. O filme é bem escrito, e, fugindo um pouco da tradição dos faroestes do diretor, aqui temos constantes flashbacks em pontos chaves do filme que fazem o cruzamento entre a narrativa atual e passada, ajudando a criar a personalidade de Mallory e o seu passado revolucionário, o que dá ao espectador motivo suficiente para que o personagem participe da revolução mexicana quase que por vontade própria, diferente um pouco do mexicano Juan Miranda, que só pensa em tirar proveito próprio de situações da guerra. Este, até então resoluto em participar, muda de lado na impressionante cena de revelação da caverna.

    A fotografia realista mais uma vez denota o cuidado de Sergio Leone com uma mise-en-scene menos fantasiosa. Os constantes tons de marrom criam contraste com a filmagem no deserto, além dos figurinos igualmente marrons de quase todos os atores e figurantes. A decupagem das cenas é outro ponto alto: os já citados zooms, os closes e os planos americanos são recorrentes, no entanto, quase não há câmera na mão, recurso que alguns diretores de vanguarda passaram a usar nos anos 60 e 70 para quebrar com o cinema clássico. O resultado são as impressionantes cenas de batalhas que Leone ainda filma de forma conservadora, com a câmera no tripé.

    A edição do filme, como já dito, reforça a importância de Sergio Leone para o cinema e principalmente para o gênero do faroeste. Ela se utiliza dos inúmeros closes para aumentar a tensão do espectador nas cenas de conflito. No mais, o editor Nino Baraglia seguiu o roteiro e a direção mantendo as principais características do diretor. Ennio Morricone empresta o seu talento na criação da identidade musical do filme, que apesar de bonita, também passa batido no geral.

    Para finalizar, quem se interessa pelo gênero ou principalmente pelos filmes do Sergio Leone, este filme é obrigatório.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Meu Nome é Ninguém

    Crítica | Meu Nome é Ninguém

    meu nome e ninguem

    Baseado numa ideia de Sergio Leone – e esta é a única prerrogativa a ele alcunhada nos créditos – Meu Nome é Ninguém chegaria aos cinemas em 1973, sobre a régia de Tonino Valleri, de O Dia da Ira, e protagonizado pelo amigo da família e bom moço – já não tão moço – Henry Fonda e o herói cômico Terence Hill, famoso por seu cowboy Trinity, até por esse arquétipo há uma expectativa em relação à história que será contada.

    Nobody – Hill – é um sujeito maltrapilho, rápido no gatilho e que passa a seguir Jack Beauregard – Fonda – seu herói de infância, que oscila entre a figura do paladino e a do assassino a sangue frio com uma facilidade mórbida.

    Mas o tom de comédia é o que prevalece. Terence Hill é muito carismático e tem uma veia cômica muito eficiente, mas esse estilo cabe mais nos produtos de Trinity e Bambino. O filme fica cansativo e enfadonho, especialmente no meio da fita. A trilha de Ennio Morricone é boa, mas ajuda a forçar ainda mais o tom humorístico. É um western leve, quase não há sangue, a temática é até infantilizada, como um filme de super-herói no ambiente árido do oeste americano. O excesso de piadas empobrece o roteiro, mas não faz dele algo reprovável.

    Os indícios e pistas dados no começo aos poucos se desenrolam, formando a emboscada de Nobody como um mosaico somente para mostrar qual o intuito do bem-feitor desconhecido. A referência a Sam Peckinpah prenuncia o epílogo, e é claro, explana a larga influência dele nos realizadores italianos. A despedida de Sergio Leone do gênero é com uma temática bem diferente do habitual, a não ser pelas últimas cenas.

    Nobody quis libertar Jack de um desfecho anônimo para o seu destino, e deu fim à sua existência humana para torná-lo uma lenda. O discurso do “morto” evidencia o rompimento como uma época romântica, a do faroeste clássico, e a abertura para uma exploração menos idealizada do Oeste Selvagem, como era retratado no Western Spaghetti e sobretudo na filmografia de Leone, que por sua vez dá lugar a uma forma de crime mais organizado. O final maravilhoso tem um tom de profecia, como um axioma do que aconteceu após a queda de popularidade do gênero e consequente substituição do tema por ternos de risca de giz, o cinema acompanhou a realidade e mudou o foco de sua criminalidade, retratando-a de forma mais ostentosa, honrada e sofisticada. O roteiro nesse ponto é tocante e de uma sensibilidade única.