Tag: Documentário

  • Crítica | Parque Oeste

    Crítica | Parque Oeste

    Documentário de Fabiana Assis que fala sobre a condição de moradia no estado de Goiás e o espinhoso assunto relacionado as ocupações, Parque Oeste começa com um vídeo institucional sobre a capital Goiânia, uma cidade cuidadosamente organizada, ao menos é o que diz na propaganda. A diretora utiliza da ironia para quebrar a quarta parede e aliviar um pouco as tensões antes de começar a se aprofundar mais nas questões nevrálgicas de seu filme.

    O documentário é conduzido e narrado por uma mulher chamada Eronilde Nascimento que foi moradora do antigo parque oeste, que anda tranquilamente pelas ruas da cidade como uma autêntica filha da terra anda sobre seu lugar de origem. A conversa com o restante do povo é bastante franca e toda gente que passa por ela é tão simples quanto a própria. Por mais natural que essa movimentação possa parecer nesse momento, houve uma época que não era exatamente deste jeito.

    Segundo as pessoas entrevistadas, o Parque Oeste servia para desova de corpos e desmanche de carros antes de se tornar o lar de tantas famílias, não mais do que de repente muitas barracas começaram a aparecer, e aquelas terras foram sendo habitadas por milhares de famílias, em um movimento muito parecido com a favelização que tomou algumas das capitais do Brasil. Para muito além de qualquer discussão demográfica o que o filme de Assis tenta estabelecer é o óbvio, mostrando que o que tinha nesses espaço eram vidas habitando o lugar, mas esse entendimento básico não parecia estar no pensamento das autoridades.

    Há uma gravação do então governador Marconi Perillo, intercedendo para que se apressasse a desapropriação dos terrenos, e que essa fosse executada pela Prefeitura. A fala de Perillo faz notar alguns fatos, primeiro o óbvio e total descaso com que ali morava e segundo o complexo de Pôncio Pilatos que tinha, pois queria lavar as mãos e deixar a violência política ocorrer através do poder municipal e não em sua alçada. A discussão que o filme propõe a respeito da moradia como função social se estende para além da teoria e se torna prática.

    As cenas de tiroteio registradas por câmeras amadoras não são tão boas, basicamente por serem gravadas por pessoas sem técnica, no entanto, elas garantem uma veracidade absurda, pois são eventos reais registrados por quem sofre com as ações truculentas. As cenas são dignas dos fronts de guerra, e onde a qualidade das imagens peca em mostrar o mal agouro, seja por falta de qualidade ou por medo do cinegrafista, o som preenche o restante do imaginário de quem assiste e é simplesmente assustador, especialmente porque uma das “cenas” ocorreu às oito da manhã, com boa parte das treze mil pessoas que ali habitavam despertando do sono.

    Os moradores se abrigavam em barricadas, para se proteger do lançamento de bombas, e mais tarde, um ônibus transportava os despejados. Esses eventos formam uma sequência tragicômica e quase teatral, apesar do pragmatismo hiper-realista das ações de garantia da lei e da ordem. Os policias batiam nas mulheres sem qualquer pudor e essa era só uma das muitas violências que ocorreram. Em torno de 3500 moradias  foram derrubadas, com os tratores passando por cima das casas. Os desabrigados e despejados ficavam tão mal que cediam a paranoia e desconfiança até com as marmitas que recebiam do governo, temendo que essas estivessem envenenadas.

    Algumas partes do longa-metragem já foram utilizadas em outro filme de Assis, Real Conquista, um belo curta também de cunho político. Parque Oeste serve não só como continuação dele, mas também como expansão da discussão e temática, tão emocionante quanto outro, causando e ampliando as discussões a respeito de moradia e o direito de ir e vir. Apesar de ter alguns problemas de ritmo, que dispersam um pouco do público, o desfecho é muito bem pontuado por um rap que fala da realidade das desocupações e do povo que sofreu na pele, morrendo, sendo despejado e destituído do direito à moradia.

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  • Crítica | Bloqueio

    Crítica | Bloqueio

    Bloqueio começa logo após um letreiro de informe em tela preta, com uma câmera que passa pelo para-brisa de um carro, emulando o mesmo trajeto que as boleias de caminhão sempre fazem. No caminho, placas pedindo intervenção militar e outras de louvor a ultradireita. O longa se foca na paralisação dos caminhoneiros ocorrida no primeiro semestre de 2018 e parte dele para traçar um panorama sobre uma boa parte da população brasileira mais simples, mostrando o que e como pensam política.

    A obra de Victória Álvares e Quentin Delaroche pode até ser um filme politicamente enviesado, mas não ignora os lados ideologicamente opositores às pessoas que conduzem essa história, ao contrário, os trabalhadores falam abertamente sobre o que querem, suas reivindicações e ideias de como seria o futuro do país. Também se mostra os momentos de lazer dos caminhoneiros, fazendo churrasco em lugares improvisados, com gambiarras até nos chuveiros que por sua vezes estão atrelados a baldes. Quase tudo ali é improvisado.

    Da parte dos que se manifestam, há muitos gritos de Fora Temer, mas a maioria se declara como possível votador das pautas de extrema-direita. Uma das lideranças, Marcos da Silva dos Santos, é bastante enfocado e é ele que em muitos momentos faz o meio de campo entre os caminhoneiros e outras figuras de autoridade, em especial as espirituais, pois muitos pastores estão ali presentes. Isso de certa forma conversa com o recente documentário Eleições, de Alice Riff, e com sua entrevista onde se fala sobre o papel das igrejas neopentecostais junto à população mais pobre. Num dos cultos de jejum e oração, um líder neopentecostal faz uma oração que é repetida pelo povo, como uma reza artificial e pré-fabricada, longe demais do ideal de se falar com Deus de maneira íntima. Há uma intenção clara de denunciar o quanto aquilo tudo parece falso.

    Os debates entre movimentos de esquerda com os trabalhadores mostrado no filme está longe de ser de igual para igual, mas ainda assim há uma tentativa de diálogo, bastante sincera e isso vem de encontro a tentativa que a esquerda tem feito para tornar seu discurso mais palatável e menos acadêmico, de fácil entendimento, mas o processo é lento e mesmo nesse corte do filme se observa a rejeição por parte das pessoas mais simples. O processo de convencimento é lento e gradativo.

    A falta de esperança e desolação são os responsáveis pelo pedido dos caminhoneiros por intervenção militar, para a maioria deles o exército ainda é uma instituição respeitada e capaz de auxiliá-los, estabelecendo a ordem para pavimentar o país de novo no rumo do progresso. Bloqueio fala sobre muita coisa e peca por ter somente um tom, mas seus temas fazem até esses equívocos não soarem tão graves.

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  • Crítica | Excelentíssimos

    Crítica | Excelentíssimos

    Narrado pelo próprio diretor Douglas Duarte, Excelentíssimos é mais um dos filmes que tenta documentar o processo de golpe/impeachment de Dilma Rousseff. Apesar de esse ser um assunto de interesse nacional é também um projeto muito pessoal do cineasta. Para traçar seu panorama, ele busca voltar a 2014, eleição que fez Dilma se reeleger pelo Partido dos Trabalhadores, no quarto mandato do partido e esse resgata se dá por conta do cineasta achar que ter autorização para filmar o congresso em 2016 é pouco para ter uma visão realmente crítica sobre todo o processo.

    Depois dos preâmbulos, o filme foca nos olhos de Dilma, Aecio Neves e até de Michel Temer, em material de campanha, quando o quadro ainda não parecia tão calamitoso. Aecio cumpriria todo o script de bom perdedor, embora tenha mudado de ideia muito rapidamente, abrindo mão dessa postura de aceitar a derrota ou só despistando para sua real intenção de tomar o poder, mesmo que a força. Duarte gasta um tempo mostrando um congresso do PSDB, encabeçado por Fernando Henrique Cardoso, que deliberadamente dá voz ao senador de São Paulo Aloysio Nunes, afirmando que o que ele falar, virará manchete de jornais e revistas (e ele está certo). Nunes, que foi candidato a vice em 2014 afirma duas coisas importantes, que não há como governar sem o PMDB (atual MDB) e que o impeachment é como uma bomba atômica, é feita para dissuadir, e não para ser jogada, e eles (FHC e cia) jogaram assim mesmo.

    O registro de Excelentíssimos é bem inteligente, e compreende uma investigação minuciosa da oposição, fato totalmente necessário para entender o quadro político pintado ali. Aécio declarava em “campanha” em 2015 – apelidada por muitos de terceiro turno – que o PSDB era o futuro. Isso, em 2018  após o fracasso tucano no legislativo e executivo soa engraçado, e nas frases do ex-senador há o termo “lambança” ao se referir ao PT, que curiosamente casa, no filme e no noticiário político, com a verba de 45 mil reais pagos a Janaína Paschoal, a mesma que abriu o processo de impeachment e que foi eleita a deputada estadual mais votada da historia.

    O filme é dividido em capítulos, e o segundo é chamado de Aliança Desfeita, se refere ao rompimento de PT e PMDB e é aqui que é mostrada a aliança improvável de forças como Eduardo Cunha, Movimento Brasil Livre o MBL, os tucanos e a Fiesp. Também se explicita um caráter rachado no PMDB, com Cunha aparentemente de um lado (embora isso seja muito discutível) e Temer e PSDB de outro. A exposição do comercial do PMDB, de aproximadamente 10 minutos e conduzido por Fernanda Hamalek deflagra o desejo deles de assumir o comando do país a qualquer custo. Não era período de eleições, no entanto Cunha, Renan Calheiros, Helder Barbalho, Romero Jucá protagonizavam a peça como se fossem celebridades. A escolha da montagem por colocar Paulo Skaf, da Fiesp logo após esses momento não é à toa, uma vez que ele foi candidato do MDB ao governo de São Paulo e por pouco não foi ao segundo turno.

    Na parte 3, fala-se bastante do impedimento de Luiz Inácio Lula da Silva de subir ao posto de  ministro da Casa Civil. Apesar do documentário ter um volume de informações considerável, a maior parte desses dados são mostrados de uma forma correta, a mostra do planejamento do PT em trazer Lula para tentar negociar a permanência de Dilma no poder é feita em contraponto ao esforço midiático do juiz Sergio Moro em desmoralizar a figura do politico também agindo como um político. É bastante detalhada a operação feita pelos mandatários da Lava Jato, a descrição da Medida Coercitiva e o espetáculo pirotécnico envolvido.. Mas o filme não é complacente com o Partido dos Trabalhadores, e põe a interrogação do porque o partido ainda acredita em ações jurídicas e porque ainda insiste em usar essa estratégia, mesmo sabendo que o jogo é viciado.

    Excelentíssimos julga o próximo ministro da Justiça Moro, mostrando que ele tinha uma pressa política e que os grande meios da imprensa o ajudaram nisso, tentando transformar a subida ao ministério como uma movimentação de fuga da alçada da Lava Jato, e a maioria dos argumentos desses opositores se baseavam em áudios vazados ilegalmente, com pedidos de esfihas, piadas em graça, falas com amigos, e que para esses, vale até que possíveis provas cabais.

    Há um personagem deplorável que Duarte acompanha, , o deputado Julio Lopes do PP do Rio de Janeiro, que  fala barbaridades e destila preconceito, mas em uma coisa Lopes está correto, o PT só queria atrasar o processo de decisão ou não pela saída de Dilma, mas isso não ocorria pela inércia do partido e sim pelo jogo de cartas marcadas, como já foi muito bem discutido em O Processo.

    A voz que o cineasta dá a oposição e não só ao PT e aliados é um diferencial que faz desse documentário um bom retrato do que foi toda a movimentação política. Do lado petista, o deputado Silvio Costa se destaca como articulador governista, incrédulo de que aquilo prosperará, denunciando que aquele movimento cheirava a elite paulistana ingrata e dizia que a  guerra de verdade era no plenário. Apesar dos seus prospectos estarem errados, seu julgamento foi correto. Enquanto isso, quando Miguel Reale e Janaina prestam depoimentos, falam brevemente sobre as pedaladas e muito sobre corrupção, crimes dos quais Dilma não participou e sim os que capitaneiam a comissão de investigação. Para o leitor menos atento pode parecer que o filme é tendencioso, mas essa parte em especifico não é, realmente os juristas falaram muito mais de corrupção do que o motivos das pedaladas mesmo.

    Lembro que ao assistir Eduardo Cunha falando na câmara, havia um cinismo absurdo, típico de quem jamais temeu qualquer ação da justiça e Douglas Duarte também traz esse aspecto ao centro das discussões.  Mesmo achincalhado no plenário, o até então presidente da câmara permanece frio diante das falas e insultos contra si,  na maior parte desses momentos critico e criticado estão no mesmo enquadramento. Ri e conversa como se não houvesse nada ali. Ao mesmo tempo o filme destaca a tentativa de reaproximação de Dilma dos movimentos populares, ainda que tardiamente, e também a julga, mostrando que demorou-se muito para o PT retomar as bases, erro esse que também se mostrou existente nas eleições de 2018.

    Na escolha por julgar alguns personagens, o longa beatifica a figura de José Eduardo Cardozo, em uma tomada de uma nitidez absurda,  com um close que quase invade a alma do advogado de defesa, assim como trata o deputado Carlos Naum como um mentiroso debochado com o povo, uma vez que quando ele se refere a Cunha ele alega que não é responsabilidade da câmara julga-lo já que o povo pode fazer isso, e com Dilma a mesma regra não vale.

    Ainda há espaço para analisar Jair Bolsonaro que se declarava pré candidato em 2016. A câmera foca um bom tempo na estranha figura quando ele  ainda era do PSC (o futuro presidente ainda trocaria de partido duas vezes antes do pleito) e o que se vê é um discurso demagógico, bufão, debochado, raso e sectário, prega uma união onde uns são mais iguais que os outros, apelando para chavões como ser contra o coitadismo. Aqui já havia o slogan Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos. Também é mostrado Onyx Lorenzoni, em uma reunião do PSDB e o registro dos bastidores mostra o baixo clero agindo, normalmente evocando mentiras, como um suposto projeto de lei que permite operação de troca de sexo para crianças.

    No final de Excelentissimos, Duarte narra os rumos de cada um dos envolvidos no impeachment, destaca falas de Dilma, de que a democracia será sempre o lado certo da historia, alem da de Temer, que repete irritantemente a frase que o marcou como presidente, não fale em crise, trabalhe. A governabilidade do PT tão criticada pela oposição é também usada por Michel e o documentário flagra o silêncio ensurdecedor de todos, inclusive relacionando o caso de Geddel Vieira (onde foram encontrado mais de 50 milhões em casa) e a falta de protestos relacionados a isso é impressionante, mas Duarte não é ingênuo, denuncia também os erros estratégicos do partido que governou o país nos últimos anos, mesmo que ponha em contraponto as injustiças cometidas contra o governo do partido, e é nesse ponto que seu filme se torna ainda mais poderoso, por não julgar que há inocentes puros e simples em todo esse processo.

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  • Crítica | Carvana

    Crítica | Carvana

    Documentário que celebra a memória e carreira do ator e diretor Hugo Carvana, além de evidentemente evocar a pessoa carismática e malandra que ele apresentava, o filme Carvana de Lulu Corrêa começa mostrando cenas em preto e branco. Não demora a aparecer a própria figura de Hugo Carvana, falando de suas memórias mais antigas, declarando o que fazia na época que a Tijuca era repleta de cinemas e onde algumas estrelas do cinema internacional por ali transitavam, em meio as ruas da zona norte. Nesse ponto, entram entrevistas dele bem mais novo, já com seu bigode grosso e cabelos grisalhos, falando de testes para figurante que fez quando jovem e como se apaixonou por aqueles cenários.

    Carvana, mesmo já bem idoso fala de maneira lúcida, e lembra das peças que fez com Gianfrancesco Guarnieri e filmes com Ruy Guerra, lembrando como era salutar e educativo fazer arte dessa forma e como esses trabalhos moldaram seu caráter, ao mesmo tempo que não influíram tanto em sua vida pessoal, capaz sempre de gastar todo o dinheiro que ganhava em bebidas e muita farra.

    Talvez até inconscientemente, Corrêa consegue fazer um filme que mesmo se valendo de um formato documental tradicional, consegue soar ensaístico, com algumas semelhanças com o belíssimo Todos Os Paulos do Mundo, que fala sobre Paulo José, velho companheiro de Hugo. Esse caráter do longa se dá principalmente por conseguir registrar bem a alma do biografado, em especial quando fala de seu modo de atuar.

    A fala simples e cadenciada de Carvana contém um humor implícito e uma riqueza atroz que faz dele um belo contador de histórias. O documentário, apesar de bastante formulaico, sabe usar seu estilo para emular toda a tranquilidade e alma despreocupada do artista e do homem, que adorava conversar e que era amado por muitos. Por mais que não tente reinventar o formato, Corrêa consegue entreter e divertir, tal qual era o lema de Carvana como realizador e intérprete, e só por isso sua memória já é bem lembrada e relembrada.

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  • Crítica | A Valsa de Waldheim

    Crítica | A Valsa de Waldheim

    De Ruth Beckerman, A Valsa de Waldheim começa em maio de 1986, com uma filmagem encontrada em uma fita VHS antiga da diretora, em uma manifestação a respeito da candidatura de Kurt Josef  Waldheim, político carismático e amado pelo povo austríaco, mas que tinha um passado nebuloso e bastante confuso. Beckerman era oposição a ele, e suspeitava que a aparência de bom velhinho escondia algo.

    O filme é narrada pela diretora, fato que proporciona ao filme uma aura de pessoalidade extrema, mesmo que o objeto focado seja uma figura pública tão polêmica. Uma das situações que mais marca no depoimento de Beckerman é a descrição dos gestos que Waldheim vivia fazendo, sempre com movimentos de mãos que imitavam abraços. Sua linguagem corporal transparecia o seu discurso, de ser o homem da família. As filmagens de 86 lembram Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, e em muitos outros momentos esses dois filmes conversam.

    O longa participou do Festival de Berlim esse ano, e curiosamente a história apagada de suas filmografias tem proximidade com a Alemanha, uma vez que ele foi um ex-soldado da SA (abreviação de Sturmabteilung), polícia de assalto nazista. Em alguns materiais biográficos, fala-se que ele foi dispensado por doença, e em algumas entrevistas ele simplesmente nega que tenha servido, apesar de seu nome constar nos registros e essas contradições fizeram sua reputação cair ainda mais. A diretora escolhe muito bem algumas imagens de julgamentos onde o filho do político passa uma vergonha tremenda ao tentar defender seu pai, ao mesmo tempo em que as autoridades internacionais afirmam que ninguém além da família dele acredita nessa versão açucarada que a campanha faz dele.

    Waldheim antes de tentar a presidência foi embaixador da ONU, pessoa respeitada apesar de ter em seu passado fatos que depunham contra si. Quando representava a Áustria em uma solenidade relacionada ao holocausto, ele não cobriu a cabeça como manda a tradição e a repercussão apesar de negativa, não foi tão execrada quanto poderia. Há um trecho de falas do político que se destaca em meio as muitas coisas que ele falava, todo momento ele perguntava se durante a segunda guerra mundial só morreram judeus. Beckerman quer reforçar ao público que esse argumento é tendencioso e perigoso, podendo esconder um preconceito interno e a vontade de se vitimizar para esconder os seus próprios pecados.

    Houve uma espécie de anistia aos austríacos nazistas e durante anos se acreditou que a Áustria não contribuiu com o Terceiro Reich, sendo sempre encarada como vítima, apesar da presença de pelo menos 550 mil nazistas no país. A construção da figura de homem justo em torno de Waldheim é muito bem orquestrada e conversa demais com algumas figuras políticas atuais, entre elas Jair Bolsonaro ainda que no caso do brasileiro essa construção seja muito mais escrachada e desavergonhada quando se trata de discurso de ódio. Ao final, uma cena chama a atenção: Kurt discursando para o povo em meio a uma forte chuva, uma amostra de sua importância para a população em geral.

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  • Critica | Relatos do Front

    Critica | Relatos do Front

    Sem qualquer introdução ou explicação prévia, Relatos do Front, de Renato Martins começa mostrando pessoas comuns aguardando um tiroteio acabar. A parte lamentável desse registro é que ele poderia se passar na maioria esmagadora dos arredores das favelas do Rio de Janeiro, ou seja, o caráter da denúncia que é proposta no filme é universal.

    O longa conta com entrevista de intelectuais, como o escritor Jesse Souza, a antropóloga Jacqueline Muniz, e André Batista, que colaborou com o roteiro de Tropa de Elite, e todos eles colaboram muito para o conteúdo final. Há uma fala, de Beto Chaves, atual inspetor da polícia bastante forte. Ele afirma que a carteira da polícia, para o agente da lei, é quase como um atestado de óbito ambulante, qualquer bandido que a veja simplesmente o assassina. Ele faz uma comparação de que o o treinamento para que se proteja as vidas da população não podem ser tranquilos, uma vez que eles tem que lidar com uma guerra urbana diária. Ele também diz que não é um capitão do mato moderno, mesmo que as favelas pareçam uma atualização dos quilombos. Para Chaves, o problema não é só da polícia, a violência com que agem os agentes da Lei é um reflexo da sociedade, já que todos os agentes provém desse mesmo meio social, e não de  um lugar isolado.

    A sucessão de poder no governo do estado do Rio de Janeiro foi sempre recrudescendo, se tornando mais violenta. Leonel Brizola tratava como questão de humanidade o combate a criminalidade, mas seus sucessores tinham e tem discursos agressivos contra o poder paralelo, e isso é mostrado numa montagem muito inteligente que reúne essas falas e denuncia a forma tacanha de pensar a segurança pública, oprimindo o pobre ao invés de ir atrás do que origina o tráfico.

    Apesar da abordagem televisiva do longa, Relatos do Front é certeiro em tentar causar tanto comoção como reflexão sobre como o Rio de Janeiro chegou ao estado de guerra urbana, apontando dedos certeiros aos governantes que causaram o agravamento não só da guerra às drogas, mas também aos que assistiram de camarote o crescimento das milícias. Não se subestima a capacidade nem de pensar e nem de agir dos policiais, tampouco se demoniza ninguém. Essa opção de pontuar todas as complexidades desse cenário é muito bem exercido, abrindo ao público sua própria conclusão.

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  • Crítica | Eleições

    Crítica | Eleições

    De Alice Riff, mesma diretora de Meu Corpo é Politico, o longa-metragem documental Eleições mostra a rotina da Escola Estadual Doutor Alarico da Silveira, no centro de São Paulo, mais focalizada nas falas dos alunos do ensino médio que se encaminham para um simples pleito do grêmio estudantil, e nesse ponto se vê como a aproximação do período de candidaturas mexe com os ânimos e com as rivalidades internas, seja no âmbito pessoal, convicções ou na expectativa de futuro que cada um dos personagens retratados possuem.

    Não há qualquer jovem idealizado. A câmera flui de maneira muito natural pelas salas, pátios e corredores da escola, registrando de maneira bastante tranquila as falas dos entrevistados, variando normalmente entre os sonhos dos meninos e meninas que estão em fase de decidir o que prestarão no vestibular, além de mostrar a tensão com a proximidade da eleição.

    Em tempos em que se fala em bobagens como Escola Sem Partido, assistir a obra de Riff serve até de inspiração, tal qual o que ocorreu com o recente Escolas Em Luta, que também mostrava a resistência de alunos que ocuparam escolas, embora claramente haja uma diferença de caráter e espírito entre os dois filmes.

    Iniciativas como essas deveriam ser exibidas em escolas, fato que se torna quase impossível com o avanço agressivo de grupos que buscam fiscalizar se há discurso ideológico em sala de aula ou nos ambientes escolares, ainda que obviamente a preocupação não seja exatamente com as crianças serem doutrinadas ou não, mas sim com a desinformação.

    O filme é extremamente divertido, e é incrível como o micro-cosmo estabelecido ao longo dos pouco mais de 100 minutos consegue representar bem o cenário das eleições de 2018. Por mais que a maior parte da toada de Eleições seja ligada a comédia, há uma profunda reflexão a respeito do analfabetismo político que toma conta do brasileiro, além de levantar questões a respeito de chapas que fazem alianças com religiosos e uma discussão bem contida sobre identidade de gênero, tudo isso mostrado de uma maneira simples e palatável.

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  • Crítica | Humberto Mauro

    Crítica | Humberto Mauro

    De André di Mauro, o documentário Humberto Mauro começa de forma experimental, preto e branco em praticamente toda sua duração e se munindo de imagens de arquivo para contar a história de seu personagem. O longa mira na carreira do diretor que dá título ao filme, mostrando cenas de seus filmes e outros momentos entre os anos 1930 e 1960.

    O modo de contar a história é um bastante contemplativo, se vale das imagens de crianças que habitam os cenários campestres, além de algumas imagens da intimidade da roça presentes nos filmes de Mauro. Nesse ponto há uma mistura entre momentos de natureza morta com a revoada dos pássaros, utilizando a música clássica para acompanhar o momento em tela, possivelmente evocando a catástrofe que mora na interferência humana da natureza.

    Algumas vezes as imagens desconexas fazem sentido, e conversam bem com os ideais de Mauro, mas a realidade é que é um filme para nicho, para quem conhece a carreira do cineasta. Não há muito espaço para quem não é especialista no cinema brasileiro desde o período do cinema mudo, no entanto, para esses que entendem da arte, soa extremamente reverencial à obra do biografado.

    Há algumas semelhanças espirituais com  Cinema Novo, de Eryk Rocha, ainda que claramente não haja a mesma intenção ou pretensão de falar sobre todo um movimento, tampouco costura estilos distintos unicamente por serem da mesma época. Di Mauro acerta muito em biografar apenas um artista, podendo enfim falar de maneira direta, franca e hermética sobre a carreira e obra do cineasta.

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  • Entrevista | Susanna Lira, diretora de Torre das Donzelas

    Entrevista | Susanna Lira, diretora de Torre das Donzelas

    Com exibição durante o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo, Torre das Donzelas surpreende por sua delicadeza e atualidade, e para entender um pouco mais sobre o filme, entrevistamos Susanna Lira, diretora do documentário. Confira a entrevista completa abaixo.

    Vortex Cultural: De onde veio o desejo de filmar um projeto como A Torre das Donzelas e qual foi a dificuldade de tirar as declarações das mulheres entrevistadas?

    Susanna Lira: O desejo por trás de A Torre das Donzelas vem muito da questão de apresentar uma narrativa feminina na luta contra a ditadura, na luta pela democracia. Acho que vários filmes foram feitos sobre o assunto, e poucos sobre mulheres. Faço isso até para ser coerente com a minha obra.

    Foi muito difícil, durante sete anos tentamos convencer as mulheres, umas eram muito eloquentes, outras não, e a confiança com essas mulheres foi sendo conquistada através dos anos, e elas foram se abrindo aos poucos, a medida que confiavam mais em nós, visto que estávamos nos conhecendo.

    Vortex Cultural: Além de você, quantas pessoas trabalharam coletando os depoimentos ?

    Susanna Lira: As entrevistas foram feitas só por mim, e foram realizadas em várias etapas, sendo a primeira na casa de uma delas, em 2012 senão me engano, mas só aproveitei duas frases desse pedaço, a outra foi feita em 2016, e que já foi no fundo preto e outra etapa de entrevistas já dentro da torre, ou seja, o trabalho foi dividido em três etapas.

    Vortex Cultural: Uma das melhores coisas do filme é a franqueza com que as entrevistadas falam. Em muitos filmes sobre a Ditadura Militar se nota um certo pudor com as palavras mais chulas, no seu filme não, as mulheres falam abertamente da violência que sofreram, usam termos como “curra” e denunciam abertamente os estupros sofridos, qual o motivo primordial para elas terem se aberto de maneira tão verdadeira com você? Você acredita que é por conta da solidariedade comum as mulheres ou os pudores foram deixados de lado após todo o sofrimento da tortura?

    Susanna Lira: Sobre essa questão delas se abrirem pro filme e usarem um palavreado bastante natural, é fruto do período em que íamos ganhando confiança, e assim elas iam se soltando, além de fatores externos que também influenciaram. Na iminência de acontecer o impeachment da Dilma (Rousseff, que também é entrevistada no filme) elas se soltavam ainda mais, pois julgavam urgente falar sobre o assunto, por receio de sofrer outro golpe.

    Vortex Cultural: Apesar de muitas entrevistadas você claramente tem uma estrela em seu filme, que é a ex-presidenta Dilma Rousseff. Como foi a entrevista? Lembro que em outros momentos, como quando foi entrevistada realizada por Mariana Godoy, ela se saiu muito certeira e firme em suas respostas, mesmo diante de perguntas complicadas e do momento que vivia. Minha sensação é equivocada ou ela pessoalmente parece mesmo uma pessoa talhada para lidar com a adversidade?

    Susanna Lira: A entrevista  foi feita já pós impeachment, e ela já tinha ouvido sobre o projeto do Torre, e isso a encorajou a participar. O bruto tem mais ou menos duas horas e eu considero do ponto de vista de raciocínio o depoimento dela brilhante, ela faz uma síntese do que aconteceu ali dentro de uma maneira bem construída, e isso fica claro no filme. Ela fala muito bem. Eu tenho uma entrevista de duas horas que eu poderia publicar sem cortes, uma entrevista bastante rica e você nota a entrega dela. As próprias companheiras de cela falavam isso sobre ela, e dentro da torre ela era uma líder.

    Vortex Cultural: Você já tem alguma ideia sobre um novo filme? Pensa em fazer ficção, visto que há partes teatrais em seu documentário?

    Susanna Lira: Eu tenho vários projetos em andamento, um sobre o comentarista e ex-jogador Walter Casagrande, outro sobre luta de terras no Brasil, ambos documentais. Além disso, eu já dirigi uma série para o Universal Channel, em 10 episódios, chamada Rotas do Ódio, e mais dois projetos de ficção em mente que estou em busca de recursos. De modo que, não vou fazer uma migração, acho que sempre farei documentário, mas quero trabalhar com ficção sem abandonar o trabalho como documentarista.

    Vortex Cultural: Como você acha que seu documentário conversa com a atualidade política do Brasil, em especial o que vem se demonstrando nas trocas de poder em 2019?

    Susanna Lira: Esse filme a principio era sobre memória, um período bárbaro que nós jamais gostaríamos que fossem repetidos, e infelizmente quando passa a ser exibido e fica pronto, quase narra os próximos passos políticos no Brasil. Uma das personagens até salienta que é importante relacionar o que elas viveram com o que estamos vivendo agora. Então, infelizmente, eu espero que não seja da mesma forma, que tenhamos liberdade e espaço de crítica e oposição, democrática e pacífica, e que a gente não precise repetir nada do que aconteceu, mas confesso que fico preocupada com a atualidade do filme. Qualquer outra pessoa diria “que coisa oportuna”, eu preferia estar inoportuna agora e não ter essa atualidade tão grande. Eu vejo muita semelhança com a narrativa que elas me passaram com o que está acontecendo no Brasil. Infelizmente.

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  • Entrevista | Daniel Gonçalves, de Meu Nome é Daniel

    Entrevista | Daniel Gonçalves, de Meu Nome é Daniel

    Entrevistamos com exclusividade o diretor e roteirista Daniel Gonçalves, estrela e criador do longa Meu Nome é Daniel. Conversamos com ele e o resultado você logo abaixo.

    Vortex Cultural: Seu filme é bastante inspirador e pessoal. Há coisas ditas e mostradas nele que claramente só ocorrem tão bem e com caráter tão verdadeiro porque foi o próprio biografado que fez. Te pergunto desde quando há esse desejo em contar essa história?

    Daniel Gonçalves: A história começa com um curta, que eu fiz em 2014 chamado Como Seria, e nesse curta eu tento imaginar como seria a minha vida se eu não tivesse essa deficiência. A princípio eu fiz esse curta para um desses concursos de internet, mas acabou não indo para frente, e depois disso eu decidi lançar o filme no Facebook e no youtube, e o vídeo viralizou. Ao analisar toda a repercussão percebi que havia mais história para ser contada. Assim eu comecei a desenvolver o projeto do longa, que começou em 2015, com um campanha de financiamento coletivo, e através dessa campanha com a TV Zero, e o Roberto (Roberto Berlinier) quis entrar, depois disso ganhamos o primeiro edital, então a história começa de 2014 para cá.

    Vortex Cultural: Dada a qualidade do filme, espera-se que você continue fazendo filmes, há ideias de contar outras histórias ou sua ideia é dar continuidade a outros acontecidos autobiográficos?

    Daniel Gonçalves: Sim, eu desejo e quero continuar fazendo filmes, e no momento eu, a minha produtora e mais alguns amigos estamos desenvolvendo três projetos: um documentário sobre um artista brasileiro Flávio de Carvalho, um documentário sobre sexualidade e pessoas com deficiência e um documentário sobre educação inclusiva. Desses, o que está mais avançado Acessexibilidade, que fala de sexualidade e pessoas deficientes.

    Vortex Cultural: Ao final do filme há uma reflexão sobre as suas dificuldades e facilidades. Onde você acha que a sua história te ajudou a montar um filme tão belo e inspirador?

    Daniel Gonçalves: Tiveram algumas coisas que colaboraram para isso… a primeira é o fato dos meus pais terem me gravado tanto, sem esse material de arquivo, dificilmente o filme existiria da maneira como ele é. Depois, a própria maneira como eu hoje enxergo cinema, em especial documentário. Eu tendo a gostar muito de filmes mais pessoais, de filmes que só o diretor mesmo pode fazer e o Meu Nome é Daniel só existe porque eu mesmo estou contando essa história. Apesar de eu saber que ele inspira as pessoas, nós tentamos tirar dele tudo que poderia causar uma emoção automática e barata, quase não há música, a minha narração é mais descritiva do que emotiva e a gente evitou ao máximo o clichê do coitadinho ou do cara “super foda”, quase como um arauto da superação, um super-herói. É um filme bonito, mas a emoção dele não é barata, é uma emoção muito legítima.

    Vortex Cultural: Há alguma negociação para que o filme entre em circuito comercial, se sim, quais são suas expectativas quanto ao público geral conseguir vê-lo?

    Daniel Gonçalves: Nós temos um contrato de distribuição com a Olhar Distribuição, de Curitiba. O filme entrará em circuito, e provavelmente, será lançado ano que vem. Eu espero que a carreira dele nos festivais seja positiva, e se ele passar de 10 mil espectadores eu ficarei muito feliz, pois é um número muito bom para documentários.

    Vortex Cultural: Ao terminar de assistir Meu Nome é Daniel dá  uma vontade de pegar uma câmera e partir pra gravação de um filme. Digo isso mais pela ternura da história e o modo de contar do que pelas dificuldades comuns de fazer arte no Brasil. Você imaginava que poderia causar isso nas pessoas que veriam seu longa?

    Daniel Gonçalves: Eu confesso que é a primeira vez que ouço que meu filme inspirou pessoas a quererem fazer filmes. Em relação a isso não imaginava que isso poderia acontecer, mas eu fico feliz, porque eu acho que a grande potência do filme é mostrar a riqueza dessas coisas que aparentam ser banais (refere-se a gravações de coisas de família) mas que num contexto do filme, quando é montado de uma determinada maneira, essas imagens podem ganhar uma força muito grande. Acho que no fundo a gente faz cinema para isso, pra gerar vontade, pra gerar desejo, pra gerar reflexão nas pessoas.

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  • Crítica | Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto

    Crítica | Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto

    De Pedro Gui, estreante em longas, Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinton busca desmistificar de certa forma a famosa perfomancer, atriz e artista Rogéria, ao mesmo tempo em que quase beatifica sua figura, elevando-a ao status de divindade, sem descuidar do seu alter-ego masculino e identidade civil Astolfo Barroso Pinto. A história é contada pela própria Rogéria, que infelizmente faleceu antes do filme ser finalizado.

    O filme que teve uma produção iniciada há quatro anos é a ultima entrevista de Rogéria, que pretendia viajar a Paris e a outros lugares onde ela veio a se apresentar no passado. O início do longa parte de uma dramatização que faz a obra variar entre ficção e documentário, e essa faceta destoa demais do restante do material, com entrevistas de figuras como Jô Soares, que não costuma participar de documentários e só aceitou por se tratar de quem era.

    No entanto, é nas pessoas do passado de Astolfo que mora a riqueza do filme, não só pelos seus irmãos, como de algumas das Divinas Divas, Jane di Castro e Brigitte De Buzios, a quem também é dedicado o filme postumamente. Aqui se percebe duas coisas fundamentais, o pequeno “Tolfo” fazia bullying com os valentões do colégio, quando o chamavam de maricas, e ele o fazia como mecanismo de defesa e jamais parou de se defender desse modo. E o segundo é ainda mais importante, que era dona Eloá, a mãe de Rogéria foi a base que o fez conseguir ser quem era, exatamente como gostaria de ser, sem represálias, dando a força que precisava para crescer sem traumas e sem maiores sofrimentos, ao menos no que diz respeito ao seio familiar.

    Há momentos hilários, como quando Jô Soares diz que ela era goleira de futebol de praia, jogava de biquíni e em alguns momentos o “pinto” dela pulava para fora. Também se destaca que desde cedo, Astolfo queria ser artista, cantando Núbia Lafayette com apenas 10-11 anos. A função que cumpriu como maquiadora das estrelas na TV Rio era apenas um trampolim, onde pôde conhecer pessoas que seriam íntimas até o fim dos seus dias, como Betty Faria e Rita Cadillac. Aliás, a ex-chacrete disse que quem a ensinou a se enfeitar e andar de salto, foi Rogéria.

    Apesar de haver problemas sérios com as partes encenadas, o resgate da identidade e da irreverência da artista é muito bem flagrado, desde sua vida sexual, descrita como bastante intensa, até o fato dela não renegar seu lado masculino. Rogéria era uma pessoa extremamente amada e extremamente generosa com os que a cercavam, e o modo de condução da direção favorece demais a rica história que a personagem-título tem, sempre controversa e extremamente positiva.

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  • Crítica | Torre das Donzelas

    Crítica | Torre das Donzelas

    Documentário de Susanna Lira (Intolerancia.doc) a respeito do duro período da Ditadura Militar iniciado nos anos sessenta, Torre das Donzelas tenta resgatar e remontar as memórias de um grupo de mulheres que habitaram um presídio que tinha a mesma alcunha do filme, com a fala dessas pessoas quarenta anos depois delas terem sofrido tanto.

    A reconstrução do “quarto” onde as antigas prisioneiras se instalavam e o reencontro das moças – agora já mulheres – com essas memórias varia entre a pura emoção de algumas e a sobriedade de outras. Notar o quanto a tortura e o agouro dos autoritários agiu na mente e na lembrança de cada uma das suas vítimas é pesado, mas ao mesmo tempo é reconfortante ao se perceber o transbordar de braveza e coragem que essas senhoras transpiram.

    Há uma forte sensação claustrofóbica ao se apreciar o filme. Se a intenção da diretora era estabelecer o incômodo que as mulheres tiveram na época que estavam sofrendo com as “caixas de maldade”, o documentário acerta em cheio. Nas entrevistas e nos olhares das depoentes se nota o quão humilhante e desgraçados eram os métodos dos torturadores, que tratavam elas como objetos ou como humanos inferiores, vítimas de estupro – descritos com uma veracidade tremenda -, além de falar abertamente sobre os métodos medievais a que eram submetidas de uma maneira muito visceral e franca, sem qualquer receio ou vontade de não chocar o espectador. Elas falam em “curras”, e no desejo dos torturadores em provocar gozo nelas enquanto as mesmas sofrem (ou sofreram, já que o tempo dos discursos é no pretérito). Se não havia pudor dos que infligiam mal, não seria nas vítimas que isso ocorreria, e nesse ponto o registro em vídeo beira a perfeição.

    A empatia com as mulheres que aparecem em tela é estabelecida já no início, é preciso ser extremamente insensível para não se afeiçoar ou não se compadecer da situação que elas sofreram. Apesar de haver falas de famosas, a exemplo da ex-presidenta Dilma Rousseff, o que mais toca são as anônimas, pessoas honradas que tiveram suas peles, corações e mentes feridas.

    Os cenários onde acontecem as falas variam entre fundos pretos e reconstituições da tal torre, e em especial esse segundo faz criar uma atmosfera diferenciada, que remonta a memória das mulheres e que incrivelmente não as fez paralisar de medo, nem recriar o pânico que já as tomou ao longo da repressão, e o antídoto para isso certamente é a fibra dessas pessoas. A resistência ocorre apesar da fragilidade das mulheres que foram prisioneiras, basicamente porque os grilhões que as atavam eram físicos, a parte emocional delas obviamente foi tocada, mas não o suficiente para deixa-las inertes aos bons sentimentos, da camaradagem, tampouco foram desumanizadas. Todas elas são plenamente capazes de amar, de seguir a vida e ainda manter uma luta política com suas ideologias.

    Há algumas gorduras no  documentário, mas seu começo é tão certeiro e faz o público mergulhar tão profundamente no drama e na dor dessas pessoas que é impossível não ser levado pela emoção e compaixão geral. Os 97 minutos parecem mais longos do que realmente são, não por gerar enfado, mas sim pelo nível de intimidade que cada uma das mulheres dedica as falas, é como se quem assistisse conhecesse cada um daqueles testemunhos, e conhecesse também quem os declara. O cinema da diretora soa bastante maduro, em especial por saber equilibrar bem não só os momentos mais emocionantes de seu roteiro, mas também por harmonizar os sorrisos, confissões e claro intervenções suas como diretora, com uma sensibilidade ímpar, conseguindo equalizar a parte sentimental com a informativa muito bem.

    Torre das Donzelas soa como acalanto à alma, e serve de inspiração e esperança em um período tão caótico e cheio de incertezas quanto o quadro político pós-eleições.

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  • Crítica | Meu Nome é Daniel

    Crítica | Meu Nome é Daniel

    Documentário autobiográfico, fruto de um experimento bastante curioso de cinema em primeira pessoa, Meu Nome é Daniel é dirigido e protagonizado por Daniel de Castro Gonçalves, que nasceu com uma deficiência que nenhum médico conseguiu diagnosticar facilmente. O longa de 82 minutos se dedica a investigar o caso do rapaz, através de cenas novas e de registros em vídeos antigos.

    A primeira cena do filme é bastante natural, mostra o personagem central da trama conversando com uma pessoa próxima, no seu carro, e ali se percebe a preocupação geral de todos com a vida e estado de Gonçalves, não necessariamente por sua condição vista como incomum pela maioria das pessoas, mas também por ser ele um sujeito muito querido e amado pelos que o cercam.

    É curioso e até simpático que as transições entre momentos chaves do filme ocorram através de uma tela azul, com uma fonte de letra semelhante a das gravações antigas em vídeos cassetes. As linhas temporais se misturam harmonicamente no filme, fazendo com que o público se sinta genuinamente atraído pela história de Daniel. Isso não se deve somente a montagem que facilita o apego aos personagens, mas também as declarações hiper-amorosas dos parentes da família Castro Gonçalves. Em tempos tão ególatras, essa sensação de pertencimento que o clã exala é muito bem-vinda, e funciona na contramão do estado exclusivista que predomina na humanidade.

    O objetivo de Daniel era tentar, através de seu filme, descobrir qual era seu quadro clínico. Qual é o nome da doença que o acometeu ou ao menos algo que se aproximasse disso. Ele é realmente certeiro no ponto em que se permite somente elucubrar sobre sua existência, sobre a aceitação que teve dos que os envolvia, dos poucos momentos em que ele sentia que era tratado como um alguém normal, como em uma rave que ele participou e todos acharam que ele estava sob efeito de drogas, ou ainda quando o obrigaram a perder sua virgindade em um prostíbulo. Os dois eventos são bem diferentes entre si e mostram da intimidade do biografado.

    Meu Nome é Daniel é surpreendentemente positivo,  simples e certeiro em sua proposta de mostrar como é a vida do cineasta e astro do longa, não tentando soar como um panfleto de auto-ajuda, ainda que evidentemente tenha sido um enorme feito a entrega de um filme tão terno e competente, mesmo que não tenha em si qualquer intensão de soar como algo inovador ou pretensioso.

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  • Critica | O Renascimento do Parto 3

    Critica | O Renascimento do Parto 3

    Depois de dois filmes que denunciam os perigos do parto em cesariana, e valorizando a prática do parto normal, Eduardo Chauvet retoma o tema que lhe é caro em O Renascimento do Parto 3, usando esse documentário em questão para discutir o uso do orgasmo na hora de dar a luz as crianças, provando que o ideal do filme é realmente quebrar tabus.

    Em O Renascimento do Parto, Chauvert mostra uma realidade meio elitista para os chamados partos humanizados, focado em globais, já em O Renascimento do Parto 2 o foco maior é nos populares, obrigadas a fazer a cesariana. Uma boa parte das entrevistas são dadas (na parte 2) em um auditório de um cinema, e esse estilo é repetido nesse terceiro tomo, com depoimentos emocionantes de mães que tiveram experiências terríveis com as cirurgias que sofreram, que inclusive, não são tratadas como o que realmente são: cirurgias.

    Há um tom mais de denúncia, em especial no depoimento de alguns homens, pais, do lado de fora do hospital que tem sua identidade embaçada. Na fala deles há uma normalização na ida de seus filhos à UTI, basicamente porque foram obrigados a nascer antes do previsto. Nesse ponto chega-se ao cúmulo de alguns deles falarem sobre o uso de cafeína nas mamadeiras dos pequenos, para estimular o metabolismo, algo que é claramente desaconselhável por especialistas.

    O documentário contém algumas repetições, para fortificar a ideia de ciclos, de argumentos que se repetem, para mostrar o quão tosca e terrível é o pensamento comum de que a equipe médica é a protagonista no nascimento das crianças, e não a mãe, como defende não só o roteiro, mas a ordem natural das coisas, dando voz a uma hierarquia que deveria ser indiscutível, mas que infelizmente não é, uma vez que muitas mães têm direito zero de opinar sobre os procedimentos ou decisão sobre o que vai ser feito em um momento tão especial, como o do início da maternidade, além de desmistificar as inúmeras desculpas e falácias utilizadas para justificar a cirurgia.

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  • Crítica | Para Sempre Chape

    Crítica | Para Sempre Chape

    A tragédia com o time da Chapecoense de Santa Catarina mexeu com muitas pessoas ligadas ao futebol, inclusive, esse que vos fala. Lembro como foi aquele dia para mim, dois amigos jornalistas morreram naquele acidente, assim como ex-jogadores do meu time, além de Caio Junior,um sujeito que tive o prazer de conhecer. O incidente da queda do avião que levava o time e equipes de imprensa até Medellin para o jogo da final contra o Atletico Nacional pela Copa Sul-Americana é o epicentro de Para Sempre Chape, documentário de Luis Ara.

    A pequena cidade de Chapecó abrigava o clube desde 1973, e o fato de ser essa uma zona urbana pequena fazia com que atletas, membros do clube e cidadãos comuns fossem muito próximos. O filme se dedica a falar dos primórdios do clube e dos campeonatos estaduais que disputava. O fato da cidade ser isolada facilitou a criação de um time, já que nenhum clube grande tinha qualquer distância pequena dali, e em 77 eles já foram campeões catarinenses, mesmo sem dinheiro, estrutura ou qualquer coisa que o valha.

    Já na parte moderna do clube, a Chapecoense participou da primeira Série D disputada no Brasil em 2009, e subiu. Depois de idas e vindas, foi até a série A e ali começou uma trajetória bonita e árdua, de um time pequeno e muito amado pela gente de sua cidade. Nesses momentos já se ouve um nome nas narrações, de Bruno Rangel, um dos artilheiros do clube, atleta que marcou alguns dos muitos gols e  que estava no tal voo.

    Há entrevistas com Raphael Henzel, o lateral Alan Ruschel, o zagueiro Neto, e o goleiro Jackson Folman, que estavam também na aeronave, e as declarações deles vão na direção da religião, curiosamente, dizendo normalmente que foi Deus que os ajudou a sobreviver, e que parecia ter ação do destino até na parte do avião onde ficaram, em especial Ruschel e Folman que sentaram um do lado do outro. Apegos ou desapegos a religião à parte, para os que estavam no voo o acaso parecia ser algo importante para a sobrevivência, uma vez que miraculosamente esses sobreviveram a queda do criminoso ato da companhia aérea que foi contratada para o translado.

    O filme é protocolar, mostra os depoimentos mais famosos, se dedica a relembrar das pessoas que morreram. O documentarista quis claramente prestar reverência ao time, aos que se foram e aos que ficaram, e isso por si só é muito meritoso, pois o registro em cinema é muito duradouro, e certamente estará para o resto da vida dos herdeiros de cada um ali ver e rever.

    Apesar de mostrar o choro de José Serra, ministro das relações exteriores à época e um sujeito cuja sinceridade é pra lá de discutível, toda a parte passada na Colômbia é carregada de sentimentalismo, o que não é demérito algum, já que o intuito do filme é deixar marcado o quão triste foi todo o evento. Não há preocupação em tentar desvendar os descuidos que a companhia aérea teve e isso se mostra uma decisão acertada, uma vez que dificilmente um único filme conseguiria tratar de questão tão complexa ao mesmo tempo em que tenta ser solidário a quem ali sofreu ali.  A escolha de Ara e sua equipe é muito acertada e Para Sempre Chape apesar de não fugir do comum em matéria de cinema acerta no tom que propõe.

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  • Crítica | Juízo

    Crítica | Juízo

    No inicio do documentário de Maria Augusta Ramos, sobre menores infratores, há um aviso de que as imagens utilizadas dos tais menores de idade, são dramatizadas pois a justiça brasileira não permite o uso da imagem de julgados com menos de 18 anos. Juízo se parece demais com Justiça, filme anterior da diretora, com os julgadores sendo extremamente severos com os réus, quando não falando em tom professoral, em tom de bronca, com postura semelhante ao de uma mãe dando lição de moral em seus filhos.

    A paciência dos juízes é ligeiramente maior do que o que se assiste em Justiça, isso é “culpa” evidentemente da baixa idade dos investigados. Repara-se facilmente na baixa escolaridade da maioria dele e a escolha por dramatizar as situações com esses menores ajuda a aproximar o espectador das barbáries que ocorrem dentro e fora do ambiente de julgamento, seja pelos maus tratos da promotoria e juiz, ou pelos crimes cometidos, que em alguns momentos recaem sobre crimes pesados, como assassinato após maus tratos ao acusado.

    A juíza que normalmente verifica as situações é extremamente grosseira e impaciente. A empáfia que é vista nos personagens de Justiça aqui é extremamente amplificada. A postura é tão passivo agressiva que, mesmo quando o menor sai da sala com uma sentença favorável a si, se retirar do local com as mãos para trás, como se estivesse manietado, preso em corda imaginárias.

    O exercício feito em Juízo tem muito a ver com os elementos vistos em seu predecessor, mas em momento nenhum ele soa redundante ou repetitivo, ao contrário, há uma clara evolução de narrativa e de estudo sobre como se julgam as pessoas no Brasil, em especial as camadas mais populares e de pouca instrução, não chegando ao ponto de vitimizar os personagens documentados, mas sim mostrando o quão crua e direta pode ser a lei com esses que não tem muitos recursos para recorrer.

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  • Critica | Justiça

    Critica | Justiça

    O documentário de Maria Augusto Ramos mostra pessoas sendo julgadas em um ambiente impessoal, com a câmera flagrando a conversa entre réu e a autoridade judiciária, onde acontece normalmente uma conversa bastante isenta de maiores sentimentos, especialmente pelos juízes, em confronto com palavras francas e simples do que se defendem. Justiça visa mostrar o quão complicado e distante é a relação do Estado com a massa carcerária, e consequentemente, com o pobre sendo julgado.

    A estética que Maria Augusta utiliza é fundamentada demais no naturalismo. Quando não está em sessões jurídicas ou em aulas direito — onde os personagens estão obviamente microfonados — a maior parte dos outros momentos tem apenas o som direto como base. O barulho das engrenagens das cadeias e o burburinho dos detentos transbordam verdade e veracidade, mostrando uma realidade elitista e hipócrita.

    Há perfis variados entre os juízes flagrados pela câmera de Ramos, mas um especial chama muita atenção pela empáfia ao conversar com o réu e demonstrar seu enorme desprezo por esses, algumas vezes agindo inclusive com grosseria, talvez evocando a sua opinião já formada de que estaria ali lidando com criminosos incorrigíveis.

    A visão que o documental de Maria Augusta Ramos tem sobre o judiciário em geral é bem clara, enxergando os que julgam os mais simples como entidades conservadoras, reacionárias e que se julgam acima das camadas sociais em que habitam esses infratores ou supostos infratores. Das denúncias que faz, a mais forte certamente é a desumanização com que são tratados os julgados, e nisso, Justiça acerta em cheio, pois mostra o quão frios são os tratamentos aos mais humildes.

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  • Crítica | Martírio

    Crítica | Martírio

    Na edição 2018 do Festival de Cinema de Berlim, logo após a sessão do documentário Ex-Pajé, um manifesto escrito por lideranças indígenas, que o cineasta Luiz Bolognesi fez questão de ler, contra o etnocídio, ou seja, o genocídio étnico da população indígena no Brasil, sempre submetida a ganância das indústrias, empresas e ao desprezo das legislações brasileiras sobre seu povo e a demarcação de terras. E é justamente pela urgência do tema que Martírio se leva tão a sério.

    Um documento de anos literais em busca de fatos, relatos e outras cadências a formar as condições que vivem um dos ícones de maior relevância quanto aos problemas e ranços estruturais da sociedade brasileira desde sua formação: A intolerância e o desdém dos engravatados e seus alienados urbanos pela ancestralidade e a humanidade, propriamente dita, daqueles que provaram o gosto e sentiram a textura das veredas de um Brasil descampado e virginal quanto aos impulsos animalescos dos homens brancos, sempre com a desculpa de progresso civilizatório para serem deliberadamente predatórios. Aqui, o cineasta Vincent Carelli — o longa ainda é codirigido por Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida — faz provavelmente o filme da sua carreira, pautado por quase três horas de denúncia, e resistência.

    Resistência. Martírio, com o impacto de um trem na consciência humana que nos resta, a cada sequência nos deixa claro o que as notícias dos jornais nos anuviam: Não está tudo bem, não para todos nós – na verdade, para uma minoria seleta de nós, e mesmo nos domínios do senhorio ainda há turbulência, quase sempre causada por fatores internos. Não que os novos donos do país, antes usando bandeirantes, agora uma caneta a promover a matança da mais nobre identidade brasileira, sejam incapazes em suas togas e privilégios de controlar seus problemas e nisso, esqueçam dos outros, mas como nos é claro ao longo da projeção, a exclusão de direitos e as circunstâncias onde a exclusão se forma precisam ter sua fundações reforçadas, dia após dia, num minucioso e escandaloso processo que pode ser chamado de desbrasilização do Brasil.

    Resistência. Acontece que a desumanização em cima do índio, em cima da população LGBT, cujos atentados ainda não foram criminalizados para podermos chamá-los de crimes, do jovem negro que a cada vinte e três minutos é exterminado de novo, e mais uma vez, no Brasil de sempre, necessita da banalização diária dos fatos. O quanto é injusto a nossa terra ser exclusivamente deles, sendo esta injustiça, seu fedor, que impulsionou um grupo de indígenas devidamente representados, ostentando sua identidade visual mais notória antes da mesma desaparecer, a ostentar imagens modernas da sua entrada do Congresso Nacional, vista pela mídia não como revolta, mas como “invasão”, como perturbação infundada da normalidade, em 2013, numa casa que diz-se de todos, mas que para entrar sem conflito você vai precisar ser homem, branco, eurocêntrico ou, no mínimo, um(a) estudante curioso(a).

    Resistência. Àqueles que não entram, mas invadem simplesmente pela sua presença no local – lembrei-me dos rolezinhos na Casa Grande, de quem não aceita a senzala. Qual outro documentário contemporâneo da filmografia nacional infere criticamente, dada a força e propriedade de fala aqui atestadas, dilemas sem prazos de solução e tão engessados no social tupiniquim senão Martírio, de 2016? Por isso que, a um dos grandes filmes da década, brasileiro ou não, que elucida ao estrangeiro o que acontece nessas fronteiras, mas que dialoga sobretudo aos anais dum povo que se declara profundamente religioso, conservador ao poder das suas igrejas, mas que se recusa com veemência a preservar o que de mais sagrado (ainda) habita a nossa cultura, nossa identidade se alguém hoje se importa com essa dama de verde-e-amarelo, e nossa humanidade enquanto brasileiros, a esse documento fílmico e sobre o que e quem ele vem a tratar na tela: Glorificação, e resistência. Fantástico.

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  • Crítica | O Jabuti e a Anta

    Crítica | O Jabuti e a Anta

    Jabuti e a Anta

    Eliza Capai usa o poder que tem como cineasta e contadora de histórias para denunciar uma questão importante, usando o tema da seca em São Paulo como o ponto de partida. O Jabuti e a Anta varia entre as imagens do vazio dos reservatórios do sudeste brasileiro e a investigação das causas disso, indo até os rios Xingu, Tapajós e Ene, presentes no meio da Floresta Amazônica.

    O documentário se auto-intitula um boat movie, já que se vale da estética dos road movies, registrando grande parte das imagens com a câmera em cima de um barco. A reflexão do filme se baseia também na descrição dos ribeirinhos, que vivem suas vidas e as de sua família no leito desses rios. Para quem tem a mínima sensibilidade, é impossível não se comover com os relatos, não só em relação a sujeira terrível que invade a paisagem e a casa dessas pessoas simples, mas também nas consequências ecológicas de cunho irreparável.

    O desmatamento influi nas chuvas, a poluição da água faz com que os peixes fiquem mais raros e esse cenário influi na alimentação das pessoas e na sua principal fonte de sustento. O roteiro condena a face dura do capitalismo, que tem na predação o seu norte e que não vê qualquer necessidade fora o lucro. O ser urbano destrói o habitat, ignorando as necessidades que não lhe convém.

    O Jabuti e a Anta está longe de ter uma abordagem perfeita, mas ousa bastante ao apresentar as informações de modo dramático, inserindo emoção em cada segmento, fortificado por uma narração intervencionista de Letícia Sabatella. A função de estabelecer a voz para quem não é capaz de falar por si só, já que os holofotes estão longe dessa faceta do povo brasileiro.

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  • Crítica | Menino 23: Infâncias Perdidas do Brasil

    Crítica | Menino 23: Infâncias Perdidas do Brasil

    Há um ditado popular que define que a verdade nunca fica escondida para sempre. Talvez a repetição costumeira da expressão faça com que ela perca a força, mas, ainda assim, é uma máxima funcional. Ocultar fatos e, portanto, a verdade é sempre um aspecto mais doloroso do que analisar a realidade sem filtro.

    Baseado na tese de Doutorado em Educação de Sidney Aguilar Filho, defendida em 2011, Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil é um documentário que retoma um passado obscuro do país a partir de um fato inusitado. Em uma aula de história de Sidney sobre nazismo, uma aluna aponta que na fazenda da família um pequeno acidente revelou um conjunto de tijolos com a suástica nazista. A partir dessa evidência o autor investiga a história, descobrindo no município de Campina do Monte Alegre uma fazenda de uma poderosa família da região que retirou 50 crianças negras de um orfanato para escraviza-las.

    O documentário de Belisário Franca retorna a um Brasil de 1930 apresentando a contextualização mundial e social do país na época. A Bolsa de Nova York havia quebrado no final da década anterior. O país vivia a crise mundial e ainda se readequava tanto a uma nova condução política com o fim da República Velha como ainda sofria para estabilizar socialmente os escravos, alforriados há apenas 42 anos.

    Na época, o patriotismo e o nacionalismo se confundiam entre orgulho a pátria e uma ideologia que identificava uma preservação da nação acima de tudo. Seguindo vertentes internacionais, o Brasil foi um dos países a alimentar o movimento nacionalista aliado as teses favoráveis a eugenia, uma busca de uma pureza racial. Em um momento anterior ao domínio de Hitler no poder da Alemanha e de toda a barbárie do Holocausto, a eugenia ainda era vista como um movimento intelectual que foi observado como um ato de modernidade capaz de alinhar a nação a outros grandes países. Campanhas sanitárias e educacionais fomentavam o movimento eugênico brasileiro analisando, por exemplo, a importância da esterilização, da seleção de imigrantes e análises sobre o que seria a verdadeira raça brasileira com teses apontando que a mestiçagem inviabilizaria o país como grande nação.

    Dentro desse cenário delicado, a narrativa aponta a história de uma importante família local que adota no Rio de Janeiro um grupo de crianças negras com a falsa pretensão de educa-las. Recebidas em uma fazenda em Campina do Monte Alegre, as crianças vivem em situações precárias, vivendo isoladamente como escravos a serviço da família.

    O documentário apresenta a trajetória de dois jovens que sobreviveram ao período e prestam seu depoimento histórico sobre um grupo que nem mesmo possuía nome. Oficialmente adotados pela família, o grupo era tratado por números, bestificados a perder seu próprio nome de batismo. O Menino 23 destacado no título da produção é Aloísio Silva, um dos personagens centrais dessa história. Em um amplo espaço isolado, a fazenda dos Rocha Miranda era um espaço ideal para demonstrar a leniência da lei. O status de representante da elite brasileira na época, garantiu-lhes a facilidade em adotar 50 garotos sem grandes questionamentos.

    Trazendo a verdade a tona, a produção revela com fatos informações abrangentes que, ao mesmo tempo, compreendem a época e demostram a violência vivida pelos garotos em uma ação que, independente do pensamento eugênico popular no país, explicitava o racismo que ainda perdura. Ao dar voz aos garotos-sem-nome, o documentário revela o outro lado da história. Elimina qualquer anonimato que mascara o conceito da escravidão, do preconceito e do racismo para apresentar personagens reais que viverem na pele anos de violência física e emocional instituída por uma família de elite, em grande parte apoiadora de teorias estúpidas mas, estranhamente, bem quistas na época.

    Os tijolos com a suásticas encontrados por acaso pontuam a muralha que escondeu durante muito tempo a verdade. Uma ação perversa em um período não tão distante do país que funciona como exemplo de um racismo na época, trazido a tona graças a um acaso, nos fazendo questionar quantos mais casos como esse nunca foram revelados e quantos ainda existem em pleno século XXI. Um fato entristecedor de uma realidade que ainda persiste nas diversas desigualdades do Brasil.

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  • Crítica | Humano: Uma Viagem Pela Vida

    Crítica | Humano: Uma Viagem Pela Vida

    “O sorriso é a única língua que todos entendem.”
    (citação de um entrevistado)

    Logo nos 20 minutos iniciais de Humano: Uma Viagem Pela Vida, é possível perceber que a pluralidade será uma constante na obra, abrangendo pessoas de diversos credos, idades, gêneros, etnias e assim por diante. Claro, logo se faz notório que essa opção multifacetada e como ela nos é exposta está dentro da programação da obra, o intuito é realmente demonstrar o quão diversificado somos, no entanto manter-se apegado “apenas” aos diversos arquétipos imagéticos em instância alguma corresponde ao cerne da questão implícita no filme. Assim que vamos tomando ciência dos depoimentos expostos no vídeo, começamos à notar que a diversidade visual que tanto nos salta aos olhos, só se faz coerente quando se vê complementada pelo que é dito pelos indivíduos, quer sejam elas expressas em palavras ou não, estando em harmonia ou convergindo de um quadro ao outro.

    Focar-se unicamente na fórmula técnica adotada pelo cineasta, é redundante. Ainda que o diretor emule belíssimas imagens de caravanas aglutinadas de beduínos deserto afora, ruínas, paisagens naturais, tempestades em constante turbulência, seu palco é delimitado na face do próximo, focando-se nos relatos de seus entrevistados, nas histórias e em tudo àquilo que compõe a humanidade em sua mais sincera essência – a vida.

    O diretor Yann Arthus-Bertrand não tenciona fazer um mapeamento geográfico, ele necessita do individualismo, porém não irá se prender em dizer se o ser humano que estamos vendo e ouvindo é um latino-americano, um asiático, especificar sua deficiência física ou de qual cultura tanto homem ou mulher em questão são pertencentes, porque isso acaba se tornando secundário diante o verdadeiro foco, tanto que nenhum nome é dito ao longo do processo. É evidente que isso não anula o fato de que o espectador por si só identifique tais aspectos nos entrevistados. A massa que inicialmente se faz disforme, sem perder sua peculiaridade vai aos poucos se revelando sob miríades e utopias, vai se transformando em uma forma composta por milhares de rostos e que, no entanto ou sobretudo, almeje apenas o elementar.

    Preceitos básicos como o trabalho, amor, conquistas, descobertas, escolhas, dores e sorrisos, são uma recorrente e toda essa amálgama que indubitavelmente se faz regente é compartilhadas sob diversas camadas, o que muda de verdade são as histórias e seus ângulos quase sempre tão distintos. A intensidade ou alguma situação pode destoar em segundos, porém, aos poucos compreendemos que relativizar algo, algum relato, alguém ou mesmo um fato dentro da obra, é um erro. Nos damos conta de como qualquer relativização aqui seria estúpida, quando notamos às variáveis da psique humana. Por exemplo: em determinado momento somos confrontados com verbalizações de pessoas que sofrem por viver em condições precárias e já no depoimento seguinte somos apresentados há tantos outros seres que mesmo vivendo em abundância material, sofrem e padecem por outros motivos que não estão necessariamente correlacionados ao dinheiro e de como ambos estados mesmo que paradoxais, por si só não diminuem o peso de uma lágrima ou angústia, não se anulam. Toda essa montanha russa de emoções e de desnudamento é pronunciada ipsis litteris diante a lente da câmera que apenas registra o instante.

    Essa imparcialidade na narrativa é uma grande virtude do documentário, que em momento algum almeja colonizar o pensamento de quem assiste. Cada ser assume o caráter de trazer consigo um universo à parte, cada relato exposto mereceria por si só um texto, portanto há medida que a obra avança e se aproxima do fim, é praticamente improvável não se pegar refletindo sobre algum depoimento ou alguma semelhança vivenciada por algum relator. Seria o homem realmente totalmente responsável por sua natureza, suas escolhas? Bem, pode-se dizer que talvez o maior trunfo desse projeto seja justamente suscitar reflexões e perguntas em seu público. Já as respostas, interpretações, julgamentos ou o que cada um levará de verdadeiro pra si após o término do filme, é algo impossível de se definir, afinal as possibilidades são múltiplas.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

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