Tag: Documentário

  • Crítica | Bikes Vs. Carros

    Crítica | Bikes Vs. Carros

    bikes

    O título em questão dá margem a uma interpretação imediata: É guerra? Não, apesar que para a maioria dos motoristas e ciclistas de caos urbanos como São Paulo, possa ser. Nas cidades além da capital paulista onde todos lutam pelo mesmo espaço, a selva exige o preço e, vira e mexe, uma bike vai parar debaixo do busão na rota da avenida. Quando as duas rodas pedem tolerância e respeito as quatro motorizadas, a lei do mais forte encontra espaço pra se valer e é difícil isso não acontecer – pelo menos, no mundo real. Todavia, em recantos de gente aberta as alternativas e possibilidades de uma metrópole onde os cidadãos ditam as regras da mobilidade, é cada vez mais difícil achar uma bike disponível em bicicletários públicos espalhados ao redor, como mostra a iniciativa sustentável (e capitalista, heh) do Banco Itaú, com o Bike Sampa, que desde 2012 disponibiliza as “laranjinhas” para uma parcela crescente do povo, essa que não aguenta mais xingar atrás do volante. Seja na realidade brasileira, em cidades como Los Angeles nos EUA, ou no pulsar (nem) tão ímpar de Copenhague, na Dinamarca, o documentário Bikes vs. Carros aponta, sob o título contraditório, num belo equilíbrio (sem trocadilhos) de argumentos, as condições da mobilidade urbana ocidental, e o que faz a diferença num mundo baseado em conflitos de interesse. Afinal, é preciso esse embate?

    Sim, e não – como se fosse fácil de alegar. Mas é entre as estatísticas da indústria automobilística, claramente predatória desde a propaganda que fomenta seu lucro, a poluição resultante de suas máquinas, e construir um mural de depoimentos lúcidos e presentes em função do que pensam ciclistas e taxistas, por exemplo, entre tais paralelos, se constrói na tela algo maior: A opinião do espectador, seja ele amante do dirigir, do pedalar ou do caminhar, diário. Somos todos um, não apenas se o cenário é uma grande cidade e o problema envolve a todos nós; fugir da palavra não afasta a tribuna, como já diria o cronista do periódico de jornal. E enquanto esses jornais notificam a morte de pessoas que tentaram fazer a diferença, tornando real o conceito de sustentabilidade e respirando dióxido de carbono enquanto isso, o documentário ativista e parcial de Fredrik Gertten evita apologias no traço de políticas e fatos pertinentes, no mínimo alarmantes e convidativas a participação social, ao contexto cultural que vivemos. Não eu, ou só você: Todos.

    Bike vs. Carros resgata e conduz ao real o drama do clássico espanhol A Morte de um Ciclista, sendo o retrato fiel e livre de quem vive a causa, dos pés a cabeça, na ótica por inteiro de um quadro atual. A pergunta, a direção lógica que o título não desvia de nossa atenção mas tampouco aponta, talvez não seja nem precise ser “De que lado você está?”, mas “Porque você não está no lado que gostaria de estar?” Comodismo? É a história do barato que sai caro? É certo medir a qualidade de vida de acordo com o tamanho de gordura alojada na bunda do indivíduo? Uma abundância de questões que a militância, de acordo com a visão de motoristas estressadinhos por ai, sem dúvida traz à tona, como se fossem dilemas e não problemas inevitáveis, dramáticos a vida em sociedade. Não é preciso haver drama, afinal, se houver uma boa vontade e inclusão generalizadas, já que tudo envolve a inclusão. E dinheiro, pois encontrar alguém que não sabe disso é procurar jegue em ciclovia, símbolo talvez da maior polêmica da gestão do atual prefeito de São Paulo.

    Na maior megalópole latina, o discurso acaba por ser mais do mesmo se comparado com o de um morador de um bairro em L.A.: “Gostaria de ser mais representado pelos milagres da engenharia como são as rodovias para carros”, desabafa quem enxerga a mobilidade com outros olhos, um modo de vida captado de perto por Gertten, assumindo a alma do gênero ao transmitir, na lente acoplada a bike, a coragem de cruzar um trânsito disputado metro por metro, entre carros e caminhões nervosos. É na transgressão de pontos de vista que se faz (e enriquece) o panorama em prol de uma diversidade de opiniões, muito bem dispostas na projeção, para fazer pensar a questão arbitrária dos lados. Com tanta gente morrendo para exercer a cidadania, é justo ficar neutro e fingir não ser com você? Blowing in the Wind, canção de Bob Dylan, parecer surgir do nada. Mas nada vem do nada, e o futuro vem chegando, a galope e a partir do conflito de quem passa na avenida – e samba, sem medo de ser feliz.

  • Crítica | O Riso Dos Outros

    Crítica | O Riso Dos Outros

    O Riso dos Outros 1

    O começo do documentário de Pedro Arantes remete a uma famosa fala de Goethe: “Nada descreve melhor o caráter dos homens do que aquilo que eles acham ridículo”. Logo depois, o realizador começa a provar seu ponto, exibindo um Stand Up Comedy com um número bobo, argumentando sobre tipos de risadas, ao mesmo tempo, que brinca com estereótipos de sorrisos.

    Em meio ao relato de muitos humoristas brasileiros, há uma exemplificação do porquê uma piada funciona e quais são os fatores que fazem a plateia rir. A conclusão chegada pelo montante de falas é que a vida do homem comum é tediosa, ao passo que o humor libera endorfinas, faz a existência ser menos dramática. Ver a tragédia sem se compadecer só acontece porque o trapalhão não teve uma morte ou sofrimento, é sobre esta égide que se posiciona a zombaria

    Da multiplicidade de discursos, retira-se uma outra conclusão, a de que o humor é matemático, calculável, portanto tendo linhas claras do que funciona num palco de comédia em pé e que alguns desses pontos não necessariamente agradariam em televisão ou cinema. O gênero Stand Up Comedy conta a com a facilidade e espontaneidade do texto próprio e figura própria, sem maquiagem ou máscara.

    Mas a discussão é o cerne do filme, que põe no centro do diálogo a necessidade do estereotipo para a realização das piadas. Estereotipo normalmente é usado pelos comediantes como uma muleta, serve para fazer o público rir, ao menos para começar o burburinho, dialogando com o preconceito alheio. O humor carrega uma dose de crueldade, busca o defeito, o pior, a caricatura baseado em uma característica que até determina identidade, mas reverbera o “ruim”, onde o desrespeito é comum.

    Alguns dos entrevistados relembram que os humoristas não são os responsáveis pelas mazelas sociais. No entanto, a leviandade da piada há que ser vista, especialmente pelo fato justificado pelo deputado e ativista gay Jean Willys, que destaca que o homem q faz a piada homofóbica é hetero. Mas é possível argumentar sem reforçar o preconceito.

    O cartunista André Dahmer é um dos poucos que vão na contramão das falas de Danilo Gentilli e companhia, de que o importante é avacalhar. Dahmer assume que em uma piada há sempre uma vítima, mas destaca que se é pra bater é melhor bater em quem merece, mulher e negro sempre foram perseguidos.

    O lado escolhido pelo documentarista é de que o motivo que faz a piada machista ser proferida é a clara tentativa de naturalizar a inferioridade da mulher ao homem, em um argumento claramente misógino. O sexismo reforça o lado oposto a luta do feminismo, na busca por respeito. Apelar pro lugar comum só retorna ao público o que possivelmente pensa, que além de não combater o preconceito, reforça a pensamento baixo do homem comum, reverberando o comodismo de ser conservador e opressor.

    Os depoimentos põem dois lados distintos, a manutenção do status quo, com piadas que mantém tudo igual, do outro lado, a defesa do politicamente correto, que por sua vez é taxado de careta. A questão é que o reforço da desigualdade seria mesmo o símbolo de caretice? A opressão é absolutamente invertida, pondo a intolerância na parte que costuma reforçar arquétipos tolos. A chamada “patrulha” é ambígua, se é chamada assim somente por discordância de ideia, o que normalmente se lê como o combate a desqualificação de grupos sociais.

    A comédia é politica, defende ponto de vistas e ideologias. O discurso de O Riso dos Outros reforça a pecha de que o humor real e positivista é o irônico, que bate no carrasco e não na vítima, rindo do patético comum ao conservador, que faz o senso comum bobo rir, normalmente por consenso do público, normalmente pouco exigente e pouco afeito a transgressões. A busca eterna pelo riso da plateia é um exercício fútil aos olhos de Arantes, e completamente anacrônico, fora de qualquer escopo de modernidade, destacado pelo som característico das primeiras fitas do cinema mudo.

  • Crítica | E:60 Reports – Sepp Blatter and FIFA

    Crítica | E:60 Reports – Sepp Blatter and FIFA

    Sepp blatter

    O começo intimista do filme mostra o discurso do atual mandatário da FIFAJoseph Blatter, em meio a paisagens curiosas que remontam a simplicidade destoante da falta de transparência do modus operandi da empresa, apesar de todos os esforços da entidade e do suíço em realizarem uma imagem diferenciada. E:60 Reports – Sepp Blatter and FIFA do documentarista e repórter Jeremy Schaap se preocupa em revelar a real face do dirigente, bem como a quantidade de escândalos envolvendo a organizadora mundial do esporte mais popular do globo, antes mesmo da recente caça às bruxas da justiça a políticos envolvidos em corrupção.

    O primeiro caso analisado foi a decisão em 2010 de fazer do Qatar a sede da Copa do Mundo de 2022, cuja maior polêmica é a informação desvelada de que houve suborno junto aos votantes que elegeram o país devastado como sede do evento. O filme-denúncia foi exibido ainda em 2015, regatando documentos e depoimentos que ajudam a compor o quão grotesco é o caso mais recente de favorecimento ilícito da entidade.

    O relato sobre a origem de Blatter, que tentou a todo custo trabalhar com futebol, é de um tom agridoce único, ambicioso mesmo diante das primeiras recusas que tomou, especialmente dentro de casa, quando seu pai rasgou um contrato que foi oferecido quando tencionava ser atleta. A fala de que “você jamais ganhará dinheiro com o futebol” não poderia estar mais errada, por não prever a aproximação gradativa do jovem Joseph do brasileiro João Havelange, que via no suíço o melhor candidato a sucessor.

    A subida de nível do político faz quase afeiçoar a sua figura, que é deteriorada pelas cenas “fofas” do economista se envolvendo em hábitos dos países que visita, os mesmo com que faz conchavos. As homenagens que lhe rendem servem para tornar sua controversa figura em algo ainda mais pitoresca.

    Outras tantas indiscrições são mostrada, como a polêmica eleição da Rússia como sede do mundial de 2018, ainda a acontecer, especialmente pelo lobby realizado através das figuras carismáticas do Príncipe William e do ex-jogador David Beckham, que, juntos, só conseguiram angariar míseros dois votos. O surpreendente não foi a derrota, mas sim a disparidade entre os votos dos candidatos, visto que desde a Copa de 2010, só foram escolhidos países subdesenvolvidos, com históricos largos de corrupção governamental, o que aumenta a esfera de suspeitas ao modo de operar da organização.

    As gravações da Sunday Times, de compras de favores junto à federação nigeriana de futebol, faz perceber que a prática é bastante comum no meio. O estudo é amparado por materiais literários, como nos estudos de Andrew Jennings e pela coleção Ugly Game. A conclusão tirada pelo documentarista e por seu feitor é a de que um esporte que é lazer, tanto em prática quanto em acesso pelo mundo inteiro, não deveria ser de posse de uma empresa, ainda mais uma que constantemente se dobra aos desígnios e desejos de quem pagar mais. Ainda que seja utópico, o reclame vale muito, especialmente em território brasileiro, uma vez que o futebol sempre foi um evento consumido naturalmente pelas massas, recentemente elitizado de modo hediondo e mal feito. Ao menos, é reconfortante que os casos recentes estejam sendo investigados, ao menos neste primeiro momento.

  • Crítica | Morro dos Prazeres

    Crítica | Morro dos Prazeres

    Morro dos Prazeres - Poster - dvd

    A abertura de Morro dos Prazeres apresenta crianças brincando de mocinho e bandido. Utilizam armas de madeira e papel, representando as armas que conhecem nas mãos de personagens do morro.  Ao contrário do que é naturalmente imaginado, não é a polícia que adquire o status heroico. São eles, representados pelas crianças, como opressores, humilhando a população do morro para, em seguida, serem subjugados pelo grupo de infantes desempenhando os traficantes armados. Um retrato daquilo que veem dia a dia em sua infância.

    Localizado no bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, o Morro dos Prazeres foi uma das comunidades selecionadas para o projeto UPP da Secretaria Estadual de Segurança do Estado, estabelecendo polícias comunitárias em favelas outrora tomadas pelo tráfico de drogas. O documentário de Maria Augusta Ramos apresenta personagens anônimos que em conjunto formam retrato do local.

    Com metragem breve de apenas uma hora, a câmera se transforma em um observador atento cuja intenção é apenas o registro dos acontecimentos. Não há nenhuma fala direcionada para a câmera ou a participação de especialistas que analisem as imagens apresentadas, traçando um panorama sociológico do local e da atividade policial com a chegada das Unidades Pacificadoras.

    As cenas promovem uma crônica sobre o Morro identificando e acompanhando alguns personagens específicos para mapear as diferenças do local: um menor infrator tentando modificar sua vida com aversão explícita pela polícia; moradores que trabalham ativamente no local discutindo pontos positivos e negativos sobre a chegada da polícia; e membros do batalhão lidando com o dia a dia do local.

    Nenhum julgamento pré-estabelecido é apresentado em cena, um fator positivo para explicitar que, diante desta construção social e política, nem tudo é uma estampa de poucas cores. A humanização em todos os âmbitos entregam ao público o material para desenvolver sua análise a respeito, sem nenhuma denúncia panfletária ou desmitificando estruturas complexas.

    Como uma crônica visual, porém, é necessário que o espectador contextualize as cenas para interpretar adequadamente os fatos sem uma margem de erro. Talvez o público estrangeiro não tenha a base para compreender ou analisar a situação diante de cada depoimento apresentado.

  • Crítica | Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor

    Crítica | Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor

    Memorias do Chumbo 1

    Unindo dois assuntos primos, o jornalista Lúcio de Castro organizou quatro episódios exibidos no canal ESPN Brasil, onde seria explorado a proximidade entre as ditaduras direitistas que tomaram a America do Sul, e o futebol. Memórias do Chumbo – O Futebol Nos Tempos de Condor. As sedes dos estudos seriam Argentina, Uruguai, Brasil e Chile, e escrutinaria a influência semelhante ao ópio que o esporte – e mania – faria no povo, assim como o uso indiscriminado deste como arma governamental.

    A análise sobre o regime que tomou a Argentina começa por depoentes de idades variadas, alguns que presenciaram o início da tomada do poder, e outros que relatam as experiências de pais e outros parentes. O enfoque dado as gravações é muito mais emocional que didático, graças a sensibilidade do feitor em entrevistar as pessoas próximas das vítimas dos desmandos dos militares, sempre ligados ao futebol. No episódio Argentina a Operação Condor é esplanada, com o detalhamento da completa falta de educação, crueldade e violência, mesmo a pessoas que nada tinham a ver com os desígnios socialistas.

    A Copa de 1978 pareceu ao grupo de poderosos uma boa alternativa para retirar da opinião pública mundial a imagem de uma país opressor, mesmo que o custo fosse absurdo, beirando os setecentos milhões de dólares, incluindo nesta equação, o então presidente da FIFA, o brasileiro João Havelange, recentemente investigado por gigantescos escândalos de corrupção. É curioso como a uma distância mínima dos estádios, onde a torcida pulava e gritava, comemorando com Villa, Houseman e Kempes, havia salas de tortura, onde os cidadãos eram humilhados, fazendo daquela conquista a mais contestada da história das Copas. As falas das vítimas revelam um temor ainda existente, mesmo após décadas do acontecido, fortificando a sensação de que eram os militares os “donos da morte” dos prisioneiros, que nada fizeram, a não ser discordar do modo de governo.

    No episódio do Uruguai os depoimentos começam com as falas de Eduardo Galeano, com a revelação de que o país era campeão em torturados e mortes durante os anos negros da América Latina, inclusive com participação, conivência e patrocínio do governo brasileiro. Segundo o autor de Veias Abertas da América Latina, a tortura não era útil para colher informações, mas sim para incutir medo na população e em qualquer oposicionista, semeando e disseminando o pânico.

    O primeiro momento em que Castro se permite exibir-se para a câmera de Rosemberg Faria, é a conversar com Galeano, com quem tinha uma amizade bastante próxima. A intimidade faz com que os relatos do escritor sejam ainda mais intensos, agravados pelos detalhes do tratar dos poderosos, associando a esquemas de supostos favorecimentos, como num campeonato nacional para o Defensor Sporting, e um mundialito para a seleção uruguaio, associado a um campeonato inventado para desvirtuar a atenção do povo. Curioso é que nos relatos de Eduardo, revela-se uma das primeiras e mais notórias ações populares de torcida/sociedade, que gritava quase em uníssono “se va acabar, se va acabar, la ditadura militar”, fazendo da plebe finalmente um braço contrário aos desejos dos poderosos.

    Chega de Saudade, executada por Tom Jobim remete ao fim dos anos cinquenta, que apresentavam uma nova era de glorias para os brasileiros, especialmente pela Bossa Nova. Na esteira do receio de os discursos de Ernesto Guevara tornar-se verdade, e apoiado pelo presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson, os militares assumem o poder após a renúncia de Jânio Quadros. Subitamente, toda a informação passaria a ser controlada pelos militares recém “empossados”.

    No futebol não foi diferente, visto que ocupava uma boa parte do imaginário popular. Grande parte dos mandantes de federações estaduais, era aliada ou amiga dos poderosos, homens de confiança, que ajudava a alastrar a mentalidade dos governantes. Segundo o historiador Carlos Fico, o número menor de mortes em comparação com os outros pais do cone sul não fazia dos ditadores brasileiros menos implacáveis, piorando muito pela mentalidade reacionária se propagar no imaginário civil também.

    A perseguição ao técnico João Saldanha é revelada, focando em práticas covardes dos censores, que o encaravam como informante comunista, com a suspeição de que ele fornecia documentos a estrangeiros nas viagens com a seleção canarinho, pós Copa de 1966. O extenso monitoramento abarcava toda a população, o que vinha de encontro também ao futuro time tricampeão mundial com a introdução de um major dentro da comissão técnica.

    A tramoia do episodio varia entre os ditos sobre a guerra psicológica via slogans, como o “Brasil, ame ou deixe-o”, e claro, os relatos de torturados, como o de Cid  Benjamin, professor e jornalista, motivador do grupo MR-8, que sequestrou o embaixador estadunidense Charles Elbrick. Os detalhes sobre as condições insalubres do cárcere assustam, especialmente pela sujeira, frequentemente deixando os presos chafurdados em seus próprios excrementos.

    O estudo piora com a exposição da Operação Condor, onde se exportava tecnologias de tortura, pontuadas emocionalmente pela narração do funcionário da ESPN Luis Alberto Volpe, que imprime um caráter de denúncia mesmo em questões não tão espinhosas, agravado em momentos como nestas narrações. O episódio se encerra com a participação de Galeano expondo alguns detalhes das atividades de João Havelange e seu então genro, Ricardo Teixeira, que lucravam muito ainda nos tempos de chumbo, o que agravava ainda mais o martírio dos brasileiros comuns.

    O espécime que analisa o quadro do Chile começa mostrando o motim que vitimou Salvador Allende, um complô que – mais uma vez – envolvia os governantes brasileiros, sendo a embaixada palco até de reuniões dos golpistas. O roteiro é prodigioso ao comparar a hipocrisia dos atos com o bom mocismo das atitudes pragmáticas dos homens fortes do Mercosul, exibindo a contradição entre teoria e prática.

    O episódio é tomado por muitos depoimentos dos ex-jogadores da seleção chilena, que assumiram se sentirem como palhaços, graças a prática comum da ditadura em tornar o esporte como um circo. Ao mesmo tempo em que os atletas eram “protegidos”, seus familiares não o eram, então qualquer ato de rebeldia sofria represálias por torturas indiretas, a entes queridos, incluindo até suas mães.

    Mas foi em um jogo, que uma das maiores manifestações ocorreu, ainda que por “acaso”. Um dos jogadores, que exercia mal seu papel tinha seu nome gritado, por coincidência, homônimo do ditador, e o “Fora Pinochet” tomou os pulmões das arquibancadas, que refutavam claro, um dos soberanos mais nefastos daqueles tempos.

    Apesar de não haver uma ordem cronológica prévia para assistir a Memórias do Chumbo, é interessante tomar o capítulo chileno por último, por ser este encerrado de modo emocional, com depoentes prestes a chorar, em virtude do genocídio que ocorreu em seu país, quando os atletas corriam em atividades desportivas, com a certeza de que eventos como o túnel que ligava o campo de futebol a um local de fuzilamento, não se repetiria. O costume no Chile, Uruguai, Argentina e outros países é o de total desprezo por quem defende tais regimes, até por valorizar os homens que lutaram em favor da vida. Apesar do otimismo em seu final, não há qualquer aplacamento da realidade, ao contrário, a apresentação é visceral, informativa e emotiva, da parte de um estudioso que leva a sério o ofício de informar o espectador a qualquer preço.

    Episódio Argentina

    Episódio Uruguai

    Episódio Brasil

    Episódio Chile

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  • Crítica | A Lei da Água: Novo Código Florestal

    Crítica | A Lei da Água: Novo Código Florestal

    A Lei da Água 1

    A começar pela fala do deputado do PSOL – SP Ivan Valente, o documentário de André D’Élia busca explicitar como funciona o novo Código Florestal implantado no Brasil através de um viés positivo, tocando em questões fundamentais a respeito da preservação das matas e, especialmente, do tratamento da água em território tupiniquim.

    Didático, o filme se assemelha bastante aos reclames informativos, ainda que contenha depoimentos emotivos e emocionados, desde os mais antigos, que narram as primeiras medidas para preservação florestal assinadas por Assis Chateubriand e depois por Juscelino Kubistchek, e claro, nos tempos de hoje, mostrando como o proceder ecológico é tratado pelos atuais governantes, traçando um histórico interessantíssimo do ponto de vista de estudo de causa.

    A reunião de falas incorre sobre parlamentares de ambos os lados, tantos os políticos de esquerda quanto os de direita, inclusive sobre ativistas das causa ambiental e os opositores desta. A fala da atual ministra Kátia Abreu, enquanto Senadora pelo seu partido anterior, o Democratas, é pontual ao exibir sua inadequação ao posto que atualmente ocupa, sem muita propriedade para discutir sobre os assuntos da cadeira ministerial. Todos os dados mostrados após sua fala exibem a quantidade de latifúndios mal utilizados para a prática agrícola e pecuária.

    A edição utiliza um bom tempo da película sobre o Veta Dilma!, um abaixo assinado que colheu milhões de assinaturas contra o Código Florestal, que legitimava grande parte das ações do agro-negócio, o que comprometeria, e muito, a questão da preservação, para favorecer o Ministério do Desenvolvimento. Uma denúncia de que a base governista até então não tinha um discurso uníssono, graças à quantidade de aliados que puxavam a discussão sempre para o lado que lhe é mais conveniente.

    O caráter elucidativo do filme compete com o espirito de denúncia, contendo informações aceitáveis, mesmo ao espectador menos informado sobre a área. A transposição de ideias é bem simples, pondo o conteúdo em uma posição privilegiada, claro, sem perder a força do discurso com termos tecnobables. A fala é certeira, não faz concessões a quaisquer lados de interesse político e autoritários, evocando principalmente a popularidade da causa e a vontade do povo, que vai completamente contra os interesses dos barões da indústria.

    Um pequeno alarde é feito ao demonstrar que a Constituição é modificada pouco a pouco, graças aos remendos da lei pela bancada ruralista, que fomenta o desequilíbrio ambiental, influindo não só na ecologia, mas também na óbvia questão da convivência humana e no consumo natural da matéria-prima e dispêndio da água. As soluções propostas no filme são as mais óbvias e incrivelmente as menos adotadas, como a restauração dos processos ecológicos fundamentais, já que estes são deveres do Estado brasileiro. Depende-se fundamentalmente da implantação do Novo Código Florestal para que este funcione como prevê a lei, e comece-se a reparar os danos já implantados no país.

  • Crítica | The Culture High

    Crítica | The Culture High

    Culture High 1

    A despeito de toda a tranquilidade proveniente do uso da cannabis sativa, o filme de Brett Harvey começa violento ao mostrar uma incursão policial na casa de um possível traficante, truculento como se espera do braço duro da lei, abraçado o comportamento hostil pela parcela mais conservadora, que não teme em se desinformar e veicular mensagens sem qualquer cunho verídico ou embasamento científico. O tema central de Culture High é discutir a demonização da maconha, analisando a propaganda anti-drogas dos EUA que, em essência, não é muito diferente da vista no Brasil.

    O caráter do filme não é escondido em momento algum. Logo se abre uma discussão aberta, exacerbadamente didática, com números, demonstrações de inverdades ditas tradicionalmente e, claro, através exposição do sofisma inserido na discussão entre saúde e drogas legalizadas e não legalizadas, mostrando que o discurso lúcido passa longe de ser o principal fator na discussão. Principalmente da parte de quem condena o uso pela simples fama do que representa um “baseado”.

    Não há qualquer cerimônia para execrar o sistema autoritário de fiscalização dos EUA, além da completa ignorância por parte dos políticos responsáveis, tanto sobre os efeitos das drogas – especialmente a maconha – como  com a quantidade de dinheiro que o tráfico ilegal levanta. A força das autoridades, que punem severamente qualquer participação dentro do processo de chegada das substâncias no país. O aumento da violência não dá qualquer garantia de diminuição, tanto em lucro quanto em quantidade de material interceptado. O único fator realmente alcançado é o temor total de quem é policiado por quem o policia.

    A análise prossegue revelando a mercantilização da vida, mostrando não em números, mas em exemplos práticos, como funciona o mercado de encarceramento de pessoas, e como uma parte substancial do orçamento governamental, e que é o dinheiro do contribuinte, que mantém isto vivo. Por precisar de pessoas na cadeia que mesmo pequenas posses são tratadas como pecadores demoníacos, para justificar um sistema falido, que destrói exclusivamente os mais carentes, os que não podem pagar altas fortunas para se defender.

    Mas é o aspecto médico o mais lamentado ao longo da fita, uma vez que o uso da sativa seria muito mais barato que a enorme fama de produtos farmacêuticos que substituiria. Uma opção de Harvey em mostrar a história de um menino epiléptico, que viveu seus primeiros cinco anos tomando toda sorte de remédios, 25 mil ao todo, sem perder os tremores, contrações e alucinação. Jayden só melhorou ao usar maconha medicinal ainda em testes iniciais, com o sonho de seu pai de que se desenvolvam maiores avanços para solucionar não só o agravo de seu filho, mas também o de muitas outras crianças.

    Como em Sicko: S.O.S. Saúde de Michael Moore, há uma forte denúncia tanto da propaganda da indústria farmacêutica quanto do apoio incondicional das autoridades, demonstrando um círculo vicioso, de tráfico de influência mais escuso que qualquer uma das contraindicações. A cortina de fumaça montada em torno da bifurcação política no país piora tudo isso, fazendo com que pautas de legalizações sejam sempre postas de lado em nome de um jogo antigo, que em nada acrescenta tanto em discussões sobre rumos políticos, interna e externamente, quanto na desmoralização da face farmacêutica, por exemplo. A administração de Barack Obama, que supostamente jogaria uma luz sobre a questão por ser esta uma das plataformas de sua campanha, reverteu-se por completo e provou-se uma enorme decepção. Um governo ainda mais perseguidor que nas épocas de George W. Bush e Bill Clinton, que, mesmo em suas hipocrisias de ex-usuários, não faziam tanta força para perseguir os estudiosos da maconha medicinal.

    A realização opta por focar seus últimos momentos para glorificar a alternativa de informação e base de dados presente na internet, onde ainda não há uma presença tão forte de selecionador de audiência ou conteúdo, adotando-se o inverso da coação através da popularidade e a larga exploração na atualidade e pela tradição.

    Segundo os entrevistados, é uma questão de tempo para ocorrer a legalização. Para alguns, o otimismo não é grande, pois há o conhecimento das forças que controlam este tipo de comércio. Mas a palavra unânime é a de apelo ao término da vergonha da proibição e da completa ignorância das vidas alheias, que sofrem todos os dias com o drama da “vida bandida” causada pelo consumo da droga.

  • Crítica | O Sal da Terra (2014)

    Crítica | O Sal da Terra (2014)

    O Sal da Terra 1

    Focado na experiência artística do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, Win Wenders apresenta um filme que se inicia poético, com a pretensão de reverenciar a obra do artista através de relatos narrados a partir de seus mais belos materiais. As imagens remetem à reflexão do homem que retira seu sustento do registro visual da vida, optando por ângulos diversos, sempre em busca de uma visão não óbvia do que a natureza proporciona ao homem e a todas as criaturas.

    A direção compartilhada com Juliano Ribeiro Salgado, herdeiro do biografado, ajuda Wenders a mergulhar ainda mais fundo na intimidade de Sebastião. A intenção do artista é, por meio das imagens congeladas, retratar os sentimentos e um fragmento da vida das pessoas que clica, tornando físico e eterno o momento em que a máquina fotográfica dispara.

    Mesmo diante de aspectos desfavoráveis à narrativa fotográfica, Salgado mostra uma habilidade ímpar em montar suas histórias, além de um esmero essencial para que suas reflexões façam sentido. O documentarista permanece ao lado do personagem principal, acompanhando cada agrura e manobra do retratista. No entanto, as sequências carecem de dinamismo, ficando em grande parte focando momentos demorados e/ou parados, gerando um certo enfado no espectador que se incomoda com tramas vagarosas.

    As belas imagens tomam de assalto a tela, algumas vezes compensando a forma gradativa de contar a história. Mas não conseguem esconder o principal defeito do filme, com o estilo e formato superando o conteúdo. As belas fotos são méritos de Sebastião, não de Wenders e Ribeiro, que tiveram, é claro, o trabalho de pinçar as melhores gravuras, cujo acervo era riquíssimo.

    O grafismo da morte chega a chocar mais que qualquer outra estética, exibindo o genocídio, assassinato e extrema miséria dos desabrigados e desalojados que sobreviveram à crueldade da guerra. Impressionante e sensacional é notar como as crianças se adaptam ao ambiente hostil, por vezes ainda resistindo à ingenuidade e inocência em seus olhares, pedaços de suas almas que não conseguem negar o que sentem, sem qualquer restrição das ações adultas.

    O tributo ao brasileiro torna-se mais intenso ao analisar a obra Gênesis, que envolveu  uma viagem ao redor do mundo, onde os registros abarcavam paisagens imensas. A contemplação da natureza inclui o registro da nudez de tribos indígenas, cujas cores eram cortadas pelo preto e branco da revelação, em um contraste interessante de como as sociedades humanas vivem diversamente, mesmo que jamais se toquem. O viés ecológico é valorizado, mas ganha ares de panfletarismo bobo que tenta comover de forma barata seu público, abordagem em nada parecida nem com a obra de Sebastião Salgado, nem com a de Win Wenders. Por mais improvável que seja, faltou inspiração aos dois realizadores do filme, que até conseguem superar documentários anteriores a respeito da personagem, mas que não têm qualquer mérito nisso.

  • Crítica | Pecados do Meu Pai

    Crítica | Pecados do Meu Pai

    Pecados do Meu Pai 1

    Documentário confessional, Pecados de Mi Padre inicia-se na análise da efervescente cena política colombiana, mostrando um país violento, com queimas de carros e revoltas populares em pleno asfalto, eventos que ajudaram a cercear algumas vidas do panorama nacional. É nesse cenário que será explorada a história de Pablo Escobar, narrada por seu filho, radicado na Argentina, e que até o nome mudou, de Juan Pablo para Sebastian Marroquin, factoide utilizado para livrar-se de maiores ligações da controversa figura paterna.

    Chega a ser curioso que a justificativa das ações do conhecido negociador de drogas seja feita pela pessoa que refutou o próprio nome, renunciando ao sangue que, para muitos, era maldito. Sem ignorar todo o poder que Escobar tinha do tráfico de cocaína, sendo ele um barão da mundial da droga, o documentário de Nicolas Entel mostra uma faceta normalmente ignorada pela opinião pública norte-americana. Relacionada a ambições políticas, a figura compreendia ações filantrópicas, com construções de casas populares e até mesmo o subsídio a populações mais pobres, além de sua enorme vontade de participar diretamente do pleito eleitoral, apoiando candidatos que lhe eram caros.

    A extrema agressividade de Pablo com seus adversários é muito bem escrutinada, com cenas de arquivos visuais da época, mostrando o carro, onde ocorreria um dos assassinatos, ainda repleto de sangue do vitimado, e uma entrevista com parentes de alguns dos mortos. Mortes encomendadas pelo chefe do cartel.

    O crime que causou a maior cisão entre Escobar e a opinião pública civil foi o assassinato do candidato à presidência Luis Carlos Galán, que era uma das esperanças do início de um processo de limpeza moral. A partir daí, o antigo ativista passou a ser visto como terroristame inimigo número um do país latino, perseguido por cada um dos membros normativos da sociedade colombiana. O estilo de vida esbanjador prosseguiu vivo mesmo com o criminoso encarcerado.

    Quase tão assustadora quanto a volúpia por sangue e violência presente no comportamento do “facínora”, foi a resposta da população com os remanescentes da família Escobar, logo após o falecimento de seu patriarca, sendo cada um deles caçado como se tivesse culpa dos atos de seu pai. Curiosamente, o principal aliado dos parentes, especialmente de Marroquin, foi exatamente o filho de Galán, Rodrigo Lara, eleito senador e configurando-se em um voraz defensor da legalização das drogas em território nacional.

    Pecados do Meu Pai dá voz a uma parcela importante da história da civilização moderna da Colômbia, sem fazer concessões ao principal personagem biografado, mas também fugindo de qualquer possibilidade de maniqueísmo, apresentando um panorama político e social ainda bastante presente, e em nada aplacado pelo brutal assassinato do personagem focado pela lente e estudo da película de Entel.

  • Crítica | O Inferno de Henri-Georges Clouzot

    Crítica | O Inferno de Henri-Georges Clouzot

    O Inferno de Henri-Georges Clouzot-poster

    É cruel afirmar que só quem aprecia documentários carrega em si uma alma investigativa, mas é a verdade. Em 1991, Francis Ford Coppola foi a estrela do longo registro Francis Ford Coppola – O Apocalipse de um Cineasta, cuja existência prova, por A+B, a insanidade que foi filmar qualquer cena de Apocalypse Now, uma das super produções mais árduas e custosas a quem se propôs a realizá-la, tamanha foi a escala épica do projeto, junto a Fitzcarraldo e A Montanha Sagrada, só pra ficar com os épicos dos anos 70, década de grande expansão tecnológica. Na verdade, a simples intenção de pegar uma câmera e fazer Cinema é sinal da mais pura megalomania e complexo divino, essa coisa de brincar de Deus e criar o próprio mundinho controlado por poucos, vide Jacques Tati e o próprio George Clouzot, que comandavam a experiência tão bem. Cada um em seu gênero – Tati como o rei da comédia francesa, Clouzot, o conde do suspense française. Seu mais famoso clássico impermeável ao tempo, O Salário do Medo, colocou em 1953 o cinema criticando o espírito capitalista pós-moderno, mesmo que de forma abstrata, o que geralmente produz filmes arrebatadores como esse, da série “digno de revisões eternas”, sem sombra de dúvida. Um filme implacável e forte como qualquer atestado de nobreza por parte de Clouzot, que em companhia de Jacques Tourneur, o mestre das sombras, é orgulho nacional e artístico indiscutível.

    O elegante O Inferno de Henri-Georges Clouzot mostra o outro lado da moeda que quase todo cineasta enfrenta: o querer fazer e não conseguir por qualquer motivo inerente à necessidade de ter sua arte concluída na realidade. Kubrick morreu antes de A.I. – Inteligência Artificial ganhar vida (e excesso de emoções que faria o diretor de Laranja Mecânica vomitar), porém seu intuito de reescrever nas telas com o mesmo fascínio estético de Barry Lyndon a vida e o caráter do imperador Napoleão Bonaparte nunca foi possível devido, mais uma vez, à impensável escala e ambição da ideia cujas dimensões nenhum estúdio quis carregar nas costas. E não é preciso ir longe: cinema no Brasil com um circuito dominado por super-heróis americanos é como puxar um navio de 160 toneladas morro acima em plena Amazônia. Menções a Herzog à parte, Inferno, o sonho não realizado da vida de Clouzot, tinha um roteiro de 300 páginas, e a devoção de um pai louco para ver seu filho à luz pela primeira vez. Isso nunca aconteceu.

    A partir do som da câmera a registrar partes de um todo inconcebível, o documentário destrincha o que seria o filme a partir de contatos próximos à razão da maior frustração do artista, cultuado por meia dúzia de obras-primas. É possível imaginar o que poderia ser o almejado Inferno, romance de experimentos de linguagem, talvez o maior feito de Clouzot, de fato se assim a história tivesse caminhado em prol de um deleite. Todavia, o filme de grandioso não tinha nada, senão o que ele significava com storyboards, elenco e locações muito referente à rica obra do italiano Michelangelo Antonioni (A Aventura). Um provável fracasso, ou uma provável revolução: dois dos potenciais que consistem qualquer imagem e som. O foco poético frustrado pela rota turva da realidade dura. O documentário consegue dar água na boca a quem se interessa pelo provável ópio de um artista, e esse é um feito mais raro que o próprio tipo de Cinema que só Clouzot, em sua identidade, sabia manter em nossa memória. Para alguém que adapta Edgar Allan Poe, tudo é plausível, certo?

    “Quando as pessoas não entendem, elas preferem ironizar a situação.” – Clouzot, o incompreendido.

    O filme não seria um filme, mas tinha tudo pra ser um grande experimento, em plena Nouvelle Vague: o som conduzindo à imagem e o calor da discussão, um surreal acoplado à essência de um filme e outros indícios do gênio pulsante de Clouzot são os destaque graduais de um documentário excelente para estudiosos ou simpatizantes do fazer artístico, aqui valorizado desde a ideia até a a concepção, que por motivos óbvios não chega a ser final (de acordo com suas imagens divulgadas, o filme seria um ótimo expoente do moderno estilo pop art, sem qualquer indício do popular e influente estilo Art Noveau do século XIX). Sugestivo no ponto certo e concreto quando precisa ser, O Inferno de Clouzot é a exposição do making of de algo possível, habitando o rol do “quase”, onde o Napoleão de Kubrick e o Dom Quixote de Terry Gilliam, outro projeto maldito, tomam chá além de restrições ou orçamento disponível. A toca do coelho é profunda aonde só o Cinema, a mais completa das artes, consegue ir quando deseja.

  • Crítica | Jesus Camp

    Crítica | Jesus Camp

    Fundamentado em um discurso bastante constrangedor que visa trazer a “America” – somente o país do norte, com a bandeira azul, branca e vermelha – para as mãos de Cristo, o documentário de Heidi Ewing e Rachel Grady mostra em seu começo a multiplicidade do pensamento cristão protestante, distinguindo, em um programa de rádio, duas linhas de pensar a função do evangelho dentro da sociedade secular. Em meio a essa afronta, investiga-se um local específico, onde crianças de idades variadas aparecem em um peça teatral, trajando farda e camuflagem diante dos pais e responsáveis.

    O Jesus Camp é um espaço pensado a partir da mentalidade batista, inspirada no testemunho do conhecido pregador Billy Graham. O objetivo do acampamento é isolar as crianças dentro de um ambiente onde sua atenção, seus corações e mentes poderiam proliferar e cultivar a mensagem cristã. Aos mancebos é dada a mensagem de que seria a função deles mudar o mundo externo, recebendo uma educação específica, repetindo frases feitas cujo efeito reflete em suas almas, voltando-as para um estado de transe em que os pequeninos começam a falar uma língua indistinguível. A questão de ser esta uma viagem é logo refutada pela líder do culto, Becky Fisher, que é filha de um pastor e responsável por ministrar as palestras às crianças.

    Logo, o discurso pacífico e conciliador é posto de lado, com Fisher declarando abertamente que seu objetivo em passar a “Palavra” aos infantes é estratégico, o que em si contém uma declaração de guerra. Seu discurso é repleto da retórica do medo. Segundo sua fala, a religião e modo de viver correriam risco de se extinguir caso não se esforçassem em evangelizar o maior número de meninos possíveis, uma vez que os palestinos fazem o mesmo esforço, assim como todo o Islã. Para vencer seu opositor, os “justos” precisariam se valer das mesmas armas, que ao ver dos cristãos são fajutas, mas quando são usadas por si tornam-se somente uma arma de salvação de almas.

    Mesmo as mães, ao travar conversas com seus herdeiros, transparecem um preconceito desmedido, diminuindo o pensar científico, indicando aos pequeninos que respondam à altura caso o criacionismo sofra qualquer impropério. O pensamento falacioso e sofista é plantado desde cedo no ideário dos pré-adolescentes, para que, ao crescer, eles respondam do mesmo modo, rejeitando qualquer argumento educacional, fortalecendo o ideário bélico que complementa a aversão islamofóbica. Sem perceber, tornam seus filhos e filhas em selvagens.

    A mensagem que Jesus deixou no evangelho de Mateus é sumariamente ignorada. Em troca do sujeito humanista, preocupado com o ambiente social e perseguido por esses ideais, entra uma figura fascista que tem interesse na mentalidade alienada de seus devotos e massifica uma mensagem excludente de que somente os que seguem “seus” preceitos arcaicos têm direito à felicidade e a uma boa vida. Os pequenos são teleguiados a não viver mais suas vontades, tendo em suas palavras e atos o resumo dos dizeres religiosos incontestáveis, fáceis de desbaratar mesmo com a eterna negação de sua fraqueza de consistência.

    Fisher, em um novo ambiente chamado “Kids on Fire” – fogo é um termo cristão que denota o poder de Deus –, pede “autorização” para, em uma pregação, falar sobre Harry Potter, declarando que os magos são inimigos do Divino, portanto indignos, e caso fosse na saudosa época do Velho Testamento ele seria morto, como castigo carnal, e teria a eternidade no fogo do inferno para repensar seus atos. A crença da punição é passada sem qualquer receio às mentes ainda em formação.

    O objetivo dos documentaristas não é produzir uma versão caricata do modus operandi dos evangélicos, e sim exibir uma faceta mentirosa da conversão cristã, em que o mais importante é manter as mentes dos adeptos presas a um ideal inalcançável, para basicamente fazer deles soldados que trabalhem em prol dos interesses mesquinhos e preconceituosos de seus patriarcas e dos pregadores, aprendendo desde cedo a diferenciar pejorativamente os membros de sua família em deus dos ditos anormais, a saber: sodomitas, homossexuais e demais pessoas ignoradas pela Graça.

    Uma das meninas entrevistadas declara achar “legal” (very cool) morrer por sua fé sob os gritos de “mártir”. A câmera de Grady e Ewing somente observa a vida selvagem e o discurso se alastrando. Não julga seus analisados, somente os expõe em posições constrangedoras para que o veredito final seja dado pelo público. O lado escolhido é claramente discutir a validade do discurso fundamentalista, pouco diferente do de crianças islâmicas que portam metralhadoras e fuzis. Uma arma ideológica que ignora completamente o estado democrático e a distinção do arquétipo religioso.

    O máximo de conflito presente na fita é a fala do advogado e radialista Mike Papantonio, que não suporta os desmandos de tais cristãos. Antes de subirem os créditos finais, Becky Fischer dá seu último suspiro, mais uma vez esbravejando contra seus inimigos, para então entrar em um lava a jato e aumentar o som de sua pregação, abafando qualquer palavra externa. A água avermelhada caindo sobre seu para-brisa associa seu estilo de vida irresistivelmente ao sangue e a transferência pura e simples do radicalismo às crianças. A conduta extremamente condenatória parecia mesmo estar enraizada na mentalidade dos infantes, que precisariam de muita ajuda externa para sair desta situação.

  • Crítica | Os Incrédulos

    Crítica | Os Incrédulos

    Os Incredulos 1

    A peregrinação mundial dos cientistas Richard Dawkins e Lawrence Krauss é flagrada pela câmera e edição moderna de Gus Holwerda, que se utiliza de depoimentos de celebridades conhecidamente incrédulas – a maioria ateia – para fortalecer o discurso que torna o argumento científico a solução para a maioria dos males humanos, especialmente o da falta de discussão do papel dogmático que a religião exerce sobre as sociedades ocidental e oriental.

    Dawkins é um zoólogo, etólogo e evolucionista, enquanto Krauss é especialista em física teórica. Seus currículos os credenciam para falar a respeito das descobertas pregressas da ciência, e especialmente para pregar às multidões a graça da verdade, a ciência como libertadora de qualquer pensamento recalcante, por ser ela a que explica a face originária da vida. No entanto, para que o alicerce da ciência seja sólido, é preciso usar o sepultamento por completo do pensamento religioso, tirando-o da base da pirâmide de pensamento, não só por ser a “instituição” um órgão que proíbe a discussão em volta de si, mas também pela natural escravização de seus membros, a maioria vítima de sofismas alienantes, cuja consciência passa longe da mentalidade dos fiéis.

    Os debates são quase sempre muitíssimo enérgicos, onde a razão e a lógica quase nunca vence o senso comum do pensamento formado através da fé, seja pelos devotos fundamentalistas, seja por meio dos crentes que aceitam concessões. O discurso dos cientistas, no entanto, é indobrável por estes terem a certeza de que qualquer faceta da crença acima da premissa congruente do raciocínio fuja de seus próprios ideais.

    Olhando por esse ângulo, é fácil associar o modus operandi dos pesquisadores aos de um fanático religioso, que possivelmente inspirou parte da massa ateia praticante que tenta converter tudo e todos. Mas há que separar a abordagem do discurso e as estratégias de fala, executadas para mais fácil entendimento dos incautos no simples pensar e no estudo da origem da vida, das espécies e dos lugares em que o homo sapiens habita. Os números apresentados para uma plateia exclusivamente sua são realizados em ambientes teatrais, dando a eles um ar de celebridade e que, com humor, levam a sua plateia uma mensagem que entretém e pretensamente informa. Assim, o discurso torna-se bastante discutível em razão da edição escolhida que os glamouriza na tentativa de popularizar a fala, o que pode naturalmente banalizar suas palavras – especialmente para os analistas mais “xiitas”.

    As imagens falam por si só. Enquanto os dois protagonistas estão em um ambiente fechado, onde a paz reina, do lado de fora há vozes dissonantes que vociferam ofensas distantes demais da paz que predomina sobre o evangelho e tantas outras religiões, derivadas ou não do cristianismo, crenças essas que basicamente tentam reduzir o argumento da não religião a algo que a maioria dos dogmáticos conhece: o puro recalque, descrito por Sigmund Freud como fruto do chiste, de quem baseia qualquer decisão lógica em passionalidade, calcada basicamente na mágoa, que é o inteiro inverso da religião.

    A crença defendida em Os Incrédulos é abordar en passant os conceitos científicos que Dawkins e Krauss pregam, não apresentando todos os argumentos que estes costumam usar em palestras, até para que o documentário sirva de aperitivo. O alvo é destacar o quão ignorantes podem ser os opositores deste pensamento, em alguns pontos até validando algumas ideias, mas, claro, utilizando o conceito científico como crítica à intolerância e tendo ao seu lado os melhores argumentos.

  • Crítica | Sobral: O Homem Que Não Tinha Preço

    Crítica | Sobral: O Homem Que Não Tinha Preço

    O homem q não tinha preço

    A origem latina da palavra “resistência” vem de resistire, que faz lembrar o conceito de “ficar firme, aguentar”, relacionando a manter posição. Em tempos de ditadura militar, em plena efervescência cultural e política mundial, o Brasil vivia aquém, sem liberdade para o povo, sem vazão ao  poder popular. Apesar de mentes envelhecidas nadarem normalmente a favor desta correnteza de mazelas, havia alguém que fazia a contramão desses ideais, destacando a militância no ambiente jurídico.

    Sobral Pinto era um senhor de alta idade que teimava em legislar em favor dos direitos humanos, em um período no qual o conceito era completamente ignorado e tratado como assunto subestimado, uma vez que o regime impunha sua vontade para quem quer que tentasse resistir a ele.

    A pesquisa de Paula Fiuza – diretora e roteirista, interessada pessoalmente pelos assuntos legais dos tempos em que a esquerda somente habitava os porões do regime – leva o espectador ao ano de 1999, quando ocorreu o resgate das fitas com os julgamentos dos presos políticos, os quais o jurista Sobral, que destacava sua tremida e passional voz, ainda teimava em defender; tudo através de um material adquirido por um jovem advogado que visava preencher o espaço de sua tese de conclusão de curso na faculdade. As defesas serviam de inspiração para alguns bons defensores de direitos, além de fornecer a garantia da lei, tão ignorada no absolutismo de farda.

    A intimidade do já idoso protestante realiza-se através dos depoimentos de seus convivas e descendentes, dos que foram bravamente defendidos por ele. A obra também reúne boas imagens da época, com falas do próprio advogado. A briga para fazer da liberdade a bandeira universal teve um episódio especial na união do biografado com Luis Carlos Prestes, mostrando que mesmo o marxista e militante extremo não tem necessidade de conflitos extremos com o comportamento católico praticante do causídico, exemplificando o quanto tem em comum em relação ao discurso socialista e do moderno modo de Jesus tratar os excluídos dos evangelhos.

    O subtítulo do filme reflete a verdade atrás de sua personalidade e trabalho. Não ter preço não era uma expressão, especialmente por poucas vezes cobrar de seus clientes, a maioria formada por gente humilde, de poucas posses. Sobral era um homem do povo, refutava que o chamassem de Vossa Excelência. Por suas virtudes no Direito terem a ver com sua extrema humanidade, contraditas no passional modo de enxergar o futebol e as fases ruins de seu time de coração, o América da Tijuca. A sabedoria do jurista não o salvaguardava do fanatismo do futebol ou do bom humor e sacanice em relação a belas mulheres, inclusive Sônia Braga. Os fatos narrados em relação ao tema, prendem-no à realidade, distanciando-se da ideia de um androide em prol da justiça.

    A influência da religião fez Sobral se autopunir quando cometeu o pecado da infidelidade conjugal: a renúncia ao próprio ofício de procurador e a diversões sãs, como partilhar dos estádios de futebol em dias de jogos e sessões de cinema. A marca do erro se fixou em sua alma, revelando o lado conservador do advogado, que só teve sossego sobre o caso quando conseguiu o perdão de sua esposa.

    Segundo as falas dos depoentes, Sobral apoiou o movimento “revolucionário” dos militares, por medo igual do possível regime vermelho. A partir do momento em que a constituição passou a ser transgredida, o jurista mudaria de lado. A fala é dada em gritos, com a voz claramente alterada em razão da passionalidade, possivelmente pela indignação consigo próprio ao ter caído no engodo dos que viria a combater. Nem mesmo sua verve e inteligência foram capazes de identificar a tomada de poder ilegítima: mesmo apoiando o golpe em 1964, houve o ato de lançar uma carta de repúdio a Castelo Branco por assumir a presidência mesmo sendo o chefe do exército, o que era também inconstitucional.

    A falta de concessões às convicções que tinha e que defendia fazia dele uma personalidade sui generis, algo descoberto em sua integridade anos depois dos seus feitos junto ao romantismo, ao extraordinário trabalho que fazia para o povo de modo geral. Os créditos finais passam-se em uma homenagem no terreiro de samba, ao lado de seu amigo João Nogueira, que canta os feitos de seu amigo e mentor, popularizando uma figura de integridade ímpar, que a câmera de Paula Fiuza busca honrar. Às vezes não dando tanta vazão ao conservadorismo conhecido do advogado, a obra ressalta o viés de luta de seus convivas e o altruísmo que fala mais alto que qualquer pragmatismo pseudo-revolucionário, mostrando um Sobral como o jurista do qual o povo precisava.

  • Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Cidade de Deus 10 Anos Depois 1

    Com a mesma faca usada na morte da galinha que abre o filme original de Fernando Meirelles, Cidade de Deus: 10 Anos Depois inicia-se. A narração de Alexandre Rodrigues, comum em documentários e na ficção, explora como foi o desenrolar da carreira artística de cada um dos integrantes do elenco e a produção do sucesso Cidade de Deus, focando nos moradores do complexo comunitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro, em quem permaneceu no mesmo local.

    Leandro Firmino da Hora é o primeiro “personagem” analisado, muito além do seu Zé Pequeno, quilos mais pesado e anos mais velho. A confissão de que jamais sonhou seguir carreira artística é surpreendente, especialmente por sua condição de negro e morador de favela. A situação de que a comunidade era uma questão cult se deu a partir de 2002 com o lançamento da obra, passando a nortear a enorme diferença entre a realidade dos envolvidos, do sucesso meteórico, e a volta para suas casas paupérrimas, realidade, segundo os depoentes, digna de choro.

    A crueldade do meio artístico é flagrada na fala de Roberta Rodrigues e de Jonathan Haagensen, que lembram as terríveis dificuldades que tiveram ao tentar solidificar a carreira como atores, algo raro mesmo dentro do talentoso elenco do clássico instantâneo. A crueza da fama é ainda melhor mostrada na face de Alexandre Rodrigues, quase sem maquiagem, onde cada sinal de imperfeição é muito bem pontuada, e que em cujas falas mais se demonstra o arrependimento por não ter aproveitado, como deveria, a fama repentina.

    Os contatos dos diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal fizeram possível o encontro com astros como Seu Jorge, mas os esforços são muito melhores vistos ao investigar como a rotina de pessoas absolutamente anônimas, como o ex-ator Felipe Paulino, cujo papel pequeno, o do menino que tem o pé alvejado por Zé Pequeno. Felipe fala timidamente sobre suas cenas, intercalando com os momentos de seus trabalhos e bicos como servente de um hotel. Confuso, o jovem faz fortes declarações a respeito de sua aposentadoria, inclusive uma polêmica envolvendo o dinheiro que recebeu e quem supostamente o gastou. Apesar dos reclames, de fato se demonstrou que o cachê dos atores foi muito pequeno, variando entre os quatro dígitos de reais para os personagens secundários e pouco mais de dez mil para os protagonistas e antagonistas.

    Apesar de louvar carreiras promissoras como as de Alice Braga, os depoimentos mais interessantes são os que revelam o drama de Rubens Sabino, que fez o personagem Neguinho e sofreu enormes dificuldades na vida, ficando conhecido um ano após o lançamento mundial. O motivo da “re-fama” foi devido a um assalto que cometeu e que, claro, deu errado, causando sua prisão e a reputação de contraventor.

    As filmagens, realizadas no começo dos anos 2000, aparecem como introdução a discursos emocionantes dos meninos que foram obrigados a amadurecer muito rápido, passando na maioria das vezes a serem os provedores de renda de suas casas. O momento de Darlan Cunha e Douglas Silva após o longa-metragem e o seriado Cidade dos Homens, que foi ao ar entre 2002 e 2005, também é focado. Um efeito semelhante ao tencionado por Linklater em Boyhood – Da Infância à Juventude, com a trajetória de Douglas, que teve de se reinventar e que nadou contra a corrente de seus companheiros, visto que a maioria não teve qualquer sucesso nem em carreira artística, nem em vínculo empregatício.

    O rumo das falas lembra a pouca abordagem sobre a vida do negro sendo contada por pessoas negras, quase sempre representados por estereótipos de bandidos desorganizados, como uma inversão do conceito de bom selvagem, um ser irracional, desorganizado e agressivo. A condição de apartheid é comum entre as seleções de casting, raramente contemplando papéis comuns em profissões como advogados, médicos e engenheiros. A fuga do arquétipo de envolvido no “movimento” reflete-se no drama de muitos negros, entre eles Jefechander Suplino, que viveu Alicate, curiosamente invertendo o estigma de conversão do seu personagem, tornando real a ficção que viveu, visto que está desaparecido até a produção do documentário. A realidade do ator é a mesma de muitos outros jovens negros, quando não, chacinados pelo poder paralelo ou pelo Estado.

    A ideia de reunir as falas dos que fizeram parte de fenômenos que mudaram completamente o panorama da favela de asfalto é ímpar por resgatar os momentos não contados, até então, dos que não tiveram tanta sorte quanto os famosos “globais” e conhecidos internacionalmente. É no drama que mora o principal adjetivo positivo deste Cidade de Deus – 10 Anos Depois, uma realidade que ainda exclui o preto e o pobre, mesmo quando o indivíduo teve seu momento ao sol. Nem os lembretes textuais das iniciativas de praças artísticas oriundas das favelas cariocas conseguem mudar a sensação de que falta oportunidades a essa classe, exemplificada na demora em distribuir o documentário em questão para o circuito comercial, fazendo deste um evento de quebra da quarta parede, que retrata o tema discutido no roteiro.

  • Crítica | Enchente

    Crítica | Enchente

    capa dvd enchente

    Antes mesmo de iniciar o documentário, os cineastas Julio Pecly e Paulo Silva utilizam a tela dos créditos para exibir um pronunciamento oficial, ministrado por uma autoridade local da cidade do Rio de Janeiro, apelando para que o cidadão de bem não saísse às ruas a menos em caso estritamente necessário, já que, nos idos de 1996, a cidade se encontrava em estado de calamidade. O pedido não poderia ser aceito por quem morava na Cidade de Deus, já que suas casas foram invadidas pelas águas, cuja fatalidade levou, inclusive, a vida de alguns moradores.

    Através de imagens da televisão à época, o diretor tenta resgatar em imagens a dor e o desespero que seus vizinhos e família sofreram. Seguido a isso, mostram-se moradores do local naquele período, rostos que não conseguem esconder nem o alívio por estarem vivos, tampouco o amargor pelo infortúnio causado à comunidade.

    Sem infraestrutura, comida, com os comerciantes sofrendo saques, os moradores pereciam – outra vez – no abandono por parte da prefeitura e das autoridades cabíveis. De positivo, há muito pouco. O que resta é a curiosidade de conferir os relatos por parte dos sobreviventes, que, mesmo perdendo grande parte dos seus bens, comemora momentos do resgate, como afirma um morador local ao conseguir salvar ao menos seu aparelho televisor da enchente que tomou a sua casa, ainda que o nível da água estivesse já na altura do tórax.

    A maioria dos habitantes do local simplesmente jogava seus pertences fora, como em um rito desesperançoso de passagem, exibindo o fim de um ciclo para um começo do zero. O simples baixar das águas não faria os problemas simplesmente sumirem, tampouco traria de volta à vida aqueles que morreram. Todos tiveram marcas provindas da tempestade, mas apagar os sinais visíveis pela favela era o mínimo para que se começasse uma mudança.

    Outras enchentes ocorreram e tiveram grande exploração midiática nos anos 60, inclusive em tons dramáticos transmitidos pelos programas de reportagens da época. O pouco feito pelas autoridades é o mote da fita, que destaca a total ignorância do poder público, marginalizando os homens com menos dinheiro e recursos, pois eram esses que, na cidade do Rio, ficavam desabrigados e perdiam tudo.

    Mesmo entre os entrevistados, não há um consenso entre quem seria o principal culpado pelo acontecido, ou a razão maior. Desde destino até o desprezo das autoridades, todas as causas possíveis são levantadas, inclusive com registros do então prefeito Cesar Maia, mais uma vez reclamando que o governo federal e estadual não assumiam a responsabilidade junto com ele, tirando o atestado de autoria por aquele pecado de perto de si. Tudo isso dito pelo político que vê a cidade do alto, em um helicóptero, fazendo com que distância entre os dois mundo se mostrasse puramente visual.

    A mensagem que Pecly e Silva passam escolhe um lado, mas não ignora o outro. A voz dada aos que acham que a culpa era dos próprios moradores não ignora a parcela de responsabilidade dos governantes. Mesmo que diante da tragédia anunciada e da ação praticamente nula dos que foram eleitos pelo povo, e que assistiam passivamente à morte daqueles homens.

    A trilha instrumental, deixada ao final, traz um conjunto de cordas tocando Unforgiven do Metallica, para então revelar que, em 2010, outra enchente ocorreu, vitimando mais cinco pessoas na Cidade de Deus, e outras centenas no restante da cidade. Tudo fruto do imperdoável desprezo com o pobre, ainda muito comum na triste relação de chefes de Estado e população carente.

  • Crítica | O Universo Graciliano

    Crítica | O Universo Graciliano

    Universo Graciliano 1

    Intentando resgatar a memória de um notável brasileiro, Sylvio Back se aventura pela trajetória panorâmica do autor Graciliano Ramos, elevando a carreira e visão de mundo do alagoano ao patamar cósmico, ao apresentar seu O Universo Graciliano, de Sylvio Back. Não à toa, o primeiro personagem flagrado em cena é Oscar Niemeyer, cujos desígnios políticos eram muito semelhantes aos ideais sociais do escritor, transmitindo a mensagem antes mesmo do preâmbulo.

    A câmera invade a intimidade dos que depõem, com closes fechadíssimos, expondo pele e rugas -, defeitos que tornam cada um dos participantes ainda mais humano. Com a trêmula câmera, comum ao movimento de quem registra, sem modificação estética, a obra faz do ofício um paralelo com a carreira e o texto de Ramos, o que já havia sido realizado anteriormente por Nelson Pereira dos Santos em seus Vidas Secas e Memórias do Cárcere.

    Em cada palavra da parte dos convidados, nota-se o destaque que Graciliano dava ao socialismo e à crença de que a revolução soviética seria a resposta para todos os males sociais, algo representado em suas obras pelo árido deserto nordestino, onde as condições paupérrimas impediam que qualquer coisa se proliferasse. Como principal motivador desse decréscimo de vida, a condição de supervalorização do capital. Voraz leitor e estudante das condições econômicas, Graciliano batizou de Lênin um de seus filhos, homenageando o homem que, segundo seu pensamento, conseguiu se aproximar mais do pragmatismo recorrente de Karl Marx.

    A verve política de Ramos é bastante focada, especialmente em seu ingresso no PCB (Partido Comunista Brasileiro) junto a outros tantos ilustres, como Jorge Amado, Cândido Portinari, Niemeyer, além de outros autores, intelectuais e proletários. Sua participação aconteceu desde a inspiração a Luis Carlos Prestes até o fomento à entrada de escritores mais moços para que adentrassem as fileiras do grêmio político. As diretrizes eram levadas a sério, ipsis literis na maioria das vezes, seguidas como em uma seita onde nada se destaca. Em determinado ponto, o documentário de Back envolve tanto a figura de Graciliano quanto os efeitos do socialismo sobre toda uma geração de pensadores brasileiros, com ele incluso, claro.

    A edição de Mariana Fumo e a fotografia de Erick Mammoccio ajudam a  transcender os formatos comuns ao gênero documental, mesmo levando-se em conta os novos modos de registrar os fundamentos biográficos. A linguagem enquadra uma visão fidedigna, resgatando dos entrevistados detalhes privados do personagem, humanizando-o de um modo pragmático, mas bem distante da literatura propagandista e panfletária. Revela-se uma persona repleta de nuances, com uma multiplicidade de pensamento aberto, e a quebra de rigidez típica de quem pensava o comunismo dentro do partido, sendo uma voz dissonante que visava analisar a estrutura do Brasil, adaptando o modo de governo aos anseios e necessidades do povo.

    O sertão era o cenário das histórias de Graciliano por exibir uma dura realidade, pessimista em essência, por conter na região o resumo das necessidades básicas do brasileiro às quais eram relegadas pela disparidade social, que na prática resultava em fome, desnutrição e miséria. Apesar da questão tender a ser ignorada por teóricos, graças à quantidade exorbitante de burocracia que tomou grande parte da esquerda, tais anseios se associam naturalmente ao pensamento básico socialista. A escolha de Back em retratar esta faceta de Graciliano Ramos não só humaniza a figura mítica como também mostra o engajamento e alma do artista e do homem por trás da grandíssima obra.

  • Crítica | Em Busca de Iara

    Crítica | Em Busca de Iara

    Em Busca de Iara 1

    Todo o mistério a respeito da morte da psicóloga e ativista Iara Iavelberg é analisado no documentário de Flavio Frederico. Iniciando os relatos com uma reportagem de televisão, que acompanha a tentativa da família de exumar o corpo da moça, conclui-se que o falecimento de Iara não foi por suicídio, como as autoridades anunciaram. A tentativa foi fracassada, e a partir da narração da codiretora  – e sobrinha de Iara, que teve o sobrenome mudado para não atentar aos olhos do Regime Militar – Mariana Pamplona, claramente obcecada pela história de sua familiar, a obra explora a tradição religiosa judaica da família, mostrando como a biografada começou a se interessar pelo discurso libertário.

    Unida a outros jovens, Iara começa a viver na VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, composta por estudantes, trabalhadores e militares. Iara também integraria o Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária), e depois o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), todas organizações de extrema esquerda que tinham em comum a luta contra a ditadura. A sensação de pressa acometia Iara e todos os outros integrantes destes grupos, movidos pela possibilidade de não ter um futuro garantido, uma vez que os militares estavam no auge de suas ações de poder.

    Os depoentes relembram o quão diferente tornou-se a repressão após o AI-5, recrudescendo e torturando de modo muito mais intenso e emocional, fazendo do decreto um divisor de águas na vida política e comum do Brasil, afetando diretamente os militantes. Iara transitava nesses meios e convivia com guerrilheiros na clandestinidade, usando o nome de Mariana para desviar a atenção de possíveis perseguidores, uma vez que era comum a polícia ficar de tocaia.

    Em determinado ponto, a obra se dissipa em dois caminhos servindo como uma boa análise da biografia de Carlos Lamarca, desertor do exército brasileiro que ajudou a treinar um grande número de guerrilheiros. A câmera mostra um flagrante curioso, de que os “subversivos” militantes eram vistos como agentes do caos e um perigo para o status da família normativa, enquanto Lamarca era considerado um pária, um traidor das forças armadas que se debandou para o time inimigo.

    Os detalhes da execução de Iara são explorados ao máximo, especialmente no depoimento do amigo e também militante Cesar Benjamin, que foi um dos primeiros a ver o corpo da moça, executada e com um corte que ia do queixo até a cintura, centralizado entre os seios. Além dessa imagem demonstrar um sinal de profundo desrespeito com o preso, ainda demovia a ideia de suicídio, sendo somente este um dos gritantes sinais de que a versão oficial da morte de Iara por suicídio era, na verdade, uma farsa.

    A conclusão do filme não poderia ser mais simbólica: a segunda cerimônia de sepultamento de Iara, ministrada pelo religioso Henry Sobel, no ano de 2006, encerrando a memória da guerrilheira de modo emocional, seguindo a tônica presente em todo o filme. Em Busca de Iara consegue reunir depoimentos para montar um panorama de proporções pequenas, mas que não exclui argumentos contrários. O ponto alto da obra está em seu formato, bastante pessoal e carregado de emoção, fazendo da moça que buscam um personagem tão vivo quanto qualquer um dos que estão na produção ou na plateia do filme.

  • Crítica | Virunga

    Crítica | Virunga

    Virunga 1

    O lar de muitas pessoas, e da espécie em extinção dos gorilas das montanhas, serve de cenário para um conto sobre a história da República do Congo e sua sangrenta batalha racial. O Parque Nacional de Virunga contempla uma biodiversidade enorme, incluindo um orfanato de símios, e a realidade do local mostra a convivência e o conflito entre humanos que não aceitam a diversidade racial entre os habitantes do país. O milagre natural é tristemente obrigado a coabitar com a situação bélica.

    A desesperança que deveria acometer a população por vezes é contornada e invertida, gerando a capacidade de acreditar que a natureza e a vida subsistirão, mesmo diante de tantas catástrofes. Orlando von Einsiedel conduz suas câmeras pelas planícies verdejantes, um cenário lindíssimo e inspirador pontuado pela bela fauna e flora, que garantem mais cores e nuances ao combalido local, exagerados pela trilha sonora. A abordagem spielberguiana, dos tempos em que o diretor norte-americano dedicava sua carreira ao público infanto-juvenil, aumenta a aura de lugar fantástico, assinalada ainda mais pelo visual.

    A câmera é escondida em lugares insalubres, intentando captar depoimentos dos militares que ocupam as cercanias do parque. Os pontos secretos da entrevista constituem em si um achado, com informações valiosíssimas. Em paralelo, são mostradas cenas da realidade cruel que acomete o vilarejo, com bombas e mísseis sendo lançados, tanques passando pelas paisagens verdes, deixando um rastro arenoso de cor bege, colorindo de forma depressiva o ambiente que devia ter na aquarela do arco-íris o seu norte.

    No lugar abandonado onde os desalojados ficam habitam a miséria e condições mínimas de subsistência humana. Os barracos, feitos de sucata e madeiras estragadas, representam visualmente as condições paupérrimas de vida dos habitantes do proletário local, pessoas que sofrem o terrível efeito colateral da guerra civil e que não têm qualquer alento, seja dos poderosos locais ou das autoridades internacionais. O massacre visual prossegue nas visitas aos hospitais, onde crianças aparecem feridas, algumas até aleijadas, com seus membros amputados em razão do temível estado bélico que reside em suas terras.

    A inocência dos pobres filhotes de gorilas das montanhas, que ainda conseguem sobreviver em meio à floresta, produz pouquíssima esperança de retorno ou resgate da paz. A produção cinematográfica contém uma edição prodigiosa, unindo-se ao roteiro de modo equilibrado, sem roubar a importância de ambos os aspectos. A verdade é averiguada sem esquecer-se dos espinhosos lados distintos do embate, dando voz para a organização que ocupa o parque ecológico.

    Virunga transcende a condição fílmica, atuando não só como denúncia através do cinema e transmissão streaming, mas também para ser um grito revoltoso, uma acusação incriminatória que visa esclarecer à opinião pública mundial, elevando um problema que é local e supostamente sem solução a um nível mais global, mais uma vez à procura da possibilidade de paz e de sossego para os pobres habitantes e para as criaturas que habitam a reserva.

  • Crítica | Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho

    Crítica | Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho

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    Não há meias medidas para Paulo Coelho. Uma parcela identifica-o como um querido escritor, um dos autores vivos mais lidos e traduzidos no mundo; outros rechaçam sua narrativa com veemência, taxando-o como péssimo prosador. Nesta corda banda de amor e ódio vive o autor, um homem paradoxal.

    Não Pare Na Pista – A Melhor História de Paulo Coelho representa a tradicional biografia cinematográfica com espaços temporais distintos apresentando diferentes facetas do biografado. Iniciando-se com uma cena de impacto, uma tentativa de suicídio na época de sua juventude, observamos a agonia do jovem Coelho. Um garoto deslocado, sem muitos amigos, considerado feio demais para se aproximar de uma garota. O único propósito de sua vida é ganhar uma máquina de escrever. Após a tentativa de suicídio e uma internação obrigatória no manicômio, surge a primeira entre muitas rupturas da relação paterna. Para Pedro Coelho, o filho deve seguir uma profissão tradicional, e a incompreensão da visão do filho proporcionaria futuramente a fuga do jovem para viver sozinho.

    Além da juventude de Coelho, acompanhamos o início de sua vida adulta e a maturidade consagrada. Três tempos narrativos demonstrando as fases passadas pelo autor. O período após a saída do escritor de sua casa contém os momentos mais transformadores na carreira de Coelho. Na época, conhece Raul Seixas que, de acordo com o longa, ensina-o a se expressar de maneira direta nas letras que escreveram em parceria. Desde o princípio, observamos que o autor defende o conceito da simplicidade artística, uma maneira direta de atingir o público e que, futuramente, também se tornou parte de seu estilo literário: uma obra rápida com frases precisas e existenciais para impactar o leitor.

    Após o período regado a drogas e bebidas com Seixas, o autor passa por uma intensa transformação interna em uma viagem de peregrinação pelo caminho de Santiago. É nesta viagem que a dimensão espiritual do equilíbrio e do autoconhecimento apresenta-se no longa. São cenas que abusam de falas e personagens, realizando apontamentos que fundamentaram seu caráter e serão base para o primeiro sucesso, O Diário de um Mago.

    As diferentes mudanças de personalidade de Coelho em momentos distintos demonstram uma intenção de nunca seguir modelos tradicionais de vida. O autor sempre renegou o que poderia ser comum a outros, à procura de sua própria vontade. Porém, as fases de sua vida são apresentadas de maneira tão bruscas que não aparenta haver um conectivo direto entre elas. Como se assistíssemos à história de um garoto problemático, um letrista inspirado que alcançou seu próprio nirvana, e o escritor consagrado comemorando seus louros. São elementos chaves que apresentam-se na obra sem dimensionar exatamente como e quando os caminhos de sua vida resultaram no homem que ele se tornou. Um erro que não deveria existir em um filme que intenta ser uma biografia dramatizada de uma vida real. Não cabe ao público conhecer sua história de antemão para compreender o que acontece entre estas lacunas deixadas pela produção.

    As cenas do Mago na velhice são desnecessárias à obra. Funcionam para mostrar o sucesso evidente, algo que, neste caso, o público sabe sem precisar conhecer sua biografia (afinal, estamos falando de um dos brasileiros mais influentes no exterior). A maquiagem em excesso, com uma careca nitidamente feita em látex, tenta produzir uma semelhança com a fisionomia atual do autor, mas que também não funciona. A caracterização e motivação para este trecho do longa-metragem falham por nada acrescentar ao público. Um espaço que poderia ser retirado da obra para dar maior coesão à sua trajetória, incluindo as citadas tensões de amor e ódio que o autor parece despertar.

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  • Crítica | Olho Nu

    Crítica | Olho Nu

    Desde o início da carreira, Ney Matogrosso é um intérprete impossível de ser definido em poucas palavras. Em plena ditadura, ao lado dos Secos & Molhados, foi um transgressor pela postura exibida no palco, entre pinturas, adornos, danças e nudez, elementos que ainda mantém em sua carreira. Em entrevista recente, reconheceu que se tornou um representante de tabus persistentes na sociedade. Mesmo negando assumir a bandeira de qualquer causa, sabe de sua força autêntica.

    O homem de um profundo olhar imagético se mantém na ativa e bem representado em discos elogiados, turnês de sucesso, trabalhando na produção de outros músicos – dirigiu o show Coração Inevitável de Ana Canãs – e também com vigor para, vez ou outra, estrelar produções cinematográficas – foi o bandido da Luz Vermelha na continuação Luz das Trevas, dirigido por Helena Ignez.

    Olho Nu é uma obra documental que foge dos padrões do gênero e faz de Matogrosso um personagem da própria história. Não se trata de um documentário linear que apresenta depoimentos a respeito do cantor, nem mesmo conta sua trajetória como artista. Dividido entre imagens antigas e cenas contemplativas do cantor visitando sua casa da infância, demonstrando o contato direto que faz com a natureza, o documentário volta-se mais para uma obra de cunho metafórico e memorialista do que um documento narrativo da densa história de Ney.

    É um documentário-ensaio – se é que existe tal definição – que reverencia a figura conhecida pelo público. Um projeto que se transforma em uma obra para iniciados, voltado àqueles que conhecem sua obra e, por consequência, compreendem as informações, imagens e videos apresentados. Não há assunto não abordado pela obra. Porém, sem uma linha narrativa aparente, perde-se espaço para definir, mesmo que brevemente, quem é Ney Matogrosso.

    Em entrevista, o próprio cantor afirmou que sentiu falta de maior exposição, ainda mais que algumas facetas de sua vida tenham sido citadas brevemente. Levando-se em consideração que é um artista que sempre permitiu a observação do público, sempre foi autêntico em expressar suas opiniões e nunca se esquivou de perguntas polêmicas, é entristecedora a lacuna deixada pelo documentário.

    Sem ousar desvendá-la, a figura de Ney Matogrosso, que tem 40 anos de carreira e 70 de vida, é contemplada no documentário. Evoca poesia em suas imagens, desconhecendo que o próprio intérprete basta neste quesito, registrando com sua voz aguda diversas e grandiosas canções. Falta alguém que o observe com profundidade e realize uma obra, seja biografia ou documentário, à altura deste Homem – com maiúsculas.

  • Crítica | Libertem Angela Davis

    Crítica | Libertem Angela Davis

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    A evocação primária de Libertem Angela Davis envolve uma forte trilha sonora, muito ligada ao ideal da principal biografada. Os gritos de “freedom” acompanhados do groove inserem o público na aura de luta pela igualdade racial, mais do que qualquer cena anterior à trilha. Após a apresentação, toda a formalidade é quebrada de modo necessário, expondo as indignidades que os marginalizados padeciam, além da resposta agressiva que os manifestantes sofriam, agredidos com brutalidade e repressão por parte dos policiais, com a mesma medida violenta que eles viam nas ruas, longe dos holofotes. A desfaçatez reinava no modus operandi das forças armadas, na tentativa de manter o estado totalitário no poder, sem que nada mudasse.

    O cunho político do documentário de Susan Lynch visa analisar o momento histórico pelo qual passava os Estados Unidos da América, antecipando a condição que seria vista mais tarde na África como Apartheid. O viés escolhido é o olhar de uma professora, uma função de fundamental importância na sociedade civil e que contribuía para a filosofia social predominante, até que esta norma muda. Ao menor sinal do ensino – em escolas segregadoras, que separam alunos por cor – dos ideais marxistas, faz-se dela uma inimiga do governo e da ordem imperante.

    A luta das autoridades com Angela era política, tomada pela paranoia da Guerra Fria, que fazia perseguir quaisquer afiliados do Partido Comunista, uma vez que o discurso era tratado como algo “diabólico”, tirado de contexto a fim de parecer ir contra a tradição, família e propriedade. Nos discursos do povo manipulado, havia gritos de “volte para a Rússia” e “volte para a África”, além de exibir uma variação ainda mais pesada de preconceito racial, com desenhos caricaturais de Davis assemelhando sua figura à caracterização da população zulu.

    Toda hecatombe ocorria ao lado do recrudescimento da máquina de governo, com o governador Ronald Reagan achando em Davis uma párea e perigosa inimiga do país, claro, junto ao estouro do confronto no Vietnã e a ascensão dos Panteras Negras. O estado de sítio estava instaurado, e uma guerra civil tomava o asfalto, fruto da dificuldade de evolução e de reflexão do antigo discurso de Abraham Lincoln. A igualdade parecia cada vez mais distante.

    Em razão de um incidente, na época muitíssimo mal explicado, Angela Davis foi indiciada, tendo sua prisão decretada e executada sob muitos protestos, que alegavam manipulação de informação por parte da mídia. A culpabilidade da professora foi tão alta que até o presidente Richard Nixon a endossou. A pena para Davis incorreu no desejo de extradição, o que intensificou ainda mais a onda de protestos.

    O caráter de atualidade do filme é impressionante, especialmente por notar-se a praticamente nula evolução a que o mundo se submeteu, mesmo após 40 anos decorridos após o início do movimento. A controvérsia a respeito dos direitos à liberdade política e da marginalização do “diferente” prossegue em países de diferentes histórias e tradições de luta, dos mais ricos até os ditos subdesenvolvidos; alguns com arquétipos mudados: dos negros sendo substituídos por outras minorias igualmente marginalizadas, como o público LGBT, ao lado da perseguição dos que pensam à esquerda, e contra tantos outros. E a questão racial ainda longe de ser resolvida.

    A contextualização documental mostra muitos registros visuais da época, assim como inúmeros depoimentos dos envolvidos, até de lados opostos. Serve como um bom retrato do panorama cronológico, tanto que reforça a injustiça presente no julgamento de Davis, uma vez que o argumento é um dos poucos fatores em cujo contexto abrange todas as falas. Os membros do movimento e os mais conservadores enxergam a professora da mesma forma: uma lutadora dos direitos civis.

    O recurso narrativo para remontar as cenas do tribunal – que obviamente não poderiam ser filmadas – foi perene ao exibir uma arte peculiar entre os depoimentos dos entrevistados. O destaque ao penteado black power de Angela revela uma idealização do ícone acima da figura humana, do símbolo da eterna luta de classes presente no epicentro do capitalismo do século XX.

    A poesia vencia no discurso desintoxicante da ré, que lutava contra os grilhões que amarravam os seus braços e os de muitos. O conteúdo do filme de Lynch é contestador, assinalado pela fala do branco advogado de defesa, Leo Branton, que profere ao também branco júri, o qual decidiria a sentença de Davis, convidando-o a pensar de modo diferente:

    “Eu quero que você interprete um papel comigo, para os próximos vários minutos: eu quero que você pense “preto”. Eu quero que você seja negro. Não se preocupe. Vou deixá-lo voltar a ser branco quando isto acabar. Se você é negro, você sabe que seus antepassados foram trazidos a este país como escravos. E o Supremo Tribunal dos EUA determinou: não há direitos. Uma pessoa negra tinha que ser o que os homens brancos queriam, e era obrigada a respeitar esta decisão. Uma intelectual como Angela Davis sabia disso. Cada vez que uma pessoa negra erguia a voz em apoio a liberdade e à liberdade do homem negro, foi assassinada. E, por isso, você sabe todas essas coisas, se você é Angela Davis ou se você é negro. Você, como negro, não se pergunta por que ela fugiu, só se pergunta: por que o mundo permitiu que fosse apanhada?”

    Após toda a luta, o desejo da já idosa Angela Davis é que a discussão amadureça, além até de seu reclame. O lema de sua vida é voltado para que mais vitórias, como as que conseguiu naquela época, se repitam, na tentativa de tornar o mundo moderno o mais igualitário possível. Libertem Angela Davis consegue informar e emocionar o público de maneira equilibrada, com a inserção total do espectador no drama da biografada.