Tag: Documentário

  • Crítica | Lado a Lado

    Crítica | Lado a Lado

    O cinema é, de todas as artes, aquela que mais depende da tecnologia para ser produzida. Segundo Walter Benjamin, essa condição torna o cinema uma obra de arte única, fruto do avanço tecnológico e industrial do século XX. Ainda mais singular que a fotografia, o cinema irá gerar debates imensos e comparações sobre o “valor” de sua arte (pode ser um pintor comparado a um operador de câmera?). Portanto, o documentário Lado a Lado, dirigido por Christopher Kenneally e protagonizado por Keanu Reeves, atualiza um pouco o debate nesse sentido, ao confrontar várias personalidades da indústria cinematográfica (como George Lucas, Martin Scorsese, James Cameron, Lars von Trier, Andy e Lana Wachowski, David Fincher, Joel Schumacher, Robert RodriguezSteven Soderbergh, David Lynch etc) com a questão da substituição da película pelo filme digital.

    Com uma proposta didática de ensinar ao espectador o básico da diferença entre os formatos, o documentário assume uma postura um pouco cansativa a quem não é muito interessado no aspecto técnico do cinema. Porém, ao público alvo, possui um formato muito interessante e de fácil compreensão. Dividido em várias partes com subtemas que vão e voltam (tanto na parte criativa, quanto técnica), e entrevistando um grande número de pessoas com frases curtas e cortes muito rápidos, às vezes um pouco da informação é perdida. Mas nada que afete a compreensão geral da obra.

    O filme começa com um debate sobre a facilidade do processo de filmagem digital atualmente, onde tudo pode ser visto enquanto é filmado, enquanto no uso da película é necessário, após o término da filmagem, levá-la a um laboratório onde será revelada e o diretor só poderá ver o que foi filmado no outro dia. São colocados argumentos muito bons dos dois lados do debate, tanto no lado criativo quanto técnico.

    Após essa breve explanação, somos levados a um histórico das câmeras digitais, desde o surgimento do primeiro chip de captação digital de imagem, criado pela Sony nos anos 60, até sua popularização nos anos 90 e seus primeiros usos como ferramenta na produção cinematográfica com o movimento Dogma 95, que depois influenciou outros cineastas, como o inglês Danny Boyle a usar o digital na filmagem do seu longa de zumbis Extermínio em 2003.

    Porém, ainda nessa época a qualidade de resolução do digital era muito pequena em relação à película, e chegava no máximo ao HD (1280 x 720), enquanto a película em 35mm poderia chegar a 4096 x 3072. Mas tudo isso mudou com a chegada de novas câmeras no mercado no final dos anos 2000, onde a resolução começou a dar saltos exponenciais e o argumento a favor da película começou a ficar mais fraco.

    Outra vantagem citada do digital era não precisar mais das pausas para trocar os rolos de filmes nas câmeras, que duravam aproximadamente 10 minutos, e eram muito caros. Então havia uma pressão para o ator enquanto ouvisse o barulho do filme rodando, enquanto no digital não há pausa e nem cortes. Depois tudo é editado digitalmente (o processo de edição também é brevemente citado). Após a filmagem, o filme ainda tinha de ser entregue ao laboratório, revelado, preparado, encaixotado e transportado para depois ser visto, e dependendo da quantidade de vezes que era exibido, poderia se deteriorar. Já no digital, nada disso acontece, e a equipe tem todo o fruto do trabalho nas mãos imediatamente.

    Portanto, o filme se foca muito na questão do custo de produção, que cai absurdamente com o digital, o que tem feito muitos estúdios optarem principalmente por este formato. Tudo isso também graças ao pioneirismo de George Lucas que, vendo o potencial do digital, forçou seu uso ao experimentar esse tipo de projeção com seu Episódio I em 1999 e ao filmar, pela primeira vez na história, um longa 100% em digital, com o Episódio II. Porém, Christopher Nolan assume a defesa incondicional da película pela sua qualidade em captar as nuances de cores e as profundidades (já que utilizou esse formato para filmar a trilogia nova do Batman), mas sem menosprezar o digital, que já dá sinais de ser um verdadeiro tsunami tecnológico dentro da indústria.

    Outro ponto interessante debatido em relação ao digital é a massificação não só da produção, como também do consumo, e como o digital afeta essa relação, pois gerações mais novas estão habituadas a assistirem filmes em celulares e laptops em suas casas, e não mais somente no cinema, o que pode ser considerado vantagem por alguns e desvantagem para outros, em um tópico bem interessante, que se relaciona também com a quantidade crescente de obras sendo produzidas. É melhor mais com menos qualidade ou menos com mais qualidade? Um afeta diretamente o outro? São proporcionais? Inversamente proporcionais? Hoje em dia praticamente qualquer pessoa pode fazer um filme em casa com um orçamento baixíssimo devido ao digital. Mas isso significa algo em termos de qualidade? É o debate proposto, cabendo ao espectador a resposta.

    No final, há a especulação de a película se tornar obsoleta ou morrer de vez enquanto formato (já que nenhuma fábrica de câmera está produzindo mais modelos novos para película). Mas, um dos dados mais interessantes apresentados pelo documentário é em relação justamente a preservação. A indústria do digital muda muito, e a cada década novos meios de reprodução e mídias de armazenamento são inventados, inutilizando seu predecessor, enquanto a película se mantém viva, sendo ao mesmo tempo a mídia de reprodução e de armazenamento com grande qualidade. Esse fato gera uma situação irônica, pois os grandes defensores do formato digital dizem ter várias cópias de filmes em mídias digitais, mas que não conseguem reproduzi-las simplesmente por não existirem mais os aparelhos que o façam.

    Sem tomar um lado ou propor uma solução, o documentário termina mostrando que, apesar da briga, o digital veio para ficar e é somente uma ferramenta a mais, que depende muito da forma como é usada. Portanto, é um filme indispensável a qualquer um que se interesse por cinema de forma mais profunda.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Cutie and the Boxer

    Crítica | Cutie and the Boxer

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    A água que vaza do andar acima é a energia que é extravasada pela pintura de um octogenário. Ushio Shinohara, pintor independente, vive uma vida de exposição, e se orgulha disso. Expõe a si através de seus traços e compassos, que o conduziram até os 80 anos, celebrados logo na abertura de um filme desbravador, de alma e arte que pontua a primeira, feita com os cuidados, detalhes e impaciências típicos de um jovem de 20 e poucos anos.

    Não há tempo a perder, revela desde a poesia das imagens, a arte gráfica dos efeitos especiais que edificam a essência da experiência explícita e inclusiva deste existencial documentário artístico, no qual a forma e estrutura narrativa lembram, de longe, os efeitos do recente A Imagem que Falta. Contudo, se o filme do Camboja evoca um registro histórico do país, Cutie and the Boxer é o registro de um homem, sua esposa e iniciativas mútuas; antes e durante uma exposição em Nova York. “Eu nunca conheci ninguém de coração tão aberto”, revela Noriko, a Sra. Shinohara, em certo ponto, dona de uma arte mais sensível de vínculos mais ligados ao que aprecia e reproduz, talvez, nas mais belas imagens do filme. Os bastidores são, quase sempre, mais interessantes que o palco, e aqui isso não é uma exceção.

    Não poderia deixar de ser, aliás. Adentrar a vida que afeta a arte, a intimidade de quem molda a realidade física na textura da tinta, de timbres ou verbetes é algo irresistível, integração que pode remeter ao instinto humano de desejo ao proibido, ou ensejo ao oculto, trancado a oito chaves. Graças a isso, quando o cineasta Zachary Heinzerling expõe a arte através da relação do casal japonês, ao invés do contrário, o filme ganha enorme profundidade arranhada por uma intervenção óbvia e previsível, que some no clímax e, sobretudo, aumenta a potência das esculturas surreais, dos coloridos socos de Ushio, um Pokémon idoso quando pintado corpo afora, nas telas que avançaram pelo Oriente rumo à consagração ocidental de mais um talento nipônico, muito além de fronteiras nacionais e recantos domésticos. O que sobra da ovação unânime do público norte-americano, enfim, não deixa de ser a história de um casal devotado ao mundo pictórico que só compartilharam, na verdade, entre si.

    Como Picasso ou Van Gogh se comportavam, longe dos pincéis, é a pergunta que nasce do inconsciente de quem assiste essa realização. Ou, em cenário brasileiro e literário, havia vida fora da poesia para Quintana ou Hilst? Sim? Então, qual seria a intensidade das imagens reveladoras dessa intimidade invadida? Alta, com certeza, dessa espécie de metalinguagem indireta que chega a unir o ofício e a rotina, juntos, na interação entre cotidianos de quem se mostra assim, e na verdade é assado, ou cozido em vidas tão normais como as de quem se diz fã. É muito bacana como o documentário não é baseado na vida de ninguém, mas é e respira a vida dupla e às vezes única de dois ‘alguéns’ ligados não apenas pelo trabalho.

    De volta a questão narrativa, o acervo particular de Noriko e Ushio consta de imagens amadoras que trazem outras pinceladas de fidelidade verídica ao resultado já satisfatório que a película evoca, no entorno de opiniões despretensiosas a partir de um registro semi-pessoal – diz-se ‘semi’ devido a variância entre a consolidação do evento novaiorquino inicial e a curadoria crítica em voga, paralelamente, com extrema tenacidade de intenção, através de uma edição cinematográfica que conserva certo humor em si. Elemento satírico muito bem-vindo, neste caso.

    Acima de tudo, é notável como Zachary e seu filme só atestam o que deve ser mostrado, e isso é raro em documentários fora de temas grandiosos como especulação financeira, guerras ou outros episódios sociais importantes. É incrível ouvir Noriko dizer com segurança e liberdade que não gostou de uma obra que seu marido, pela dificuldade da feitura, se emociona ao contemplá-la ainda incompleta. Um grande close em Ushio, num filme que se resume em várias cenas-síntese. Cutie and the Boxer não é uma aula de educação artística, mas dá vez ao essencial, ao enxuto, e a favor de interpretações mais soltas e ricas, a um sentido pouco mais que básico na carreira e nos passos de um casal artístico, completo e seguro o suficiente para, após uma vida inteira de mãos dadas e sujas de tinta, serem totalmente transparentes num futuro e irrepreensível legado de socos e sensibilidade.

  • Crítica | A Um Passo do Estrelato

    Crítica | A Um Passo do Estrelato

    A Um Passo do Estrelato

    A Um Passo do Estrelato  é um documentário musical que reconstrói o manifesto de uma época em que a publicidade ainda era fiel ao artista. Em um fluxo histórico linear, a auto avaliação do período que registra é feita com alma e aura investigativa, com cada relato na linha de frente, um por um à mercê de distintas intensidades.

    O filme é uma refinada unidade do seu gênero no cinema, realçado por elementos como a emoção ao expressar a luz de um espírito musical -“Ele suava feito porco e cantava feito anjo!” -, os fatos de bastidores ainda inéditos, como a clássica interpretação feminina em Gimme Shelter dos Rolling Stones, as lições de “como impressionar de David Bowie a Stevie Wonder, passando por Ray Charles e Michael Jackson“, com o relato de quem conseguiu tal pretensão de principiante, as gravações audiovisuais e fotográficas independentes, e ainda o desafio de realizar uma retrospectiva à altura de todo o montante a se registrar do cenário eufônico americano, nos orgásticos anos das décadas de 50 à 80.

    O contexto da indústria musical pouco mudou desde então, e continua ainda influenciada por quem proporciona o céu para as estrelas brilharem com suas vozes, tentando sobreviver junto, ou contra, o brilho das outras. O documentário, em uma viagem muito bem editada de duas épocas seculares, prova que as armas para se lutar por um lugar na constelação de talentos invencíveis continuam as mesmas. Os tempos trocaram de roupa, mas não de essência, como é possível notar nos closes das divas de outrora e de hoje, em cenas valiosíssimas.

    Após a sessão do documentário, Dream Girls (2006) torna-se um mero ensaio à realidade do pulsante show business, senão uma espécie de subversão à verdade das coisas, deturpando o bom combate de mulheres que, muitas vezes, não tiveram a chance de ter uma vida digna de uma estrela de cinema, muito menos um final feliz como ponto de virada, pois quem não sabe que estrelas não morrem? Pelo menos não antes de explodirem em fragmentos audíveis chamados de discos, sacrifícios, suor e, com um pouco de sorte e dedicação, serem lembradas no mural atemporal do sucesso.

    Há uma sequência que merece ser avaliada em solo aqui: uma revoada de pássaros num céu de começo de manhã. No ar, alguma melodia leve e pouco importante, diante do simbolismo da imagem em movimento, durante instantes que poderiam ser mais largos, inclusive. Metáfora redundante em todo o documentário. Aves, uma revoada delas, disputando, num uníssono de liberdade, o mesmo espaço. Espaço em que nasceram para estar e fazer o que nasceram para performar. Algumas conseguem o voo, e para tanto, continuam a batalhar para honrar seu dom. Outras, do ninho, veem o confronto com o chão, a escuridão. Essa é a vida, essa é a ideia, seja no palco ou na plateia.

  • Crítica | Guerras Sujas

    Crítica | Guerras Sujas

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    Não é novidade que os EUA são a maior máquina militar que a humanidade já produziu, além de ser um império que põe e tira governantes em países ao redor do globo a seu bel-prazer. Portanto, mexer no tema do militarismo americano sem cair no lugar comum se mostra atualmente uma tarefa relativamente complicada, mas que o documentário Guerras Sujas, baseado no livro homônimo de Jeremy Scahill, indicado ao Oscar em 2014, consegue fazer bem.

    Jeremy Scahill é um repórter investigativo da revista Nation, especializado em cobrir conflitos ao redor do planeta, passando por lugares como a Nigéria e o Kosovo. Seu livro anterior, sobre os mercenários da Blackwater, empresa militar que prestou serviços ao exército americano durante a guerra do Iraque, denunciou vários crimes cometidos por seus soldados dentro do país. Um verdadeiro escândalo seguiu a publicação do livro, com entrevistas de jornais e audiências no senado americano, onde o repórter tentou fazer com que os autores de tais crimes fossem condenados, mas não conseguiu, ao enfrentar o pesado establishment militar americano, com aliados poderosos na mídia. O máximo que conseguiu fazer foi a Blackwater trocar de nome, chamando agora Academi.

    Tamanha desilusão com o fruto de seu trabalho quase fez Scahill desistir de cobrir conflitos e voltar à sua pacata vida em Nova Iorque, mas logo ele estava de volta, cobrindo a guerra no Afeganistão. Lá se depara com o tema de sua nova produção, o novo modelo de guerra travada pelos EUA. O filme é dividido em quatro partes, contando diferentes formas de ação dos EUA pelo mundo: no Afeganistão, Iêmen, Somália, e um ataque de drones que resultou na morte de dois americanos.

    Ao entrevistar uma família que mora em Gardez, uma região do Afeganistão dominada pelo Taleban, Scahill se depara com evidências de que vários membros familiares, inclusive mulheres grávidas, foram executados por americanos em uma noite. Através de depoimentos e outras fontes alternativas, ele toma ciência de uma equipe tática chamada J-SOC (Joint Special Operations Command), que teria feito o ataque a essa família afegã. Ao se deparar com esse caso, Scahill tenta torná-lo público e denunciá-lo, mas novamente é barrado em todas as tentativas. Somente a exposição de um vídeo de celular, em que vozes americanas são ouvidas e é possível ver pessoas mexendo nos corpos da família executada, é que garante ao caso certa notoriedade.

    Após sair do Afeganistão, Scahill vai ao Iêmen investigar também um caso estranho de um suposto ataque americano a uma vila. Estranho, porque o Iêmen não se encontra em guerra com os EUA, ou tampouco consta em qualquer lista de países hostis. No entanto, ao chegar lá, ele se depara com evidências da destruição de uma vila inteira feita por um míssil Cruiser. Novamente, mulheres e crianças entre os feridos e os restos do míssil nem sequer haviam sido removidos.

    Na Somália, Scahill tem contato com verdadeiros “Senhores da Guerra” que, financiados e treinados pelos EUA, promovem o terror oficial na região em lutas intermináveis, responsáveis pela completa destruição do país. Trocando constantemente de lado, de acordo com o interesse da época, os EUA equilibram a balança ao, em cada hora, apoiar um comandante diferente, mantendo a instabilidade e o conflito eternos na região.

    A última parte do filme fala sobre Anwar Awlaki, um cidadão americano e muçulmano que foi mudando de posição com o passar dos tempos. De um moderado, condenando de forma enfática o terrorismo após o 11/9, a um incentivador do terrorismo nos dias atuais. Scahill investiga a fundo o que causou essa mudança em Anwar Awlaki e observa que a causa disso está na mesma razão pela qual o terrorismo não pode e nem será vencido com uma guerra. A cada ataque militar ou de drones com baixas civis, o ódio aos EUA aumenta e as fileiras das organizações terroristas crescem de voluntários. Após a morte de Bin Laden, Anwar Awlaki é alçado ao posto de novo inimigo público número 1, até ser morto por um ataque de drones em 2011. O que causa ainda mais espanto é a revelação de que o filho de 16 anos de Anwar Awlaki, também americano, Abdulrahman Anwar al-Awlaki é morto de maneira semelhante, para evitar uma possível retaliação do filho pela morte do pai, revelando a lógica doentia do militarismo americano. Aqui talvez resida a maior falha do filme, ao tentar tornar a morte de crianças algo ainda mais sensível do que já é, através de recursos, como câmera lenta e imagens de rostos em preto e branco.

    Por fim, ainda temos a revelação de que o uso de tais mecanismos, como de mercenários e drones, não só foi mantida, como incentivada pela administração Obama, mostrando que não há muita diferença entre republicanos e democratas no manejo da chamada Guerra ao Terror. Scahill inclusive faz uma contundente crítica a esse modelo privatista, desumano e especialmente contraproducente de guerra, pois esta se auto alimenta, sendo, portanto, sem fim. Gerando mais morte e destruição, fora e dentro dos EUA. Também há uma interessante crítica ao fato de os americanos terem comemorado a morte de Osama Bin Laden, como se ela representasse algo na política externa dos EUA, quando na verdade não alterou em nada o jogo. Também há uma crítica ao fato das J-SOC terem alcançado o status de popstars após terem executado o líder da Al Qaeda.

    Apesar de o filme não trazer muitas informações novas para quem acompanha o noticiário internacional, ele nos ajuda a amarrar algumas pontas soltas e relacionar conceitos que esclarecem a verdadeira intenção e ação dos EUA atualmente. Dessa forma, a crítica desta produção se direciona a esse novo modelo de guerra utilizado pelos EUA. Uma guerra total, onde o planeta Terra é um campo de batalha e todos os seus moradores são possíveis inimigos, e a menor suspeita, por mais fraca que seja, é o suficiente para alguém ser morto sem justificativa ou prestação de contas. É uma visão assustadora para o futuro, que ganha cada vez mais adeptos, onde qualquer pessoa é um potencial inimigo e isto lhes dá direito suficiente para tirar uma vida. Onde a tecnologia é usada não para a libertação humana, mas sim para promover o terror oficial, que por sua vez promove o terror de grupos fundamentalistas. Se retroalimentando ao custo das liberdades, e pior, vidas humanas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | Full Tilt Boogie

    Crítica | Full Tilt Boogie

    Full Tilt Boogie

    O documentário de Sarah Kelly começa com um pequeno spot, mostrando pedaços fundamentais de Um Drink No Inferno, para depois acompanhar a dupla de astros que anos mais tarde se tornariam diretores respeitadíssimos. Quentin Tarantino e George Clooney cortam os bastidores do estúdio ao som de Earth, Wind & Fire, num ritmo tão louco quanto o de seus personagens. A câmera de mão ajuda a preconizar o tom cômico, que acaba com os dois passando pela loja de conveniência que explodiria, mesclando ambas as películas.

    Full Tilt Boogie – jamais lançado no Brasil – conta com imagens raras de bastidores, mas não é um making off, até por seu clima ser demasiado artesanal. Ele mergulha nas influências de Robert Rodriguez (ainda acima do peso, se comparado à figura esguia atual) e de um ainda em início de carreira Tarantino, que explicam o seu intuito ao fazer o filme, o de brincar com clichês de filmes B, e claro, e o twist após uma hora de exibição. É interessante notar como ambos funcionam bem juntos já à época, assim como os dotes de composição de Robert Rodriguez.

    As filmagens cortam as semanas e mostram produtores como Lawrence Bender e a preparação do elenco, bem como os ensaios com os figurantes fantasiados de vampiros, bonecos mecatrônicos, além de cenas estendidas, muito mais violentas do que as mostradas na grande tela – esse trecho é mostrado primeiramente por Greg Nicotero. Em determinado ponto, mostra-se até um concurso para julgar a bunda mais bonita do set, sem revelar quem era o seu dono, e em um dos contestes quem vence é um dos contrarregras, que era homem.

    O documentário também foca o imbróglio econômico entre os estúdios e produtores Tarantino-Bender. A condição para que injetassem dinheiro era que uma série de exigências fosse cumprida, algumas delas por implicâncias a produtos anteriores de Bender, uma caça a pelos em ovos. A produção de Full Tilt Boogie tentou a todo custo realizar contatos com Lyle Trachtenberg, a pessoa que poderia responder às dúvidas deles, mas a simples menção ao nome de Quentin os fez serem recusados. Prevendo que sua fita poderia ser pasteurizada, os realizadores decidiram por as mãos na massa eles mesmos, arrumando meios próprios para a produção do filme.

    Os últimos momentos se dedicam às cenas externas, de maior dificuldade, não por acaso sendo gravadas por último, além de mostrar a contribuição de Richard Parks no texto de seu personagem, o que marcaria o ator para trabalhar em futuras produções de Tarantino e Rodriguez.

    O filme fecha com um tom leve, emulando o clima de toda a produção envolvendo o diretor, roteiristas e elenco. Há um bocado de camaradagem entre os iguais, sem qualquer forçação, mesmo que toda a docilidade mostrada tente contradizer isto. Os créditos finais mostram os profissionais analisados, não somente os atores, mas cada um dos expoentes da produção, pondo todos em pé de igualdade. Além das ótimas informações sobre as atividades do processo de realização do Cinema, há uma forte carga de memória emotiva, que reverbera de modo ainda mais singular quando vista por quem é fã de Um Drink No Inferno.

  • Crítica | O Último Concerto de Rock

    Crítica | O Último Concerto de Rock

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    Era uma noite de quinta-feira. Depois de estudar o dia todo para uma prova, só queria uma dose de Scorsese pra masturbar a mente – depois dos vinte anos, isso começa a fazer sentido. Da filmografia do filho pródigo da periferia violenta de Nova York, como ele conta em detalhes no must-read de Richard Schickel, só me faltava mesmo conferir o que já me tinham apontado como um must-see, sendo que, na verdade, é um must-listen. Todos aqueles músicos, intérpretes ou formadores de opinião, tanto faz: como o artista se atreveu, em plena falsa modéstia, a tocar seu legado, em conjunto, em bando, em pedaços imortalizados em um documental exemplo do que deveria ser todo documentário musical que se preze neste mundo, a fim de causar epifanias e alguns desbravamentos experimentais? Mundo mais de surdos do que de ouvintes… Martin Scorsese tentou retomar o frescor caseiro de intimidade e aproximação interativa, além de closes, entrevistas, quiçá do efeito de planos cênicos no palco do filme, que duram, em geral, mais de dois minutos sem um corte edital, fazendo-o tão mais recompensador – e de contemplação a mil – que o frenesi caótico e apressado de Shine a Light, de 2008.

    É cômico, e desolador saber como um filme e um concerto não podem ser cem por cento programados no impacto submetido a cercas qualitativas da porteira do tempo. Fato é que a câmera, levando cada um de nós, voa pelo palco ao lado do clássico grupo (pouco conhecido) The Band, e seus colaboradores lendários do mundo fonográfico, até, enfim, fazer-nos sentir tocando os pratos da bateria junto com Levon Helm. Não vale contar que o músico é recém-falecido desde que seu trabalho nunca será.

    O Último Concerto de Rock: The Last Waltz, no título original -, como sensação recorrente, mata a curiosidade permanente de quem divaga sobre como é se sentir um rock star sendo um rock star, no lugar onde se nasce para estar. Light é pop porque foi coreografado, foi hiper montado, foi super planejado. Waltz é rock porque é livre, é puro, é bruto. Eu tenho muita inveja dos meus pais: o que importa, afinal, ter nascido no pós-guerra, com o mundo tendo que engatinhar de novo, se na efervescência da adolescência eu poderia ligar o rádio e ouvir o novo hit de Muddy Watter, Joan Baez, Van Morrison, Joni Mitchell? Se eles tivessem sido mais precoces, pelo menos… Acontece que todo texto que se escreve no papel é mais gostoso, feito música ao vivo, que é sempre melhor que gravada, por melhor que sejam meus fones de ouvido e o teclado do meu PC – e são ótimos, de boa marca e de conservação melhor ainda! Pois The Last Waltz nos transborda adentro num caminho sem volta de efervescência cultural, que é mergulhada no suor que banha guitarras e um violino durante a projeção inteira.

    Assistir a grandes filmes e/ou manifestos no monitor de um computador se tornou um fato recorrente – cuja predominância tenta chegar a ser uma experiência – de filmes e/ou manifestos que não deveriam ter audiência senão para serem exibidos na glória de uma sala IMAX. O próximo passo será a venda de hologramas para a Rita Lee cantar nos pés da nossa cama, então. Ou quem mais nós quisermos! E será um sucesso, é claro. Um admirável mundo artístico delivery. Enquanto isso, assistir a Waltz me poupou de ter de criar uma máquina do tempo para ouvir um jovem Bob Dylan cantar Forever Young numa Nova York que não volta mais, mas, que, compreenda, vive para sempre nos acordes de Robbie Robertson, linha de frente da iniciativa de Scorsese.

    Me resta confessar que fui me emocionar com Tom Zé e Caetano Veloso, velhos guerreiros, compartilhando do mesmo palco no Ibirapuera, domingo desses. Acho que consegui sentir um átomo emocional, um reles expoente homérico e mínimo, um estalo vibracional da energia que ecoa e se propaga a partir de um palco feito local sagrado – todavia, talvez venha a fazer quem subir nele digno(a) do atributo, será? É provável que sejam ambas as coisas. Só sei que concertos têm luz própria, e de vez em quando o Cinema deixa de ser egoísta e acrescenta sua própria luz a irradiar, por anos-luz a fio, em busca de apreciação. Certamente, é algo pra se acolher.

  • Crítica | Memórias de Salinger

    Crítica | Memórias de Salinger

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    J. D. Salinger é considerado um dos maiores escritores da contemporaneidade, além de figura muito controversa pelos eventos de sua vida pessoal. Autor do sucesso de público e crítica O Apanhador no Campo de Centeio (que vendeu aproximadamente 60 milhões de cópias e influenciou jovens no mundo todo), além de outros contos, Salinger ganhou notoriedade após se recusar a entrar no mundo da fama que seu best-seller lhe garantiu. Desde meados da década de 60 até sua morte, o autor viveu isolado em uma pequena cidade no interior de New Hampshire, EUA, escrevendo somente para si mesmo.

    É a partir dessa figura controversa que o filme Memórias de Salinger, de Shane Salerno, baseado na biografia também escrita por Salerno e David Shields, busca mergulhar. O filme inicia-se com uma sequência interessante de um repórter contando a história de como buscou e esperou Salinger dentro da cidade para poder tirar uma foto do recluso autor. A partir daí, se sucedem pequenas inserções de depoimentos de várias personalidades a respeito de como sua obra as influenciou, com destaque para Phillip Seymour Hoffman, Martin Sheen, John Cusack e Edward Norton.

    Após traçar um breve histórico da infância do autor, é destacado o potencial que o jovem escritor possuía, e como sua obsessão por ter sido publicado pela conceituada revista New Yorker moldaria parte de sua personalidade. Salinger escreve vários contos, rejeitados pela revista-alvo, mas publicados por outras menores. Porém, quando uma de suas histórias é aceita, os EUA entram na Segunda Guerra Mundial, e as histórias sobre frivolidades cotidianas são deixadas de lado frente a toda a atenção que a guerra iria receber, o que enfurece o autor.

    Membro do numeroso grupo de soldados que desembarcou na Normandia no Dia D,  já estava com boa parte da obra O Apanhador no Campo de Centeio pronta e pisou na areia da França portando o que tinha do livro para lhe dar uma motivação maior para viver. Porém, nada de fato o preparou para vivenciar os horrores da guerra quando ele localiza, junto ao exército americano, o campo de concentração de Dachau, vendo pessoalmente as vítimas do holocausto, algo que seria outra fonte de impacto para o autor.

    Após voltar da Europa, Salinger publica seu best-seller e obtém fama imediata. Tal sucesso o eleva a um status tamanho na sociedade que acaba por assustá-lo, e por isso decide viver afastado de todas as badalações e falsidades do mundo das celebridades, um ato cuja característica marca seu principal personagem, Holden Caulfield. O filme também aponta a visão de vários amigos e conhecidos de Salinger sobre como seus personagens tinham, para o escritor, significado de pessoas reais, tão ou mais importantes do que as próximas a ele. A preferência geraria enormes conflitos em sua casa, já que Salinger dava mais importância a sua família da ficção, os Glass – tema de outras publicações subsequentes ao Apanhador -, do que a seus filhos e esposa.

    Esse foco se apresenta também como o principal problema do filme, que vai deixando de lado, aos poucos, a figura do artista para analisá-lo psicologicamente, porém flertando com uma narrativa similar a de tabloides sensacionalistas, criando muitas vezes no espectador uma certa rejeição a Salinger, algo que um documentário deveria evitar ao máximo. Essas e outras escolhas, também estéticas, deixam o filme com um tom gratuito, inclusive ao se inserir um ator no papel do protagonista em conflito com sua escrita enquanto imagens aparecem em um telão. Um reforço desnecessário para mostrar o que já está estabelecido pela narrativa.

    Várias histórias controversas sobre o escritor são revividas: sua preferência por meninas adolescentes e os casos que teve com algumas delas; além da influência de seu maior livro sobre o assassino de John Lennon e o homem que tentou matar Ronald Reagan. Porém, nada no filme é problematizado como deveria. A película enfatiza, a todo momento, que a reclusão de Salinger é mais uma jogada para chamar a atenção por tentar desviá-la do que qualquer outra coisa, fazendo nenhuma outra análise sobre o autor, que não parecia querer se isolar de todo o contato humano, mas somente de algumas pessoas, e são exatamente estas que parecem sempre voltar para atormentá-lo.

    O que sobra, então, para o filme é digladiar em cima de sua pouca substância e tentar capturar o espectador nessa aura de mistério com ar sombrio que atrai todos nós. Uma figura como Salinger merecia uma análise mais madura e melhor documentada. Apesar de seu início promissor, Memórias de Salinger acaba descambando para uma investigação sensacionalista, pautada em fotógrafos e pessoas comuns intentando obter algum contato com o escritor, além de utilizar depoimentos direcionados que não fazem jus à complexidade emocional e icônica do protagonista. Todas as histórias polêmicas em torno de Salinger são muito controversas, e por isso era necessário um rigor metodológico maior ao se escolher as fontes e entrevistados, além de seu direcionamento.

    Portanto, o que se segue é um documentário que tenta jogar luz em uma figura obscura, mas patina no senso comum da difícil análise. Após tentar manipular o espectador com depoimentos de pessoas que conviveram com Salinger, o filme tenta suavizar o toque ao mostrá-lo em seus dias finais, feliz e tranquilo, algo que a inserção de letreiros com músicas tensas – avisando que há várias obras a serem publicadas e sobre o que elas serão – termina por ir abaixo. Com tal confusão, o espectador mais atento termina de assistir ao filme sem ter informações relevantes o suficiente para formar uma opinião sólida, enquanto aquele, mais facilmente impressionável, pode ser levado a formar uma opinião negativa sobre o biografado, praticamente justificando toda a sua escolha em preferir se isolar do que lidar com o mundo.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

    Ouça nosso podcast sobre O Apanhador no Campo de Centeio.

  • Crítica | O Dia que Durou 21 Anos

    Crítica | O Dia que Durou 21 Anos

    O Dia que Durou 21 Anos

    Atualmente o tema da ditadura civil-militar brasileira está sendo explorado por meios como cinema, especialmente em documentários, para se contar sobre este período sombrio da nossa história, em especial por causa das investigações da Comissão da Verdade, remexendo ainda em feridas que doem em muita gente, e também em interesses de quem que preferiria deixar esse passado para sempre quieto e intocado.

    Em meio a tudo isso, o cineasta Camilo Tavares decidiu contar a história de seu pai, o jornalista Flávio Tavares, que foi preso pelo regime e, posteriormente, trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Porém, ao se deparar com uma vasta documentação liberada por arquivos nos EUA, Tavares muda o foco de seu filme para a participação dos EUA no preparo e efetivação do golpe de 1964.

    Começando com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, o filme mostra como os EUA já participavam da política brasileira, porém, sem ainda a devida organização necessária para efetivar um golpe e impedir a posse do então vice João Goulart, também defendida por Leonel Brizola e sua rede da legalidade. Jango aceita a imposição do parlamentarismo, mas logo o país retorna ao presidencialismo e, com um discurso considerado radical de esquerda no auge da guerra fria, Jango assusta os setores mais conservadores do país e dos EUA, com medo de que uma nova China (por causa das dimensões continentais do Brasil) acontecesse.

    Um dos aspectos mais interessantes do filme é tirar do bom moço John Kennedy a imagem de democrata-quase-santo, pois é ele quem inicia os planos de remoção de Jango do poder, considerando inclinação do presidente em não se subordinar aos interesses americanos. Vários arquivos em áudio registram esse fato, com falas fortes de Kennedy “pedindo a cabeça” de Jango e dando o aval ao embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, para continuar com os planos conspiratórios, o que o vice-presidente Lyndon Johnson  mantém após o assassinato de Kennedy.

    Através da CIA e de organizações de fachada, como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), os EUA jorraram dinheiro dentro da política nacional, patrocinando políticos e veículos de imprensa contrários a Jango em uma enorme campanha de difamação, associando-o ao comunismo internacional, para criar um clima de medo na população. Tal tática também seria usada com sucesso para desestabilizar o governo de Salvador Allende, no Chile. Também fartamente documentada e mostrada no filme está a operação “Brother Sam”, na qual os EUA enviaram ajuda militar com navio de guerra, arma e munição para ajudar os golpistas no caso de uma resistência armada.

    Dessa forma, se mostra impossível negar a participação dos EUA no golpe brasileiro, o que já era consenso dentre os historiadores. Mas o que não havia sido divulgado até então era a extensão da influência americana na política brasileira, a ponto de o primeiro presidente militar, Castelo Branco, ter sido praticamente escolhido pelos norte-americanos por sua postura fiel aos “valores democráticos dos EUA”.

    Como retrato histórico o documentário é extremamente importante para desvendar e aprofundar esse período da história do Brasil. Porém, o lado negativo são algumas escolhas estéticas de Camilo Tavares, em especial no uso de trilhas sonoras desconexas com os momentos exibidos na tela. As montagens de Kennedy assistindo discursos de Jango também são de um didatismo exagerado, pois já sabemos daquelas informações. Com pouco tempo de duração (apenas 77 minutos), faltou também ao documentário encerrar melhor o filme, que acaba de forma abrupta, sem desenvolver muito bem a parte final, após a posse de Castelo Branco, a ascensão de Costa e Silva e o AI-5.

    Porém, mesmo esses problemas não tornam o filme menos importante. Suas informações são essenciais mesmo para os especialistas da área, devido às novidades trazidas por ele, graças ao acesso às fontes primárias, o que garante um frescor na análise histórica. Para os leigos, fica o impacto de até onde os EUA foram para manter seus interesses no Brasil, removendo do poder presidentes democraticamente eleitos em nome da democracia, mostrando sinais claros de que a tal democracia norte-americana já então sinalizava que o único modelo aceito era aquele que eles permitissem.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Aborto dos Outros

    Crítica | O Aborto dos Outros

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    Talvez poucos temas atuais sejam mais polêmicos no Brasil do que o aborto. Principal debate das eleições de 2010 – fato que deve se repetir em 2014 , o assunto divide opiniões de especialistas em saúde pública, defensores do direito das mulheres e religiosos, cada um defendendo seus argumentos à sua maneira.

    Carla Gallo, em sua estreia como diretora, traz uma nova perspectiva para o debate com o documentário O Aborto dos Outros, lançado em 2008. O trabalho deixa um pouco de lado a panfletagem política e aborda uma visão mais intimista, com mulheres prestes a fazer um aborto e compartilhando anonimamente a dor da violência sofrida que resultou em uma gravidez, e como agora deverão enfrentar outra violência, a de lutar para não carregar uma criança indesejada para o resto da vida.

    Essa perspectiva se mostra acertada conforme os depoimentos vão mudando, pois cada mulher está ali realizando um aborto por uma razão específica. Desde um estupro na rua até casos de violência doméstica, ou mesmo gestando fetos com má-formação, as grávidas permitem em seus depoimentos, cada qual com entonação diferenciada, fazer perceber a dúvida em algumas e a certeza em outras. Também nos fazem sentir pequenos frente ao turbilhão de pensamentos que ocorre na mente dessas mulheres. Cada caso se torna tão específico que, como espectadores, ficamos com vergonha ao ponto de pensarmos bem antes de emitir uma opinião.

    A escolha da diretora em não apresentar um narrador contribui para aumentar o impacto de cada depoimento, pois em momento algum as mulheres são direcionadas a responder perguntas prévias, pelo contrário, expressam o que estão sentindo. Cada lágrima é real. Cada ferimento é real. Tudo é real. E a atmosfera lúgubre, branca e sem música nos passa uma sensação de frieza nos corredores hospitalares, mostrados em alguns casos, colocando-nos ao lado daquelas vítimas, fazendo-nos presenciar uma pequena parcela daquele vazio. Naquele ambiente de sofrimento, não importam os políticos homens que nunca vão engravidar, ou os pastores e padres que se importam com vidas apenas enquanto elas estão dentro de úteros. Naquele momento, a mulher carrega para si todo o fardo de abrir mão de um filho. E o filme mostra claramente o quanto é insensível quem acredita que esse processo é simples.

    O longa, além da abordagem intimista, por vezes também adota um tom político, porém focando o principal argumento, que é a mulher e seu corpo. No último depoimento, proferido por uma mulher pobre e negra, que faz um aborto e o explica com uma eloquência e firmeza surpreendentes, o racismo e machismo da sociedade brasileira ficam escancarados, principalmente quando ela diz que, ao ser denunciada, fica algemada no hospital por uma semana e depois presa por mais uma.

    Ao final, os únicos momentos claramente políticos são os de depoimentos de médicos e juristas apontando que a descriminalização do aborto é a única forma de garantir melhores condições de saúde para as mulheres do país, ao citar uma estatística que diz que entre 70 e 80 mil mulheres morrem todos os anos devido à realização de abortos sem segurança  — sendo que 95% das mortes acontecem em nações em desenvolvimento, caso do Brasil. Ou seja, milhares de mulheres morrem de uma forma trágica que poderia ser evitada. E com essas vidas ninguém se importa. Estamos vivendo ondas de linchamento e justiçamentos populares nas ruas do país, mas não podemos nos enganar ao achar que isso é algo novo. A violência, aqui, existe desde sempre. Está em nosso DNA social. E a proibição do aborto é mais um desses linchamentos silenciosos aos quais submetemos as mulheres, em especial as pobres.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Free to Play

    Crítica | Free to Play

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    Free to Play tem como pano de fundo um grande campeonato do jogo Dota 2, onde o time campeão ganharia um singelo prêmio de um milhão de dólares, além de outros 600 mil dólares a outras colocações. Para quem não levava o e-Sport a sério, esse campeonato chamou a atenção. “Um milhão de dólares pra um bando de nerds jogadores de videogame? Que absurdo é esse?”

    O nome deste filme é bem interessante, pois traz uma ambiguidade de significado: “free to play” é a denominação que o Steam atribuiu a seus jogos gratuitos, cujo catálogo se estende cada vez mais (Team Fortress 2, Alien Swarm, War Thunder e o próprio Dota 2, só para citar alguns exemplos). Por outro lado, seria possível interpretar ao pé-da-letra, “livre para jogar”, que define muito bem o espírito dos jogadores mostrados no documentário.

    É importante dizer o e-Sport não se resume ao Dota 2. Há diversos gêneros nas competições, desde o jogo de luta Street Fighter IV até o estratégico Starcraft. Quem assiste às competições já conhece diversos nomes, tal como os fãs de futebol conhecem a escalação completa dos times. Este é mais um elemento semelhante aos esportes “comuns”.

    À primeira vista, Free to Play parece simplesmente uma grande propaganda do Dota 2, ou mesmo um documentário voltado aos jogadores deste MOBA. Eis aí o grande trunfo do filme: não há um grande foco do jogo. O ponto central é mostrar a trajetória daqueles jovens adultos rumo ao grande prêmio. Considerando o valor da premiação, qual o nível esperado dos competidores?

    Sim, os melhores do mundo.

    Para quem jogou qualquer coisa online, com certeza já sentiu um gostinho do nível de habilidade de algumas pessoas. Você já deve ter sido espancado no Street Fighter, humilhado no Call of Duty ou pulverizado no Warcraft. Agora, pense numa galera que se dedica REALMENTE ao jogo, que treina madrugada adentro, todos os dias, inúmeras horas por semana. O nível é profissional, tal como um atleta de MMA que sofre em treinamentos pesados e dietas rigorosas. Apesar de parecer uma mera diversão hardcore, não é bem assim. A pressão é enorme, e por diversas vezes os competidores beiram o desespero, vendo todo seu esforço caindo por terra. É isso que o filme consegue mostrar tão bem, de uma forma compreensível mesmo àqueles que não são gamers ou sequer jogaram Dota 2.

    O grande mérito do filme é conseguir mostrar que os profissionais do e-Sport também se dedicam e passam por dificuldades. Pouquíssimos conseguem viver apenas disso, precisando manter um trabalho paralelo ou, dependendo do caso, sustentados pelos pais. De qualquer forma, é um documentário recomendado para todos os públicos, mais até que o Indie Game: The Movie. Se você é gamer, vai gostar. Se você joga Dota 2, assista imediatamente.

    Você poderá baixar o filme gratuitamente no Steam (com direito a extras), ou assistir no YouTube, sendo que ambas as opções possuem legendas em português. Os respectivos links estão no site oficial do filme.

  • Crítica | Marighella (2012)

    Crítica | Marighella (2012)

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    O documentário capitaneado por Isa Grinspum Ferraz visa mostrar várias facetas de Carlos Marighella como o de um sujeito pacato e ligado a família, longe demais da imagem pintada pelos mandantes do regime que o pintavam como o pior dos terroristas subversivos e inimigo número um do Estado. A narração da sobrinha de Carlos revela que o filme começou a ser feito de fato após a morte do líder revolucionário.

    No início da fita, são lidas cartas do próprio punho do “anarquista da Sicília”, provindo de uma miscigenada herança entre o italiano Augusto Marighella e da negra Maria Rita, criado em uma casa onde tinha spaghetti e caruru, não havia como crescer sem ser questionador, desde a infância ele não entendia porque o pobre precisava se matar de trabalhar para chegar ao final da vida sem ter absolutamente nada.

    Já muito novo ele se engajaria ao comunismo autodeclarado, levando à Bahia, sua terra, o discurso contra a oligarquia, incitando o povo à revolução. O comunismo baiano dos anos 1930 era contra o integralismo principalmente, e não era alinhado a Karl Marx, até pela dificuldade do acesso, era feitos de mulatos, como Jorge Amado, Edson CarneiroCouto Ferraz, um grupo que vivia a utopia, mas não se desgarravam da realidade marginal baiana. Os intelectuais precisavam sair da neutralidade e se declarar fascistas, comunistas ou liberais, graças ao novo quadro político mundial, aos poucos “os pingos eram postos nos is”. A ida de Marighella ao Rio de Janeiro já culminara numa prisão, acusado pela imprensa à época, de perturbar a paz e não colaborar com a boa ordem do Estado.

    A escolha pelas imagens das paisagens e belezas naturais contrastam com os recortes de jornais, quase sempre explicitando uma luta e perseguição muito violenta ao “cavalheiro Marighella”, que variam entre prisões e comícios. Carlos e outros militantes de bigodes grossos se associavam a Luis Carlos Prestes, sua dificuldade nas manifestações era o de parar de falar e terminar seus discursos. Graças ao Presidente Dutra, o Partido Comunista Brasileiro foi tornado ilegal e Carlos Marighella passou a viver na clandestinidade, seu primeiro filho só viria a conhecê-lo aos sete anos de idade. Em meio a paranoia mundial, eram veiculados comerciais estadunidenses muito engraçados, com “animações desanimadas” mostrando o poderio soviético, explodindo símbolos do capital, como A Estátua da Liberdade.

    A posição de Marighella era diferente da de Brizola, Goulart e outros tantos pensadores. Ele viajou para a China, para a União Soviética a fim de conseguir instrução sobre o estado totalitário socialista. Um momento emocionante é quando sua esposa Clara Charf, declara que ele não sabia falar chinês e que ele havia feito um dicionário desenhado do idioma, mas que o livro foi tomado pelas autoridades, numa das invasões da polícia a sua residência. O “mulatão” cada vez se precavia mais e alertava seus colegas de que eles não resistiriam a caça após o Golpe Militar. Seu argumento era de fuga, mesmo após as falas de Jango de que o vice, uma vez empossado presidente, teria uma resposta rápida a ação dos militares. Ele era muitíssimo bem informado, parecia prever as artimanhas e a movimentação dos homens de farda.

    Sua postura se tornaria ainda mais extremista, rompendo com o partido após a sua prisão e a ida a Cuba, em uma viagem clandestina. Se declarara um revolucionário, ligado às massas e inconforme à maneira cordata com que a esquerda se portava de forma muito inocente e submissa aos caprichos militares, e até essas reprimendas são publicadas carregadas de um conteúdo poetizado. Para ele, o revide devia ser na mesma força e medida, era inspirador, de confiança e admiração, e sobretudo era uma figura simples, ao mesmo tempo que estudiosa e muito inteligente.

    Apesar de sua afeição ao modo de revolução chinês, Marighella queria um comunismo genuinamente nacional, com samba, futebol e cores tão caracteristicamente brasileiros. Ele não era um teórico, participava dos assaltos de forma ativa e veemente. Suas ações não eram freadas pela possibilidade de perecer ou do sacrifício de vidas alheias, das dos seus, em ações de guerrilha que os adeptos já tinham conhecimento e claro, dos seus opositores.

    O modo como a realizadora apresenta a morte do guerrilheiro é sem muito apuro do modo como ocorreu o assassinato, tal artifício emula tanto a forma sem respostas do Regime ao assassinar o seu opositor e também a não necessidade de ser lógico, e claro que o próprio Marighella usava em seus poemas, ainda que nestes escritos ele não retire os seus pés do chão. Carlos Marighella era o libertário utópico, munido da informação, mas que prestou a sua imagem para inspirar o ideal da liberdade do país, o que Isa Grinspum Ferraz fez é uma homenagem muito competente a sua figura, sem ser chapa branca, destacando até seus erros, mas focando a aura do contestador imberbe que ele era, dando à revolução um nome estrangeiro, de difícil dicção e de fácil identificação.

  • Crítica | Brizola: Tempos de Luta

    Crítica | Brizola: Tempos de Luta

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    Tabajara Ruas é o responsável por contar o relato biográfico do político e ativista gaúcho Leonel Brizola. Desde a infância muito humilde, passando pela obsessão de sua mãe pela educação e instrução do filho, e também grafando o passado de lutas do povo gaúcho, Leonel também levantou-se como ativista. Sempre esteve muito presente em eventos de contestação, mas sem se descuidar do trabalho, visto que precisava dele para garantir o seu sustento. A narrativa é linear e muito parecida com a estética do cinema clássico americano, reunindo muitos depoimento do próprio Brizola e de muitos de seus colegas, como Antônio de Pádua, Flávio Tavares, Vieira de Cunha, etc.

    A reunião com estudantes interessados em política, já no Rio de Janeiro, mostrava o biografado como um dos mais atuantes nos grupos de discussão, além da fundação do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Ele foi eleito deputado estadual com quase quatro mil votos. Nesses grupos ativistas conheceu Neusa Duarte, a Dona Neusa, sua companheira para toda a vida e amada esposa e namorada, que segundo o próprio, apesar da aparente fraqueza, sempre foi muito forte.

    O viés político que influenciou Brizola era ligado a Vargas, com quem teve estreitas relações e dividia ideologias: o trabalhismo. Após a morte de Getúlio Vargas, haveria dois ilustres herdeiros, o próprio Leonel, que seria consagrado prefeito de Porto Alegre e conhecido por fortes investimentos em educação, e claro, João Goulart, vice-presidente dos tempos de Juscelino Kubitschek. Entre os feitos mais notáveis de Brizola era a apropriação e nacionalização da empresa de telefonia do Rio Grande do Sul, ação dita como de vanguarda contra o monopólio americano no Brasil pela ainda não presidente Dilma Rousseff.

    O debate político aumentou devido a Guerra Fria, a ocupação cubana de Fidel Castro e a corrida espacial. Mesmo que Brizola dissesse que entendia que a propriedade privada era importante para a nação, seu discurso era acusado de ser associado aos ideais de Karl Marx, muito graças ao seu alinhamento com o argentino Ernesto Che Guevara. A proximidade de Che com Jango traria consequências graves em um futuro próximo.

    A renúncia de Jânio Quadros surpreendeu o político gaúcho, por Jânio ser um presidente proativo e rápido. A possibilidade de João Goulart assumir causou o furdunço que se concretizou no maior exemplo de paranoia militar. O estado de perplexidade tomou o país e Leonel declarou que ficaria no país para lutar. Uma república parlamentarista seria articulada sem a presunção de ter Goulart dentro do país. Brizola queria o retorno de Jango ao poder, mas era uma voz solitária na resistência. A subida dos militares para o poder marcou o político gaúcho, que até tentou ficar no país, variando de lugar a lugar por um mês e meio, até que teve de ir em definitivo para o Uruguai. O exílio deixou-o muito triste, mas sua postura ainda era a de resistir, apoiando os ativistas para treinar os militantes no esquema de guerrilhas.

    Aos poucos, o nacionalismo do político seria acompanhado pelo socialismo. O retorno de Brizola ao país calharia com o rompimento com o PTB e fundação do PDT (Partido Democrático Trabalhista), além de sua reinvenção na política, candidatando-se a governador do estado do Rio de Janeiro e vencendo uma tentativa de fraude e manipulação de votos. Construiu os Cieps, que teria o intuito de alocar as crianças oito horas por dia na escola, focando a educação e fazendo essas obras sem o apoio financeiro e político do governo federal. Outro episódio interessante foi a construção do sambódromo e o imbróglio com a Rede Globo, que se recusou a transmitir o carnaval. A manobra do governador foi a de entrar em contato com Arnaldo Bloch, presidente da Manchete, que ultrapassou a Globo em audiência no período. A campanha de Diretas Já foi muito motivada por ele, assim como a primeira eleição direta, em 1989, na qual se candidatava ao cargo máximo do executivo, com discursos inflamados e muito bem construídos. Por muito pouco ele não passou para o segundo turno, mas manifestaria seu apoio a Lula no segundo, obviamente tendo perdido. No ano seguinte, seria reeleito governador do Rio, mostrando sua inabalável força política.

    Os entraves entre o político e a Rede Globo ganharam capítulos de intensa batalha, difamações e toda sorte de troca de farpas, inclusive ganhando um direito de resposta em rede nacional, no horário nobre, com narração de Cid Moreira no Jornal Nacional. O conteúdo do manifesto é deveras corajoso e não poupa seus declarados inimigos.

    Pouco antes do fim de sua vida, ele se lançou em mais uma eleição, como vice-presidente da chapa de Lula, muito mais como figura simbólica do que como candidato de fato. Sua despedida teve muito apelo popular e a presença maciça do povo. Brizola se despediria da vida ovacionado pelo eleitorado e pelo homem comum, e até por alguns de seus antigos rivais políticos. Seu discurso poderia não ser completamente compreendido pelo povo, mas seu trabalho foi reconhecido por seus iguais, pela população. O trabalho de Ruas e Sergio Gonzalez em homenagear o político é muito belo e afetuoso, e apesar de deixar de lado muitos dos defeitos do biografado, ainda é um bom retrato da figura do velho e sempre inconformado caudilho.

  • Crítica | A Opinião Pública

    Crítica | A Opinião Pública

    A Opinião Pública

    Logo nos primeiros minutos de tela, são mostrados letreiros que indicavam quais apoios foram utilizados para a realização da fita. Os agradecimentos vão para órgãos de imprensa, como o Jornal do Brasil (com a adjetivação de grande amigo do Cinema Novo) utilizando muitas cenas de Maioria Absoluta, de Leon Hirszman. A ideia de Arnaldo Jabor era refletir o típico, fugindo do pitoresco, e explicitar quais seriam as esperanças da juventude carioca e qual a perspectiva dos professores sobre como seria o futuro destes jovens — torcendo para que estes fiquem longe do estereótipo da Juventude Transviada.

    Segundo a narração, há um abismo enorme entre a realidade de adultos e dos jovens, como se estes vivessem em mundos distintos. O discurso dos homens novos é descompromissado e não é ligado a qualquer ideologia que não tenha a ver com preocupações banais, como ter dinheiro para o “mocinho poder sair com um broto”. Enquanto a fala dos pais preocupados preconiza a necessidade de achar a mulher certa, trabalhar para se sustentar e, claro, casar e valorizar a tradição, família e propriedade. Mais uma vez as realidades são muito díspares.

    As entrevistas com os indivíduos do sexo feminino têm em seu conteúdo alguns pontos muito curiosos, mostrando algumas meninas muito crentes na possibilidade de encontrar sua alma gêmea e nas vicissitudes dos sentimentos, das paixões e no acaso do casamento. Um ótimo argumento é o de uma das pessoas perguntadas sobre a carnalidade do sentimento da paixão, discutindo o quanto é importante dar vazão ao coração e ao romantismo, e o quanto pensar em um futuro relativo ao sustento e a infraestrutura de uma vida saudável, levantando a rivalidade entre a “malandragem” e o trabalhador que exerce seu ofício arduamente.

    Os baluartes da juventude direita são louvados como exemplos para os seus iguais em idade, fugindo do estereótipo da rebeldia contestadora e ligada às drogas. Os debates eram tratados como algo ruim, fétido e inconveniente, longe dos ideais de uma boa pessoa. O discurso se caracterizava como forma de enaltecer o apogeu econômico e a ascensão de classe, num pensamento tipicamente capitalista com ideário voltado a “subir na vida” e “tornar-se alguém”. O objetivo era mudar de classe e evoluir: a felicidade é uma forma de poder e não um prêmio para as virtudes.

    A ideia do diretor é reproduzir como é o pensamento do brasileiro médio, demonstrando o quão alienada pode ser a opinião pública, característica fomentada pelo alto nível de desinformação e pela influência das autoridades dentro das redações dos jornais. Porém, não ignora que a relação entre sociedade e governo é simbiótica, e que a multidão tem sim sua parcela de culpa no estado em que o país se encontrava. A narração mais uma vez inclui um argumento baseado na burguesia: “O homem da classe média sempre é propriedade de alguém” — enquanto isto é falado, são mostrados jovens se alistando no serviço militar, com a orgulhosa pecha de lutar pela pátria, reforçando a ideia de que quem está fora desse molde de contestação zero está errado e sem possibilidade de obter sequer algo tão lúdico e intangível quanto a felicidade. O objeto de análise passa por um viés até filosófico. As pessoas ligadas à classe média se vitimizam, pedindo compreensão por parte da população por sentirem-se as mais afetadas pelo atual momento do país, sempre temendo pelo seu sustento.

    Para os patrões, o brilhantismo intelectual é reservado às pessoas que ocupavam os altos cargos no empresariado. Os chefes sempre seriam os mais inteligentes e melhores preparados, enquanto aos operários sobrariam o voluntariado e a indispensável capacidade de se propor a quaisquer atividades que demandassem esforço físico e submissão absoluta. O cargo era o auge da vida do trabalhador: o povo teria de ser levado ao “pensamento de cordeiro”; a honradez era parte da uniformização populacional que obviamente escondia algo. Para o espectador com um pouco de discernimento, o conteúdo das falas dos “normativos” é muitíssimo mais subversivo que qualquer possibilidade (irreal e fantasiosa, evidentemente) de desapropriação de domicílio, e mesmo para os indivíduos mais conservadores, ao menos em uma pequena parcela, talvez cause a reflexão sobre o cunho de seu estilo de vida. A modernidade é vista como algo pejorativo e as outras corruptelas dão à película um ar de apologia à misantropia graças às mensagens nas entrelinhas das falas do sujeito comum. Claro, focando nos seus anseios fúteis e despreocupados com o contexto social, dando um significado especial à expressão “massa de manobra”.

    Para o narrador, a classe média é produto do meio, sem origem definida por suas próprias mãos e sem nada a perder, mesmo que pense em ter alguma propriedade. A negação da miséria que assola o país é notória e conveniente. Sua movimentação política só é realizada quando há alguma mudança que possa interferir nos seus interesses. A iniciativa jamais parte dela; seu papel é a de vanguarda inocente da sociedade moderna, defensora de valores que lhe foram passados e inculcados sem muita motivação lógica ou racional, manipulados para movimentar-se até contra si mesma. Até por parte das lideranças deste contingente populacional, não há uniformidade no discurso. Jabor escolhe criticar a conivência do povo com o Regime, usando uma ironia fina, mas bastante explícita, apelando para aqueles que queriam ouvir e estavam ávidos pela discussão, disfarçando essa contestação com uma capa de propaganda do modo moral e correto de vivência. A essência do combalido Cinema Novo estava em seu filme e em sua mensagem.

  • Crítica | Cidadão Boilesen

    Crítica | Cidadão Boilesen

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    O documentário começa usando a característica trilha de A Hora do Brasil, com imagens em preto e branco, que obviamente remetem ao passado, aos anos da época da “revolução” militar. O título do filme brinca com o clássico óbvio de Orson Welles, focando na persona do dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Albert Boilesen. O início de sua trajetória é mostrado de forma lúdica, focando seus impressionantes feitos ainda na infância como ótimo aluno, esportista e futuro administrador. Ele veio morar no Brasil aos 22 anos, primeiro em São Paulo, depois no Rio de Janeiro.

    Boilesen era conhecido por apreciar a miscigenação e o estilo de vida do brasileiro. Sua adaptação ao país não foi difícil, pois ele sentia prazer em estar no Brasil e viver como um legítimo nativo. Era um homem do povo, apaixonado pela nação que adotou e gostava de caipirinha, futebol, ouvia Chico Buarque. Sua afeição pela população era muito grande.

    O filme se desenvolve destacando o medo que a população geral tinha de que João Goulart realizasse uma cubanização no Brasil, argumentado que é refutado por muitos dos entrevistados, entre eles o ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso. No entanto, a desinformação causava medo nos donos de grandes empresas, entre eles Boilesen. O maior medo do estrangeiro era de que o socialismo se instaurasse no país e atrapalhasse o seu próprio desenvolvimento, retirando o seu ganha pão. O episódio é pródigo em mostrar a ação civil na instauração do regime e as articulações desenvolvidas para as ações ditatoriais. Henning frequentava sessões de tortura e tinha cadeira cativa, como em um camarote de um espetáculo cênico, e ajudava a articular o grupo Ultra, o qual prestou muitos serviços ao governo autoritário.

    Há um esmero notório no roteiro que retrata a pessoa analisada, primeiro como uma figura simpática, para depois revelar toda sua participação dentro do órgão repressor. Um tempo demasiado é dedicado a explicar como o AI-5 mudou o cenário político, aumentando ainda mais a perseguição aos ditos subversivos, com destaque à criação da Operação Bandeirante (ou OBAN), que teria a função de ser o braço civil do exército brasileiro e operar como um centro de tortura. Para o jornalista Heitor Contreiras, a OBAN foi “a mais radical e mais cruel operação de repressão do regime militar brasileiro”. Seu poder incluía a possibilidade de prender, matar e torturar quem quisesse, e era composta por policiais militares e civis. Uma das lideranças do esquadrão era o Sargento Sergio Arantes Fleury, amigo pessoal de Boilesen. O modus operandi de Fleury incluía a caça de marginais e vagabundos, e ele levou tal modo de agir para a OBAN.

    Era preciso o apoio de pessoas importantes na vida pública brasileira, e alguns dos empresário se tornaram chamarizes para outros investidores, sendo a figura mais notória e que mantinha relações diretas com os mandantes da Operação Bandeirantes Henning Boilesen. O cabeça pensante dentro do DOI-CODI é muitíssimo discutido e controverso. Por parte dos ex-militantes, o discurso predominante era de que ele fez parte de inúmeras sessões de tortura, e seria criador de uma máquina de choque chamada Pianola Boliesen; a questão era de que ele tinha prazer de ver os comunistas sendo punidos, sua figura era demonizada. Já nos registros oficiais, foi negada toda a associação dele com o DOI-CODI, e afirmavam que o seu assassinato teria sido encabeçado por Carlos Lamarca. O assassinato em questão é descrito como algo brutal e realizado com muita satisfação por parte dos militantes que executaram o presidente da Ultra. O termo utilizado pelos grupos MRT e ALN para o assassinato de Boilesen era “justiçamento”, que remete ao óbvio sentimento de findar a sua vida.

    A impressão dos defensores do empresário era a de que ele foi um bode expiatório, segundo Henning Albert Júnior, filho do empresário. Ele sequer tinha ideologia o suficiente para exercer tal influência dentro da ditadura. A sensação que fica a posteriori é de predominância de figura nefasta de ajudante do regime. Em uma época em que os ânimos estavam tão aflorados, não havia como garantir neutralidade. A participação ou não de Henning não foi investigada a fundo, até porque a sua história contada poderia revelar o nome de tantos outros poderosos barões.

    O trabalho de Chaim Litewski escolhe um lado, mas não ignora os argumentos contrários. O intuito é tentar tirar tal história do esquecimento, não ignorando as duas vertentes de pensamento. O filme ajuda a fomentar a discussão e sua importância varia tanto como algo de caráter curioso/informativo quanto como fonte de esclarecimento de uma das importantes figuras históricas do Brasil.

  • Crítica | A Praça Tahrir

    Crítica | A Praça Tahrir

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    Karl Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, escreveu que a história se repete primeiro como tragédia e depois como farsa. Dentro deste espírito, a análise dos eventos históricos após a Revolução Francesa, marco da era contemporânea, sempre nos traz a elementos, conceitos e grupos políticos que tiveram origem nela e em suas ramificações, como a Revolução Russa de 1917. Portanto, não é a toa que a chamada Primavera Árabe (em referência a Primavera dos Povos, de 1848) ainda confunda tanta gente em relação a seus significados e grupos sociais na disputa pelo poder no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, entre outros.

    Filmado in loco por participantes das manifestações que aconteceram em 2011 no Egito, A Praça Tahrir fornece raro material de análise da história enquanto acontece, semelhante ao que aconteceu com o livro de John ReedOs Dez Dias Que Abalaram o Mundo e o documentário venezuelano A Revolução Não Será Televisionada. Os protagonistas egípcios são Ahmed Hassan, Magdy Ashour, Khalid Abdalla, Ramy Essam, dentre outros.

    Tudo se inicia com uma manifestação contra o regime de Hosni Mubarak, ditador há 30 anos no comando do Egito, que instaurou uma sanguinária e violenta repressão a qualquer voz dissonante, com o apoio dos regimes ocidentais, como é comum na região. Formada basicamente por estudantes, jovens e demais camadas sociais sem ligação com partidos políticos ou experiência de luta política, os manifestantes se reuniram, aos milhões, na Praça Tahrir, exigindo a queda de Mubarak, o que aconteceu pouco tempo depois.

    Dali até então, o filme retrata de forma intensa e bem detalhada a sucessão de eventos e a instabilidade que tomou conta do Egito. Com a instauração de uma junta militar de pessoas ainda ligadas a Mubarak e que aumentaram a violência contra os manifestantes, até a aliança desses militares com a Irmandade Muçulmana, uma organização extremista que usa o Islã para obter ganhos políticos, onde juntos organizaram uma eleição de cartas marcadas, que garantiu a vitória do candidato da Irmandade, Mohamed Mursi, que se mostra também um ditador ao concentrar ainda mais poderes em si do que Mubarak havia feito. Mas a resiliência dos manifestantes garantiu também a sua queda.

    Porém, é importante citar também a grande consciência de vários manifestantes, em especial Ahmed, ao dizer que a revolução não estava pronta, e que não bastava a eles retirar presidentes, e sim propor algo para colocar no lugar, pois caso eles não o fizessem, alguém mais organizado o faria. Esse amadurecimento de ideias é raro de ver em embriões de revoluções.

    Todos os eventos descritos acima aconteceram em dois anos, que é o período retratado no filme. Nele, vemos o anseio de jovens empobrecidos que rejeitam a política tradicional, como Ahmed, ou jovens de classe média que estudaram fora, como Khalid, além de figuras ligadas ao extremismo da Irmandade Muçulmana, mas que ao mesmo tempo se divide ao concordar com os amigos independentes, como Magdy. Também vemos a distorção entre a cobertura da mídia oficial, pró-governo, sempre tentando desqualificar os manifestantes e justificar a brutal repressão que receberam, sendo inclusive alguns deles mortos por agentes do Estado. A relação entre Ahmed e Khalid com Magdy é, aliás, um dos pontos altos do filme, onde os dois primeiros, revolucionários independentes, criticam a Irmandade Muçulmana, do qual Magdy faz parte e tenta defender, mesmo quando o presidente era Mursi. Mais ou menos como os defensores do governo federal agem ao tentar defender a repressão aos manifestantes anti-Copa.

    Ao nos levar por toda a turbulência revolucionária do Egito, A Praça Tahrir nos ensina que nenhuma revolução é pronta, e que as mudanças são construídas na prática, disputando espaços, entendendo o contexto e buscando ações que saibam identificar o real inimigo e a melhor tática a ser usada a cada momento, pois um erro nesse cálculo pode favorecer a reação. E caso a força da revolução não seja grande, a reação vem em força geralmente maior que o regime anterior.

    Vendo o filme também dá para traçarmos um paralelo com as manifestações de junho no Brasil, que possui alguns elementos similares, como a desilusão com as instituições políticas tradicionais, a violência da repressão, o papel da mídia, etc. As diferenças vão no fervor revolucionário do povo egípcio, que não contaminou de forma eficiente a população brasileira.

    Obviamente que falta ao filme um trato profissional na qualidade da captação e na edição do filme. Porém, tudo isso fica reduzido perto da importância histórica de pessoas terem registrado esse evento naquele momento, e que provavelmente servirá, por muitos anos, para tentarmos entender toda a avalanche de eventos que ocorreram no Oriente Médio desde 2011. Ainda mais se quisermos entender daqui a alguns anos o que terá acontecido com esses países e esses jovens.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Sound City

    Crítica | Sound City

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    Dave Grohl é um sujeito inquieto. Ex-baterista do Nirvana e frontman do Foo Fighters, Grohl vive envolvido em projetos paralelos, sendo o mais recente voltado aos cinemas. No documentário Sound City, ele explora um pouco da história do extinto estúdio de gravação Sound City Studios, lançando um olhar nostálgico sobre o lendário estúdio onde foi escrito um pedaço importante da história do rock.

    Criado em 1969, em um canto esquecido dos EUA (Van Nuys, California), por Joe Gottfried e Tom Skeete, e encerrando as atividades em 2011, Sound City foi um reduto de grandes músicos, produtores e gravações de álbuns épicos. O estúdio foi o lugar onde Neil Young gravou o clássico After The Gold Rush em 1970; onde Stevie Nicks e Lindsey Buckingham se juntaram ao Fleetwood Mac e gravaram o álbum homônimo, considerado por muitos um dos melhores álbuns da banda; ou mesmo quando Kurt Cobain, Krist Novoselic e o próprio Grohl decidiram virar o cenário musical do avesso ao gravarem Nevermind, no começo dos anos 90; se isso não for o bastante, em 1996, Johnny Cash, já debilitado, se juntou ao produtor Rick Rubin e gravou Unchained, o que fez sua carreira sair do ostracismo, ganhar o Grammy de Melhor Álbum Country, além de ser indicado como Melhor Vocalista Country pela performance em Rusty Cage; tudo isso ocorreu no lendário Sound City Studios.

    Grohl se faz valer de seu nome na indústria e consegue arrancar diversas histórias de artistas e as experiências dessas gravações. É um deleite para os amantes do rock and roll ouvir histórias de Neil Young, Tom Petty, Lars Ulrich, Rick Rubin, Barry Manilow, Josh Homme e tantos outros.

    A mística que envolve o estúdio é um ponto interessante comentado no documentário. Grohl deixa claro, através das diversas entrevistas, que o diferencial do estúdio era a postura dos profissionais ali presentes, já que Sound City estava bem distante dos grandes estúdios de gravação que possuíam áreas de lazer com banheiras de hidromassagem para os músicas relaxarem, muito diferente do estúdio da Califórnia que tinha seu estacionamento inundando constantemente, que possuía um fétido carpete velho revestido pelas paredes, nada de equipamentos de última gravação, ainda assim, Sound City possuía uma das melhores salas acústicas para se gravar bateria, além, é claro, da lendária mesa de gravação Neve 8078. O diferencial do Sound sempre foi a música, e apenas ela.

    Aliás, a questão analógico x digital é um dos temas centrais do documentário. Grohl deixa claro que não foi a atmosfera de pelúcia dos estúdios atuais, ou mesmo a facilidade de gravação que programas como o pro-tools ou auto-tunes proporcionaram à concepção de grandes álbuns. Ele destaca o elemento humano de tocar e errar junto, gravando quantas vezes forem necessárias para se conseguir o registro ideal. Possibilidades permitidas pelas jam sessions, seja na mudança de arranjos e novas composições, mas substituídas por alguns cliques em poucos minutos. Apesar dos benefícios que a tecnologia trouxe para a música, Grohl afirma que, em maior proporção, que esses fatores foram deixados de lado em função desses meios tecnológicos, e que isso se reflete no cenário musical atual. Até mesmo Trent Reznor, famoso pelo uso de meios digitais em seus trabalhos, destaca que as tecnologias devem ser utilizadas em função da música e nunca substituindo o contrário.

    A hora final do documentário conta um pouco sobre como a era digital acabou com os estúdios analógicos, caso da Sound City, e relata sobre as gravações de um álbum em seu estúdio utilizando a mesa de gravação Neve para capturar a química do lendário estúdio. Os minutos finais reúnem um momento único em que Grohl, Krist Novoselic e Pat Smear (guitarrista de apoio do Nirvana) se juntam a Paul McCartney para uma jam incrível.

    No fim das contas, Sound City é um pedaço de uma importante história da música, e, acima de tudo, deixa claro que em qualquer trabalho, o elemento humano nunca poderá ser substituído.

  • Crítica | The Pirate Bay: Longe do Teclado

    Crítica | The Pirate Bay: Longe do Teclado

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    Por trás do maior site de compartilhamento de conteúdo da internet, o documentarista Simon Klose segue os suecos Peter Sunde, Fredrick Neiji e Hottfrid Swartholm, fundadores do Piratebay. Segundo os próprios, o provedor possui 25 milhões de usuários, entre pessoas que sobem os arquivos em torrent e quem os baixa.

    O filme trata do julgamento dos três envolvidos, e de qualquer outro associado ao Piratebay. O processo movido contra eles tem em seu caráter o desesperador apelo dos grandes estúdios (Warner, Columbia, Fox, entre outros) motivado pelo prejuízo que o site de compartilhamento causou a estes, diminuindo as bilheterias, as vendas de produtos derivados, tudo através da violação dos direitos autorais, causando mal a população mundial. As alegações foram muitas e faltou pouco para associar a figura dos três a propagação também do satanismo.

    De forma superficial, o documentário mostra como a geração atual de usuários da grande rede enxerga o copyright e o quanto isto deixou de ser sagrado. Pontuando que a geração anterior foi instruída a enxergar o consumo dos produtos culturais de forma diferenciada e canônica. Com atitudes ligadas ao modo correto de viver, em um pensamento quase tão catedrático e fanático quanto o presente nas ideologias fundamentalistas religiosas. O objetivo de Klose é registrar o julgamento e seus bastidores, pois outras obras já haviam aprofundado a discussão dos direitos autorais violados (a série Steal this Film, de J J King).

    O documentário é um gênero cinematográfico que precisa de fatos para provar um argumento. É a verdade mostrada sobre um ponto de vista parcial. O argumento que o realizador tenta validar é a desmistificação da teoria da conspiração que as empresas multinacionais levantavam a respeito da ligação do TPB com conglomerados rivais, ainda mais quando a maioria dos estúdios – se não todos – se sentem lesados pelo site. A base de operações do grupo, em um escritório com condições paupérrimas, nunca era admitida como o possível local de tanta exploração de trabalho alheio e apropriação indevida do lucro. O anacronismo e alienação da indústria é a pauta secundária mais abordada, depois da intimidade dos acusados.

    Ao falar em uma feira de exposição, Peter Sunde é registrado pela câmera em um telão, ao lado do host do evento. Graças a projeção mal enquadrada, ele parece gigante ao lado do homem, e a lente o flagra dessa forma, desproporcional em relação ao resto da humanidade. Um dos depoentes, amigo de Sunde, afirma que após a Guerra Fria os EUA precisavam inventar novos inimigos que não poderiam matar, e o TPB era a bola da vez. No entanto a grandeza de Sunde e seus colaboradores cai por terra nos últimos momentos da película, onde se registra a prisão dos três criadores do site.

    O tom do final é absolutamente pessimista, apesar dos últimos depoimentos de Peter diante de uma grande mesa, composta por pessoas de várias nacionalidades. A última frase antes dos créditos é um apelo, para que o arquivo de vídeo seja compartilhado (Please share this film online) e para que a filosofia nele mostrada também passe adiante.

     

  • Crítica | Destino Futebol: O Inferno dos Rangers

    Crítica | Destino Futebol: O Inferno dos Rangers

    Rangers Football Club

    A série Destino Futebol, da ESPN Originals analisa figuras da bola, e o episódio em questão é o naufrágio do Rangers Football Club, o time mais tradicional da Escócia. O documentário, de 30 minutos de duração, se inicia mostrando torcedores, famosos e anônimos, louvando a tradição do time, declarando sua paixão e fanatismo, valorizando a enormidade do clube dentro do seu próprio país. O clube ganhou 54 taças da Scottish League Championships contra 44 do maior rival, Celtic F. C., mas sofreu uma derrocada enorme nos últimos anos.

    Em 2012, descobriu-se uma dívida de 134 milhões de libras, sendo 93 milhões somente de impostos. Os credores exigiam que sanassem os débitos, e tudo, estádio, jogadores, patrimônios do clube, estava à venda. Em pouquíssimo tempo, 28 jogadores foram vendidos de uma só vez. Craig Whyte, antigo cartola, era apontado como o responsável pelo não pagamento dos impostos. Em 2012, o clube enfim falira e todos os envolvidos com a história do time são mostrados desolados; de funcionário a ídolos, os apaixonados pela camisa azul e branca mergulharam num estado depressivo enorme.

    O futuro era nebuloso, e, por pouco, as portas do clube não fecharam, graças a Charles Green. O ex-jogador e empresário foi contatado por antigos membros do clube e, motivado por estes, comprou as ações do time, que estava em baixa, encabeçou um novo projeto, que tinha o intuito de reerguer o clube do zero, com nova administração de negócio, novo nome e postura desportiva completamente diferente. O Rangers foi excluído da Liga Escocesa e deveria solicitar autorização para se inscrever de novo na federação, o que simplesmente não ocorreu, sequer era permitida a contratação de novos jogadores.

    Houve uma votação com os sócios do time e 78% decidiram por uma decisão pouco ortodoxa: jogar a 4ª divisão da Liga, a fim de limpar o nome do clube endividado e para que não o acusassem de qualquer pecado moral. O novo time para a Division 3 foi montado a 3 dias do início do campeonato. Com todas as dificuldades, com  jogo mais “físico” se comparado ao das divisões anteriores, o Rangers vai se reerguendo, com um esquete mais modesto, mas muito mais identificado com o clube.

    A Scottish League Championships ficou sem o clássico de Glasgow. Até mesmo a torcida do Celtic lamentava, com o tempo, o fim da rivalidade no campeonato, apesar do discurso inicial de alguns alviverdes escoceses. O destaque do documentarista é a fidelidade do torcedor, que, mesmo após a descida ao inferno, permaneceu fiel, acompanhando o clube na dura subida ao campo, sem atalhos. Quando há jogos no Ibrox Stadium, o torcedor retorna seu orgulho. A 4ª divisão se disfarça de primeira, a média de torcida representa o orgulho dos adeptos às cores, com uma média de 49.000 pagantes, superior a do Celtic. “A Razão do clube existir são as pessoas, por isso o clube nunca morre” – o narrador, João Castello Branco, afirma que o reerguer é complicado e o mais difícil é o 1° passo, mas o Rangers finalmente está no caminho certo.

    A retomada é levada por pessoas identificadas com o clube, mas que não abrem mão do profissionalismo em suas gestões. O treinador do time é Ally McCoist, maior artilheiro da história do Rangers; dentro de campo, o comando é do capitão Lee Mcculoch, que já defendeu as cores da seleção 18 vezes. Os relatos de alguns torcedores também são muitíssimo emocionantes, seja da responsável pelo museu do Rangers,  ou de Alex Hamilton que, ao ter sua perna amputada, só se preocupava em quantos jogos do time perderia.

    O relato é interessante, principalmente devido aos acontecimentos recentes no Brasil, e reacende a discussão sobre a moral dentro e fora dos gramados, relativa à disputa desportiva justa e, claro, é um exemplo de como uma torcida não abandona o seu time e luta bravamente para reconquistar seu destaque de forma limpa e justa. 

    O Rangers venceu a Division 3 e atualmente lidera a Scottish League One (equivalente à série C). Seu elenco conta com o artilheiro irlandês Jon Daly e o zagueiro brasileiro Edmilson Cribari, (com boas passagens por Empoli, Lazio, além de ter jogado no Cruzeiro de Belo Horizonte), e prossegue em ascensão no intuito de limpar o próprio nome, com uma torcida apaixonada e sem medo de perder sua grandiosidade ao disputar as divisões inferiores.

    O documentário ainda está na programação do ESPN (veja horários) e ainda conta com um artigo e video do jornalista Mauro Cezar Pereira destacando o filme.

  • Crítica | Bully

    Crítica | Bully

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    Há muitas cenas gravadas sobre Tyler Long – a 1ª vítima retratada no esquete – algumas delas, filmadas pelo próprio garoto. O motivo da sua morte teria vindo de uma “ordem” dada por seus amigos de escola, para que ele desse fim a sua própria vida. Ele assim o fez, no closet de seu quarto, para ser encontrado por seu irmão mais novo. Bully começa dessa forma, sem muitos circunlóquios, e em momento nenhum é gratuito – ao contrário, se utiliza bem dos depoimentos para provar seu ponto.

    O diretor Lee Hirsch treme a câmera propositalmente, para grafar as cenas que acha mais emotivas. No anúncio do nome da película é mostrada uma criança sozinha em um ônibus escolar, como um signo de isolamento, a imagem seguinte compõe o quadro, com todas as outras crianças sentadas ao redor da primeira. A cena é emblemática e demonstra em poucos segundos toda a tônica do filme.

    Passar pelos maus-tratos que os infantes impõem uns aos outros e fazer somente isso seria óbvio. O que é interessante em Bully é o foco nas emoções dos vitimizados, que passam por um sem número de rejeições. Quase todas as crianças têm a mesma queixa em comum, a tratativa adjetivada como “não ser normal” – algo que naturalmente incomoda qualquer pessoa ordinária, mas que para um menino é ainda pior. Não se sentir parte de grupo nenhum é uma rejeição enorme para alguém de tão pouca idade, e só sofrer interação por meio de atos de humilhação esmaga a auto-estima do sujeito quase a zero.

    São entrevistadas vítimas de diversos tipos, e seus parentes também. Geeks, homossexuais, negros, algumas reagem às ofensas, outras encaram com bom humor – mesmo que por traz dessa reação se esconda uma profunda tristeza -, há até algumas que se vêem como culpadas, como se fossem responsáveis por tais abusos. Uma menina homossexual – que havia sido atropelada por uma mini van, por responder aos que a agrediam verbalmente – responde aos pais sobre sair da escola onde estudava: “Se formos embora, eles ganham!” – para ela, sair do ambiente onde ocorre o abuso seria uma fuga da realidade.

    Por parte dos pais, há em comum a reclamação do descaso, passividade e pouca interferência do Estado, onde há até a sugestão de que se um filho de Senador sofresse com isso, no dia seguinte haveria leis que coibissem tais atos hostis – claro que essa é uma crítica passional, mas dar voz a essas pessoas é válido.

    O objetivo desta fita é provocar no espectador um sentimento de revolta e de asco a essas práticas, visa render em quem vê uma reflexão ao modo de educar as crianças e como lidar com situações como essa, e nesses quesitos, Lee Hirsch acerta em cheio, com seu conteúdo emocionante, parcial, é claro, mas sem demonizar ninguém.

  • Crítica | Raul: O Início, o Fim e o Meio

    Crítica | Raul: O Início, o Fim e o Meio

    69 - Raul - O Início, o Fim e o Meio

    Provavelmente não existe um brasileiro que não saiba ao menos um trecho de uma música de Raul Seixas. Mesmo que ele esteja morto há mais de 20 anos e não seja fenômeno de mídia em tempos tão efêmeros, Raul ainda move multidões anônimas que sempre se manifestam em qualquer show com o irritante “Toca Raul”. Porém, há tempos que o cinema necessitava de contar a história por trás do mito, como foi chamado por várias figuras populares no Brasil, como Paulo Coelho e Caetano Veloso. E esse filme de Walter Carvalho faz jus ao personagem.

    Começando com uma estrutura reta de documentário, o filme se inicia contando a história do jovem Raul e seus amigos na Bahia, montando um fã-clube de Elvis Presley e aprendendo frases, trejeitos, penteados e roupas do Rei do Rock, mostrando um ótimo trabalho de levantamento da juventude de Seixas. O início romântico e conturbado da carreira se mescla a seu primeiro casamento com Edith, fato que se repetirá ainda diversas vezes na vida do cantor, que teve várias esposas e amantes. A cada novo sucesso, uma nova fase, com novo comportamento, nova mania e novo vício, o que mais pra frente se tornará motivo da decadência de Raul.

    Com entrevistas que vão desde suas ex-mulheres, filhas e amigos, o filme se foca mais na vida pessoal do cantor do que em sua carreira, ao mesmo tempo louvando a genialidade de Raul, mas ignorando aspectos práticos, como o processo criativo, as gravações, o nome dos discos, época do lançamento, e tudo o que poderia situar o espectador no entendimento das razões pelas quais Raul fazia tanto sucesso. Da mesma forma, o filme falha em explicar porque o ídolo, de uma hora para outra nos anos 80, passa a ser esquecido e não fazer mais sucesso como antes, necessitando da ajuda (ou aproveitamento, como é discutido) de Marcelo Nova para voltar aos palcos, mesmo que se arrastando, o que alguns dizem que prolongou a vida de Raul, outros, que a abreviou. O fato é que sua carreira foi tratada de forma menor em detrimento de sua vida pessoal, o que atrapalha um pouco o entendimento do tamanho de sua obra.

    Porém, o espaço enorme dado a Paulo Coelho e a tentativa intencionalmente falsa de deixar em segundo plano o enorme ego do escritor (que sempre tenta passar como humilde, mas não resiste em pateticamente se mostrar atirando flechas em sua casa na Suíça) mostra claramente como algumas feridas ainda estão longe de serem cicatrizadas, e talvez a batalha dos egos, mesmo com Raul morto, não tenha terminado. E nunca terminará.

    O fato é que Raul Seixas, como mito e como ser humano, é indecifrável, e por alguma razão, extremamente atraente a determinados tipos de pessoas, como os “malucos beleza” que todos conhecemos. Não à toa, todo ano em SP há uma reunião de fãs e sósias do cantor para se reunirem e saudarem o ídolo. Por mais que Raul não seja hoje o fenômeno da indústria cultural, basta ouvirmos um trecho de suas músicas para nos fazer ficar com ela na cabeça durante um bom tempo, pois esconde em melodias relativamente simples letras recheadas de simbolismo. Isso basta para definir um ícone. Ou como Paulo Coelho prefere, um mito.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Criança, A Alma do Negócio

    Crítica | Criança, A Alma do Negócio

    Poster Criança a Alma do Negócio

    Criança, a alma do negócio é um documentário nacional de 2008, dirigido por Estela Renner, produzido por Marcos Nisti e Maria Farinha Produções, que trata de um assunto de extrema seriedade e que muitas vezes é neglicenciado: a publicidade e o mercado de consumo direcionados para o público infantil.

    Criança, a alma do negócio é um documentário simples, todo baseado em depoimentos de pais, crianças, pedagogos, pesquisadores – enfim, um rol de diferentes pessoas – com o objetivo de debater e questionar tanto os métodos quanto a ética que permeia a publicidade e o consumo voltado para crianças e adolescentes, e quais os impactos que isso poderá trazer à nossa sociedade no curto e longo prazo.

    Com um estilo influenciado pelos documentários de Michael Moore e, principalmente, Super Size Me, de Morgan Spurlock, somos apresentados primeiro a uma série de curtos depoimentos intercalados de crianças, pais, especialistas e até comerciais, que nos passam como é esse relacionamento entre as crianças e o consumo. Crianças dizendo, por exemplo, que preferem comprar do que brincar; uma garotinha que sabe de cor alguns comerciais e tem nada menos do que 22 pares de sapato; até mesmo o sentimento de frustração, não só dos pequenos como dos próprios pais, quando não têm os seus desejos atendidos; além de outras influências negativas, como um sentimento de alta competitividade, e fatores de inclusão e exclusão de grupos pela posse ou não de determinados produtos.

    O documentário nos coloca alguns dados técnicos impressionantes, por exemplo, o de que o necessário para uma marca atingir uma criança é apenas 30 segundos. Ou até que 80% da influência de compra em uma casa parte das crianças. Some isso ao depoimento de uma menina, que diz o seguinte, ao ser indagada por que deseja comprar algo: “O motivo? Isso eu ainda não descobri. Só sei que eu quero”.

    Especialistas dão a sua opinião sobre qual é o papel da publicidade, e se é ético direcioná-la para um público que não tem uma real capacidade de discernir e interpretar aquilo que está sendo apresentado a elas. O CONAR, sendo um órgão institucional, acaba por defender majoritariamente os interesses da própria atividade comercial que ele representa, e não o público e as pessoas afetadas pela publicidade.

    Criança, a alma do negócio também nos aponta dados mostrando que o consumismo chegando mais cedo acaba por encurtar a fase da infância. Esta ideia culmina em um depoimento de uma “criança” de 13 anos, casada e na segunda gravidez. Esse depoimento é dado em tom natural, sem nenhuma intenção de chocar, inclusive com um ar infantil, o que é totalmente díspar em relação à situação que ela enfrentará de criar e educar um filho. Talvez ela não tenha estrutura para lidar apenas com ela mesma, sem auxílio.

    Outros pontos são abordados, como a sustentabilidade, o papel dos pais tendo que lutar contra uma indústria bilionária, e até mesmo como isso pode influenciar na formação do caráter e dos valores desses jovens.

    Criança, a alma do negócio nos faz refletir sobre a sociedade que estamos criando para o futuro. Nos faz avaliar o valor da publicidade e do consumo, e qual o impacto real dela sobre todos os indivíduos – não só do prisma das crianças, mas questionando a sua influência sobre nós mesmos, e se realmente queremos nos definir por aquilo que compramos para, aí sim, formar o que somos.