Dois estranhos ligados apenas por um laço profissional (ela funcionária de um matadouro, ele seu chefe), coabitando mais plenamente nos seus sonhos compartilhados, que na sua relação no plano real das coisas. Dá-se nisso o quadro perfeito de duas almas gêmeas, se este fosse um filme a se torcer apenas ao redor de um casal mítico cujo subconsciente interligado e o destino, talvez um só, vieram a juntar num trabalho duro de vísceras e sangue no chão. Nos sonhos lúdico e pueril, segue-se portanto o oposto, ao passo dos dois, mulher e homem, tornarem-se literalmente cervos sob a neve como se configura a belíssima cena inicial que abre a exibição de Corpo e Alma, de Ildikó Enyedi, já indica que algo no mínimo especial pode nos estar prestes a surgir.
A fusão do humano com a sua versão animalesca combina com a condição antissocial dos dois, ambos na sua, o tempo todo, desde a primeira até a última inserção cujo contato visual, se não é mínguo, esbarra na aflição dos seres em se relacionar. Um filme sobre psicologia comportamental, também, mas principalmente sobre o que esconde o silêncio que reside num diálogo ou na ação de alguém que vive em sociedade – dois binóculos ambulantes cujas palavras e atitudes, por serem raras e cometidas, e por isso mesmo cheias de significados, se desenrolam economicamente na perícia que eles têm para com seu mundo, violento e indiferente, quase que superficial, cheio de pessoas nada convidativas ao desabrochar de suas identidades sensíveis que eles reservam para si, para o momento da transmutação tão sonhada e por instantes realizada de homem, para bicho, para alma, para a essência e para a liberdade.
Essa metamorfose não carece de léxico algum para se explicar, para se justificar. Talvez a melhor metáfora dessa condição inesperada tanto para o “casal” quanto para nós venha de um diálogo entre eles mesmos, quando o patrão vai visitar o local de trabalho penoso e a encontra, solitária, sob uma tênue luz azul laboratorial. Ele pergunta, sem jeito, se Maria está gostando do ofício, e ela, introvertida, afirma o que ele precisa ouvir, e estende o papo sobre os olhares que fazem a diferença no mundo indelicado que vivemos, ou suportamos. Nisso, nota-se como eles ainda não percebem que se reconhecem no sono, mas talvez já sintam, a partir de indícios de um trabalho de câmera minucioso, um pouco do outro dentro de si, mas de uma forma tão subjetiva que isso vem a ser, por uma boa fatia da projeção, um segredo insondável para seus portadores.
Sensível até não poder mais, Corpo e Alma é um poema reflexivo reconfigurado lindamente em imagens em movimento, beirando a melancolia de outros bons romances na tela, mas sem se deixar afetar por excessos ou vaidades que algumas cenas facilmente poderiam adotar – a cena de Maria e a pantera de pelúcia debaixo dos lençóis, por exemplo, algo de uma meiguice quase que virginal, mais sugerido que mostrado, e muito bem esquematizado pela edição de imagens fluída na cálida razão de existir que a trama carrega por quase duas horas, feito a presença e a fala dos seus singelos protagonistas. Num universo de abatedouros e almas gêmeas, eis uma história que acha aqui um equilíbrio gostoso entre a dureza da vida, e um romantismo verdadeiro que talvez não precise estar fadado a nascer e existir apenas na utopia dos sonhos.
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