O modo rude como o trabalhador idoso trata a carne sacrificial exibe a dicotomia do filme de Naomi Kawase. Após o epílogo, a cena corta para um ritual religioso, fruto da crença dos aldeões de Amami-Oshima que veem em cada manifestação da natureza uma participação de seus deus, fazendo do contato divino algo comum a existência humana, distante da percepção que separa o homem de seu criador por meio de tabus inalcançáveis. A paz bucólica da região praiana é cessada pela presença de um cadáver com tatuagens remetendo a uma vida diferente daquela presente na região.
Amami-Oshima tem uma beleza imensa, enchendo os olhos de quem vê, sendo impossível não associar cada particularidade do local a algo que não seja louvor ao Divino. A religião não apresenta uma primeira face como uma instituição castradora, mostrando aspectos discutíveis em um nível liminar com o gradativo desenvolvimento de seu roteiro. A artimanha visa fugir de soluções simples, com um timing quase perfeito, tomando por base a maioria das discussões relativas as ações religiosas sobre o arbítrio humano sem amputar culpa a instituição, deixando aberta a questão da responsabilidade ser ou não de seus adeptos.
O elemento venerado em O Segredo das Águas é a força da natureza, magnânima em si com ou sem a ação humana. A mensagem é como uma ode ao planeta, sem preocupações forçadas com a causa ecológica, ainda que valorize o conceito de supremacia da força originária, como julgadora e não refém de quaisquer ações dos homens, da mais simples as mais complexas. A natureza é poderosa e encerrada em si, como nos ecos de outras obras da filmografia de Kawase.
A trama se desenrola com insights do passado, revelando dias de simplicidade, desarticulando falas corriqueiramente incriminatórias, supervalorizando o contato com o que é natural. A contemplação de Kaito e Kyoko engloba os ciclos da vida, explorando poeticamente os momentos de nascer, crescer, reproduzir e morrer, passando por discursos atentos aos ensinamentos proferidos pelos anciões o vilarejo. Entre as almas dos homens e da natureza, aceitar a condição subalterna seria a única alternativa para a sobrevivência além do ordinário.
Ao exibir tratores e escavadeiras destroçando a mata para que o “progresso” possa pavimentar a vida na ilha, divide-se o ideal. A partir dali a inocência e ingenuidade seriam feridas, profundas ao ponto de não ter mais qualquer possibilidade de cura eventualmente. O que sobra passos à frente da pós-modernidade resume-se ao efêmero, a morte, solidão e melancolia. As personas presentes no filme dialogam com o público, mas servem especialmente para valorizar algo maior, como em Árvore da Vida, de Terrence Malick, ainda que a abordagem utilizada em O Segredo das Águas seja linear e de fácil digestão para o grande público.