Existem livros, não necessariamente gigantes na extensão do seu calhamaço, cuja riqueza de seu conteúdo adaptado para o cinema ou para a televisão renderia mais que todas as temporadas juntas de Os Simpsons, ou se preferir, todas as novelas da TV Globo produzidas desde o ano 2000 – em termos qualitativos, pelo menos, isso sem dúvida. Eis então um belo exemplar disso, e ele vem com nome, e autor, muito além de interesses puramente acadêmicos e/ou servindo a historiadores de plantão.
Dividido em episódios que evidenciam o quanto o continente americano (com grande ênfase substancial a América Latina) foi conquistado e colonizado a bel prazer dos europeus, e como a resistência nativa foi importante para não perdemos nossa essência regional nessa parte do mundo, Eduardo Galeano apresenta As Caras e as Máscaras, conjurando-se no delinear e nas resoluções da obra como o típico escritor latino universalmente recomendado e reconhecido pelo seu poder de constante hipnose e criação literária – página atrás de página, palavra atrás de palavra.
E veja bem, caro(a) leitor(a), o emprego de uma delas. Galeano tece sem luvas e muito menos papas na língua uma narrativa de vias cronicais, e fabulescas, a respeito de uma veracidade consagrada que se encontra tão presente no período colonial dessas terras sulistas e acaloradas, e ainda por cima, sem jamais perder parte de um encanto épico inebriante, ainda que dramático e trágico, a embalar a alma de célebres menções e desventuras da epopeia americana do tempos dos descobrimentos marítimos.
Neste segundo volume de sua ambiciosa trilogia Memória do Fogo, grande saga do escritor rumo a alma do nosso passado legítimo, e a mitologia própria que nele reside, nota-se como a América nunca foi derradeira em nenhum sentido, mas sim um meio e um fim nela mesma, e o livro apenas embeleza e refina o seu sagrado percurso lendário, uma vez que, para Galeano, a luta inicial dos índios, dos jesuítas e de todos os personagens e deuses e signos e batalhas é tão ou mais valiosa que os grandes arcos gregos, ou os eventos egípcios que fascinam a todos, incluindo a nós, latino-americanos. Muito mais que nossas próprias marcas, e cicatrizes.
Por que não tratar, ou pior, tratar com certo distanciamento retumbante, facetas extremamente factuais de um Brasil, de uma Bolívia ou de um Uruguai que não se perderam no tempo e ainda encontram eco, de fato, na lógica latina de hoje em dia? Galeano, uruguaio, malabariza o realismo necessário com uma ficção tão leve que só se percebe na poética da coisa e se mostra sobretudo um grande historiador, estilista por excelência de vários aspectos de sua própria escrita, saborosamente rítmica, concentrando épocas em episódios de uma ou duas páginas, e dispersando a linha histórica dos eventos em rápidas duzentas, ou trezentas delas.
Falo aqui diretamente a você, mais uma vez, ao retratar nossa estadia no alto da montanha que Brás Cubas, em suas memórias delirantes, foi levado a ver o desfile impressionante dos séculos. Pois os saltos temporais em As Caras e as Máscaras, vasculhando as características de uma América ainda virgem de tudo dão o tom da empreitada de forma quase que imperceptível, numa verdadeira aula de coerência literária rítmica que muito tem a ver com os romances do colombiano Gabriel Garcia Márquez, ou do brasileiro Machado de Assis, famosos por enxergar nos seus livros palcos solenes, e desapropriados, à espera do emanar de suas minuciosas construções artísticas.
A cabo de uma leitura elucidativa, entendemos então que a América se fez viva, ativa e operante enquanto um continente consignado, e abusado pelas mais diversas influências estrangeiras, e natais também. Unida senão pelas fronteiras que separam seus povos, as suas línguas, seus credos e as suas culturas que inevitavelmente evoluem e se tornam algo muito diferente em um par de séculos de mutações regionais graças a inquietude e a criatividade da humanidade que (quase) sempre se faz presente. Foram estes fatores que nos fizeram sobreviver às ordens dos colonos, aos chicotes do eurocêntrico e aos aspectos do solo lunar; memórias cujo ardor é tão enraizado que não nos deixa esquecê-las.
Galeano constrói um manifesto de lembranças vitais com esse segundo volume dessa trilogia vibrante e simbólica ao extremo, pois enquanto ingleses e portugueses riam de nossos costumes primitivos, os deuses dos índios do Brasil, Paraguai ou dos Estados Unidos (já que o livro também dá espaço para a mitologia histórica e complementar dos vizinhos lá de cima) teimavam em ficar e brilhar, mesmo que hoje habitem apenas as páginas dos livros; reservados ao imaginário popular latino-americano, posto que este seja bastante influenciado em tempos globalizados por um norte mais sedutor e mais rico, séculos após a poeira das grandes guerras locais entre os povos de lá, e de cá, ainda não ter abaixado completamente. Longe disso, diriam muitos. Longe disso.
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