Já disse aqui algumas vezes que as descrições, por mais enfadonhas ou verborrágicas que possam ser hora ou outra, são partes essenciais da espinha dorsal de uma boa história. São elas que conseguem, tanto quanto plot twists, conflitos e situações-limite, transportar o leitor para dentro da história, fazendo-o enxergar com precisão e vivacidade personagens, atitudes, locais, cenários, batalhas etc.
Pelo caráter exploratório, especulativo e libertário que possui a Ficção Científica, a descrição muitas vezes tem seu potencial aumentado, representando talvez mais do que em qualquer outro “gênero” um papel primordial na constituição de universos, processos, criaturas e tudo o mais. O planeta Solaris, descrito exaustivamente por Stanislaw Lem no livro homônimo, pode dar uma boa ideia a respeito disso.
Antes, porém, aos fatos: desde que o planeta Solaris foi descoberto, ele tem sido objeto de muitos estudos, especulações e discussões na Terra. A fortuna crítica que o planeta gerou tem colocado em pauta questões tanto sobre Solaris quanto sobre a própria Terra: especula-se sobre a natureza da descoberta tanto quanto sobre as implicações dela para os descobridores.
Devido a tudo isso é que uma estação de pesquisa foi construída sobre o planeta, e três pesquisadores foram para lá mandados. Após algum tempo, um quarto pesquisador, Kelvin, o protagonista e narrador da história, é enviado para lá, e acaba descobrindo um cenário desolador: a estação encontra-se revirada, um dos pesquisadores morto, e os outros dois cultivando hábitos muito estranhos. Tão logo chega, Kelvin já é alertado quanto a possível presença de um tripulante a mais, mas não é dito quem ou o que é essa outra presença.
Assim o autor nos mantém no suspense, esperando encontrar essa outra presença a cada página. Kelvin, que atua como nossos olhos naquele cenário novo, perambula pelos corredores tentando entender a situação encontrada, e depara-se com os mais estranhos indícios de que há algo maior e oculto por trás desse cenário.
Para surpresa do protagonista (e do leitor) a outra presença se manifesta, e revela-se que se trata da mulher, já falecida, de Kelvin. O susto inicial dá lugar a um sentimento de incompreensão avassalador, já que a presença viva dela contraria boa parte dos princípios e leis nas quais o universo e sua compreensão estão baseados. É dessa intrigante situação que Stanislaw Lem vai mesclando capítulos de trama com capítulos de descrição do planeta de acordo com os “estudos solaristas”.
Descrevendo com extensivas minúcias toda a constituição do planeta e o que seria a bibliografia a respeito da natureza dele, o autor nos coloca em contato com o imenso ponto de interrogação que representou a descoberta de Solaris, acompanhados das mais diversas especulações da humanidade a esse respeito.
Solaris é um planeta iluminado por dois sóis. A princípio pensava-se que seria impossível explorá-lo, pois as órbitas eram irregulares, de modo que um erro mínimo de cálculo (ou qualquer contratempo) poderiam representar a morte da tripulação ou destruição das máquinas, seja pela aceleração gravitacional, seja pelo calor gerado por algum dos sóis cuja órbita oscilava. Mais estudos revelaram, entretanto, que o coloide que recobre praticamente toda a superfície do planeta, possuía a peculiaridade de “agir racionalmente”, alterando a gravidade e a órbita do planeta de modo a preservar-se e a seu habitat.
A estranha condição, de tamanha extensão e potencial, intrigou profundamente os seres humanos, que poderiam estar diante de uma forma de vida inteligente no universo, o que alteraria boa parte das crenças e postulados nos quais se baseiam as próprias existências das pessoas. A distinção do oceano solarista em relação a tudo o que se conhecia somente abriu mais espaço para especulações, que variavam da ciência para a astrologia, da cosmogonia para a religião, espraiando inclusive na filosofia e na metafísica. O ser humano estava diante de uma forma totalmente diferente de vida e, quiçá, de consciência e racionalidade; mas também estava colocando-se diante de si próprio por meio da alteridade proporcionada pela descoberta.
Voltando agora ao tópico inicial, as descrições: Stanislaw Lem ocupa páginas e páginas descrevendo detalhes ínfimos e curiosos do planeta, tais como os mimóides, os longus, as simetríades, as assimetríadas, a constituição química do oceano colóide, as estruturas “biológicas” que ele possui e os mecanismos de sua existência. O enigma que intriga Kelvin é o mesmo posto a nós em face do outro: constituímo-nos a partir do outro, na alteridade. Postos diante de Solaris, a Terra nunca mais foi a mesma. Apesar de usar as palavras de criação humana “colóide”, “oceano”, “montanhas” ou “ilhas”, o autor faz questão de frisar que são meros comparativos, pois a singularidade do que se vê e experimenta em Solaris é impossível de ser descrita com exatidão pelos termos com os quais estamos familiarizados.
Stanislaw Lem nos transporta para Solaris, faz-nos tremer e assombrar-nos perante a imensidão dúbia que é o planeta. As hipótese jazem permanentemente abertas na cabeça dos personagens e na do leitor: será que estamos diante de uma criatura? Como essa criatura consegue conhecer nossos segredos mais profundos? E como os reproduz a seu bel prazer? Quer dizer que não estamos, afinal, sozinhos no universo?
A chave dessas dúvidas nos é desconhecida, mas nos coloca diante de nossa própria existência e subjetividade, afinal, só porque possuímos uma concepção de “vida”, “racionalidade” ou “inteligência”, isso não significa que ela é a única e que deve ser aplicada a tudo e a todos. Ao descrever com tamanha eloqüência e vastidão Solaris, o autor faz-nos questionar a respeito de nossas próprias concepções.
E ainda tem gente que vê a Ficção Científica como um “gênero” menor…
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Texto de autoria de Lucas Deschain.
Eu não li Solaris, nem vi o filme.
Mas pela sua descrição final, me deu a impressão, que ele leva a linha de reflexão e pensamento para o relativismo ou algo do tipo, é isso mesmo?
Só dá para falar disso com spoiler Rafael, então leia o que estiver abaixo por sua conta e risco.
Não vejo como relativismo necessariamente, mas como a condição necessária de tudo o que estiver ao alcance intelectual da humanidade. No caso de Solaris, por exemplo, se usam termos cunhados pelos humanos para referir-se a coisas que não tem paralelo exato com essas referências, como “oceano” e “colóide”. Isso é relativismo? Não sei até onde podemos considerar.
É algo bastante profundo, e que o livro consegue atingir em cheio, por isso é que o Stanislaw Lem fala que ao olharmos para fora (Solaris) olhamos ao mesmo tempo no espelho, pois nos constituímos nessa conflituosidade. Não à toa que o autor visse com maus olhos a Ficção Científica que preza pela aventura, a preocupação dele é outra, é tocar o ser humano no seu cerne, mesmo que se valha da ficção para isso.
Entendi cara, valeu pela explicação.
Já vou tentar providenciar uma cópia. Vai ficar como minha próxima leitura.
E incluse, esqueci de dizer no primeiro comentário. Parabéns pela resenha. O texto ficou excelente.
Obrigado, qualquer coisa estamos aí.
Pode ir tranquilo para o livro que tenho certeza que será uma das melhores leituras que tu fará. O livro é profundo mesmo.
Fui atrás em algumas livrarias, só por encomenda e em inglês.
A edição em português já era, fora de catalogo.
Ainda bem que o Kindle está ai por U$3,00 o livro.
Por estar a esse preço, bem provável que esteja em domínio público.
Não sabia que tinha livro. Assisti apenas o filme mais recente, com George Clooney e, sinceramente, achei a interpretação dele muito boa.
O lance do filme/livro acho que é algo parecido com “Linha Mortal” do Joel Schumacher.
Parabéns pela resenha, muito bem feita!
Obrigado Frankcastle. Não conheço esse filme, mas vou procuar ver. Não assisti a versão holywoodiana do livro, mas o filme do Tarkovski está entre os meus favoritos. Curioso é como as questões que embalam um e outro são bastante diferentes.
Pode ser que tenha alguns spoilers no texto aqui embaixo:
O Lem procura lidar com a dimensão humana de tudo o que encontra-se na esfera de tangibilidade dos homens (ou seja, de como existe algo de subjetivo e passível de crítica em tudo o que os homens fazem, pois essa é a natureza de seu conhecimento); já o Tarkovski trata essa questão de forma periférica, lidando mais centralmente com a questão da verdade e da mentira, já que ao acessar as memórias dos pesquisadores e reproduzi-las, o oceano estaria dando a oportunidade de eles terem o que desejassem (com algumas restrições, obviamente), mas seria isso verdadeiro? Até onde a consciência os deixaria gozar disso?
São, cada qual a seu modo, duas grandes obras.
Lucas,
A versão do Soderbergh (com o Clooney) é bem fraquinha comparada com a do Tarkovsky. Praticamente incomparável… hehehe… mas vale uma conferida. Contudo, não tive a oportunidade de ler o livro, mas fiquei bem curioso depois dessa resenha.
Excelente texto, Lucas. Como sempre.
É costumeiro que as versões holywoodianas não estejam à altura das originais, sejam elas européias ou não. É uma coisa de ritmo e espetáculo, eu acho, Hollywood tem que ser muito rápido e entregue de bandeja, assim como tudo tem que tender ao espetacular e ao romântico. Não sei porque tantos filmes tentem convergir para isso, enfim…
Eu fiquei surpreso com a interpretação do Clooney, hehehe. Mas até o filme de Hollywood foca bastante nisso que você falou anteriormente.
Um filme de FC muito bom (excelente na verdade) lançado recentemente é Lunar (Moon), vale a pena conferir também.
Bem lembrado, Castle. Lunar é MUITO bom mesmo, nem parece que é o mesmo diretor da porcaria “contra o tempo”.
‘Lunar’ é muito maneiro sim. Lembro de ter gostado bastante quando vi. Essa é uma das obras que procura dar primazia ao ‘filosófico’ ao invés da ‘aventura’, uma das características que o Stanislaw Lem buscou cultivar em ‘Solaris’.
Essa é, alás, uma das razões pelas quais o Lem via com maus olhos boa parte da Ficção Científica norte-americana. Ele dizia que parte da reputação “menor” que a FC tinha era culpa desse tipo de literatura.
Precisa e direta ao ponto que interessa. Estou muito a fim de ler essa obra, uma pena não ter encontrado para comprar.
parabéns ao autor do texto. que venham mais materiais no blog nesse sentido.
Valeu Júlio. Um dos meus projetos esse ano é ler mais Ficção Científica e Fantasia, então você pode esperar mais resenhas minhas nesse sentido.
Atenção! Pode conter Spoilers!
Eu vi a versão com George clooney e achei muito bom. O foco do filme muda para o casal, enquanto o livro trabalha a relação de Kelvin com o planeta. Seria impossível descrever as nuances de Solaris no filme e diante disso a leitura do livro seria quase obrigatória para quem quisesse entender a questão de um planeta senciente. Nossa concepção de inteligência, à vista do planeta recém descoberto cai por terra, pois ele não se interessa pelas pesquisas, não fornece respostas aos pesquisadores, mas instiga-os, mexe com sua imaginação e percepção da realidade de forma curiosa, quase cruel. É Solaris quem faz experiências com os humanos, dá a cada um segundo seus desejos e temores e o resultado disso é que, o ser humano, falho, imperfeito e mortal, não resiste a esse contato. Kelvin poderia ser considerado o espécime evoluído o suficiente para não enlouquecer e por fim, elevar o contato mental ao ponto de unir-se ao planeta. O que seria Solaris? Sua influência quase mística poderia ser comparada a de uma divindade. Então pode se extrapolar que o planeta vivo seria uma forma materializada de Deus, mas não no sentido bíblico da palavra.
Kelvin busca uma comunhão com Solaris e desce ao Planeta após passar por todas as fases inferno/purgatório na estação espacial. O fim disso seria seguir rumo ao Éden, mergulhando no plasma vivo que recobre o planeta.