O fracasso completo do filme Instrumentos Mortais: A Cidade dos Ossos fez os responsáveis pela franquia baseada nos livros de Cassandra Clare repensarem o formato. O longa-metragem foi descontinuado, e Ed Decter faz o papel de showrunner na série em parceria com a Netflix, liberando um episódio por semana, como ocorre com Better Call Saul e Um Drink No Inferno. O protagonismo segue com a mesma Clary Fray, vivida nesta encarnação pela atriz e cantora Katherine McNamara, que igualmente tenta aparentar ser a doce menina ignorada pelo mundo, que esconde em si um talento oculto de outro mundo.
Ao mesmo tempo em que criaturas góticas rondam este universo, há uma preocupação em tornar Fray em uma esmerada aluna incompreendida na arte em desenho que pratica, tentando atingir o leitor e espectador com a mediocridade que é comum a todos, o que mostra uma bifurcação narrativa, que tenta misturar um lugar comum com seres incomuns. Em paralelo, é mostrado um outro núcleo, o dos tais seres fantásticos que agem sem qualquer receio de serem revelados, mantidos em ambientes fechados e tecnológicos que aproximam-nos do aparato tecnológico visto em séries como Arrow, incluindo a temática meio novelesca que normalmente permeia os programas da CW.
O modo de tratar os poderes paranormais da protagonista é tão sutil quanto as roupas pseudo-góticas e as tatuagens mal coloridas que habitam o corpo dos seres mágicos, que basicamente se dividem em habitantes das sombras e seus combatentes. O cuidado em apresentar as criaturas das trevas é um pouco mais lento e mais claro do que o trabalhado no filme, ainda que o tom seja muito mais infantil do que o usual em programas que se valem de elementos fantásticos.
A escrita de Clare é focada em um público Young Adult, e a temporada usa de muitos corpos sarados e perfeitos para valer seus dramas. Mesmos os nerds têm abdome definido, como Simon Lewis (Albert Rosend), que faz o arquétipo clichê do amigo que não representa qualquer possibilidade de predação sexual da heroína. Compõem o grupo de preocupações da moça sua mãe, Jocelyn (Maxim Roy), que já tem algum contato com aquele novo mundo, além de Jace Wayland (Dominic Sherwo), o misterioso loiro que guia a garota neste território inexplorado. As tais runas – tatuagens pouco estilosas, com desenhos bobos – são os catalisadores dos poderes dos shadowhunters. Nesta versão, há ao menos um trabalho de explicação minimamente palatável para o espectador, sobre os métodos de lutas desses com os demônios que insistem em invadir o espaço terrestre.
No entanto, a motivação para o desenrolar da narrativa é fraco e copiado de inúmeros outros produtos infanto-juvenis, seja em Harry Potter, no qual inspira a questão do escolhido – escolhida, por ser Clary – ou a mistura de raças fantásticas com um escopo mais sexy, como em True Blood, ainda que não haja sexo como na série de Allan Ball. A tal mistura de criaturas não seria necessariamente um defeito, caso houvesse uma preocupação em ambientar o público e justificar isto. O que se vê é um apelo no intuito de gerar popularidade e esconder as graves falhas de argumento, que se manifestam até em clichês de desconfiança entre o casal principal, motivado claro por terceiros, o que remonta a uma tentativa ruim de emular Romeu e Julieta, com o amor proibido pondo o par em facções opostas, ainda que as consequências aqui sejam muito menos desenvolvidas.
Na tentativa de encontrar o item mágico da vez, presente no tal Cálice que revelaria as memórias apagadas de Clary, são registradas algumas ocorrências que mais parecem embromações, como o desenrolar romântico da mocinha com Jace, o que já demonstra qual é o real foco deste programa, em que importa mais a formação de um casal do que o destino do universo. Personagens secundários, como Isabelle “Izzy” Lightwood (Emeraude Toubia) e Matthew Daddario (Alec Lightwood) transitam pelos cenários, em seus trajes negros ou vermelhos, basicamente para atacar o monstro da semana ou para desenrolar algum evento bem desimportante envolvendo algum dos outros entes secundários. A sensação de estar sendo ludibriado é constante, uma vez que poucos eventos mostrados agregam ao plot principal.
Talvez a personagem mais complexa seja Izzy, que usa sua extrema beleza para capturar a atenção de seu público alvo, seduzindo espectador e diversos personagens. Ao menos a sexualidade é tratada sem muitos tabus no folhetim. Até se entende, ao menos em partes, o fato de Clary ter uma voz ativa entre os shadowhunters, uma vez que sua ligação sanguínea com guerreiros poderosos do passado a credenciam como uma espécie de chosen one, mas o mesmo não pode se dizer de Simon. Assim que o nerd de abdome sarado se transforma em vampiro, ele passa a ser um membro altivo de sua classe, mesmo que a cultura de submundano seja para ele uma novidade. A partir daí, ele é o voto que propicia um acordo entre os submundanos e os shadowhunter, para cooperação mútua atrás do mesmo objetivo, que é encontrar Valentine, e de quebra, ele passa a ser melhor amigo de Luke Garroway (Isaiah Mustafa), lobisomem padrasto de Clary, mesmo que tal relação não fosse assim no passado.
Ao menos, entre o feiticeiro Magnus (Harry Shun Jr.) e Alec há uma comentário interessante sobre aceitação do diferente, usando o preconceito entre os caçadores de sombras e os submundanos para discutir relações homo afetivas. Ainda que no programa essa possibilidade seja engessada, graças à péssima atuação de Daddario, a troca da dúvida que ocorre no livro é bem encaixada neste, mesmo que se perca muito da discussão quanto a identidade homossexual do personagem, que na versão televisiva não parece ser tabu.
O final da temporada traz consigo todos os defeitos vistos nos 13 episódios, com união de raças bem distintas em prol do mesmo objetivo, engôdos em relação ao casal Clary e Jace, efeitos especiais terríveis, figurinos de vilões que fazem lembrar Power Rangers nos tempos áureos e, claro, um cliffhanger oportunista, semelhante ao visto em outros seriados populares. Shadowhuntes : The Mortal Instruments é uma série para um público mais moço, com toda a falta de qualidade presente em seus primos Bitten, Teen Wolf e afins, que tem no leve tema de aceitação sexual um mote válido, enquanto todo o resto é pífio e carente de qualidade.