Vida e obra de Héctor Germán Oesterheld se confundem. O caráter aventureiro de sua escrita se mistura ao cunho e a crítica política que sempre teve ao tecer as tramas de seus roteiros. O Eternauta conta com a superstição do povo argentino de que sempre que neva na capital do país, Buenos Aires, algo ruim acontece, e o que se vê no cotidiano do protagonista Juan Salvo, sua família e amigos que estão em uma casa isolada é exatamente isso, todos assistindo atônitos a neve caindo.
A história foi publicada semanalmente na revista semanal Hora Cero, entre 1957 e 1959, em formato widescreen. No Brasil só foi publicada em 2010 pela editora Martins Fontes, e ela faz parte não só da história dos quadrinhos da América Latina, conhecida como a primeira aventura em ficção científica passada na Argentina.
O título do quadrinho se dá por conta de um viajante da eternidade que cruza o espaço tempo para explicar a um quadrinista o futuro pelo qual passará a humanidade. O traço de Francisco Solano López tem um tom realista, que ajuda a temperar o prato servido por Oesterheld, fortificando as referências à literatura de H.G.Wells e Julio Verne.
A neve que cai na capital tem uma cor diferente, descrita pelos personagens como fosforescente, as descobertas a respeito dela se dão aos poucos, e o corpo de personagens – homens comuns , porém inteligentes e inventivos – tecem teorias daquela tragédia estranha, onde se pensa que a mortalidade se dá graças à radiação, referenciando um mal típico daqueles anos de Guerra Fria.
Outro estratagema interessante é a reação do povo que ao se ver trancafiado em casa e sem perspectivas de sair, age de maneira irracional. Alguns dos homens e mulheres correm no lado externo das casas, incrédulos na possibilidade da morte, tendo como prêmio sua vida ceifada. Ler isso em um período de isolamento social é um pouco perturbador, mas faz lembrar clichês básicos de sobrevivência. A obra, por vias tortas, segue ainda mais atual que o esperado.
A arte em preto e branco facilita dois aspectos, o sombreamento, que detalha melhor tudo, e o aspecto de inevitabilidade da morte, que mesmo sem a cor rubra do sangue, ronda todas as pessoas, além de também aumentar a sensação de claustrofobia dos que se aventuram no espaço externo com roupas de mergulho improvisadas, com receio do que está fora de sua “zona de conforto”, ao passo que se sentem oprimidos pela falta de espaço e pelo ar que embaça o vidro das máscaras improvisadas que usam em seus trajes de isolamento, feito as pressas. O mal invisível cerca as pessoas comuns, causando um terror em meio ao cenário gelado, nesse que talvez seja uma das possíveis influências para o horror que John Carpenter reuniu em O Enigma de Outro Mundo, além do filme original O Monstro do Ártico.
O horror transforma homens comuns em assassinos trágicos. A questão do mal que vem de fora não aplaca a sensação terrível de que em época de desespero, o homem mostra o seu pior. O detalhamento do ataque, a hierarquia dos opositores e o conhecimento que os sobreviventes vão acumulando ao longo de sua jornada para não findar sua existência tornam a trama crível, mesmo com toda suspensão de descrença que precisa ser lançada para achar realista esta ficção. Quando passam pelos corpos nas ruas, os personagens tentam encarar os cadáveres como algo impessoal, como manequins, para que a emoção não vença a razão na corrida contra a morte que eles travam.
A tradução que Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina empregam é bastante respeitosa ao texto de Oesterheld, a sensação de familiaridade prossegue viva, além da sensação terrível com o desfecho que foca no looping temporal e no ciclo de repetição que impera na vida humana e na sua trajetória na Terra.