Carlo Collodi escreveu a história do boneco de madeira que deseja se tornar um menino de verdade em 1881. Desde então, dezenas de releituras foram criadas, algumas buscando o aspecto educativo existente na obra original; outras, um caráter mais existencialista. Essa nova versão busca um outro caminho.
Winshluss (pseudônimo de Vincent Paronnaud) é o quadrinista responsável por essa releitura de Pinóquio. O autor trabalhou como co-diretor dos filmes Frango com Ameixas e Persépolis, ambos adaptações de quadrinhos. Neste trabalho, Winshluss opta por deixar de lado uma série de conceitos da obra de Collodi para discutir outros temas.
A obra se inicia com uma sequência de quadros envolvendo duas situações adversas. A primeira delas envolve um barril de material nuclear que é jogado ao mar, contaminando um peixe próximo. A segunda situação envolve um homem que observa sua vizinha pela janela enquanto conversa com seu gato, concluindo este prelúdio com o homem fazendo roleta-russa consigo mesmo e com o gato. E só depois disso seremos apresentados ao personagem que dá nome a obra.
Essas tramas, aparentemente sem nenhuma relação com o personagem título da obra, vão se complementando pouco a pouco e, mais do que isso, se justificam dentro do trabalho de Winshluss, amarrando qualquer ponta solta que tenha sido lançada no início da leitura. Porém, cabe ressaltar que Pinóquio é uma leitura direcionada a um público mais velho: diferente da obra do criador do personagem, Winshluss cria quase um mundo cínico e cruel, muito diferente das obras de contos de fadas.
No livro original, a cada vez que Pinóquio mentia, seu nariz crescia ou surgiam orelhas e rabos de burro, entre tantas outras lições de moral. Essa é a grande diferença dessa releitura: ele não quer passar uma “moral da história” sobre as consequências das nossas atitudes. Para o autor, isso é uma visão de mundo simplista e maniqueísta.
Na trama, Pinóquio não é mais um boneco de madeira, mas sim um autômato de guerra criado por Gepeto; o Grilo Falante dá lugar para Jimmy, uma barata que sonha se tornar um escritor, mas passa seu tempo bebendo e vagabundeando. Essas escolhas do autor dão uma nova faceta à obra, e a forma como ele desconstrói certos personagens é sensacional. Gepeto se torna um inventor belicista que só quer o Pinóquio para faturar milhões. Jimmy acaba expulso de sua casa, por isso vai morar na cabeça do robô, e está muito longe de ser uma alusão à consciência de Pinóquio, como no livro original.
A história se desenvolve e nos vemos em um mar de sangue, envolvendo violência, fanatismo religioso, exploração infantil e outras atrocidades. Winshluss faz uma série de críticas à sociedade atual e não poupa ninguém. Sua obra tem, a todo momento, um teor em que a crueldade parece fazer parte da humanidade: quase todos os personagens agem em benefício próprio e não se importam em passar por cima de qualquer um para conseguir o que buscam. Pinóquio parece à margem disso tudo. Seu personagem não faz escolhas erradas, apenas é jogado de um lado para o outro, e as ações transcorrem fora do seu controle.
O trabalho do autor é fantástico, e as múltiplas tramas que cercam o personagem se preenchem com um significado maior no final da história. O álbum, mesmo quase sem texto, tem muito a dizer, mostrando a força da narrativa visual do autor. O traço de Winshluss se altera em diversos estilos, desde a pop-art à pintura impressionista, ou da arte do underground norte-americano aos quadrinhos cômicos franceses.
Pinóquio traz uma visão hedonista da humanidade e uma grande crítica à sociedade atual, e não busca uma “moral da história” em sua conclusão, vai mais longe, realizando ainda um fechamento com um certo ar de esperança.
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