Ganância, egoísmo, pactos satânicos, mutilações, dominação territorial e abandono de crianças – tais assuntos não estariam em uma história voltada ao publico infantil, e este é o caso de Dororo, de Osamu Tezuka, um mangá que contém uma historia adulta, com uma abordagem equilibrada entre esses temas complicados, uma violência excessiva se comparada aos comics americanos e claro, com alguns toque de terror.
O protagonista, Hyakkimaru é um rapaz que nasce sem 48 partes de seu próprio corpo, e em lugar dos membros perdidos, tem próteses. A narrativa visual de Tezuka é esplêndida, além de prender a atenção do leitor, ainda o faz crer que todos os absurdos mostrados nas páginas são críveis e passíveis de acontecer. O traço dos personagens, meio arredondados, dá um aspecto de desenho infantil, que é quebrado pela enorme violência gráfica de membros decepados, corpos se desfazendo em putrefação, combates homéricos e grafismo nas execuções. O contraste é inegavelmente um dos pontos altos do mangá.
A relação com o Médico que o encontrou começa com ele vestindo o traje da figura do mentor e é repleta de gratidão por parte do menino, graças a misericórdia dispensada a ele. Hyakkimaru era visto pelo doutor como um ser humano, mesmo com sua aparência monstruosa com toda a miséria presente em sua existência, e por isso merecia atenção – o texto presente no roteiro é comovente e não apela para o sentimentalismo, ao contrário, pois o pai postiço tenciona tornar a vida do rapaz mais normal possível, construindo próteses semelhantes aos órgãos que ele não possui, que unido aos poderes “misteriosos” de Hyakkimaru, o fazem uma pessoa com capacidades além das humanas normais – o deficiente passa por cima de seus defeitos e se destaca no mundo que o rejeitou, mensagem muito bem construída e inspiradora. A perseguição das criaturas malignas: Youkais e Assombrações, obriga Hyakkimaru a abandonar o seu lar, à procura de um lugar onde poderia viver em paz – referência à busca humana incessante pela paz de espírito – onde descobre a questão dos 48 demônios e do resgate de seus órgãos e claro, encontra-se com o ladrão infante Dororo.
Outra figura que usa a máscara de mentor do rapaz amaldiçoado é o Monge cego que ele encontra, que primeiro afirma que os dois são companheiros por serem deficientes, o que demonstra a fácil empatia que o pequeno herói gera, e depois o demove da ideia de encontrar a felicidade em algum lugar, levando-o a crer que a plenitude de espírito vem do interior do homem. O Mestre é um exímio artista marcial, e Hyakkimaru quer ser seu pupilo, mas o Monge o rejeita – há de se reparar que as figuras de inspiração não têm nome, mas sim alcunhas. A mensagem dada pelo Monge é uma bronca, um alerta para que o rapaz pare de resmungar e enxergue o milagre que é sua própria vida. Ele é apresentado a uma comunidade de crianças deficientes, que lutam para sobreviver, e isso serve para ele reavaliar muitos de seus conceitos.
Dororo enxerga Hyakkimaru como um irmão mais velho, uma figura de inspiração que evolui em seu conceito, no começo sendo seu alvo de furto – da espada que carrega – para depois tornar-se parceiro do vassalo. Os dois têm muito em comum, e atravessam o Japão feudal atrás das figuras diabólicas que atormentam Hyakkimaru. Logo chegam a vila onde resolvem um caso de roubo e desmascaram um youkai, que se passava por uma benfeitora local. Mesmo após livrar a vila do mal, ele e Dororo são expulsos graças à fama de ladrão do menor e dos membros retráteis do jovem audaz.
No fim, Hyakkimaru recupera um braço, por ter matado um dos 48 demônios (já havia executado 16) e Dororo se demonstra reticente em contar seu passado. Aos poucos os companheiros se afeiçoam um ao outro, tornando-se a relação dos 2 em uma relação cada vez mais simbiótica e interdependente. A obra é de altíssimo valor e é repleta de significados interessantes, o sub-texto de Tezuka é muito contestador comparado ao cenário de mangá da época, 1966/1967, sem deixar de lado o grafismo da violência e os aspectos mainstream típicos do gênero, tornando sua leitura em algo agradável de ler sem deixar de lado o vasto conteúdo presente nela.