Alain Resnais foi um pintor de emoções: literalmente pintava humanidades e o avesso à frente de nossas óticas e tópicos pessoais de aceitação. Foi ou é? Será? Seu legado é extenso desde muito antes do óbito do artista, e homem apaixonado pela arte, arte da luz, captação de movimento e fluxo narrativo de tantas belíssimas histórias, compôs, pintou e tocou feito marinheiro seu barco à frente, tão à frente a ponto de nos deixar órfãos de sua presença, agora retida e ampliada, é claro, em seus clássicos eternos, infinitos em gênero, ação e interpretação. Chabrol, Rivette, Resnais eram expressionistas tímidos, nos intimidavam feio com suspiros, angústias nos olhos, de tão fortes suas intenções. O francês não brincava em ofício, mas brincava sem dó com nossa percepção da vida, distorcia, refinava-a. Em Hiroshima, Meu Amor, o que estamos vendo: um casal de fantasmas perdidos numa paixão insondável? Uma alma que se vê dividida em dois corpos? Não é possível colocar ou espremer em palavras, daí o Cinema pra cumprir tamanha tarefa além-vocabulário. Dói não a partida, mas saber que não haverá mais estreias com seu nome. Resnais virou cineasta de Mostras especiais, de herança, cineasta de parâmetros a outros no futuro; Resnais, como tantos outros, virou uma bússola. É o destino. É a única chance do mortal virar imortal.
Amar, Beber e Cantar é um digno desvio de linguagem e homenagem para com a verdadeira obra-testamento de Resnais, o colosso de 2006 Medos Privados em Lugares Públicos, um dos grandes filmes da primeira década do século 21. O filme de 2014, o último do mestre, é delicioso, feito pra se comer com os cinco sentidos. De degustar a precisão da anatomia exposta e as tripas, sobretudo as tripas do que move a história por detrás da imagem, em terreno subjetivo onde o que acontece é projetado – ou não. Não é teatro filmado, é alegoria transposta, é microcosmo assinalado em realidade recriada, obtida a nós, o público, em diferentes ângulos de um mesmo cenário limitado, de poucos metros, menor que um palco teatral, mas onde absolutamente tudo pode acontecer a todos em cena – tudo o que envolve os sentimentos humanos em sua imensidão de causas e consequências. Mas William Shakespeare já fazia isso, e, antes dele, todos também! E é isso que Resnais resgata em seu novo filme: A beleza do resgate quando há algo de reconhecidamente pertinente a se resgatar. A obsessão, a desconfiança, o desprezo, a mentira e a competição já eram datados nos tempos de Otelo e Hamlet, e não é por isso que hoje não os praticamos mais; senão, ainda mais.
Uma história pessoal, tragicamente cômica e comicamente trágica entre amigos, sobre o teatro, em um teatro, filmada no cinema. Deu nó? Não vale falar de metalinguagem, é impreciso, torto, mas pode ser entre tantas abstrações um caminho para demonstrar a intimidade do Cinema com o Teatro, como um completa o outro em pretensões que simplesmente não merecem ser atribuídas a eles. Obras magníficas tal A Balada de Narayama, Noite de Estreia e Cantando por Detrás das Cortinas são herdeiros diretos da junção do berço e da evolução tecnológica da atuação humana; esse reflexo que o público tem de suas ações normais ou não, quem pode saber? A todo momento, aliás, Resnais joga peteca com um e outra, com palco e câmera, tocando o terror com personagens comuns surrealmente despreparados aos desafios e imprevistos da vida real.
O resultado é, de novo, delicioso, com uma mise-en-scène, um arranjo, um ambiente geral exemplarmente bem estruturado e ativo em cores, formas e resumos visuais de extrema importância para o entendimento da história sobre a comédia humana, a graça vital por apenas estar vivo, cercado por pessoas tão vivas e coloridas, e a chance de achar esse humor percebendo a brevidade da vida, em especial. Contudo, tal ambientação, tal norte às dependências da realidade onde o filme se encontra e acontece, é aqui, acima daquilo que compõe os cenários em filmes rasos e gigantes apenas no visual, como Avatar, os próprios atores. Os atores são o cenário, e há poucos aspectos mais nobres no Cinema ou no Teatro que isso (nos filmes de Cassavetes ou nas peças de Molière, esse respeito é recorrente). Resnais coloca meia-dúzia de sacos de defeitos ambulantes pra contracenar, num verdadeiro ping-pong sensorial à beira do overacting, do excesso, da histeria, da perda do controle emocional (a atuação geral é irretocável, mas Sabine Azéma dá um show, uma atriz extraordinária).
Muitos podem acusar Amar, Beber e Cantar de ser apelativo: é homérico a questões já analisadas no cinema de Resnais; entretanto, sem a sua elevada carga emocional, seria superficial ou não tão penoso de se aprofundar, e, com certeza, não seria a obra-prima moderna e eterna sobre as relações humanas que acaba por ser. Ambicioso e singelo na medida certa, Resnais não era, é, com honra ao mérito, um pintor, e dos mais sensíveis e malandros; perpétuo equilibrista entre o abismo sem volta da razão e emoção.