“Tudo o que era estável e sólido desmancha no ar; tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados a encarar com olhos desiludidos seu lugar no mundo e suas relações recíprocas.” – Karl Marx
O economista Thomas Piketty em seu livro O Capital no Século XXI desenvolve uma tese histórica minuciosa sobre a “natureza” intrinsecamente rentista do capital financeiro, sua valorização fictícia e suas dinâmicas de acúmulo e a distribuição do capital, demonstrando que o sistema capitalista possui uma tendência inerente de concentração de riqueza nas mãos de poucos e que, ao longo dos tempos, há um aprofundamento cada vez maior de desigualdade ao redor do mundo. O tema, caro para o diretor italiano Paolo Virzì é abordado de forma tragicômica em seu mais recente longa, Capital Humano.
Baseada no livro do crítico de cinema americano Stephen Amidon, a trama se inicia de maneira simbólica, dentro de um luxuoso salão, no qual uma equipe de limpeza trabalha arduamente para organizar a bagunça deixada após uma festa ocorrida no local. O que impulsiona a história é quando um dos trabalhadores se nega a trabalhar além de sua jornada e vai embora em sua bicicleta, no entanto é atropelado por um veículo em alta velocidade. A mensagem não poderia ser mais clara. Em um sistema como o nosso, a sujeira deixada pela classe alta atingirá as camadas mais baixas de maneira catastrófica, como bem demonstrado em A Grande Aposta, O Capital, Trabalho Interno e tantos outros.
Em decorrência do atropelamento e da falta de socorro, o trabalhador vem a óbito, e a partir deste evento núcleos de personagens se estabelecerão para a construção de um mosaico de situações. Apesar de não ser o centro do filme, o acidente será fundamental para movimentar a narrativa, unir esses núcleos e reforçar a ideia de que um simples acaso é determinante na vida de cada um de nós, algo muito bem retratado na filmografia de Woody Allen. Este mosaico estrutural é composto em quatro capítulos.
No primeiro deles, somos apresentados à figura de Dino (Fabrizio Bentivoglio), um corretor de imóveis ambicioso, prestes a ser pai pela segunda vez, que decide se lançar no mundo dos altos negócios através de um suposto fundo garantido do sogro de sua filha, o empresário Giovanni Bernaschi (Fabrizio Gifuni). Para isso utiliza sua própria casa como garantia de um empréstimo de 700 mil euros. O deslumbramento de Dino por ser parte de uma alta sociedade não o permite perceber os problemas vividos por sua família.
O segundo capítulo se desenvolve através de Carla (Valeria Bruni), esposa de Bernaschi, e certamente uma das personagens mais interessantes construídas ao longo da trama. O desconforto de Carla é perceptível em sua primeira sequência, mas não sabemos bem o motivo, já que ela se mostra apenas como alguém fútil, incapaz de uma proximidade com as pessoas que a cercam e que passa seus dias em compras pela cidade e em salões de beleza. O esmero do roteiro e do trabalho de atuação na personagem se torna evidente ao desenvolvimento do filme, no entanto o véu sobre Carla é retirado. Quando ela adentra em um teatro abandonado e completamente destroçado, entendemos suas escolhas, seu comodismo, suas abdicações e minimizações em troca de um status. Os capítulos finais se desenvolvem apresentando novos pontos de vista e amarrando pontas soltas dos capítulos interessantes, entregando um final condizente com a proposta da obra.
Um ponto interessante trabalhado em Capital Humano é sem dúvida a construção dessas personagens: todos aparentam algo que não são. É neste esfacelamento de relações, hipocrisias e de decadência moral e social que o filme tem mais a oferecer. Cru, impiedoso e realista, o longa tem uma beleza fria, e isso é expresso até mesmo pela fotografia, com quadros de pouca luz, seja em sequências internas ou externas, como também nos ambientes que os rodeiam.
Paolo Virzì entrega um longa repleto de dilemas morais, questionamentos e um crítica cheia de ironia ao sistema capitalista. As respostas para as questões levantadas estão nas entrelinhas, nas atitudes de cada personagem, nas alegrias e amarguras de cada um de nós. Afinal, quanto vale a vida?