Numa perspectiva e parâmetro mais contemporâneo (e popular), lembro de assistir como se fosse ontem ao filme Mad Max: Estrada da Fúria numa sala de cinema, em 2015, onde a extensão de toda a dimensão cinematográfica do espetáculo é verdadeiramente (re)pensada, e por nós sentida, expressa pela regularidade típica de um telão – e seu cúmplice sonoro. Me recordo ainda do impacto (um tanto até documentário, para muitos) que toda aquela ambientação desértica e árida possuída por uma imensidão de extensões masculinas brutais e motorizadas proporciona a percepção tão nossa, tão sensível àquela corrida maluca da Furiosa, e cia.
Pois bem: voltando a quase quarenta anos no tempo mundano, numa União Soviética há muito perdida, Stalker, o filme-mito de Andrei Tarkovsky, já vivia e exalava seu espaço como poucos filmes antes ou depois de sua criação já conseguiram. O mesmo pode ser dito do gigantesco (essa é a palavra para) Stromboli, no distante ano de 1950, mais atual e referencial que nunca, joia oriunda da mentalidade e perícia artísticas do nosso eterno maestro, peça-chave do neorrealismo italiano e um dos grandes estetas por trás de uma câmera: Roberto Rossellini.
Caso raro em que tudo é fruto do casamento romântico e inabalável de uma história com a sua própria dimensão; de um conto um tanto melancólico com a ambientação que o embala e o constitui; da empatia entre pegadas e o seu rumo invocativo a tudo que delas pode e (deve) ser extraído. Disso, dessa fusão harmoniosa entre O quê, e o seu Aonde, nasce um filme ironicamente contrário a fusão romântica, consciente e sintonizada entre dois corpos interessados um pelo outro frente as vicissitudes espaciais onde convivem – no caso, Karen e seu marido António, “presos” numa ilha ainda que tragicamente distantes sob o mesmo teto.
O impacto da vida na ilha de Estrômboli, ao norte da costa da Sicília, sob a constante ameaça do seu ativo vulcão de matar a tudo e todos, leva Karen a uma constante vida de escapatória e outros sentimentos destrutivos a toda relação. Aqui temos a majestosa Ingrid Bergman, uma das maiores atrizes do cinema mundial mais uma vez se entregando com toda a devoção humanamente possível ao papel difícil de uma mulher traída pelas condições de uma rotina dura, logo aos pés do vulcão mais desafiador do continente europeu, e/ou sem qualquer identificação com o próprio homem trabalhador que um dia, talvez, já tenha amado.
Stromboli na verdade é famoso não apenas pelo desempenho extraordinário de Bergman, uma diva com tudo o que pode envolver tal adjetivo, mas pelo casamento mais que fortuito que o seu trabalho com o mago Rossellini resultou em suas vidas pessoais. Além do mais, é deveras um marco em preto-e-branco (qualidade que espanta hoje o público do século XXI) especialmente ligado a matrimônios – a suas contradições análogas à sua natureza desafiadora. Já historicamente apontando, a própria relação impactante dos personagens com seu ambiente conflitante que os diminui, diante da ostentação e poderio faraônicos da natureza, culminando nas dramatizadas cenas vulcânicas, ainda hoje insuperáveis, dialoga com a recusa do rebelde Rossellini em seguir os convencionalismos artísticos de sua época, em voga até então no cinema eurocêntrico da década de cinquenta.
De posse das possibilidades de uma história com tamanha e devida conexão ao seu entorno provocativo, e tão metafórico as dimensões de um drama conjugal, e pessoal, Rossellini talha uma epifania sem-igual não apenas na comparação com a produção audiovisual de seu país, ou mesmo continente. Certamente um clássico imortal digno de inúmeras análises e paixões observacionais, Stromboli merecia um reconhecimento ainda maior por parte do grande público, voltado apenas ao mainstream publicitário de sempre. Mais que belíssimo. Um exercício mesmo da exuberância existencial que alguns filmes, apaixonados pelo potencial de eternidade que neles existem, e resistem, podem proporcionar, a todos nós.