Autor: Vortex Cultural

  • Crítica | Lady Bird: A Hora de Voar

    Crítica | Lady Bird: A Hora de Voar

    Greta Gerwig já tem história, a diretora tem no currículo diversos dramas independentes pelo movimento nova-iorquino Mumblecore e pela primeira vez decidiu assumir sozinha um longa por atrás das câmeras. Ela escreve e dirige Lady Bird: A Hora de Voar, um dos filmes mais premiados da temporada e que está concorrendo a 5 Oscar, incluindo Roteiro Original, que é de longe o maior triunfo do longa, pois Gerwig pode ou não ter feito algo autobiográfico, mas no fim das contas ela conta a história de todo mundo.

    Christine (Saoirse Ronan) não acredita em nomes dados pelos pais e mudou seu nome para Lady Bird, ela está no último ano do colégio e quer estudar numa faculdade de artes, mantém uma relação explosiva com a mãe (Laurie Metcalf) e coleciona novos amores e amizades. Sem um plot principal, Lady Bird acompanha os últimos dias da vida de colegial desta garota que passa ou pensa passar por todos os problemas do mundo, e entrelaçando todos os acontecimentos de pura dramédia tem-se diálogos belamente escritos, de realismo certeiro.

    As situações que a personagem de Ronan se mete nos faz lembrar que talvez a diretora tenha passado por tudo isso, talvez seja um sincero retrato sobre todas suas nuances naquela época, mas chega um ponto da experiência em que a ficha cai e percebe-se que o que está vendo também fala de você e de metade das pessoas que conhece. Ela escreve de si e de todas as pessoas que um dia olharam demais para si mesmas e esqueceram de olhar o próximo, todos que já falaram eu te amo para quem só se gostava, para quem já foi jovem.

    E enquanto a cineasta constrói a personalidade errante, ás vezes chata e bastante inteligente da sua personagem principal, ela não esquece de seus coadjuvantes, todos eles ganham um espaço especial na narrativa, eles têm seus problemas invisíveis e suas influências, mas a mãe de Lady Bird interpretada por Metcalf é mais do que digna de sua indicação ao Oscar, a atriz carrega um olhar triste e sempre que fala soa como mãe, soa forte e carrega na voz todos os problemas que vemos sua personagem passar.

    A relação mãe e filha é um grande tema do filme, mas ele também caminha por primeiros amores, sexo, depressão, amizade, tudo de maneira simples e ao mesmo tempo afiada, se em alguns momentos a personagem de Ronan possa parecer uma adolescente imatura, Greta dá indícios que ela não é só isso, mostra que algumas atitudes permanecem nobres mesmo que a forma que foram feitas sejam impulsivas ou ignorantes. Faz de suas personagens tridimensionais, e com isso ela consegue verdade, ainda mais com atuações tão boas, desde todo o elenco jovem até Ronan e Metcalf, bem lembradas pela Academia.

    O longa é um drama, mas também tem um ótimo timing cômico, tem situações comuns, mas acerta em fazê-las relacionáveis e bem escritas, tem uma bela fotografia, personagens cativantes e críveis, e uma relação de mãe e filha especialmente retratada, principalmente em seu terceiro ato. Carrega também uma sensibilidade essencial, pois em tempos que Gerwig é apenas a quinta mulher indicada a Melhor Direção no Oscar, ter um coming of age sobre uma garota e encabeçado por uma mulher de maneira tão apaixonada e abrangente é fundamental. Lady Bird: A Hora de Voar é uma delícia e nos faz lembrar o que é ser filho, amigo e sonhador, sem esquecer de nos mostrar quem nos faz assim.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Sub-versivo – Geovani Doratiotto

    Resenha | Sub-versivo – Geovani Doratiotto

    Sub-versivo (Poesia Maloqueirista), de Geovani Doratiotto contém pílulas de poesias entrecortadas por intervenções gráficas. Desde o início, a dedicatória “À classe operária”, dá uma dica sobre o conteúdo do livreto: manifestações poéticas e gráficas. O escritor tece uma poesia suada pelo esforço dos operários que garantem a dignidade da vida cotidiana. São versos em maioria curtos, esguios, que nos sufocam pelo dito e não dito e o próprio apelo poético, como o pão, diário.

    Tratam-se, em maioria, de poemas-protesto alternados com metapoemas que reverenciam nomes como Vladimir Maiakovski, Charles Bukowski e Fernando Pessoa, principalmente. Nos poemas curtos, reflexões sobre o dia a dia da classe operária, suas ambições, esperanças, e críticas aos instrumentos que procuram amenizar o impulso de consciência do trabalhador.

    São poemas, reflexões, lembretes, espelhos do cotidiano do trabalhador, são jogos de imagens, jogos de palavras, imagens entrecortadas, colagens de ideias, singelezas raras em poucas páginas. Pílulas para se ter a mão.

    Oxalá
    se
    Alá
    ouvir
    o grito
    dos excluídos.

    Oxalá todos os poetas tivessem o mesmo esmero e a mesma consciência. Leitura muito recomendada.

    Texto de autoria de José Fontenele.

  • Resenha | Carnaval de Meus Demônios

    Resenha | Carnaval de Meus Demônios

    Carnaval de Meus Demônios (Balão Editorial), de Guilherme Petreca é uma novela gráfica sem texto, uma história em quadrinho sem diálogos; apenas os personagens, os enquadramentos, o ambiente e o espaço vazio. Não por acaso é uma obra falante, plena de significados e recortes.

    O conto gráfico parte da figura simbólica de um menino com seu balão para o encontro com um inusitado ser onírico. O ente desconhecido funciona como uma espécie de arauto aos outros demônios que também se encontram próximos. A indefinição dos seres, do ambiente, e da própria jornada do personagem principal cria lacunas que, acredito, serão preenchidas pela experiência do leitor. As interpretações podem ser as mais variadas: será uma passagem de idade do menino? Um desafio dificílimo? Uma dívida mortal? Uma dívida sendo cobrada? Um sonho? Uma versão de universo? Uma história de amor às avessas?

    Apesar das poucas páginas, Petreca consegue desenvolver uma eficaz narrativa onde tateamos o vazio ecoante do indeterminado. Guiamo-nos apenas pelo grafismo em preto e branco que transmite beleza, sutilidade e emoção à história. Algumas formas lembram o burlesco, o circense, enquanto conferem uma pitada onírica (ou alucinógena?), ao corpo da obra. Outro ponto interessante, as máscaras que marcam a narrativa são também instrumento de inexatidão; elas conferem mais possibilidades interpretativas ao todo e nos deixam intrigados com o que escondem.

    Livro que trabalha muito bem o vazio, as páginas negras, o significado que se esconde ao redor do que é pintado. Este talvez o fascínio da história: o vácuo da reflexão. A inquietação de tentar explicar a beleza dos traços que nos acompanham.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Carnaval de Meus Demônios.

  • Resenha | Hex – Thomas Olde Heuvelt

    Resenha | Hex – Thomas Olde Heuvelt

    A minúscula Black Spring parece um lugar agradável. Natureza em abundância, crianças brincando nas ruas, contando em tons de segredos as velhas histórias que tomam conta de qualquer cidade pequena, em qualquer lugar do mundo: histórias de bêbados locais, do estilo de vida do açougueiro e quem está dormindo com quem, talvez até mesmo um detalhe apimentado de qualquer pseudo-celebridade ou pessoa de visibilidade pública. Black Spring é uma cidade rica em História, uma cidade que tem vários séculos de existência e que procura manter-se relativamente isolada de seus vizinhos, ainda que mantenha um diálogo aberto, até mesmo um festival anual para injetar um pouco de vida no comércio local; uma cidade com mais História, mitologia e personagens de notável importância do que seus visitantes poderiam imaginar.

    O que difere Black Spring de tantas outras cidades é uma herança da Caça às Bruxas: Katherine, uma horripilante bruxa de olhos e boca costurados, que vaga pela cidade a seu bel prazer, sem realmente se importar com trancas ou fechaduras. A bruxa pode, afinal, desaparecer para então surgir onde quiser, em qualquer lugar da cidade. O que seria de uma bruxa sem uma maldição? O grande mistério de Black Spring é que, se você nascer dentro de seus limites ou até mesmo passar um noite no lugar, uma pessoa jamais poderá se afastar por muito tempo: depois de dias longe da cidade, uma silenciosa depressão se instala, tão sutil e fatal que é percebida somente quando a corda já está amarrada em seu pescoço e a cadeira balançando por baixo de seus pés.

    Thomas Olde Heuvelt criou uma história de premissa interessante, com ares de um clássico contemporâneo instantâneo, um título que entrega ao livro a ilusão de que basta acrescentar água quente e esperar três minutos para consumi-lo sem moderação. Não é o caso. Apesar da interessante premissa, HEX toma rumos que, inesperados e esquivos do meio comum, falham em entregar uma trama profunda, escolhendo temas que fogem dos clichês ao trazer modernidade ao cenário até então medievalesco, mas que se tornam ralos, tão superficiais quantas tantas outras histórias de bruxa, só que com cores diferentes. HEX se inspira no contemporânea para criar um senso de relacionamento com o leitor. Como, afinal, proteger o segredo de alguns milhares de pessoas na Idade Facebookerna? Como impedir que as crianças deem com as línguas nos dentes ao invocar – 140 caracteres por vez – nas redes sociais a verdade sobre a bruxa de Black Spring, um ser com mais de quatro centenários de existência e que deve, acima de tudo, continuar com boca e olhos costurados?

    O romance nos mostra em poucos pontos de vista o cotidiano da cidade, sempre girando ao redor da bruxa enquanto procura qualquer aspecto de normalidade que consiga agarrar pelo caminho. Depois das devidas apresentações, Heulvelt logo centra a escrita ao redor de um pequeno grupo de garotos que pretendem se rebelar contra ambos, a bruxa e a própria cidade.

    Enquanto pertencer ao local começa a ganhar vapor nas páginas de HEX, o foco logo se transforma para a quebra entre gerações, para o mal que uma sociedade levada ao extremo pode cometer. HEX, então, se transforma numa história corrida, que consegue prender o leitor sem nunca realmente grudar seus olhos. Quase como se eles estivessem costurados.

    Talvez seja um problema da versão que chega para o mundo em que o Holandês não é língua comum. A versão de HEX que chega às Américas é uma reconstrução do original, onde Heulvelt muda o cenário da exótica Holando para a mistura de clichê que encontramos em um romance norte-americano. Vá na sua prateleira e puxe um livro que se passa nos Estados Unidos e que tenham sido escritos depois de 1980. Os personagens serão bem parecidos com os de HEX. É irônico que, ao tentar se aproximar de uma nova gama de leitores, o livro possa ter perdido todas as características que apelariam a eles, o público alvo.

    É uma história que perdeu a chance de ser um clássico, essa é a impressão que fica depois que a última página já ficou para trás. Ao tentar fugir do meio comum, Heuvelt lançou ao ar mais bolas do que conseguiria manejar. São tópicos interessantes e que tomam rumos que lhe farão espiar o próximo capítulo, mas que nunca entregam tudo o que prometeram ao dar as caras. De novo, é uma pena. De verdade. De quebrar o coração. Isso porque a história é interessante. Com o desenvolvimento fraco, deixa na boca o fantasma de um gosto difícil de comparar, impossível de completar. Katherine, a bruxa que amaldiçoa a cidade é uma das personagens mais sinistras da literatura, no sentido literal da palavra, já que sua presença é o presságio de páginas funestas. Ela tem todo o direito de tirar o seu sono, de agarrar os dedos de seu pé assim que eles ficarem descobertos. A boca firmemente costurada, que deixa apenas escapar um murmúrio que tornaria os campos estéreis e secaria o leite nas tetas de qualquer vaca, deveria assombrar seus próximos anos, mas não vai.

    HEX é apenas a promessa de um grande livro. Uma leitura boa, por vezes mediana, mas que tinha o potencial de fazer muita gente perder o sono. O mais engraçado é que, na tentativa de abordar temas grandiosos e que, de forma maestral, encaixariam tão bem na absurda história de Black Spring, HEX acaba com costuras feias em seu corpo, linhas pretas que prendem partes diferentes e que não deixam a história enxergar para onde deveria ir. E nem mesmo protestar por conta disso.

    Compre: Hex – Thomas Olde Heuvelt.

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube e recentemente lançou seu primeiro romance, Incursões. 

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  • Resenha | Vidas Secas – Graciliano Ramos

    Resenha | Vidas Secas – Graciliano Ramos

    Graciliano Ramos nasceu em Alagoas (1892) e viajou durante a juventude por várias cidades nordestinas, o que influenciou e se tornou a base para seus romances, assim como sua visão política, voltada para a esquerda da época, tanto que ingressou, em 1945, no PCB – Partido Comunista Brasileiro. Essas características (que dão forma para o período literário brasileiro logo após a primeira grande guerra e o final da segunda) onde se observa romances voltados à vida social brasileira, a realidade do povo, ao mesmo tempo em que se tece uma crítica à essa realidade, à essa estrutura. E Vidas Secas é um exemplo clássico desse período.

    O romance assume então características, somadas aquelas citadas, filhas de seu tempo,  de crítica social, sendo o livro um exemplo do Realismo,  também característico da época. A influência marxista transparece na obra, sendo o governo injusto (prefeitura, militares, burocracia, dono da fazenda) com um dos protagonistas, Fabiano, em diversas oportunidades, ao mesmo tempo em que se pune pela sua ignorância.

    A família vive como animais, fala pouco e com discurso limitado, muitas vezes sem saber ao certo como manter um diálogo, soltando frases, umas por cima das outras, sem se preocupar se o interlocutor entende o que está sendo dito ou não, podendo observar uma animização das personagens. Assim como a personagem Baleia, que é uma cadela, é humanizada em função disso, pois ela é tratada como um membro da família, nesse ponto há uma inversão, uma interpretação da própria vida das famílias retirantes.

    Vidas Secas é de uma escrita fluida e com uma estrutura que permite (com exceção do primeiro e último capítulos) a leitura dos capítulos em qualquer ordem e transmite certo ciclo da historia familiar, sempre em busca de um éden ao sul, com gado e uma cama de couro.

    Compre: Vidas Secas – Graciliano Ramos.

    Texto de autoria de Róbison Santos.

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  • Resenha | Piteco: Ingá

    Resenha | Piteco: Ingá

    O projeto Graphic MSP, nascido da iniciativa de seu editor, Sidney Gusman, em conjunto com Maurício de Sousa, consiste na releitura desses personagens por outros autores em uma linguagem diferente daquela habitualmente apresentada. Pode-se dizer que se trata de uma forma de captar os antigos fãs que envelheceram, propor novas formas de escrever as personagens ou mesmo proporcionar novos contextos e abordagens para figuras que já estão mais do que enraizados no imaginário nacional. Além disso, esse projeto proporcionou uma grande exposição dos artistas nacionais envolvidos no projeto.

    Dentro desta proposta uma das histórias apresentadas foi Ingá, do artista paraibano Shiko (Francisco José Couto Leite), que buscou uma releitura do Piteco, o carismático homem das cavernas de Maurício de SouSa. Além de “Ingá” o autor se destaca com outras obras como a adaptação do romance O Quinze, O Azul indiferente do Céu e Lavagem, já foi ganhador do Troféu HQ Mix e do prêmio Angelo Agostini, além de já ter participado de várias mostras nacionais e internacionais.

    “Ingá” se destaca em vários âmbitos e possibilidades, mas o primeiro deles é a contextualização e caracterização dos personagens. Piteco é um homem das cavernas muito parecido com o estereótipo padrão deste tipo de personagem – clava na mão, vestido com peles e um jeito rústico. O principal mérito do autor, ao meu ver, foi o de trazer o personagem para algo mais factível, adulto – conforme a própria proposta das graphics – e próximo da pré-história brasileira (termo polêmico esse, como existe algo antes da história? Mas deixa pra lá…). Shiko transforma Piteco, o homem das cavernas genérico, em uma espécie de participante de tribo indígena brasileira que viveu por volta de 5 mil anos a.C. fazendo com que a personagem passasse a possuir uma identidade mais plausível para um público mais velho e próximo de nossa realidade.

    Aliás, próximo da realidade do próprio autor, uma vez que a história se passa na Paraíba: o título Ingá se refere a Pedra do Ingá, monumento arqueológico repleto de arte rupestre e importante marco da arqueologia brasileira. Em outras palavras, Piteco passou a ter um lugar entalhado em nossa história. O próprio roteiro está intimamente ligado a esta arte rupestre, quase como uma livre interpretação do autor sobre o significado daqueles símbolos, uma vez que ainda não há consenso entre os estudiosos sobre esse tema. A arte complementa muito bem todo esse panorama, pois apresenta um traço mais real, menos cartunesco, fugindo da concepção de Maurício de Sousa, e apresentando uma leitura inovadora que representa muito bem a personagem.

    Outro destaque é a forma como o autor utiliza de elementos indígenas como o Arapó-Paco (representação do Curupira na história), M-Buantan (mais conhecida como Boitatá), Anhanguera, que possui vários significados, mas aqui tratado como um imenso pássaro voador, enfim, se apropriando de um conjunto de mitos para aproximar e dar mais consistência para o antigo Piteco.

    Poderia ainda ficar escrevendo por muito tempo sobre as virtudes de Piteco: Ingá, mas o melhor que posso fazer é indica-la fortemente. Certamente uma das melhores releituras de personagens de Maurício de Sousa até hoje.

    Compre: Piteco – Ingá.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Resenha | Moriarty – Anthony Horowitz

    Resenha | Moriarty – Anthony Horowitz

    Todo grande herói precisa de um antagonista à sua altura. O que seria de Sherlock Holmes sem Moriarty? Lógico que continuaria sendo um grande investigador, mas sua genialidade fica ainda mais em evidência ao enfrentar seu arqui-inimigo. O ápice desse embate, narrado em O Problema Final, ocorre nas Cataratas de Reichenbach, onde supostamente Holmes morre – mas ressurge em Londres 3 anos mais tarde, em A Volta de Sherlock Holmes. E é a partir da morte de Moriarty e Holmes que Anthony Horowitz constrói sua história.

    Depois do fatídico encontro entre Holmes e Moriarty nas cataratas de Reichenbach, um detetive da agência Pinkerton de Nova York, Frederick Chase, chega à Europa. Na aldeia de Meiringer, onde Holmes se hospedou, encontra-se por acaso com Athelney Jones – inspetor da Scotland Yard, que estuda devotamente os métodos de Holmes. Resolvem juntar forças ao investigar um novo gênio do crime, que ascendeu rapidamente após a morte do professor Moriarty. Sua busca os leva a Londres, onde esse no vilão rapidamente preencheu a lacuna deixada pelo arqui-inimigo de Holmes.

    Livros desse gênero, em geral, são escritos em terceira pessoa, principalmente pela possibilidade de oferecer ao leitor vários pontos de vista durante a história. Diferente da maioria, este é narrado em primeira pessoa por Chase. O leitor fica restrito a seu ponto de vista, mas o autor consegue contornar bem essa restrição, sem deixar a leitura cansativa. E, certamente o plot twist final não seria possível caso a narrativa fosse em terceira pessoa. Felizmente, essa reviravolta não fica parecendo um deus ex machina, já que as pistas estão espalhadas pela narrativa, bastando apenas ser um leitor mais atento e inquisitivo para desconfiar do que está por vir.

    Os personagens centrais são uma versão simplificada de Holmes e Watson. Athelney Jones, investigador da Scotland Yard, é obcecado por Holmes e suas técnicas investigativas, tentando copiá-las a todo custo. Não é um personagem de todo desconhecido do público leitor de Conan Doyle. Horowitz pegou o personagem “emprestado” do livro O Signo dos Quatro (1890), a segunda aventura de Holmes. E Chase é seu sidekick, seu Watson, é a “orelha” da história, fazendo a Jones as perguntas que o leitor faria.

    A ideia é ler sem expectativas, ou melhor, sem esperar que a aventura seja mais um Doyle. Caso o leitor compre a ideia de que a intenção do autor foi criar uma história de detetive ambientada no universo de Sherlock, com personagens que emulassem a famosa dupla da Baker Street, sem maiores pretensões, consegue ser um bom entretenimento para os que curtem literatura de mistério. A obra tem os mesmos “defeitos” das histórias de Holmes – pistas que aparentemente brotam do nada, deduções mágicas de Jones/Holmes – o que talvez irrite alguns leitores. Contudo, se o intuito era homenagear, o objetivo se cumpriu.

    Horowitz é uma espécie de especialista em ícones da cultura pop. Escreveu alguns episódios da série de TV Agatha Christie’s Poirot, do canal britânico ITV. Também é autor de duas franquias young adultAlex Rider e O Poder dos Cinco.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Extraordinário

    Crítica | Extraordinário

    O pequeno ator Jacob Tremblay já pode ser considerado um veterano em Hollywood, com apenas 11 anos de idade, já possui 21 filmes em sua carreira. O mais expressivo de todos é o ótimo O Quarto de Jack, de 2015, pois concorreu a vários prêmios da Academia, rendendo à Brie Larson a estatueta de melhor atriz daquele ano, além de diversas outras indicações e premiações.

    Não havia escolha melhor senão Tremblay para interpretar o carismático Auggie em Extraordinário, filme que adapta a obra literária homônima, de R.J. Palacio. O menino nasceu completamente deformado, o que o levou a passar por dezenas de cirurgias com a finalidade de resolver problemas de saúde, como sua respiração e audição, além de demais cirurgias plásticas corretivas. Durante sua infância, o garoto ficou dentro de casa, local que foi transformado em seu incrível mundo de imaginação. Fã alucinado de Star Wars, o personagem tem como seu melhor amigo o Wookie, Chewbacca. Vale destacar que a franquia criada por George Lucas está presente em peso durante o filme.

    A mãe de Auggie, Isabel (Julia Roberts), parou de trabalhar para que pudesse dar aulas ao filho, enquanto seu marido, Nate (Owen Wilson) trabalhava para sustentar a família. O garoto possuía tanta vergonha de sua feição, que toda vez que precisava sair de casa, usava um enorme capacete de astronauta, tanto que o dia em que o deixava mais feliz, em vez do Natal, ou do Dia de Ação de Graças, era o Halloween, porque podia sair fantasiado sem se preocupar com que as pessoas achariam de seu rosto.

    Tudo começa a mudar quando o personagem decide ir à escola e o que vemos daqui pra frente é um filme que em vez de ser pesar a mão no melodrama e repleto de trilha sonora carregada, o que temos na realidade é uma sensação de leveza, risos e diversão. Essa sensação também é causada por conta da atuação de Tremblay, que impinge carisma em tela. Auggie não é um menino depressivo, triste e em nenhum momento se vê como um coitado, isso dá o tom do longa durante a projeção.

    Obviamente, atravessamos todos os clichês que o gênero emprega, como o preconceito, o bullying de outros colegas, entre outros acontecimentos, mas Extraordinário, curiosamente, é muito mais do que isso. O longa-metragem surpreende porque não é somente um filme sobre Auggie. É um filme sobre Isabel, sobre Nate, sobre Via (Izabela Vidovic, talvez a surpresa do filme), irmã do protagonista – que possui uma bela história paralela – e sobre Daisy, a velha cachorrinha da família. Portanto, trata-se de um filme reflexivo, não só no sentido de obrigar o espectador a pensar sobre diversas coisas, mas também no sentido de como o nascimento do menino e suas atitudes refletem diretamente na família.

    Talvez o acerto seja mérito do diretor Stephen Chbosky, que possui somente três filmes em seu currículo, dentre eles, As Vantagens de Ser Invisível. Chbosky escreveu o roteiro juntamente com outros dois roteiristas, Steve Conrad (À Procura da Felicidade) e Jack Thorne, experiente em seriados. Contudo, com o perdão do trocadilho, o filme ainda que não tenha nada de extraordinário, possui grandes méritos na forma como conduz sua narrativa e não se rende a clichês do gênero.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Especial | Batman

    Especial | Batman

    Batman-Frank-Miller

    Com sua primeira história publicada em maio de 1939, em Detective Comics 27, o cruzado encapuzado viria para ser um contraponto mais soturno do Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster, no entanto, com a expansão dos quadrinhos como fenômenos cultural popular, o Morcego se tornou algo muito maior que um mero espelho do herói de Krypton, e até o superou em popularidade.

    A criação de Bob Kane e Bill Finger (comumente ignorado como criador do mito) se tornaria o personagem mais emblemático e até copiado dos últimos tempos, e apesar do Homem-Aranha ter ganhado grande fama, em especial com o público mais jovem, certamente o garoto atormentado pela morte dos pais é ainda um personagem muito influente, basta ver a quantidade de animações ou seriados baseados na marca Batman. Diversos artistas e escritores foram fundamentais para a consolidação do personagem, entre eles Frank Miller, Dennis O’Neil, Grant Morrison, Neal Adams, Alan Moore, Chuck Dixon, Doug Moench, Alan Grant, Gardner Fox e tantos outros expoentes da nona arte, cada um acrescentando um pouco a mitologia do herói misterioso, que sempre teve em seu cerne um conceito de justiça muito bem definido, cujos preceitos morais são discutíveis. Nas telas, o personagem foi vivido por Lewis G. Wilson, Robert LowreyAdam WestMichael Keaton, Val KilmerGeorge Clooney, Christian Bale, e mais recentemente, Ben Affleck. Nas animações, Kevin Conroy se consagrou como um dos grandes dubladores do personagem.

    Uma coisa é indiscutível, a marca Batman parece imortal, e por mais que o personagem que a ostente seja um dos mais vulneráveis dentro do panteão de superseres do universo DC, certamente ele é o personagem onde mais se explorou diversas nuances de suas facetas, superando até ao Superman, que segue evidentemente como símbolo de esperança, enquanto a persona real que Bruce Wayne encarna, segue como um sujeito desconfiado, sombrio e com um vazio interno, mas ainda assim como um paladino que tem seus ideais e não mede esforços para alcançá-los, ainda que munido de muito pragmatismo.

    Quadrinhos

    (1937-1940) Contos do Demônio (Grandes Clássicos DC n° 4)
    (1937-2009) Batman: 70 Anos – Parte 1
    (1937-2009) Batman: 70 Anos – Parte 2 (Os Segredos da BatCaverna)
    (1937-2009) Batman: 70 Anos – Parte 3 (Túnel do Tempo com as edições: Gotham City 1889 e Pulp Fiction)
    (1937-2009) Batman: 70 Anos – Parte 4 (As Estranhas Mortes de Batman)
    (1938) A Morte do Batman
    (1940)
     A Última História do Batman?
    (1987)
    Batman: Ano Um
    (1987) Batman: Ano Dois
    (1988) Batman: O Filho do Demônio
    (1988) Batman: O Messias
    (1988) 
    Morte em Família (Clássicos DC Comics)
    (1989) Batman: Xamã
    (1989) Um Conto de Batman: Gothic
    (1989) Asilo Arkham 
    (1990) Batman Nº 1 (Abril Jovem – 3ª série)
    (1990) Superman & Batman: Os Melhores do Mundo
    (1992) Batman Anual 4
    (1993) A Queda do Morcego
    (1994) A Morte de Batman: O Filme
    (1995) Batman: Berlin
    (1997) Robin: Dia Um
    (1998) Gordon of Gotham
    (1999) Vitória Sombria
    (1999) Batman: Guerra ao Crime
    (2002) Silêncio
    (2002) Absolvição
    (2003) Batman: Cidade Castigada
    (2006) Batman e Filho
    (2008) Batman: A Máscara da Morte
    (2009) Cacofonia
    (2009) A História do Universo DC
    (2011) Penguin: Pain and Prejudice
    (2011) Batman: Faces da Morte
    (2012) Batman: Terra Um – Volume 1
    (2012) Noite das Corujas
    (2012) Corte das Corujas
    (2012) Morte da Família
    (2013) Batman 66′
    (2014) Batman: Terra Um – Volume 2
    (2014) Lendas do Cavaleiro das Trevas: Alan Davis
    (2014) Batman 66′ – O Episódio Perdido
    (2015) Lendas do Cavaleiro das Trevas: Jim Aparo
    (2015) Gotham: DPGC – No Cumprimento do Dever
    (2015) Batman – Noel
    (2016) DC O Renascimento
    (2016) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 1
    (2016) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 2
    (2016) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 3
    (2016) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 4
    (2016)
     Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 5
    (2016) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 6
    (2017) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 7
    (2017) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 8
    (2017) Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior n° 9
    (2017) Batman: O Bóton

    Crossovers

    Batman, Hellboy e Starman
    Batman/Spirit
    Batman e Capitão América – John Byrne
    Batman x Aliens
    Batman/Planetary – Edição de Luxo

    Desenhos, Filmes e Seriados

    (1989) Batman
    (1992) Batman: O Retorno
    (1995) Batman Eternamente
    (1997) Batman & Robin
    (2005) Batman Begins
    (2008) 
    Batman: O Cavaleiro das Trevas
    (2008) 
    Batman: Os Bravos e Destemidos (seriado)
    (2009) Superman e Batman: Inimigos Públicos (animação)
    (2010) Batman Contra o Capuz Vermelho (animação)
    (2011) Batman: Ano Um  (animação)
    (2012) Batman: O Cavaleiro das Trevas – Parte 1  (animação)
    (2012) Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge
    (2014) Batman: Assalto em Arkham (animação)
    (2014) O Filho do Batman (animação)
    (2014) Gotham | Piloto, 1ª Temporada, 2ª Temporada, 3ª Temporada, 4ª Temporada, 5ª Temporada
    (2016) Batman vs Superman: A Origem da Justiça – Crítica 1, Crítica 2
    (2016) Esquadrão Suicida
    (2016) Batman: A Piada Mortal
    (2016) 
    Batman: O Retorno da Dupla Dinâmica
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    (2012) Superdeuses: A Era de Prata – Grant Morrison (Parte 2)
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    (2012) Superdeuses: A Renascença – Grant Morrison (Parte Final)
    (2016) Batman: Arkham Knight – Marv Wolfman

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    (2014 ) Batsuman: Ano Um (e dois também)

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    Batman vs Superman é um verdadeiro “épico” das referências
    Batman vs Superman: A Ilusão Definitiva
    Rebirth: O Renascimento da DC Comics – Parte 1
    Rebirth: O Renascimento da DC Comics – Parte 2
    O Cavaleiro das Trevas Dez Anos Depois
    Batman e os Videogames – Parte 1

  • Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    “A história dos negros na América é a história da América. E não é uma história bonita”. Essa é uma das frases que James Baldwin, famoso escritor americano, profere no documentário Eu Não Sou Seu Negro, de Raoul Peck. Além dessa, existem várias outras frases, citações, textos, palestras e conversas onde ele expõe de forma nua e crua as relações raciais nos EUA, com a qual podemos traçar alguns paralelos em relação ao Brasil. O difícil mesmo é escolher quais citações usar, pois a cada minuto Baldwin nos joga na cara, com uma lucidez dolorosa, a forma como os EUA foram construídos em cima de um projeto de separação racial e exploração da população negra trazida da África. E como não dá mais para ignorar isso.

    O filme Eu Não Sou Seu Negro é um projeto do cineasta (com narração de Samuel L. Jackson), utilizando como base o livro não concluído de Baldwin, Remember this House, onde o escritor iria contar a história dos EUA a partir dos assassinatos de três dos principais líderes negros da história: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, durante o movimento pelos direitos civis.

    No início e final do filme, Baldwin cita a necessidade tanto de ter saído dos EUA (com a paranoia real de a cada esquina poder ser morto por alguém), até viver em Paris por tanto tempo que passou a sentir falta dos EUA. Mas, como ele deixa claro, não dos ícones da cultura americana, como a comida ou os esportes, mas sim o seu povo. Mesmo deixando também claro que nunca se sentiu conectado com nenhum movimento em particular (Os Panteras Negras, a NAACP, ou as congregações cristãs), ele queria estar ali, circulando entre eles, observando a história acontecer. Enquanto escrevia sobre ela.

    É morto Medgar Evers.

    A todo o tempo no filme, Baldwin cita a relação e o diálogo na época com os brancos (sociedade em geral e também representantes do governo dos Kennedy) e a frustração com não só a incapacidade deles de entenderem o real problema, mas também de entender que havia um problema ali. Os brancos acreditavam firmemente que os EUA eram um projeto que deu certo, e a escravidão e violência eram um desvio de caráter, não um traço fundador do país.

    A divisão no país, entre brancos e negros, não é só econômica. Há uma barreira quase intransponível que mesmo os brancos liberais e antirracistas não conseguem ver ou mesmo entender como ela opera no seu cotidiano. Ao citar amplamente sua infância e seu início de aprendizagem e formação psicológica, Baldwin mostra, utilizando-se como exemplo, como o negro nos EUA cresce com outros referenciais de beleza, de postura, de atitude, de crenças, e de oportunidades, e como se dá o choque ao saber que tudo aquilo que lhe foi vendido, não foi feito para ele.

    É morto Malcom X.

    Discordando-se ou não de sua postura (como havia discordâncias, as vezes ferozes, mesmo dentro do movimento negro), Malcom foi um porta-voz ativo de uma mensagem que precisava ser ouvida. A da raiva acumulada por séculos, e de que o negro americano nunca foi pacífico ou que aceitou a condição que lhe foi imposta. E que agora essa raiva iria retornar na mesma medida a sociedade que lhes impôs tudo isso. E essa atitude iria custar uma repressão enorme do aparato estatal, já que o “Revolucionário branco quando se arma é aplaudido. O negro é tratado como criminoso.”

    É morto Martin Luther King.

    Toda a estrutura social, econômica, política e especialmente militar dos EUA, toda a base do “sonho americano”, foi construída em cima de uma noção de país que só serve para uma pequena minoria, que desfruta de todo essa qualidade de vida ao custo da mão-de-obra barata dos negros desde a escravidão.

    A ignorância do branco em relação a todas essas questões se reflete na discussão com o professor de filosofia de Yale, Paul Weiss, cuja frase marcante “a cor não deveria ser o foco do debate” é o típico argumento do branco, quando se é negro nos EUA ou no Brasil a principal preocupação do negro antes de tudo é sobreviver ao dia-a-dia. A ameaça de morte está em cada pessoa e em cada figura de autoridade. Todo o histórico de violência do país é o retrato dessa divisão, e o argumento principal de Baldwin é que isso tem um custo. O vazio emocional dos EUA é tão grande que se tenta preencher isso com uma avalanche de bens materiais. Cada americano, violento ou ignorante, tem uma parcela de responsabilidade enquanto não assume a situação do país. E isso se reflete na violência das instituições, da população contra si mesma, os tiroteios em massa, a paranoia com segurança e o “invasor externo”, etc, afinal “Você não pode me linchar e me manter nos guetos sem se transformar em algo monstruoso”.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | Me Chame Pelo Seu Nome

    Crítica | Me Chame Pelo Seu Nome

    Há beleza no novo, na epifania da descoberta é que nos sentimos vivos e desse curto espaço de tempo que o próprio tempo se revela um inimigo. Me Chame Pelo Seu Nome fala disso, fala do novo e também da experiência, do tempo e de distância, temáticas brotam como um romance de verão no novo longa do italiano Luca Guadagnino, ovacionado em festivais do mundo todo desde o início de 2017 o filme é simples como seus temas e tão profundo e sensível quanto, soa como poesia e resgata o valor de se contar uma história de amor.

    Elio – interpretado brilhantemente por Timothée Chalamet – está passando as férias de verão de 1983 no norte da Itália com seus pais, até um dos alunos do seu pai, sete anos mais velho, chegar para semanas de estudos na casa, interpretado por Armie Hammer, o recém-chegado Oliver desperta em Elio desejo e admiração, fazendo com que os dois se conheçam aos poucos envoltos numa rotina calma e calorosa. Sem três atos pontualmente divididos, o filme passa bom tempo mostrando as investidas silenciosas dos dois rapazes entre jogos de vôlei, passeios de bicicleta e leituras a beira de piscinas, a atração deles é construída a passos lentos e está longe de ser puramente física, os dois se provocam culturalmente em cenas belíssimas, e é nesse começo longo e rotineiro que Guadagnino nos fazer perceber que Me Chame Pelo Seu Nome não está enraizado em padrões, fórmulas ou filtros.

    Entre essas cenas uma história coming of age vai brotando entrelaçada ao romance eminente, acompanhamos um Elio maduro e talentoso, mas que ao mesmo tempo se julga não saber das coisas que importam, ele lê, faz a barba, reflete grandes questões, explora sua bissexualidade – sensivelmente trabalhada na narrativa, algo raro de se ver no cinema –, experimenta seus sentidos, e seu intérprete Chalamet não deixa de ser impecável, o jovem ator entende seu Elio nos mais sinceros olhares e gestos, transmite os desejos e anseios de seu personagem em movimentos travados e ferventes, o Elio de Timothée é palpável e a atuação masculina mais sensível do último ano. Hammer também faz do seu Oliver um personagem de olhares, e é um deleite acompanhar todos os escudos do mesmo serem desmanchados ao decorrer da história, mostrando brechas de um Oliver desconsertado e inseguro em milésimos de cena, um trabalho muito bem feito, mas nada maior do que ver os dois juntos em tela, é como pegar fogo, a química é tão forte quanto ambígua, é calmaria e sensualidade caminhando de mãos dadas. Os beijos são cheios de paixão, os toques são fortes, sente-se os dois atores entregues a história e a seus personagens, o que faz do longa um filme tão verdadeiro.

    O diretor sabe muito bem criar essa atmosfera crível, um dos motivos de algumas cenas tratarem tão bem de certo erotismo e sensualidade é a escolha dele em dar grande destaque aos sons, a trilha musical desaparece e dá lugar a sons de respiração, um personagem engolindo seco, o roçar da pele na roupa, o suspiro de prazer, o som de pele tocando na pele, os sons das árvores lá fora… o diretor encabeça uma deliciosa atmosfera sonora durante todo o longa, que também se destaca pela inspirada trilha musical, principalmente as canções performadas por Sufjan Stevens, umas das melhores músicas originais em anos. A cinematografia é baseada em composições inspiradas e entrega imagens significativas, tanto quando enquadra os dois personagens principais, quando observa de longe em longos planos, tanto quando caminha por paisagens e olhares.

    O final do filme traz um monólogo magnífico nas palavras de Michael Stuhlbarg na pele do pai do Elio, que deve ser lembrado ainda por muitos anos, por ser muito bem escrito e por concretizar o longa como um filme único, ele mais uma vez se mostra muito mais do que aparenta, novas temáticas desabrocham e é difícil não se relacionar. O longa é bonito em todas as significâncias da palavra, consegue ser simples e natural como a rotina enquanto conta a história de um amor gigante, conta a história do novo, da descoberta e da experiência, ousa em mostrar da forma mais crível possível o tiro certeiro do nosso inimigo tempo, ou a falta de dele, ou o que não fizemos dele. Me Chame Pelo Seu Nome é altamente sensível e já nasce importante, desabrocha no coração de uma geração sem amarras, como “filme queer” representa muitos, mas quando fala de ser humano, de amor, fala de todo mundo.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Condado de Essex

    Resenha | Condado de Essex

    Cada pessoa tem uma forma de se lembrar, muitas das vezes mítica, fantasiosa, sobre o lugar em que nasceu e cresceu. É impressionante como nos lembramos de famílias, pessoas e eventos que, quanto mais distantes do ponto de vista do tempo, mais vivas e interessantes elas se parecem. Isso é Condado de Essex, de Jeff Lemire, uma verdadeira biografia sobre o espírito do local em que o autor passou a sua infância e tudo aquilo que isso representa para ele.

    Condado de Essex pode ser, de forma muito simples, ser tratado como um conjunto de Histórias que se interlaçam e tem como foco o local de nascimento de todas elas, ou seja, o Condado de Essex, no Canadá. Porém, essa pretensa simplicidade em nada representa a HQ, que se mostra grandiosa em execução e também nos resultados que ela atinge.

    São muitas as suas virtudes e as maneiras de enxergar essa história, vou buscar apresentar algumas que mais me chamaram a atenção. O primeiro ponto é a simplicidade e conexão que os personagens realizam com o leitor. Você acredita em todos eles, nas suas vidas, nos seus problemas, nos erros que cometeram, nos eventuais acertos e nos traumas que carregam. E a forma como a vida deles é contata é sensacional, com leveza, sem sobressaltos ou mesmo grandes reviravoltas, tudo dentro de uma sensibilidade que a vida daqueles personagens pedia.

    Outra importante questão seria a abordagem cultural que o autor coloca nestes quadrinhos. Eu já tinha conhecimento do que o Hóquei representa para os canadenses, podendo ser considerado como o mais famoso esporte do país (algo parecido com o nosso futebol aqui), mas ao ler a história você passa a entender melhor sobre essa paixão nacional e como ela se relaciona com a localidade em termos específicos. Você aprende com o que está lendo e também entende melhor sobre um povo (eu adoro todo tipo de esporte, até jogo de bolinha de gude na TV eu assisto, e após a leitura passei a ter um olhar mais carinhoso para o time de Hóquei do Toronto Maple Leafs, uma vez que não tinha nenhuma preferência na NHL).

    Outro grande valor é a própria estrutura narrativa, a qual foi dividida em grandes arcos que se interligam, as vezes de forma direta outras por compartilhar o local dos eventos. E toda a narrativa se dá de acordo com o olhar dos personagens, não se trata de um narrador que tudo vê e nos conta, mas sim de uma perspectiva bastante humana, demonstrando como cada uma daquelas pessoas percebe e sente o que ocorreu. O quadrinho foi lançado em 2008 lá fora, mas parece ser uma das obras mais maduras e ricas de Jeff Lemire, chegando por aqui apenas em 2017 pela Editora Mino, que um ano antes havia publicado o excelente O Soldador Subaquático, também de Lemire.

    E a grande questão persiste: por que eu me interessaria por uma História sobre o Canadá? Como algo tão distante pode dialogar comigo e com a minha realidade? Ao ler a história você se sente como na sua própria infância e adolescência, ao se lembrar de famílias tradicionais, fofocas locais, aquele craque da cidade que nunca vingou e as várias personalidades que compõe qualquer cidade, principalmente as de pequeno porte.

    Não se intimidem pelo numero de páginas ou mesmo pelo preço, trata- se de uma HQ que merece ser lida e compartilhada. Não apenas leia, mas empreste, divulgue, e apresente para outros que gostem de uma boa leitura.

    Compre: Condado de Essex.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Crítica | Além da Morte

    Crítica | Além da Morte

    Courtney (Ellen Page) é uma estudante de medicina interessada em experiências de quase morte. Auxiliada por quatro colegas, tem seu coração parado depois revivido. Relutantes a principio, os demais resolvem passar pela mesma experiência, após testemunhar os efeitos iniciais desse “desligamento” temporário – aumento nas capacidades intelectuais, memória mais apurada, intuição aguçada, euforia, entre outras coisas. Ray (Diego Luna) é o único que não embarca na onda. Mas esses não são os únicos efeitos. O experimento parece tê-los deixado suscetíveis a visões, flashes de acontecimentos passados que começam a atormentá-los.

    Com roteiro de Ben Ripley e direção de Niels Arden Oplev, o filme é um remake de outro homônimo (no idioma original; no Brasil ganhou o título de Linha Mortal), lançado em 1990. E consegue ser tão ou até mais “esquecível” que o outro. A presença de Kiefer Sutherland – Dr. Barry Wolfson, orientador dos estudantes, na versão de 2017; Nelson Wright, um dos estudantes, na versão dirigida por Joel Schumacher – faz um link entre as duas versões. Mas é uma referência que pouco ou nada acrescenta à narrativa, é apenas uma curiosidade, algo que apenas quem assistiu o primeiro filme numa Sessão da Tarde irá perceber.

    Há coisas mal amarradas e mal explicadas na história. Por exemplo, equipamentos de última geração, funcionando em perfeito estado, aparentemente “abandonados” no subsolo de um dos prédios do hospital-escola. A premissa da história é boa, o que não garante que o filme também o seja. O roteiro opta por soluções pouco criativas, sendo previsível a maior parte do tempo. Tem-se a impressão de que o roteirista queria mostrar que o que os personagens fazem não é certo e que eles devem pagar de alguma forma por isso. É como se corrigir seus erros e expurgar os traumas os redimisse de brincar de deus. Mas por que após a quase morte os estudantes passam a ser “perseguidos” por traumas do passado? Em nenhum momento, o roteiro fornece qualquer pista a respeito. Para as demais reações, há até um esboço de explicação. Porém não há referência a essa reação negativa que, afinal, acaba sendo a fosse motriz da narrativa.

    A primeira parte vai bem, enquanto o espectador cada um dos estudantes que passa pela experiência de quase morte e as respectivas reações. Na segunda parte, em que se misturam essa busca pela redenção e um terror mal planejado, a narrativa se torna bastante inconsistente ao tentar assustar o espectador com sustos banais e previsíveis. Mesmo quando ocorre uma tragédia, é tão óbvio o que iria acontecer que perde todo o impacto dramático.

    E a construção dos personagens não contribui. São todos bem estereotipados e, por isso, mesmo pouco cativantes. Há a mocinha aplicada, assombrada pela morte da irmã caçula, Courtney; o playboy inconsequente, Jamie (James Norton); a riquinha fútil, Marlo (Nina Dobrev); a CDF submissa à mãe, Sophia (Kiersey Clemons); e o rapaz menos favorecido, com menos oportunidades que seus colegas, Ray. Os atores são competentes, mas os personagens são tão bidimensionais que é difícil o espectador se importar com o destino de cada um.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Castelo de Vidro

    Crítica | O Castelo de Vidro

    Você já teve a oportunidade de assistir o filme Short Term 12? Se não, assista, é um filme de 2013 lindamente escrito e dirigido por Destin Daniel Cretton e entrega uma atuação de Brie Larson superior até do que sua atuação em O Quarto de Jack, que a rendeu o Oscar. Os dois, Destin e Brie, refizeram a parceria no ano passado em O Castelo de Vidro e o resultado não poderia ter sido mais decepcionante.

    O filme é baseado no livro escrito por Jeannette Walls (personagem de Larson) e conta sua história real (pode ser encontrado aqui ou aqui). Revezando entre o início da década de 90 e flashbacks de sua infância, acompanhamos Jeannette, suas duas irmãs e um irmão e a relação com seus pais nômades e disfuncionais, a mãe é uma artista frustrada e o pai, grande centro da história, é um alcoólatra.

    O longa é mais do que qualquer coisa um filme confuso, enquanto a temática vai se revelando cada vez mais pesada e complexa, o longa faz questão de ir jogando panos quentes e evitando que determinadas vertentes não sejam tão aprofundadas ou tenham o espaço suficiente para serem notadas pelos olhos mais desatentos. Rex, o pai da família e interpretado por Woody Harrelson, é um personagem detestável e esse é o maior gás do filme, são as ações controversas desse pai de família que fazem a história de Jeannette tão interessante, e o próprio ator entendeu isso muito bem e entrega uma das suas maiores atuações da carreira, mas isso acaba sendo invisibilizado pelo melodrama barato que o diretor injeta nessa problemática.

    A mãe, que é interpretada por Naomi Watts, não chega nem a ser de fato uma personagem, ela está sempre nos fundos, reagindo ás coisas e soando cada vez mais caricata, até a maquiagem feita em Watts para lhe fazer parecer mais velha é caricata. O trabalho da atriz é o pior de sua carreira e não que isso seja total culpa sua, é clara a falta de interesse que o roteiro tem em tridimensionar a personagem, assim como outros personagens e temas. Ela só não fica atrás do noivo de Jeannete, que além de ser outro personagem caricato, é sem personalidade e protagoniza as cenas mais vergonhosas e desinteressantes do longa.

    Assim como Harrelson, a protagonista também entendeu sua personagem mais do que o diretor e entrega bons momentos, mas absurdamente prejudicada pela direção não inspirada de Destin. Direção essa que faz bem em retratar várias fases do espírito norte-americano, é notável o objetivo do cineasta em recriar ideais norte-americanos através das décadas, ainda mais quando se fala em polaridade, mas ele falha quando vai contar a história de seus personagens.

    O Castelo de Vidro entretém, pode se relacionar com muitos filhos e pais e até emocionar, mas é o tipo de filme que precisava de um olhar minucioso e responsável, não que o filme não possa ser inspirador ou “bonito”, mas que faça isso de forma coerente, não é te forçando a gostar de um personagem que você acabou de ver deixar os filhos três dias sem comida, ainda mais sem dar mais camadas a ele. Faltou coragem e uma mão firme para contar essa história, o final tenta triunfar ao falar sobre perdão e legado, mas sabe-se que nada disso funciona quando o caminho até ali não foi bem construído. Então repito, se quer ver um bom filme, que trate de temas complexos, perdão e família, deixe este filme de lado e dê uma chance a Short Term 12.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | O Touro Ferdinando

    Crítica | O Touro Ferdinando

    Mesmo as histórias menos complexas revelam aspectos diferentes cada vez que são contadas. Seja pelo contexto em que se vive durante a leitura ou pelo gênero e mídias com as quais é narrada. Assim também ocorre com o clássico infantil The Story of Ferdinand, criado em 1936 por Munro Leaf e ilustrado por Robert Lawson.

    O livro foi inicialmente publicado nos Estados Unidos ­– não em terras espanholas, lugar das famosas touradas e onde fascistas perceberam na história algo prejudicial para a ideologia que devastou o país com uma guerra civil e anos de ditadura. É impressionante como a simplicidade foi ameaçadora: por meio de um discurso pacifista, a fábula de um touro que se recusa a mostrar sua agressividade nas arenas da ficção foi capaz de incomodar os militantes políticos mais autoritários.

    Em 1938 se tornou um clássico da Disney, numa curta animação colorida e barulhenta que reconta o livrinho originalmente composto por frases breves e ilustrações em preto e branco. Também fez parte de um conjunto de animações infantis utilizadas para criticar subjetivamente as políticas que dominavam a conservadora conjuntura europeia naquele momento.

    No livro, Ferdinando é protagonista retratado em duas cores como um tourinho que prefere o cheiro das flores e o sossego do campo a ter que duelar com outros touros. Colorido pela Disney, ele fica até mais atrapalhado, dotado de uma sensibilidade incompatível com o perfil dos valentões.

    E agora, tendo sua apresentação muito enriquecida em tecnologia pela Blue Sky Studios, O Touro Ferdinando, de Carlos Saldanha, é caracterizado de um jeito ainda mais cômico, estabelecendo uma relação de profunda amizade com uma família de humanos e esforçando-se para que outros animais se libertem das amarras de um pensamento individualista que cedo ou tarde pode levar à própria extinção.

    O Ferdinando de 2018 faz muitos amigos: uma menina que cresce junto com ele; um cachorro sério demais para ser cachorro; uma cabra simpática, carente e tagarela como a Dory; touros atrapalhados e valentões, mas que escondem seus sentimentos; e os porcos-espinhos ladrõezinhos que realizam furtivamente as suas façanhas. Ou seja: a diversidade é o principal traço a ser exaltado nessa trama – o que certamente mantém aquela vocação para confrontar o conservadorismo desde os anos 30.

    A trilha sonora é contagiante e as dublagens até que são boas. Mas o que deixa um pouco a desejar é o perfil extremamente infantil com que se desenvolve, sem aquela capacidade de fazer com que também os adultos passem mais tempo entretidos, como no consagrado A Era do Gelo – também produzido por Saldanha. O resultado final é uma obra feita para crianças, com pouquíssima complexidade até mesmo nos trocadilhos. Porém ainda assim, dá para se dizer que seria merecido um espaço na disputa pelo Óscar.

    Texto de autoria de André Luiz Cavanha.

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  • Crítica | Detroit em Rebelião

    Crítica | Detroit em Rebelião

    Kathryn Bigelow é especialista em criar tensão, seus últimos dois filmes foram destaque – também – por essa característica, Guerra ao Terror a rendeu o primeiro Oscar de melhor direção para uma mulher, além de ganhar melhor filme, e também foi extremamente feliz com seu filme seguinte, A Hora Mais Escura. A diretora segue essa vertente de guerra em seu novo filme, Detroit em Rebelião, e mais uma vez constrói muito bem momentos de tensão, mas infelizmente, só momentos.

    Iniciado com uma incomum animação explicando os eventos que o longa retratará, Detroit em Rebelião, que conta com o roteiro de Mark Boal, retrata is conflitos ocorridos em solo americano em 1967 entre a população negra e a polícia, especificamente em um motel de Detroit, onde em uma noite uma equipe de policiais torturaram física e psicologicamente um grupo homens negros e duas garotas brancas, em busca de uma arma.

    Dividido em claros três atos, o segundo é o mais funcional e livre de deslizes, o primeiro tenta dar um plano de fundo para o conflito e alguns personagens, mas acaba sendo extenso demais e ás vezes até entediante, as imagens são fortes e os embates entre os dois lados da “guerra” são bem filmados, mas nada que prenda a atenção e corre muito risco de perder o espectador ali. O segundo, o micro do conflito, os acontecimentos do motel, fisgam o interesse finalmente, a característica câmera na mão de Bigelow é muito bem-vinda e as atuações são tão fortes quanto pede a narrativa. A dinâmica dentro do motel, apesar do espaço limitado, não fica cansativa e os desdobramentos de algumas decisões dos policiais são essenciais para atiçar a curiosidade acerca de como a história terminará.

    Apesar de boas interpretações, o longa não fica livre de um desequilíbrio de personagens, algumas vítimas no motel não tem espaço necessário para se criar algum vínculo, um policial soa caricato em momentos que não pareciam propícios e vários deles, como o personagem de Anthony Mackie, são esquecidos pelo próprio filme depois que o longa adentra teu terceiro ato, esse que é morno, sem impacto e decepcionante, principalmente por desperdiçar a discussão de vários assuntos e não escancarar problemáticas.

    O trabalho de Bigelow aqui é nobre e em vários momentos soa promissor, mas não só de momentos se vive uma narrativa. Detroit em Rebelião se perde em seus três atos muito diferentes entre si e por conta disso parece se importar mais com um do que com outros, seja com os próprios atos ou com os próprios personagens.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Resenha | Interrompidos – Alê Motta

    Resenha | Interrompidos – Alê Motta

    A capa árida de Interrompidos (Editora Reformatório), da escritora Alê Motta, denuncia a natureza seca e severa que permeiam os microcontos do livro. Histórias ásperas, estranhas, surpreendentes, irrompem em frases curtas e precisas. O leitor é tomado de assalto pelo inusitado ou por não esperar tanta intensidade em pequenos relatos, mas eis o impacto dos textos bem escritos: nocaute.

    O objetivo dos contos é desenvolver um contexto e um conflito a partir do mínimo de palavras possíveis. O autor, portanto, deve trabalhar com o descritivo que pode ser escrito e as imagens de sugestão sob as entrelinhas ou espaços em branco da história. Logo, o escritor tem que ter habilidade para escrever apenas o essencial e, com isso, o leitor conseguir montar todo o quadro desenvolvido pela história curta. É um ofício que exige concisão e precisão.

    Quando é bem executado, como é o caso do livro em questão, o resultado são nocautes literários (mais ainda que os referidos a Julio Cortázar sobre a teoria do conto). Some isso ao fato de Motta preferir histórias marcantes e assustadoras, e você vai começar a deduzir que o “Interrompidos” na capa, também tem a ver com facas, cortes, lâminas que transpassam com uma ação rápida e potente o marasmo literário do leitor.

    Destaque também para as fotos que acompanham os contos. Em preto e branco, a autora busca captar o movimento das paisagens esquecidas, uma casa de barro, uma trilha de pedra entre árvores outonais, um cemitério, muros, árvores, o desconcerto dos vazios, fotografias que completam a trama afiada do livro. As imagens também contam histórias; talvez os cenários dos microcontos? Ou trata-se do real pelo real, sem filtro colorido e sem maquiagem?

    Por fim, apesar de um livro composto por pequenos contos, Interrompidos, é para se ler aproveitando a densidade que as histórias encerram; violência, terror, estranhamento, mas também relações amorosas, familiares, e humor (negro, algumas vezes). Em adicional, é livro que pode ser usado por outros escritores como referência ou professores de Literatura buscando bibliografia para esse gênero literário. Leitura mais do que recomendada.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Interrompidos – Alê Motta.

  • Crítica | A Vida de Brian

    Crítica | A Vida de Brian

    O nonsense, enquanto categoria de humor, foi reinventado pelo Monty Python. A Vida de Brian (1979, no original inglês Life of Brian), escrito por  Graham ChapmanJohn Cleese, Eric IdleTerry JonesTerry Gilliam e Michael Palin, com direção também de Terry Jones, é outro filme da companhia britânica que explora o inusitado, o absurdo, o sem sentido, enquanto conta a trajetória de um galileu. Contudo, ao invés de contar o martírio de Jesus, acompanhamos a trajetória de Brian, um cidadão da Galileia que nasceu na mesma data e horário do Filho de Deus.

    Para que este texto (ou o filme) não seja mal interpretado como uma sátira da religião alheia, transcrevo algumas frases de Eric Idle, um dos Pythons, sobre qualquer tentativa de associar o filme a ridicularizarão cristã. “Ele (Jesus) não é particularmente engraçado. O que ele diz não é motivo de piada, são coisas muito apropriadas”. Dito isso, o longa conta a odisseia de como o vendedor de quitutes do “Coliseum da Galileia” se tornou líder religioso e foi crucificado.

    O filme é uma sequência de situações cômicas (sketches) da vida do personagem principal e daqueles que orbitam ao redor dele. Dessa forma, temos múltiplos dramas explorados. Logo no começo somos apresentados à Frente de Libertação da Galileia, um movimento popular que deseja chutar os romanos para fora da cidade, ao qual Brian se alia por ódio aos colonizadores. Os romanos, por sua vez, são liderados por César, um imperador com problemas para pronunciar certas consoantes (e de entender trocadilhos nos nomes).

    Combatendo pela Frente de Libertação, Brian resolve se disfarçar como profeta para passar despercebido pelos romanos. O estratagema dá certo, mas as massas começam a suspeitar que mesmo aquele palavreado incoerente guarda algum tipo de salvação. Não demora muito para que ele angarie seguidores e se torne o novo Messias da Galileia. A escalada dos eventos discute como as pessoas, muitas vezes com liberdade cerceada e carentes de líderes representativos, por vezes aguarda um salvador, mas este é apenas uma farsa (nesse caso, uma comédia).

    Brian e sua mãe começam a ser cultuados como milagreiros e libertadores com uma fila de alienados seguindo-os. Ele esquece o objetivo principal (acabar com os romanos), e começa a sofrer as consequências por ter sido o líder das multidões. O que foge à explicação, cabe ao nonsense. Piadas certeiras, humor com trejeitos impecáveis, e uma diversidade de personagens, que, mesmo com os atores principais da companhia se revezando entre dezenas deles, têm, cada um, um toque de vivacidade impressionante.

    Nonsense é um gênero que divide facilmente o público. Ou você gosta ou não, não têm muitas pessoas no meio termo. Enquanto expectadores ficam se perguntando o motivo da situação absurda ou do desfecho ilógico da sketch, o apreciador do gênero se delicia com o inesperado rumo das ações. As situações ficam colossalmente inusitadas (ou ridículas) e qualquer tentativa de encontrar lógica naufraga frente o humor despropositado e sem sentido. A lógica é não ter qualquer lógica.

    Curiosamente, o longa foi filmado na Tunísia, onde tinham acabado de gravar Star Wars: Uma Nova Esperança, de George Lucas, e Jesus de Nazaré, de Franco Zeffirelli, onde inclusive vieram a utilizar o resto de figurino e cenário do filme de Zeffirelli. A Vida de Brian contou ainda como principal financiador o beatle George Harrison, grande fã da companhia, que veio a investir 4 milhões de dólares na produção, o que veio a render um pequeno easter egg no final do filme, onde o cantor de Always Look on The Bright Side of Life fala bem baixo “Eu contei pra ele, eu disse ‘Bernie, eles nunca terão esse dinheiro de volta’”.

    Por fim, o longa apresenta o humor no estilo mais primitivo, irônico, inusitado, ilógico, e algumas vezes até ingênuo, que possa imaginar. Simplesmente uma obra-prima do nonsense.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    https://www.youtube.com/watch?v=Z6tzMvbbkzQ

  • Resenha | As Mentiras Que as Mulheres Contam – Luis Fernando Veríssimo

    Resenha | As Mentiras Que as Mulheres Contam – Luis Fernando Veríssimo

    As crônicas de Luis Fernando Veríssimo, em As Mentiras Que as Mulheres Contam (Editora Objetiva), transporta as situações-problemas-cotidianas de um dos seus livros mais famosos, a saber As Mentiras Que os Homens Contam (compre aqui), ao sexo feminino. O resultado é aquilo que o autor sabe fazer melhor: análise da vida privada com aquele toque de humor, ironia e até certas doses de estranhamento. Tudo conforme essa quimera que atende por cotidiano.

    O riso nunca é a finalidade da crônica, contudo o hilário sempre perpassa por esse estilo de texto. A explicação para esse fenômeno talvez resida no principal objeto de prazer desse gênero literário: o cotidiano desenfreado. Ao se ater às situações-problema do dia-a-dia nos mais diferentes níveis de classes sociais, a crônica isola cenas, reais ou não, do comportamento humano e desenvolve-as de uma forma inusitada, mas sem perder o toque de verossimilhança que lhe é característica.

    Resultam das cenas diárias, principalmente as captadas na longeva carreira de cronista de Veríssimo, situações irracionais que beiram o estranhamento e incitam o riso. A chave para se alcançar isso está nas corretas doses de ironia e até simplicidade que abundam nos textos. Cito a simplicidade não por conta das frases curtas, objetivas e certeiras escritas pelo autor, mas pela escalada dos acontecimentos.

    As crônicas começam ingênuas, pueris, como uma conversa de bar onde um garçom com tempo sobrando ou feito às amizades, puxa um papo despretensioso e você, talvez sem reação, ouve. Daí em diante, o autor, gradualmente, aumenta a intensidade da situação até beirar o absurdo. O mérito do escritor reside aí: na facilidade de transmitir o inusitado cotidiano.

    Em As Mentiras Que As Mulheres Contam temos flertes despropositados, amores mal resolvidos, amores bem-resolvidos, traições, aniversários e aniversariantes, paixão, sexo, o impacto da diferença de idade entre os sexos, mães, pais, surpresas, gastronomia, filhas, cunhadas, desentendimentos, etc, tudo simpaticamente bem feito. Aliás, ler cada crônica desperta sempre alguma simpatia, como se fosse algo próximo de nós.

    Leitura mais do que recomendada, Veríssimo é um dos maiores expoentes da crônica brasileira. Um exímio analista dos tipos que fazem o cotidiano nacional e, sobretudo, um mestre em contar boas e deliciosas histórias.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: As Mentiras Que As Mulheres Contam.

  • Crítica | Fanny e Alexander

    Crítica | Fanny e Alexander

    “Sobre a frágil base da realidade a imaginação tece sua teia e desenha novas formas, novos destinos”.

    Revisitar Ingmar Bergman é e sempre será uma experiência única de redescobertas. Contemplar o trabalho de um artista que debruçou-se em seus mais recônditos medos e aspirações é um trabalho árduo, principalmente se o filme em questão se trata de Fanny e Alexander – provavelmente seu trabalho mais “biográfico”. Na obra em questão, encontraremos condensado tudo aquilo que elevou o cineasta ao patamar de um dos maiores diretores de todos os tempos e tudo pelo qual ele sempre buscou abordar em sua carreira.

    Ambientado no início do Século XX, depois de um prazeroso Natal, a família Ekdahl se vê abalada com a morte de um de um ente querido, o membro que acaba falecendo tratasse do pai de duas crianças – Fanny e Alexander – e é esse acontecimento que desencadeará todo o desenrolar dos fatos subsequentes. Emilie (Ewa Fröling) a mãe do casal de crianças, logo após a morte de seu marido, acaba se casando com um homem extremamente religioso e rígido chamado Edvard Vergérus (Jan Malmsjö).

    Ao mudar-se junto das crianças para sua nova morada, Emilie e seus filhos acabam sendo acometidos por vários problemas que vão surgindo aos poucos. Além das ditatoriais condições impostas pelo novo patriarca, Alexander começa à presenciar e ver espíritos e fantasmas que assolam a moradia. A partir desses intempestivos eventos o trio acaba iniciando uma saga para retornar ao seu antigo lar.

    Em grande parte da história somos guiados principalmente pelo olhar de Alexander perante os fatos, personagem esse que acaba assumindo um suposto alter ego infanto-juvenil do diretor sueco, fator que fica evidente quando observamos acentuados na narrativa dois aspectos marcantes: os temas metafísicos vividos pelo garoto e uma forte doutrinação religiosa familiar, questões que sempre foram muito significativas e recorrentes na vida de Bergman como o próprio diretor já deixou claro em entrevistas e documentários.

    Além de uma minuciosa e detalhista produção, um grande ponto forte que salta aos olhos é a preciosa fotografia regida por Sven Nykvist – parceiro de longa data do cineasta -, que inclusive acabou sendo laureado com um Oscar pelo trabalho. A inocência do casal de crianças posta à prova há todo momento, assume em determinados instantes uma metáfora de transição sobre o amadurecimento humano. Narrativamente falando, a proposta dos muitos símbolos e personagens sobrenaturais utilizados  de maneira tão crua, segue uma lógica dentro do enredo que propõe e acentua as incertezas e intempéries cotidianas que várias vezes fogem de nossa compreensão, soando por vezes ilógicas. Tal solução e sua representação, acaba acrescentando o elemento do “fantástico” na trama como algo natural e ao mesmo tempo crucial, uma característica bastante conhecida pelo grande público através dos tão difundidos contos e livros de Shakespeare – outra clara inspiração do filme.

    Se em Alexander temos configurado a espinha dorsal dos acontecimentos, na personagem de Fanny encontramos uma personalidade que contrapõe à de seu irmão e que é  marcada por uma ternura  quase angelical, cadenciando com isso a forte relação entre ambos. Cenicamente a obra é muito fidedigna, reconstituindo de forma precisa a época onde se dão os eventos e que de maneira homogenia, se equilibra entre figurinos esteticamente belos e cenários ambientados de forma deslumbrante.

    Flertando com lúdico e o real o tempo todo, Bergman compõe um filme extremamente intenso e poético que se sustenta em grande parte por uma narrativa fluída de diálogos inspirados e uma identidade visual  artística pautada na linguagem teatral.

    Fanny e Alexander é uma obra coesa, que assimila exemplarmente técnica e conteúdo e que não sendo histriônica, expõe de maneira muito interessante um diálogo entre questões religiosas e sobre a liberdade individual.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

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  • Crítica | Senhores do Crime

    Crítica | Senhores do Crime

    Com roteiro de Steven Knight, esta é mais uma parceria de David Cronenberg e Viggo Mortensen que, a exemplo de Marcas da Violência, deu certo. Tanto a direção de Cronenberg como a atuação de Mortensen estão impecáveis. Uma ótima explanação sobre como construir uma narrativa concisa e estruturar um personagem excepcionalmente crível. É perceptível a evolução de ambos, em comparação ao anterior.

    Assim como Marcas da Violência, o filme se inicia com cenas fortes, perturbadoras. Mal tendo tempo se ajeitar na poltrona, o espectador assiste a um acerto de contas bastante sangrento em uma barbearia e a um parto – igualmente trágico – de uma adolescente que morre ao dar à luz. As sequências dão início às duas linhas narrativas da trama: uma vingança familiar envolvendo a máfia russa de Londres e o destino de uma jovem imigrante sob a proteção de um clã, cuja trajetória será revelada aos poucos através da tradução de seu diário.

    A crueza e a violência não são gratuitas. A direção segura de Cronenberg não deixa que descambe para a banalidade. Apesar de o espectador saber desde o início que a trama envolve a versão russa da Cosa Nostra ou da Yakuza, a Vory v Zakone, fica difícil categorizar o longa-metragem. Os detalhes da estória e do caráter de cada personagem são revelados aos poucos, causando certa inquietação enquanto assistimos. Não há como prever o que virá a seguir.

    O estranhamento causado pelos temas escolhidos para seus filmes se encontra presente, não tão explícito, mas mesmo assim inconfundível. Percebe-se, pelas gargantas cortadas, pelos dedos decepados, pelas peles tatuadas, a obsessão orgânica do diretor, tão evidente em Gêmeos: Mórbida Semelhança, de 1988. Mas aqui está contrabalançada por outras questões não menos vigorosas. Destaque para a solidão sistemática dos personagens centrais: o filho psicopata marginalizado (Vincent Cassel), a parteira em busca de respostas (Naomi Watts), o motorista enigmático (Viggo Mortensen), a jovem prostituta sem esperanças (Sarah-Jeanne Labrosse).

    Mortensen mais uma vez se transforma. A interpretação concisa e contida é hipnótica. Nitidamente dedicado à mesma técnica de caracterização que Robert De Niro, Marlon Brando e Al Pacino, veste o personagem como se fosse uma segunda pele. “O diabo está nos detalhes”. As tatuagens, o sotaque, os maneirismos parecem pertencer a ele, não ao personagem.

    Armin Mueller-Stahl, Watts e Cassel também estão muito bem em seus papéis. O personagem de Mueller-Stahl, Semyon, chega a lembrar um pouco Don Corleone. Como se não bastasse, a trama é envolvente, a fotografia é primorosa – vide a nítida diferença entre os ambientes da Vory e de Anna. E a trilha sonora – sensatamente silenciada em alguns momentos – é bastante competente.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.