Crítica | O Touro Ferdinando

Mesmo as histórias menos complexas revelam aspectos diferentes cada vez que são contadas. Seja pelo contexto em que se vive durante a leitura ou pelo gênero e mídias com as quais é narrada. Assim também ocorre com o clássico infantil The Story of Ferdinand, criado em 1936 por Munro Leaf e ilustrado por Robert Lawson.

O livro foi inicialmente publicado nos Estados Unidos ­– não em terras espanholas, lugar das famosas touradas e onde fascistas perceberam na história algo prejudicial para a ideologia que devastou o país com uma guerra civil e anos de ditadura. É impressionante como a simplicidade foi ameaçadora: por meio de um discurso pacifista, a fábula de um touro que se recusa a mostrar sua agressividade nas arenas da ficção foi capaz de incomodar os militantes políticos mais autoritários.

Em 1938 se tornou um clássico da Disney, numa curta animação colorida e barulhenta que reconta o livrinho originalmente composto por frases breves e ilustrações em preto e branco. Também fez parte de um conjunto de animações infantis utilizadas para criticar subjetivamente as políticas que dominavam a conservadora conjuntura europeia naquele momento.

No livro, Ferdinando é protagonista retratado em duas cores como um tourinho que prefere o cheiro das flores e o sossego do campo a ter que duelar com outros touros. Colorido pela Disney, ele fica até mais atrapalhado, dotado de uma sensibilidade incompatível com o perfil dos valentões.

E agora, tendo sua apresentação muito enriquecida em tecnologia pela Blue Sky Studios, O Touro Ferdinando, de Carlos Saldanha, é caracterizado de um jeito ainda mais cômico, estabelecendo uma relação de profunda amizade com uma família de humanos e esforçando-se para que outros animais se libertem das amarras de um pensamento individualista que cedo ou tarde pode levar à própria extinção.

O Ferdinando de 2018 faz muitos amigos: uma menina que cresce junto com ele; um cachorro sério demais para ser cachorro; uma cabra simpática, carente e tagarela como a Dory; touros atrapalhados e valentões, mas que escondem seus sentimentos; e os porcos-espinhos ladrõezinhos que realizam furtivamente as suas façanhas. Ou seja: a diversidade é o principal traço a ser exaltado nessa trama – o que certamente mantém aquela vocação para confrontar o conservadorismo desde os anos 30.

A trilha sonora é contagiante e as dublagens até que são boas. Mas o que deixa um pouco a desejar é o perfil extremamente infantil com que se desenvolve, sem aquela capacidade de fazer com que também os adultos passem mais tempo entretidos, como no consagrado A Era do Gelo – também produzido por Saldanha. O resultado final é uma obra feita para crianças, com pouquíssima complexidade até mesmo nos trocadilhos. Porém ainda assim, dá para se dizer que seria merecido um espaço na disputa pelo Óscar.

Texto de autoria de André Luiz Cavanha.

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