De vez em quando nos cai em mãos um livro com uma premissa interessante, muito criativa e, ao mesmo tempo, tão, tão simples que é impossível não se perguntar “Como ninguém tinha pensado nisso antes?”. Guerra do Velho, de John Scalzi, é assim. Ao pegar o livro e ler a frase na 4ª capa, nossa primeira reação é: “Uót? Como assim?!”. Mas é isso mesmo. Aos 75 anos, idosos são recrutados pelas FCD (Forças de Defesa Coloniais) – uma espécie de exército interestelar – que os deixa em condições de lutar, tanto para conquistar novos territórios (leia-se “planetas”) como para defender as colônias já existentes.
“Eu odeio este lugar. Odeio que a mulher que viveu comigo durante 42 anos esteja morta, que em um minuto, numa manhã de sábado, ela estivesse na cozinha misturando massa dae waffle em uma tigela e me contando sobre a briga na reunião do conselho da biblioteca na noite anterior e, no minuto seguinte, estivesse no chão, contorcendo-se enquanto o derrame partia seu cérebro ao meio. Odeio o fato de suas últimas palavras terem sido: ‘Onde eu botei a porcaria da baunilha?’.” (pag.15)
John Perry, o protagonista, ao completar 75 anos, se alista, assim como tantos outros. Era para ter se alistado junto com Kathy, sua esposa. Porém, ela faleceu em decorrência de um AVC e ele parte sozinho para essa nova etapa de sua vida. Lógico que nada é de graça. Para serem rejuvenescidos e estarem em condições de “ir à guerra”, os que se alistam assinam um contrato de dois anos de serviços à FCD (extensíveis a 10 anos em caso de guerra) e passam a ser considerados mortos na Terra, abrindo mão de todos seus bens. A forma como os futuros soldados são rejuvenescidos é um mistério. Aliás, quase tudo o que envolve as FCD é um mistério para quem está na Terra. Não há qualquer informação sobre sua forma de atuação, seu nível tecnológico ou como obtêm as tecnologias utilizadas. Enfim, ninguém sabe “quem são, o que comem, como se reproduzem”.
Não pense você leitor que usei o humor de forma gratuita na frase acima. O livro é narrado em primeira pessoa por Perry. E o narrador tem um humor bem sarcástico, o que garante algumas boas gargalhadas durante a leitura. É possível afirmar que a obra é um “crossover” entre Tropas estelares (de Robert A. Heinlein) e Perdido em Marte (de Andy Weir). Há toda a temática envolvendo o treinamento dos futuros soldados, de Tropas estelares, somada ao sarcasmo do narrador, como no livro de Weir. Perry pode não ser um cientista tão nerd quando Mark Whatney, mas os comentários ácidos, muitas vezes politicamente incorretos, o poder de observação e a capacidade de pensar fora da caixa para resolver problemas são bastante semelhantes. Além disso, o fato de o narrador ser uma pessoa de 75 anos bem vividos, experiente e maduro dá uma perspectiva interessante sobre essa nova situação que ele e seus colegas septuagenários vivenciam.
“Mas, por fim, vocês devem se importar porque são velhos o bastante para saber que devem. Esse é um dos motivos pelos quais as FCD selecionam idosos para se tornarem soldados. Não é porque vocês todos estão aposentados e são um peso para a economia. É também porque vocês viveram o bastante para saber que há mais na vida do que a própria vida.” (pag.169)
O próprio autor afirmou que escreveu pensando no livro de Heinlein. Guerra do Velho não dá tanta ênfase à discussão sobre a ideologia militarista. Mas não deixa de falar a respeito. Há algumas boas discussões sobre a necessidade da existência dos militares, da própria FCD. E mesmo sobre a necessidade de entrar em guerra com os habitantes de outros planetas, do porquê de se ter como premissa que as outras civilizações são a priori inimigas dos humanos, do motivo de as FCD preferirem usar armas em vez de diplomacia.
“— Malditas pessoas de carne e osso, ficando no caminhos dos ideais pacíficos — eu disse.” (pag.212)
A porção sci-fi da história também não deixa a desejar. Boas ideias, bem factíveis tendo em vista o nível da tecnologia atual. A melhor sacada é a forma como rejuvenescem os recrutas. Soltei um palavrão (em tom de elogio, lógico) ao descobrir, junto com o narrador, o que iria acontecer. É, com certeza, um dos melhores capítulos do livro. E o que é mais interessante, totalmente compatível com o conhecimento científico que temos hoje. Não é magia, nem um salto de fé. É ciência. E o mesmo se aplica à concepção das armas, naves e raças alienígenas.
É preciso destacar que Perry é um mestre na arte de segurar o leitor imerso na história. A narrativa é tão envolvente que, arrisco dizer, mesmo quem não é leitor assíduo de ficção científica se delicia com a narrativa. Indubitavelmente, é uma leitura difícil de largar. Mas engana-se quem pensa que o autor consegue isso colocando um “gancho” a cada final de capítulo. Nada disso. Há “ganchos”? Lógico. E nem poderia ser diferente. Como todo bom contador de histórias sabe, criar suspense é imprescindível para tornar a história interessante. Mas Perry consegue isso com um texto conciso, limpo, sem firulas. Vale agradecer ao tradutor, Petê Rissati, por manter a qualidade da voz narrativa. Uma constante nos comentários de quem já leu é que começar a leitura significa ler 50, 60 páginas sem perceber o tempo passar. O texto flui tão bem, o narrador conduz a história com tanta habilidade que mesmo nos trechos mais introspectivos, filosóficos até, o ritmo da narrativa se mantém.
Se há algo que se possa chamar de defeito, é o fato de ser o primeiro livro de uma série. É possível lê-lo sem o compromisso de continuar? Sim, certamente. Mas há tanto a ser descoberto no universo criado por Scalzi, que é difícil se separar dos personagens. Queremos mais 🙂
A Disney é tão enorme que precisa de um evento nos mesmos moldes das Comic Cons para anunciar novidades e imagens exclusivas de seus mais aguardados projetos.
Felizmente, o terceiro filme dos Vingadores, intitulado de Guerra Infinita, promete ser o maior filme da história do cinema, não só pela quantidade absurda de heróis (todos aqueles que já apareceram até então), mas também por ser um ambicioso projeto trazido pela Marvel.
O painel do filme contou com o presidente Kevin Feige e o co-diretor, Joe Russo, que conseguiu reunir no palco ninguém mais, ninguém menos que os Vingadores, Robert Downey Jr., Chris Hemsworth, Mark Ruffalo, Paul Bettany, Elizabeth Olsen, Don Cheadle, Anthony Mackie, Tom Holland, Benedict Cumberbatch, Chadwick, Boseman, Sebastian Stan, os Guardiões da Galáxia, Karen Gillan, Dave Bautista, Pom Klementieff e o vilão, Josh Brolin.
O trailer foi exibido somente para o público presente no salão e foi fantástico. Confira a descrição.
De início, vemos um momento de tensão, onde os Guardiões da Galáxia, a bordo da Milano, esbarram no corpo inconsciente de Thor (com o uniforme de gladiador de Thor: Ragnarok). Ao ser trazido para dentro da nave, o asgardiano é acordado por Mantis. Assustado, Thor pergunta quem são aquelas pessoas.
As imagens passam a mostrar a Terra com vários trechos de devastação. Vemos um Loki nada amistoso em posse do Tesseract e Peter Parker, num ônibus, tendo os pelos do braço sendo arrepiados, o que, aparentemente, é o seu sentido de aranha.
Vemos Thanos pela primeira vez em um planeta alienígena usando a Manopla do Infinito e ele consegue soltar parte de uma lua provocando uma chuva de meteoros. Doutor Estranho, Guardiões da Galáxia e o Homem de Ferro estão na batalha.
Também vemos em outras imagens o Homem-Aranha vestindo um novo uniforme, o Pantera Negra em Wakanda, alguns Vingadores, juntos do Hulk, apanhando dos asseclas de Thanos e também um Capitão América barbudo e uma Viúva Negra loira.
Vale destacar que as filmagens do corte principal do filme se encerraram na última sexta-feira e a produção da continuação ainda sem título já teve início de imediato.
Vingadores: Guerra Infinita estreia em 4 de maio de 2018.
Atenção: este review contem spoiler de toda a série. Siga por sua conta e risco.
OZ tem importância histórica para o momento atual da Era de Ouro da televisão norte-americana. Criada por Tom Fontana em 1997, foi uma das primeiras séries originais da HBO ao lado de Sex And The City, de 1998, a serem concebidas de forma autoral, onde o criador e roteirista tinham mais liberdade criativa. As duas ganharam prêmios relevantes e tiveram o reconhecimento da crítica suficiente para encorajar o canal a cabo a continuar o investimento que permitiu produzir The Sopranos em 1999.
A série acompanha a rotina na Penitenciária Estadual nova-iorquina Oswald de Segurança máxima Level 4, mais conhecida como OZ, mostrando a convivência entre os presos de diversas facções e diferentes entre si.
Claustrofobia, essa é a sensação de assistir a série. O tema central é um só: o aprisionamento do ser humano e todas as discussões levantadas ao longo dos 56 episódios giram em torno do encarceramento do homem na sociedade. O tema é desenvolvido sob diversos ângulos, como também outros temas como a fé e a falta dela; os estupros constantes e a sexualidade; o tráfico de drogas, o poder e vício gerados; e o maior deles, a reabilitação social do preso.
A narrativa da série é tão densa que sentiu a necessidade de recorrer a um narrador, Augustus Hill, que se dirige à câmera e aparece no início, final de cada episódio, além de flashes no meio. No início ele aborda o tema do episódio, no final faz uma conclusão, e sempre que um preso novo chega à OZ ele lê a sua ficha criminal, como também ocasionalmente lê a ficha de outros que estão lá há tempos.
Augustus Hill, um dos personagens mais icônicos de OZ
As digressões da série feitas pelo narrador
A primeira temporada da série se inicia com a inauguração do projeto experimental Emerald City, cujo objetivo é forçar uma convivência entre os grupos dos mais variados possíveis para que sua reabilitação futura na sociedade seja menos traumática. A rotina da série mostra os presos criando ou mantendo seus grupos de influência e competindo pelo poder.
Os personagens e núcleos principais também se consolidam aqui. A irmandade ariana liderada por Vern Shillinger que odeia os negros encabeçados por Jefferson Keane e Simon Adebisi, que tem diferenças com os muçulmanos ministrados por Kareem Said e se chocam com os mafiosos italianos de Nino Schibetta. Neste meio, os latinos de Miguel Alvarez e o irlandês Ryan O’Reily, além dos quatro personagens mais icônicos da série que não pertencem a grupo nenhum, os veteranos Busmalis e Rebadow, o cadeirante Augustus Hill e Tobias Beecher. O outro lado da prisão é o corpo administrativo, o diretor Leo Glynn permite que Tim McManus crie Emerald City, ele conta com a ajuda da guarda Diane Whittlesey, a freira e psiquiatra Irmã Pete Marie, o padre Ray Mukada, além da médica Gloria Nathan e as aparições esporádicas do governador James Devlin.
Jefferson Keane é executado pelo estado no meio da temporada e Nino Schibetta morre após comer vidro esmagado que O’Reily e Adebisi colocaram na sua comida, provando que em OZ não deve-se apegar a nenhum personagem, e termina com uma rebelião após os grupos antagônicos se reunirem contra a administração de OZ.
Kareem Said, interpretado por Eamonn Walker, o melhor personagem de OZ
Na segunda temporada vemos os desdobramento da rebelião que fechou Emerald City e causou a morte de dois guardas e seis presos. Ela se inicia uma investigação da corregedoria que não chega a nenhuma conclusão com provas. 10 meses depois Emerald City é reaberta e inicia na série os projetos sociais que marcam cada temporada. Nesta segunda, McManus cria um projeto de aula para os detentos. Poeta, um viciado em heroína, se inscreve no programa e com a ajuda de Kareem Said publica as suas poesias, conseguindo a condicional. Porém, ele volta à OZ após matar um dos traficantes. Ryan O’Reily é diagnosticado com câncer de mama pela Dra Glória e se apaixona por ela, ele pede para seu irmão Cyril matar o marido de Glória e Cyril acaba indo para OZ.
Novos personagens aparecem nesta temporada além de Cyril O’Reily; Chris Keller, aliado de Vern, seduz Beecher e quebra suas costelas; Shirley Bellinger como a nova presa do corredor da morte; El Cid como o líder dos latinos; o guarda Eugene Rivera que é atacado por Miguel Alvarez e acaba cego; Peter Schibetta, filho de Nino, assume a máfia, porém após se envolver em uma briga com Adebisi, Peter é estuprado e perde a liderança dos italianos para outro recém chegado Antonio Nappa. Uma característica desta temporada é a inserção do aspecto espiritual na série com a chegada de Jara. Ele se torna um xamã para Adebisi, fazendo com que ele se reconecte com a sua origem africana, até que Jara é morto e Simon se sente à deriva.
Na terceira temporada, um novo programa social é implementado pela irmã Peter Marie, encontros entre vítimas e agressores. Novos personagens entram na série, como o guarda Clayton Hughes, filho de um antigo amigo de Glynn que morreu no seu lado. Clayton investiga a morte do pai e aos poucos vai ficando louco até tentar matar o governador em um evento e acabar preso, provocando o fechamento de Emerald City. Outro personagem importante é o novo guarda Sean Murphy, antigo amigo de McManus, que organiza um campeonato de boxe como forma de aliviar a tensão dos detentos. Cyril decide participar e Ryan vai dopando seus adversários até que na última luta Cyril acidentalmente mata o favorito Hamid Khan.
Enquanto isso, Adebisi ainda à deriva rouba uma agulha infectada de HIV e fere Antonio Nappa, provocando a sua transferência de Emerald City para a ala dos aidéticos, fazendo com que Chuck Pancamo vire o novo líder dos italianos. Mais um personagem marcante da terceira temporada é Claire Howell, a guarda de OZ que usa o seu poder para explorar sexualmente primeiro McMannus e depois os presos, especial Ryan O’Riley.
J.K. Simmons como Vern Schillinger
A quarta temporada é marcada por ser a mais longa da série com o dobro de episódios e foi dividida em duas partes. Na primeira, Emerald City é reaberta e Diane se muda para Londres, já que Edie Falco havia se comprometido com The Sopranos. O principal evento da primeira parte é a vinda de um novo diretor para Emerald City, Martin Querns, para o lugar de Tim McMannus, o que é bem visto aos olhos dos presos pois ele é negro. Querns quer baixar o nível de violência do local e para isso libera o tráfico de drogas.
As novas políticas de Querns causam mudanças radicais nas relações com os guardas, pois o novo diretor transfere todos os não negros de Emerald City, transformando o local no reino de Adebisi. O final da primeira parte da temporada é coroada pela morte de Adebisi por Said, que tentava ajudar a controlar a situação e evitar uma nova rebelião.
Na segunda parte, Querns é demitido e McMannus retorna. Um caso curioso é a droga experimental que faz com que alguns presos aceitem tomar em troca da pena reduzida e que causa a morte de alguns deles. A dinâmica entre Beacher e Vern fica ainda mais tensa quando eles tentam acertar as contas e um mata o filho do outro. Outra morte da temporada é a de Clayton Hughes, que perde a sanidade por completo e é esfaqueado por um colega de solitária quando tentava matar Glynn e morre em seus braços, assim como o pai.
Um novo personagem é introduzido, Burr Reading, veterano da Guerra do Vietnã. Ele assume o tráfico de drogas ao liderar os negros e acaba alterando a relação com os italianos e os latinos para mais conflituosa. O Reverendo Jeremiah Cloutier também chega a OZ e altera o realismo da série, iniciado por Jara, ao influenciar os protestantes na sua jornada contra o catolicismo. Outro personagem curioso é o viciado Omar White, que é o elemento caótico que causa sérias alterações. Por último, o membro do IRA, o irlandês Padriac Connelly que coloca uma bomba em Emerald City no último episódio provocando a sua evacuação.
Chris Keller e Tobias Beecher e a sua relação de amor e ódio
A quinta temporada marca retornos e ironias à OZ. A mãe de Ryan começa a fazer trabalho voluntário na prisão, a ex-esposa de McMannus se transforma na nova assessora do governador em Oswald e Chris Keller, que havia sido transferido na temporada passada, volta para o corredor da morte. Um novo programa social se inicia, o treinamento de cão-guia para cegos, o que transforma a relação de Miguel Alvarez com Eugene Rivera.
As ironias continuam. McMannus pede ajuda de Said para reabilitar Omar White, mas falha todas as vezes até que ele vai no show de variedades e passa a não usar mais drogas. O bilhete premiado da loteria de Rebadow, que havia pedido ao guarda Dave Brass comprar e ele some, fez com que o seu neto morresse devido a um tratamento caro. E a maior ironia de todas é a morte de Augustus, o narrador da série, após se livrar do vício das drogas ele vai defender Burr Reading do ataque dos italianos e é esfaqueado.
A abertura da série que muda a cada temporada com as novas cenas
A sexta temporada tem novos narradores, todos que morreram na própria prisão, como Jeferson Keane, Shirley Bellinger, os filhos de Schillinger, Antonio Nappa e até Dino Ortolani. Para salientar, McMannus coloca um labirinto da meditação na quadra de basquete, o que permite a diversos detentos refletir sobre os seus problemas. Para salientar, um novo personagem é introduzido, o pantera negra Jahfree Neema, que traz mais questionamentos do que soluções na nova dinâmica da prisão.
Outro programa social permite a interação entre os presos, a encenação de MacBeth. Beecher consegue a condicional, mas volta à OZ traído por Keller, Ryan deixa de entrar com recursos no tribunal para Cyril morrer, pois não vê mais solução. Robson, um dos arianos mais fortes do grupo, tem a sua gengiva trocada pela de um negro, promovendo a sua expulsão da irmandade ariana e fazendo com que ele virasse a puta de outro detento.
O alívio cômico de OZ através da dupla Busmalis e Rebadow
E a sexta temporada promove uma série de mortes que visa a dar um final para cada personagem, algumas não tão satisfatórias. Pancamo mata Peter Schibetta, Said morre por conta de um repórter louco, este depois mata Omar também, o pai de Beecher é esfaqueado por uma puta de Schillinger que queria subir de hierarquia, Morales é morto pela enfermeira serial killer Carol, que deixa um rastro de outras mortes na enfermaria, Cyril é executado pelo estado, e na encenação de MacBeth, Beecher mata Vern após Keller trocar as facas, o próprio Keller mata diversos arianos com um pó químico entregue numa carta, depois Keller se suicida na frente de Beecher, e o próprio diretor Leo Glynn, que investigava a morte suspeita de um prefeito amigo do governador, é morto a mando do governador como queima de arquivo.
E como não poderia ser diferente, OZ termina por causa de uma evacuação geral da prisão. Após a morte de Glynn, Querns volta como o novo diretor, e, alertado pela Dra Glória do pó químico usado para matar os arianos, todos vão embora e assim o ciclo se fecha pois a rotina daqueles presos terminou.
Os irmãos Ryan e Cyril O’Reily
Por se tratar de uma série de rotina, similar a The Sopranos e Mad Men, é difícil encontrar uma linearidade de tema em OZ. A partir da terceira temporada passa a existir temas marcantes, mas ainda não arcos centrais, os episódios iniciam e terminam em si, promovendo uma narrativa híbrida tanto episódica quanto contínua.
A rotina da prisão opta por não mostrar a vida dos personagens principais fora da penitenciária, nem os poucos presos que conseguiram sair e depois voltaram. As cenas externas são sempre com algum filtro de cores aleatórias, geralmente usado em cinema para as cenas de sonhos, para mostrar os crimes cometidos por cada preso que os levaram para lá, elas servem também em sua maioria das vezes para introduzir novos personagens. O que importa na série é a visão daqueles presos, e, para eles, a sociedade é um sonho distante.
Outra característica que reforça o aprisionamento ao espectador é a noção do tempo. Não existe o desenvolvimento narrativo linear de cenas encadeadas entre si ou até mesmo uma unidade temporal. Ao longo das seis temporadas quando há alguma conspiração sendo tramada na cena seguinte já acontece o fato que levaria alguns dias ou semanas, como por ex a morte do marido da Glória por Cyril O’Reily, planejada na cena anterior por seu irmão Ryan.
Simon Adebisi
Mais uma particularidade da reclusão é o número limitado de locações. Todos os 56 episódios se passam em poucos locais, como Emerald City, Unidade B, Corredor da Morte, Solitária, Academia, Hospital e nas salas do diretor Leo Glynn, de Tim McMannus e da Irmã Pete Marie.
Ao lado do roteiro denso e a direção que traz uma boa mise-en-scène, a atuação é o grande forte de OZ. Eamonn Walker interpreta Kareem Said, o líder dos muçulmanos e o melhor personagem da série; Lee Targersen dá vida ao ótimo Tobias Beecher; o excelente J.K. Simmons como o líder dos arianos Vern Schillinger; Christopher Meloni é o bom Chris Keller; Harold Perrineau é o cadeirante e narrador Augustus Hill; Adwale Akinnuoye-Agjabe é o imponente Simon Adebisi; o canastrão David Zayas como o novo líder dos latinos Enrique Morales; Michael Wright é o caótico viciado Omar White; Luna Lauren Velez como a Dra Gloria Nathan; Ernie Hudson como o diretor Leo Glynn; a sempre ótima Edie Falco na pele da guarda Diane Whittlesey; Rita Moreno interpreta a boa personagem Irmã Pete Marie; Terry Kinney é Tim McMannus; o limitado Chuck Zito é Chuck Pancamo; Scott William Winters como Cyril O’Riley; Kirk Acevedo é Miguel Alvarez; BD Wong é o Padre Mukada; Luke Perry como o pastor Jemeriah Cloutier; Anthony Chrisolm como o veterano Burr Reading; Peter Francis James é o pantera negra Jahfree Neema; R.E Rogers como o caótico ariano Robson; Craig MuMs Grant é o Poeta; Tony Musante o mafioso italiano Nino Schibetta; Luís Guzman como o líder latino El Cid; e George Morfogen e Tom Mardirosian dão vida à dupla hilária Bob Rebadow e Agamemnon Busmalis. A pior menção é Dean Winters, o ator mais limitado do elenco que interpreta um dos melhores personagens, Ryan O’Reiley.
OZ merece ser vista pelo valor histórico, além de ser densa, trata de diversos temas sociais que pode vir a interessar diversos públicos adultos.
Joaquim é um filme escrito e dirigido por Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus; Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo) que acompanha Joaquim José da Silva Xavier antes da inconfidência mineira. Mostra os motivos e acontecimentos que gradualmente o conscientizaram e fizeram se interessar pelas questões político-sociais da nação.
Joaquim (Júlio Machado) é tenente em uma fazenda do interior de Minas Gerais, cuja função é lidar com os contrabandistas de ouro que tem rotas pela floresta da região, junto com os companheiros de trabalho Januário (Rômulo Braga), Matias (Nuno Lopes) e outros. Os interesses iniciais de todos se baseiam em subir de posto na hierarquia. Passando-se no Brasil do século XVIII, o local logicamente apresenta escravos, entre eles dois que Joaquim apresenta certo afeto. João (Welket Bungué) e Preta (Isabél Zuaa); com o primeiro o companheirismo, e com a segunda o que pode ser percebido como uma relação amorosa (é necessário estar ciente da realidade étnica em que essas relações se desenvolvem, Joaquim branco e os outros dois negros). Preta demanda que Joaquim a compre de seu dono, abusador e superior do futuro Tiradentes, mas ao perceber que ele não vai conseguir tão logo, ela decide fugir. Isso e os desejos da coroa portuguesa fazem Joaquim e seu grupo, juntos do indígena Inhambupé (Karay Rya Pua), desbravarem territórios inexplorados em busca de ouro e Preta.
Machado não constrói um personagem comum. Age de forma bruta e prática, exatamente como alguém com suas vivências faria. Apresenta ambição, que é o principal ponto de seu arco narrativo. Já Zuaa atinge profundamente tanto Joaquim como o público, ainda que com uma participação pequena como uma personagem intensa e consciente de sua posição social. A personagem de Preta pode, inclusive, ser percebida como inspiração para Tiradentes. Os Quilombos foram, afinal, as principais e manifestações contra a coroa portuguesa. E é nisso que Joaquim mais acerta. Ao compor a realidade e personalidades de forma que as valorize. Outro exemplo disso se dá comunicação entre João e Inhambupé em uma poderosa cena musical; há a criação em tela de um Brasil multicultural, plural em sua realidade.
Marcelo Gomes trabalha para por em tela uma estética naturalista. A escolha acarreta em uma profunda imersão. A câmera na mão pelo interior de Minas Gerais, luz natural do sol ou lampiões, cores envelhecidas, roupas e ambientes sujos, conversas breves e cotidianas. Tudo se alinha e imprime um verossímil conceito de século XVII que se mantém pelas duas horas. Nessa coerência há uma quebra pelo terço final da obra, pois o ritmo é a narrativa tomam uma identidade súbita e apressada que não dialoga de forma orgânica com o resto do filme.
Antes de ser um mártir, Joaquim era um homem quebrado e cheio de defeitos, desejos. Marcelo Gomes humaniza a figura heroica de Tiradentes em prol da universalização. Joaquim se torna, então, qualquer um no cotidiano da realidade brasileira dominada pela coroa portuguesa. Uma nação de diferentes grupos sociais, diferentes interesses, mas se não são da aristocracia, ainda são o povo, e nele se mantém o local da gênese de conscientização política. Uma evolução que se faz enquanto em um emaranhado de relações de opressão complexas que perduram até o século XXI.
Filmes de estréia podem marcar a carreira de um diretor, mostrando seus maneirismos, alguma temática que ele tem preferência por abordar e até mesmo a estética que ele irá desenvolver ao longo dos anos, e muitas vezes esse mesmo filme de estreia pode não mostrar nada disso na carreira de um realizador.
Lançado simultaneamente nos cinemas americanos e digitalmente pela Amazon e Itunes Store, The Eyes of My Mother, filme de estreia de Nicolas Pesce, traça um poema de terror em preto e branco sobre a vida de Francisca, filha de uma cirurgiã portuguesa vivendo no interior dos Estados Unidos. Inspirado em clássicos do gênero como Psicose, Desafio do Além e Repulsa ao Sexo, o diretor centra todo o peso da trama em cima da atriz Kika Magalhães, que interpreta a personagem Francisca, entregando uma atuação pontual e convincente como uma psicopata, mas ao mesmo tempo trabalhando a ambivalência humana da personagem. São expressivos os momentos em que o contraste aparece pautado no medo da personagem em confrontar uma vida de solidão.
Apesar das claras influências aos filmes citados, o longa quase recusa o uso de cenas gore ou de violência explícita dentro de suas passagens mais marcantes assim como nas viradas da trama, deixando que as lacunas sejam preenchidas pela imaginação do próprio espectador. De fato, essa é a joia na edição e decupagem do longa de Pesce. A fotografia preta e branca é sem dúvida manipulada com maestria por Zach Kuperstein (também seu longa de estreia), existindo momentos em que um simples tom de cinza mais próximo do branco causa um incômodo por trabalhar em função da narrativa, e ao mesmo tempo alguns enquadramentos em cenas noturnas são tão belamente iluminados que é difícil pensar que a mesma ideia já foi feita em outrora.
Apesar de tudo isso o filme sofre de parecer muito pequeno em certos momentos, te fazendo pensar que aquela personagem poderia ter recebido mais tempo de tela pelo constante silêncio, mas por outro lado os poucos e pequenos diálogos de Francisca murmurando pensamentos em português são os mais assustadores e os que parecem mais distanciar a pessoa do monstro que vemos em tela.
Eu me sinto mais que curioso agora para aguardar o novo longa do diretor e quem sabe descobrir o que The Eyes of My Mother vai dizer sobre a carreira de Nicolas Pesce. Parece promissor.
Julie Delpy, queridinha francesa de todo ser-humano que teve o prazer de assistir a trilogia Before, assume mais uma vez a direção de uma comédia romântica, dessa vez com Lolo: O Filho da Minha Namorada (Lolo), também escrito por ela e que soa até um pouco autobiográfico nos primeiros minutos, mas depois disso, a coisa desanda…
Julie também protagoniza o filme, ela é Violette, uma produtora de eventos de moda que está solteira há muitos anos e decide passar férias com as amigas no sul da França, onde encontra Jean (Dany Boon), uma espécie de “caipira” que trabalha com computadores. Quando os dois começam um romance em Paris, o filho de Violette que dá nome ao filme e é interpretador por um Vincent Lacoste bem blasé, passa a infernizar a vida do novo namorado da mãe.
Lolo: O Filho da Minha Namorada é praticamente o que seu plot faz parecer, um filme sessão da tarde, mas com alguns temas um pouco mais novela das 19h. A personagem de Vincent é um garoto mimado e que faz tudo o que um vilão das 19h faria, até certo ponto isso funciona, mas logo fica excessivo, repetitivo e se torna o principal obstáculo para a narrativa se desenvolver, pois se o começo do primeiro ato entrega uma comédia rápida e afiada, levantando as expectativas quanto ao tom e ritmo do filme, as façanhas de Lolo faz a produção frear um pouco a cada sequência.
E não é só a narrativa que perde um pouco do fôlego, as personagens também, e a mais prejudicada é a própria Julie que durante as cenas com suas amigas parecia confortável e engraçada, acaba ficando apagada e só serve para reagir a cada trama que acontece entre seu filho e seu namorado. O texto dela é bom em alguns diálogos, mas logo tudo fica monótono e as risadas vão ficando menos frequentes, dando espaço para um tom dramático que paira sobre o fim do filme.
E esse é o maior problema do longa, quando o espectador e as próprias personagens tomam consciência do quanto os acontecimentos da última hora de filme não são tão cômicas assim, o roteiro descarta consequências críveis e as resoluções soam rasas e irresponsáveis, e quando digo irresponsável, é diretamente voltado a como o longa trata de maneira simplória a condição de Lolo, ou seja, o drama ganha espaço, mas de forma equivocada.
A produção escrita, dirigida e estrelada por Delpy tem um certo charme, tem momentos engraçados e que encaixam bem numa tarde de domingo no sofá, tem críticas sutis e bem colocadas sobre o ego que sobrevoa os artistas da cena francesa, mas peca ao estender demais seus acontecimentos episódicos e ao não saber lidar com o “menos é mais”, além de acabar indo para um caminho sem volta perto da sua conclusão, fazendo com que, infelizmente, o gosto final seja amargo.
A França é um país que possui uma produção cultural gigantesca e isto é inegável. É uma verdade irrefutável, através das artes, da história e da ciência – seja esta política ou não -, conceito interpolado e corriqueiramente tocado no filme O Que Está Por Vir, drama franco-alemão dirigido pela francesa Mia Hansen-Løve, um nome expressivo do cinema feminino, em vertentes discursivas e analíticas.
Discurso e análise, aliás, são dois elementos necessários para a condução da narrativa de Nathalie (Isabelle Hupert), uma renomada acadêmica, professora de filosofia e escritora, que tem uma vida cultuada e intelectual, sempre especulando questões filosóficas, sociais, paralelismos que traduzem situações cotidianas em contextualizações remotas. O filme faz diversas homenagens a ícones contribuintes à filosofia na Europa, como Jacques Rousseau, Adorno, Descartes, justamente reforçando características adotadas em um senso comum da comunidade intelectual parisiense – e europeia, em um plano mais amplo, para criar metáforas em relação aos acontecimentos na vida de Nathalie, principalmente após o divórcio com o marido, também professor e intelectual.
Em pontos importantes do longa, onde se verifica que o ponto a ser passado é a contextualização social-política – seja do país, da Europa ou do mundo – nota-se características caricatas, sob um ponto de vista superficial e torpe. A juventude socialista sem embasamento teórico, o corpo docente neutro e passivo em meio às pautas sociais, o imaginário conflito entre o que é tomado como ideal próprio e as contestações. O primeiro ato consiste em narrar uma ótica mais construtiva sobre estes tópicos. Entretanto, as falhas e a criação de um aspecto forçado dificultam a apreciação momentânea, infelizmente ainda mais, na personagem de Nathalie.
A qualidade da obra audiovisual toma um corpo mais sisudo e consistente a partir da implantação das relações familiares e pessoais da protagonista. O elo com a mãe, Yvette (Edith Scob), e com o ex-aluno e amigo Fabien (Roman Kolinka), são chaves que reconfiguram a narrativa em direção a um consenso mais peculiar, sensível e delicado. Parte disto, é a direção de Mia. Transições leves, contemplando o envolvimento das personagens para com os ambientes e cenários – o uso de luz natural em paisagens abertas ou locações com grande abertura de luminosidade do sol evoca uma sensação de conforto e sofisticação – denotam um tom mais sereno e observador para com a crescente interposição dos diálogos.
A atuação de Huppert, novamente, impressiona pela aquisição da persona. Descreve as características de protagonista com força, evidenciando sua importância em cada cena e sequência, garantindo que toda transição narrativa – ato por ato – só aconteça mediante uma intervenção sua, seja de uma maneira mais ativa ou somente por um ponto de assistência. A partir da metade, há uma evolução notória de suas motivações, a clarividente mensagem de que a ruptura e a perca garantem a possibilidade de um desligamento, uma concentração de foco em objetivos que fogem à regra da casualidade.
Casualidade é uma classificação que se aproxima a descrição do filme. Apesar de demorar a construir um ritmo, ditar as consequências de acontecimentos e permitir uma naturalidade narrativa, O Que Está Por Vir é um conto sobre um cenário que calca interesses pela mensagem, pelo debate, porém, sente a necessidade do pacifismo, de uma zona de conforto que engrandece uma segurança, um totem que transmite familiaridade e noção de realidade, por mais que ela seja mutável, transferível e inquieta.
Pegue um pouco de Dom Quixote, acrescente pitadas de Bye Bye, Brasil, emulsione com cem mililitros de Cine Holliúdy e cozinhe em fogo baixo por pouco menos de duas horas. Se Os Pobres Diabos, filme que marca o retorno do cearense Rosemberg Cariry a cadeira de diretor, pudesse ser representado em uma receita, certamente seria bem próxima desta descrita acima.
Na história, a trupe do Gran Circo Teatro Americano chega a um vilarejo desértico, onde decidem montar acampamento e armar sua lona. O cenário do filme é basicamente um circo, o que contribui bastante para que um ar de nostalgia surja durante a exibição. Já faz algum tempo que, no lugar de despertar uma faceta lúdica, o circo acaba sendo relacionado a decadência, fracasso, marginalização e, até mesmo, picaretagem. Isso se dá, sobretudo, porque é uma atividade que sobrevive somente no interior e em regiões ditas periféricas. E isso fica bastante evidenciado ao longo da trama.
O grande problema em Os Pobres Diabos é a falta de uma história a ser contada, de uma trama para se desenrolar na tela. Por mais que o diretor seja extremamente habilidoso ao desenhar metáforas, estabelecer intertextos e capturar momentos bastante emocionais em cena, fica difícil não notar que o filme não apresenta um rumo e, menos ainda, uma relevância. Isso fica ainda mais notório quando identificamos cenas inteiras que poderiam ser totalmente retiradas do longa sem anular o seu valor e entendimento.
Na inexistência de um bom argumento, a salvação do filme poderia ser os personagens que nele habitam. Mas aqui o problema é ainda maior. Toda a sorte de clichês está presente. Principalmente na figura do “palhaço ladrão de mulher” que não oferece nada de novo para o público. Apesar de Silvia Buarque, Chico Diaz, Everaldo Pontes e o restante do elenco estarem vívidos na tela, falta substância textual para que esta mesma vivacidade contagie seus personagens.
Do ponto de vista visual, o filme é um convite para o olhar. Um design de produção bastante assertivo, com detalhes que enchem os olhos e fazem o espectador esperar mais do que vem pela frente. A trilha sonora base não surpreende, na verdade, pouco se faz presente. Até mesmo por deficiência da espinha dorsal de uma boa trama, o roteiro. Um filme sem clímax não apresenta muitas possibilidades para que uma trilha sonora possa soar marcante.
Os Pobres Diabos soa inacabado. Um filme lindo em visual, mas com pouca ou nenhuma intenção de contar uma história. Ainda não é este o retrato oficial do artista circense brasileiro nos cinemas.
Criaturas da Noite (Ediouro), escrito por Neil Gaiman e ilustrado por Michael Zulli, é composto por duas fábulas onde o pai de Sandman presta homenagem às criaturas que permeiam o simbolismo noturno: gatos e corujas.
A primeira delas “O preço”, tem como protagonista um gato negro majestosamente insensível que surge a uma família isolada da cidade. Embora com outros gatos para criar, eles não se afastam do novo felino. A fábula é mais intensa se você já passou por essa situação de acolher um gato abandonado, pois toda noite ele desaparece, e toda manhã o felino está de volta. Sujo. Sangrando. Exausto.
O pai da casa trata o gato, limpa os ferimentos, alimenta, e toda noite a mesma fuga felina. Aí entra o mistério: o que acontece com o gato negro quando ganha a noite? Historicamente, os mistérios que envolvem os felinos adquirem várias interpretações em cada cultura; já foram os emissários das bruxas, os portadores de pragas, os animais sagrados que enxergavam os espíritos dos mortos, os elos entre o mundo dos vivos e o dos espíritos, os guardiões das sepulturas, etc, etc…
Gaiman escolhe uma entre tantas tradições folclóricas noturnas envolvendo os gatos e constrói com sensibilidade um enredo singelo e ao mesmo tempo majestoso. O traço de Zulli é romântico e austero. São pinceladas intensas que lembram aquarelas, muita presença de sombra, muitos closes para marcar as expressões e pouquíssimas intervenções entre cada quadrinho. As panorâmicas surgem para marcar a compreensão dos seres imaginários sempre com uma palheta de cores escura, sombreada, com se uma vela estivesse acesa no meio de cada quadro e a sombra do fogo tomasse as bordas do quadrinho.
A segunda fábula “A filha das corujas”, pode ser também considerada um causo popular medonho. A história começa com um aristocrata prometendo a outro (aparentemente escritor) que soube de um acontecimento absurdo que poderia ser motivo de escrita: uma menina recém-nascida fora deixada na porta da Igreja dentro de um cesto com ossos de corujas e segurando na mão mínima uma coruja morta.
Qual o destino da órfã? Primeiro pensam em matá-la. Depois um conselho de anciãos decide exilá-la para um convento feminino afastado da cidade. A criança cresce sem saber falar, pois nunca escutava outras pessoas conversando. Ouvia apenas os morcegos e corujas que faziam ninhos no convento às ruínas. Daqui em diante, Gaiman explora os impulsos violentos dos homens. A virgindade e beleza da menina desperta a curiosidade dos homens da cidade e a hipocrisia dos moralistas se apresenta como tema de “A filha das corujas”.
A paleta de cores Zulli é mais negra nesta história, como se uma névoa de maldade habitasse aquele passado. As dimensões das cenas também são maiores, com mais espaços abertos na composição dos quadrinhos. Os closes permanecem românticos e austeros, aquarelas de solidão, com uma aura melancólica e dramática. Nesta versão, apenas incomoda o tipo de fonte utilizado no decorrer da história. A escolha da fonte cursiva inclinada para indicar que a história se passa num suposto medievalismo, prejudica a leitura. Com dificuldade entendemos as informações e vez ou outra é preferível adivinhar a palavra que tentar lê-la.
Por fim, Criaturas da Noite é o tipo de livro dedicado principalmente aos adolescentes ou aos primeiros leitores que se encantam por fábulas e literatura fantástica. Por ser um livro curto, funciona como um doce de leitura, algo que deixará aquele sabor aos outros trabalhos do gênero. Leitura muito recomendada.
Fundamentalmente, uma pauta social quando levantada por um filme, necessita de um escopo contextual. Necessita de uma pesquisa, de um embasamento para configurá-lo para caber em perspectiva mais ampla. Não pode controlar o espectador a interpretar o filme como uma opinião determinante, e nem o deixar alheio ao debate. Entretanto, descentralizar critérios narrativos e sobrepuja-los em prol de uma análise mais literária e ficcional, pode resultar na projeção autêntica e incômoda, ou na realização da fábula inerte.
Okja, filme original do serviço de streaming Netflix, dirigido pelo sul-coreano Joon-ho Bong, que propiciou uma polêmica em sua exibição no 70º Festival de Cannes, cambaleia entre estes dois palcos, criando um cenário de intensa análise objetiva. O contexto social determina que uma empresa, Mirando, dirigida por Lucy Mirando (Tilda Swinton), criou 26 porcos geneticamente modificados e os concedeu a cuidados em 26 países, afim de estimular a criação e o desenvolvimento dos mesmos, com a finalidade escusa de uma competição. Entretanto, a realidade é abate-los em futuro, não permitindo que a fome seja um problema de escala global, maior do que já é, mesmo que o filme não indique este núcleo em nenhum momento. Entre um destes super-porcos, há Okja, criado pela garota Mikja (Seo-Hyun Ahn), em uma remota vila montanhosa na Coréia do Sul.
Em meio a isto, a empresa criou um programa de exibição destes animais, colocando Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal) como apresentar e principal divulgador de marketing. Ele visita Okja, a apresenta para o mundo, diz que a levará para Nova York junto com Mikja, para o programa. Porém, Okja é levada sem a autorização de sua cuidadora – às vezes, o filme a denota como dona -, e agora ela parte para Seul, capital, para iniciar a aventura de trazer a leitoa de volta à casa. Em paralelo, há um ativismo evidenciado no filme, o grupo ALF (Frente de Libertação Animal), liderado por Jay (Paul Dano), tenta desmantelar todo o processo industrial de produção de carnes, acreditando na valorização de vidas animais. Em conjunto, eles desenvolvem um plano para desmascarar Mirando e salvar Okja.
Recapitulando, o filme estimula duas linhas narrativas: a fábula/aventura infantil, focando na relação entre Mikja e Okja, apresentando um comprometimento, guarda e carinho muito grande e evidente entre as duas personagens. Ojka funciona muito mais como um animal de estimação do que propriamente um cuidado sobre uma propriedade privada. Neste aspecto, a obra se sobressai, permitindo a si mesma elaborar nuances cômicos inteligentes, deixar o roteiro e os diálogos mais elásticos, atenuando características únicas das personagens principais, especialmente Mikja e Lucy. Trilha sonora, ambientação, utilização de uma fotografia mais fosca e incisiva, auxilia na progressão narrativa.
No entanto, quando o filme assume a identidade mais crítica, analítica e ativa em uma mensagem, em um debate, ele se acomoda. Não procura arriscar – narrativamente e visualmente – a propiciar tópicos diferentes ou acrescentar mais relevância ao debate. São círculos elementares, que criam uma zona de confecção neutra e simplória, deixando o ato final previsível, mas inconsistente em sua soma final.
Se houvesse uma tomada de decisão diferente no momento da resolução, creio que o longa-metragem soaria mais eficiente em sua mensagem, caracterizando uma perspectiva mais sensível a um público que não tenha tanto conhecimento sobre as questões de causa animais, abatedouros, produção de carne industrializada. É o filme de viés mais comercial e narrativamente chapado de Joon-ho Bong. Mas que poderia ter um destaque maior em sua conjuntura analítica se não direcionasse sua resolução a um ponto mais individual e fantasioso.
Se tem algo que a sétima arte é capaz de fazer, é tocar seu espectador. Com a imagem, o som, o texto, uma narrativa tem a capacidade de transcender os limites de alguns dos nossos sentidos, ou seja, ela provoca reações. Para um filme causar reações, sejam externamente físicas como o levantar dos braços em comemoração numa cena triunfante, ou íntimas como o desconforto em uma sequência que lhe incomoda, o filme deve ser ou muito bom ou muito ruim. Ao Cair da Noite (It Comes At Night) é um exemplo ímpar de como a arte do cinema pode tomar conta da sua mente por duas horas e te presentear com algumas sensações, quando os créditos sobem o filme não te deixa, ele fica com você ainda por muitos dias, te fazendo refletir, reagir.
Trey Edward Shults, diretor e roteirista do longa, tem no currículo o incrível Krisha, filme que nos mostra de cara como Trey sabe construir uma atmosfera imersiva e criar personagens tridimensionais e propensos a identificação. Em Ao Cair da Noite, o diretor nos coloca em um futuro aparentemente não tão distante, em que uma doença desconhecida e contagiosa mantém uma família – composta pelo casal Paul (Joel Edgerton) e Sarah (Carmen Ejogo) e pelo único filho Travis (Kelvin Harrison Jr.) – refugiados dentro de uma casa no meio de uma floresta. A “paz” é contrariada quando a família recebe a visita de novas pessoas.
Como em A Bruxa (The Witch), que inclusive é da mesma distribuidora, a A24 – o longa teve um marketing que o vendeu como terror e teve/terá reações decepcionadas de parte do grande público, não que o longa não tenha uma veia de horror, mas aqui o suspense paranoico e sem grandes jump scares é que prevalece. Suspense esse que é arquitetado da maneira mais ambígua possível, enquanto a trama possa parecer lenta e sem grandes acontecimentos, é só observar mais a fundo que percebe-se o quão complexo e alarmante é o caminho que a trama segue, deixando com que o silêncio se case com uma trilha musical singular, a fotografia escura e composta por sombras e silhuetas dê às cenas incríveis pontos de vista, e que as personagens pareçam críveis.
Acompanhamos a trama pelos olhos do adolescente Travis, e como Shults trabalha os impactos de um “pós-apocalipse” na vida de um jovem é genial, mais do que tudo soa sincero e corajoso. Harrison Jr. entrega a atuação mais tridimensional com seu Travis, o personagem tem constantes pesadelos e isso vai tomando dimensões cada vez maiores e é neles que o filme abusa um pouco mais de seu viés do horror e do suspense. É através do garoto também que o longa expõe as relações de suas personagens, desde o cachorro Stanley até o pequeno Andrew (Griffin Robert Faulkner).
Dando o tempo que sua história precisa, Ao Cair da Noite é como uma fragmento no tempo, nem um pouco preso em obrigações de se explicar tudo, o filme não subestima seu espectador e soa como uma das muitas tristes histórias que o universo do longa abriga. É uma aula de construção de expectativa, ambiente e personagens, além de ser impecável nos responsáveis pelo filme causar tantas sensações: imagem e som. É um casamento perfeito. Shults entrega um daqueles filmes memoráveis, que te faz ficar inquieto na cadeira do cinema, que te faz torcer e criar fortes relações com o que se vê em tela mesmo que seja um sentimento inevitavelmente pessimista levando em conta tudo que já se viu. É de provocar reações, é de ser como um peso que você carrega nas costas quando sai do cinema. Pesado. O trabalho de Shults é a confirmação de que o terror e suas variáveis está em alto nível e de que seu diretor é uma das promessas dessa nova geração.
É de sair do cinema e se enxergar como humano, e falho. Ao Cair da Noite é desses.
Dirigido por Mick Jackson e adaptado para o cinema pelo escritor David Hare, baseado no livro Negação (History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier), o filme conta o embate legal entre Deborah E. Lipstadt (Rachel Weisz) e David Irving (Timothy Spall). Irving acusou Lipstadt – assim como a editora britânica da autora, Penguin Books – de difamação por denegrir seu trabalho acadêmico de negação do Holocausto. Diferente da maioria dos países, em que cabe ao querelante provar sua acusação, no sistema legal britânico, não há presunção de inocência, recaindo o ônus da prova sobre o acusado. Sendo assim, cabia à equipe de advogados contratados pela Penguin – encabeçada por Richard Rampton (Tom Wilkinson) e Anthony Julius (Andrew Scott) – provar que a queixa de Irving era infundada.
Irving, sendo um estudioso da Segunda Grande Guerra e principalmente de Hitler, acusou Lipstad de ter afirmado que ele manipulara e distorcera evidências a fim de isentar o Reich e, por conseguinte, Hitler de ter matado judeus deliberadamente. Enquanto a maioria de nós, leigos, ou melhor, não-advogados pensaria que o melhor argumento seria confirmar a ocorrência do Holocausto, os advogados de defesa optaram, sabiamente, por combater a difamação que Irving dizia ter sofrido. Deborah deixa claro que sua intenção era reafirmar o Holocausto, dando voz aos sobreviventes e aos que pereceram nos campos de concentração. Contudo, os advogados a convencem, muito a contragosto, de que a estratégia planejada por eles era a melhor opção. E, ao final, do julgamento, em um veredito de trezentas e poucas páginas, o juiz Charles Gray (Alex Jennings), dá ganho de causa à defesa por ter efetivamente provado que Irving, sim, distorcera evidências a fim de defender seus pontos de vista e que, portanto, o que Lipstad dissera não configurava difamação.
A história, em si, é bastante direta. O que chama a atenção são as questões suscitadas pelo evento. Como é possível que existam pessoas capazes de colocar em dúvida um evento histórico dessa magnitude? Simplesmente por não haver fotos que o comprovem, como diz Lipstad a seus alunos? O quão fácil é distorcer a verdade, usando apenas palavras, falácias e argumentos tendenciosos?
É o trecho de Denying the Holocaust: the Growing Assault on Truth and Memory, em que Lipstad descreve os métodos de Irving, que ele usou para acusá-la:
“Irving é um dos mais perigosos porta-vozes do negacionismo do Holocausto. Conhecedor da evidência histórica, ele a distorce até que ela se adapte a suas inclinações ideológicas e objetivos políticos. Um homem convencido de que o grande declínio da Grã-Bretanha foi acelerado pela decisão de entrar em guerra contra a Alemanha, ele é muito hábil em pegar informações corretas e moldá-las para confirmar suas próprias conclusões. Uma resenha de seu recente livro, Churchill’s War, publicada no New York Review of Books, analisa corretamente sua prática de tratar as evidências de forma parcial. Ele exige “prova documental absoluta” quando o assunto é provar a culpa dos alemães, mas se baseia em evidências altamente circunstanciais para condenar os Aliados. Essa é uma descrição correta não apenas das táticas de Irving, mas das dos negacionistas em geral”. (p.181)
Conciso, de abordagem simples, trata o assunto de forma direta, sem floreios ou melodramas desnecessários. E, apesar de parecer muito um telefilme, tem aquele “quê” a mais que faz o espectador continuar pensando a respeito das questões levantadas durante a exibição do longa-metragem. Ainda que em termos de produção, o filme não possua nada de excepcional, além de seu elenco, Negação se mostra um daqueles filmes importantes e necessários em nossos tempos.
Quando foi divulgado o primeiro trailer de Beleza Oculta (Collateral Beauty), de David Frankel, eu me interessei mais pela ideia de toda a história do que pelo grande elenco que o filme tem, já esperava um melodrama no formato usual de sempre, porém o que temos aqui é uma ideia mal aproveitada, um drama que quer ser comédia (e fracassa) e um elenco que parece ter aceito participar do filme porque tinha umas semanas livres.
Howard (Will Smith) é um empresário de muito sucesso que acredita no amor, no tempo e na morte como “segredos” do sucesso, até que uma tragédia abala a vida dele, fazendo-o mandar uma carta para o Amor, uma para o Tempo e outra para a Morte. Então, passa a receber visitas de pessoas que dizem ser essas coisas.
Primeiramente, saiba que os materiais de divulgação vendem algo bem diferente do que o filme é, não por distorção, mas por omitir muitas coisas que fazem parecer que Beleza Oculta irá para certa direção quando o filme tem uma completamente diferente, e isso de certa forma foi uma surpresa agradável de início, o problema é que o primeiro ato é tão bagunçado e desconexo que o sentimento que fica é o de descontentamento. Kate Winslet, Edward Norton e Michael Peña interpretam os amigos e colegas de trabalho da personagem de Smith e de certa forma protagonizam este primeiro ato. A química é inexistente, os diálogos entre os três carregam uma atmosfera humorística que não funciona em nenhum momento e que só consegue soar propícia a vergonha alheia, pra não dizer ridículo. As atuações são motoras e parecem desconfortáveis, menos a de Peña que parece desconfortável por estar fazendo algo do que não é habituado, não por ser motora. Neste ato também é quando descobrimos qual é o principal plot do filme e por conta de todos esses problemas já citados, só soa, mais uma vez, ridículo, acrescentando aqui um “forçado”.
O segundo ato consegue ser mais estável e possui dois dos três méritos do filme, o primeiro fica por conta de Naomie Harris, atriz indicada ao Oscar deste ano pelo seu papel brilhante em Moonlight: Sob a Luz do Luar, ela mesmo com um roteiro claramente limitado e que parece prezar apenas por falas de efeito, entrega uma atuação muito bonita e equilibrada. Inclusive, a atuação de Smith só funciona nas cenas em que ele precisa estar cara a cara com a personagem de Naomie, pois o papel dele parece uma reciclagem do que ele já fez em À Procura da Felicidade, Sete Vidas e Esquadrão Suicida (sim!). Já o segundo mérito do filme é de bem peculiar, que é como o filme mesmo sendo falho ele consegue prender a atenção, principalmente pela perspectiva de querer saber como toda a trama vai se resolver, mas isso acaba sendo bem dualístico por acabar ressaltando mais os defeitos do longa do que as qualidades.
Chegando perto de seu final, Beleza Oculta reafirma de vez que seu elenco não quis fazer parte do filme, Helen Mirren que faz a Morte parece pelo menos se divertir, enquanto Keira Knightley (Amor) e Jacob Latimore (Tempo) se salvam pelo mínimo de carisma que conseguem transpassar no pouco que tinham em mãos. Este terceiro ato também liga algumas pontas nos relacionamentos de seis personagens, mas desde o seu começo já parecia bem previsível.
Claramente um filme comercial para o Natal (lançou nas vésperas do Natal de 2016 nos EUA), Beleza Oculta é mais do mesmo, ideia mal aproveitada e elenco subaproveitado, algo que vemos em Hollywood todos os dias, já dizia toda a internet: nada novo sob o sol. Ah, não quero falar muito sobre o final, mas sabe quando o filme entrega a melhor cena de todas, ligando coisas que você realmente não percebeu, mas decide fazer mais e mais só para te fazer cair da cadeira? Então…
Difícil quem não conheça a história – ou a lenda – de Robin Hood, o príncipe dos ladrões, senhor das florestas de Sherwood, cujo lema era roubar dos ricos para dar aos pobres. Neste livro, o autor conta essa história vista pelos olhos de Alan Dale – um jovem que, após ser pego roubando, se vê obrigado a abandonar sua mãe e juntar-se ao bando de Robin Hood, em busca de proteção.
“Hoje, olhando para trás depois de quase sessenta invernos, mal posso acreditar em quanto eu era fraco naquela época. Eu veria coisas piores no tempo que passei ao lado de Robin, muito piores. E apesar de jamais ter sentido prazer ao ver a dor de outra pessoa, como acontecia om alguns homens de nosso bando, aprendi com o tempo a ocultar tal fraqueza, como acontece com um fora da lei ou com qualquer homem. Naquela noite de primavera, no entanto, eu era jovem, tinha apenas 13 anos. Eu sabia pouco a respeito do mundo e de suas crueldades, sabia muito pouco a respeito de qualquer coisa. Mas estava prestes a aprender muito”. (pag.25)
A história é narrada em primeira pessoa e, assim como em O Grande Gatsby, o narrador não é o protagonista. Enquanto nesse, Nick Carraway conta a história de Jay Gatsby, em Fora da Lei, Dale conta sua versão da história de Robin Hood. Dale, beirando os 60 anos de idade, mora com a nora e o neto, depois que seu filho Rob morreu de hemorragia. E é através de suas memórias que a narrativa toma corpo.
E por serem memórias é que alguns trechos soam um tanto inverossímeis. Qualquer pessoa que já tenha passado por algum momento de tensão, de stress intenso, com a adrenalina a mil, com o sangue bombando nos tímpanos, sabe muito bem que é praticamente impossível se lembrar nitidamente de tudo daquele momento. As lembranças se assemelham muito à montagem dos filmes do Michael Bay – cheias de cortes, lapsos temporais e espaciais. Contrariando essa premissa, nas cenas de luta entre os homens de Robin e os do xerife Murdac, por exemplo, Dale narra a sucessão de eventos com uma riqueza de detalhes que ninguém vivendo aquela situação conseguiria assimilar.
Aproveitando a deixa das cenas de luta, é perceptível a influência de Bernard Cornwell na narrativa de Donald. Contudo seu texto está longe de ter a mesma intensidade, não consegue ser tão vívido e envolvente a ponto de o leitor “ser jogado” para dentro da trama, com todos os cinco sentidos sendo estimulados apenas pela leitura. Mas isso não quer dizer que a narrativa de Donald não seja agradável. É sim, bastante fluida (para usar um termo da modinha), nada cansativa, contrabalançando bem diálogos, descrições e cenas de ação.
O Robin Hood de Angus Donald está longe de ser aquela figura benevolente e altruísta que, como afirma seu lema, rouba dos ricos para dar aos pobres. Robert Odo, nome real do personagem, não passa do filho caçula de um barão e que, apesar de carismático e bom estrategista, além de ser considerado um fora-da-lei por ter cometido assassinato, tem uma relação dúbia com os camponeses que supostamente protege. Está mais para um chefe de quadrilha que vende segurança em troca de acolhida para seu bando do que para o salteador heroico encarnado por Errol Flynn e tantos outros astros do cinema. Mas o personagem não deixa de ser interessante por causa disso. Apenas não é o bom moço a que o público – leitor ou espectador – está habituado. E, pelo olhar de Dale, o leitor vai descobrindo seu modo de encarar a vida, suas preocupações, suas motivações.
“- Não é apenas uma simples questão de certo e errado? – perguntei. – Essas pessoas são más e devem ser punidas. – Isso existe. Mas o certo e o errado raramente são simples. O mundo é repleto de pessoas más. Algumas pessoas até diriam que faço o mal. Mas se eu fosse correr o mundo punindo todos os homens maus que encontrasse, não teria descanso. E, se passasse a vida inteira punindo atos maus, eu não aumentaria nem um pouco a quantidade de felicidade no mundo. O mundo tem um suprimento infinito de maldade. Tudo que posso fazer é tentar fornecer proteção para aqueles que a pedem a mim, para aqueles a quem amo e que me servem. E, para proteger a mim mesmo e aos meus amigos, os homens devem me temer, e para fazer com que tenham medo de mim, preciso matar os Peverils amanhã. E você, meu jovem amigo, deve ficar na retaguarda”. (pag.101)
O Ornitólogo apresenta o homem em contato direto com a linha entre o mundo físico e seus significados culturais. Os seres humanos interagindo com o mais primitivo da maneira que percebem e interpretam o mundo. E nesse encontro, nesse limite, há experimentações incentivadas por situações e abordagens meditativas sobre aquilo que nos cerca, tanto de forma corporal quanto mental.
Escrito e dirigido por João Pedro Rodrigues, O Ornitólogo acompanha Fernando (Paul Hamy), um ornitólogo que está em expedição pela região de Portugal e Espanha, até que acidentes nas correntezas o incapacitam e o fazem se perder na floresta, onde terá início sua jornada de auto-descobrimento. A natureza o prende e molda sua realidade com características fantásticas; pelos interiores das matas há cristãs chinesas que objetivam o Caminho de Santiago de Compostela, os pássaros e espíritos que observam quem deveria observar, até ritualistas noturnos e amazonas contemporâneas.
De um extremo realismo fantástico e densamente simbólico, o longa prende em seu ritmo e atmosfera reflexivos, contemplativos, os telespectadores que se permitirem. A utilização de técnicas documentais reafirma a naturalidade do que se vê em tela, independentemente do quão absurdo possa ser. Em sincronia com isso estão os atores; Paul Hamy faz um Fernando perdido, mesmo que apreensivo para chegar aonde não sabe onde nem como ir, e os mesmos elogios se estendem a Xelo Cagiao e suas expressividades para além de qualquer palavra.
O filme, tal como a natureza dominando prédios esquecidos, cresce ao redor de uma discussão sem respostas diretas sobre o homem em confronto com sexualidade e religião, aspectos geralmente contraditórios, mas que aqui se tornam harmônicos e complementares. Entre tantas formas de expressão ritualísticas é possível perceber a equiparação entre se fantasiar e dançar ao redor de uma fogueira, uma reza entre estátuas esquecidas e um ato sexual a beira do rio. É na natureza, onde já não nos vemos mais, que o ambiente adverso se mescla às construções culturais humanas, sejam elas físicas ou do próprio ser, e conferem uma transmutação tal como a dos pássaros que trocam suas penas, mas que continuarão a voar e a viver após a despedida dos antigos Eus.
As grandes corporações são o vilão favorito de Hollywood. Em uma espécie de exercício para espantar seus demônios, espia seus pecados e flerta com a dominância cultural e monetária da sociedade. Sendo assim, frequentemente o cinema trata desses temas com certo grau de autoindulgência, e um tanto de desconforto ao se fazer um filme milionário acerca de uma indústria bilionária que busca manipular as pessoas. Filme este que provavelmente fez diversas pesquisas de perfis com os dados fornecidos pro redes sociais para então escolher seu elenco, data de estreia e demais variáveis que possam entregar um produto de sucesso. Até por isso tal tema parece encaixar-se melhor em uma mídia mais defasada, tal qual O Círculo, que era livro antes de ser filme.
No longa, o mundo de um futuro pouco distante está tomando pelo monopólio de uma empresa de tecnologia onipresente, e que agora surge com a pretensão de também ser onisciente, garantindo a todos que o conhecimento é poder, e que todos temos direito a ele. Sendo possível convencer disso surge então a brecha para convencer que abrir sua vida e fazer dela uma série de dados, que serão constantemente analisados e feitos de moeda de troca entre empresas de interesse frequentemente incoerente com sua aparência progressista. À frente deste tipo de empresa, um sujeito comunicativo e quase bonachão, interpretado por Tom Hanks, faz as vezes do Steve Jobs de sua época. Um sujeito cheio de conceitos, ideias e muita ousadia. Um guru, um exemplo de como harmonizar vida e trabalho, e ainda transformar o mundo. E transforma mesmo. O representante real desse empreendedorismo tecnológico baseado em constante revolução, Steve Jobs, no mesmo dia em que abria uma fábrica onde pessoas trabalham em situação deplorável e análoga à escravidão, fazia discurso para graduandos de universidades falando sobre como é importante o trabalho duro e a ousadia, bem como a curiosidade e liberdade criativa. O mundo nos prende demais, diz ele. Precisamos ser livres para pensar e transformar o mundo. É assim que se age neste mundo que agora aprende a viver em rede, com bolhas pessoais e a capacidade de moldar mundos inteiros ao seu bel prazer.
Mae Holland (Emma Watson) é uma jovem não-promissora, presa em um trabalho frustrante e desconectado, sem paixão ou glamour. Ela trabalha em algo importante para o cotidiano das pessoas, mas visto como um trabalho simplório. Um lugar de pessoas abandonadas pelo futuro. Eis que surge através da indicação de uma grande amiga a oportunidade de trabalhar no Círculo, a maior empresa de tecnologia daquele mundo. Uma máquina de dominância global com pufs, videogames, festas, pessoas descoladas que se vestem de modo informal e fashion, que se preocupam com tudo ao mesmo tempo: desde os conflitos na África Subsaariana, às idiossincrasias do mundo das celebridades. Tudo é importante, mas ao mesmo tempo tudo é superficial. Em busca de likes e formas de se mostrar para o mundo, as pessoas criam personagens para si, e escolhem uma bolha para viverem. Criam avatares de si próprios e os vivem com a motivação de quem é incapaz de se conectar com algo que soe um pouco mais profundo. Mae não é assim, ao menos não é inicialmente assim, e isso à faz um bicho estranho em meio aquela gente toda que ama o trabalho, e o prefere em relação à família. Ela sente então que é menos, em uma reversão do sentimento que experimentara em seu antigo trabalho, onde via tudo como entediante e datado.
Apesar de não demonstrar nada de especial, Mae se torna o rosto do Círculo, participa de reuniões e encabeça projetos complexos dos quais parece necessitar apenas ideia e criatividade, nunca knowhow técnico. E é neste ponto que mora boa parte das dificuldades deste filme. Não há um desenvolvimento rela dos personagens, sendo que alguns deles, como o de John Boyega, somem e voltam como se fossem janelinhas do finado MSN. Estão lá online de alguma forma, fazendo algo, mas raramente estão existindo dentro da trama. A exceção é a personagem de Emma Watson, que é onipresente no filme, mas nem isso garante à ela um melhor desenvolvimento, já que o que se vê é uma interação totalmente alienígena com aquele ambiente, que soa como pastiche que realmente é. Embora demonstre e se disponha a tratar de problemas realmente muito relevantes, como a onipresença da tecnologia digital em nossas vidas e como isso nos afasta das pessoas e nos desconecta do mundo e da realidade, sobre as questões de privacidade, excesso de exposição e a geração de um imediatismo decisório, falta estofo para falar disso tudo sem soar tecnofóbico ou parecer só um par de reclamações provinda da ignorância.
Em um final anticlimático, com abertura para indagações rasas, o longa se mostra incapaz de agir como ficção científica, gênero que exige a capacidade de falar do hoje e do amanhã de forma alegórica e fantasiosa, mas servindo de alerta para o mundo o qual queremos viver, que exigirá então novas formas de pensar e agir. Por não saber comunicar seus temas, O Círculo apela para tropes conhecidas e pela memória afetiva que o público tem de seus atores e atrizes, e nisso se exime da necessidade de conectar o público com seus personagens, em um filme ironicamente desconectado com as pessoas e se apoiando em avatares bonitos e pré-concebidos, tal qual as relações que ele mesmo julga e aponta o dedo.
O nome remete à Aristóteles e seu ensaio onde diz, com razão, que o ser humano é um animal essencialmente político. Inclusive nossas angústias são políticas, envolvendo as diretrizes com que precisamos trabalhar para nos enquadrarmos na sociedade. O que nos fere é a dissonância. Uma vaca nasce sabendo ser vaca, já nós, precisamos aprender a ser gente. Depois aprender a ser o tipo de gente que queremos ser, mas não sem antes descobrir o que será que é isso. O ser político é então chamado cidadão, sendo aquele que se ocupa e se preocupa com as questões da polis. O ser não político será o idiota, do grego ID-OTA: aquele que olha para baixo. Aquele que olha para o próprio umbigo.
Então ser político é ocupar-se da vida da comunidade, e não cair na tentadora tendência de ser um idiota, olhar para si e orbitar sua vida.
Neste ponto, nem cultura, nem religião e nem conhecimento ajudam. Parece que quanto mais se cava, mais próximo do fundo do abismo existencial. A solução então parece ser a busca por um livro de normas. Tal qual normas técnicas. Tal qual manual para a vida. E na ânsia da busca a pessoa é facilmente iludida com falsos ídolos e falsos gurus, sendo o coach o ápice desse transtorno pós moderno. A pessoa já não precisa mais acumular habilidades técnicas para seu emprego, e agora precisa também acumular um punhadinho de habilidades pessoais, interpessoais, inter-relacionais e uma vasta gama de jargões, que esvaziam-se tão logo são apropriadas pela visão pragmática e consequencialista da nossa civilização que invisibiliza as pessoas impedindo qualquer tipo de estranheza profunda. Estranha-se, olha para as pessoas em volta, e dá-se de ombros. Dar de ombros é a nova alopatia para enfrentar as vastidão dos vazios que se tem, como pessoas sem cabeça vagando deserto afora, mas sem procurar suas cabeças. Não. Elas procuram apenas outras pessoas também sem cabeça, em uma busca por identificação que não se fecha em sentir-se pertencente, mas em sentir-se adequadamente normal. A auto ajuda demonstra isso muito bem ao mostrar as pessoas como sendo mais egoístas e autocentradas pode lhe a ajudar a ser uma pessoa mais desligada do mundo e, assim, obviamente mais feliz.
A normalização, que até então era de uso exclusivo da geometria, sugeria um ângulo de 90º entre dois seguimentos de reta; chegando à estatística foi apropriada para identificar aquela amostra de dados que se encontra concentrada ao centro da curva para representar uma população. A partir do advento da psicanálise, o normal passou a ser a representação do indivíduo padrão, que sofreu menos com os desvios e consequências da vida. Daí em diante, a normalização do indivíduo trouxe como consequência direta a ideia de que tem quem não seja normal ou padrão, e estar fora do padrão envolve a ideia de que aqueles fora da curva normal precisam ser tratados e medicalizados. O que está fora da normal fere a simplicidade da vida cotidiana onde tudo é esperado e percebível.
É nesta reflexão que surge Animal Político, filme do Cineasta Tião que mostra uma vaca refletindo sobre a vida, sobre sua existência e a necessidade de ser um pouco mais, sem sentir-se culpada por suas crises mesmo que diante de um aparente estado de normalidade da vida. De tão normal, lhe surge a epifania de que não é possível ser tão normal assim. Ora, com certeza existe algo de estranho em estar assim tão enquadrado, quase que só faltando a moldura para fazer de si uma peça de decoração impressa em larga escala. Normal demais pra ser real ou relevante. E assim surge esta personagem e seu caminho de reflexão sobre tudo que gira ao seu redor, ruminando hipóteses e regurgitando soluções, até identificar-se com algo que é apenas uma outra norma. Uma norma tão padrão quanto todas as outras, mas outra norma. Algo que novamente lhe enquadre, mas agora com 3 cm de margem superior e esquerda, e 2 cm de margem inferior e direita, em Arial tamanho 12. Algo entendível, fácil de digerir com página numerada e bibliografia. Algo assim parece conter em si todas as respostas. A grande dificuldade, percebe-se rapidamente, é que não se faz ideia de quais são as perguntas. Não dá para ser vaca (n)dessa forma.
Fã inveterado de boxe, Julio Cortázar usou uma metáfora do “nobre esporte” para explicar a diferença entre romances e contos: “O romance ganha o leitor por pontos, já o conto, por nocaute.” Mas se o conto ganha por nocaute o leitor, o que diria Cortázar sobre os contos curtos?
Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos (Oito e Meio, 2017), o novo trabalho de Cesar Cardoso, é composto em totalidade por contos curtos que ganham o leitor tão rápido quanto os melhores nocautes descritos por Cortázar. O mérito do autor reside em três qualidades principais: os estranhamentos, as sugestões e o domínio vocabular.
O estranhamento (outra qualidade cultivada por Cortázar), se faz presente nas situações inusitadas – algumas mórbidas até – e personagens incomuns que denunciam o Eu fragmentado da urbe moderna. De fato, ao trazer a tona situações atípicas para quase todos os leitores (imagino), Cesar impulsiona o caráter empático da convivência pluricultural, e, em paralelo, chacoalha o leitor para fora da zona de conforto social. E todo desconforto provocado pela Literatura é louvável porque a boa Literatura não sobrevive sem conflito, seja da trama exposta no texto ou dos múltiplos juízos de valor da mesma história (Capitu que o diga).
Se o estranhamento tem características de corpo, a sugestão é a alma. O poder sugestivo impulsiona e intensifica as narrativas curtas, escondendo, entre frases pequenas, desfechos dos mais sensíveis, engraçados e dos mais inesperados. Talvez o leitor mais apressado subestime os contos curtos, contudo mesmo a leitura mais rápida para em diversos momentos como um carro que furou o pneu por não prestar atenção na estrada. Aos apressados, a sugestão tem esse poder de agir como o prego que martela a mente do leitor, encaminhando, inclusive, explicações das mais esdrúxulas ao desfecho dos textos. Tudo ao mérito do leitor.
Quanto ao domínio vocabular das frases curtas, descrições cinematográficas, fluxos de consciência e diálogos, estes, juntos, criam uma intensidade narrativa que acompanha os contos como uma paleta de cores ao lado do bom pintor. O leitor é um voyeur que acompanha os movimentos dos personagens no cotidiano deles sem perda vocabular – afinal não teria mérito explorar situações inusitadas se estas fossem mediadas por palavras bem comportadas ou preguiçosas que fragilizassem a cena. Não. Cesar tem experiência para dotar cada atmosfera de uma forma específica e sobretudo diferente da próximo. Cinematograficamente, é como se lêssemos os argumentos de curtas-metragens em processo de produção (a analogia é impossível porque o autor também é roteirista de TV).
Atualmente os contos curtos são vistos como uma alternativa contemporânea ao espaço exíguo nos novos meios de comunicação. Contudo, autores como Cesar Cardoso que conseguem reunir todas as características do conto tradicional em um espaço menor, desenvolvem estrutura, enredo e desfecho, e ainda atingem “nocautes” literários, sempre ascendem uma dúvida se esse tipo particular de texto não deveria ganhar um espaço só deles na Literatura.
Por fim, as histórias escritas por Cesar tem esse poder de te deixar com a pulga atrás da orelha pensando no que pode ou não ter acontecido. E para aqueles que optarem por ler antes de dormir, cuidado: você pode não dormir ou sonhar com urubus em círculos cada vez mais próximos da sua cabeça. Leitura muito recomendada.
Sing Street: Música e Sonho tem sua história centralizada em um jovem que quer fazer de sua banda não apenas um cover, mas algo novo, e o próprio filme soa como algo deste tipo, um ar revigorante e diferente de imagem e principalmente som. Tendo a música como uma de suas protagonistas, o longa se inicia com o jovem Conor (Ferdia Walsh-Peelo) tocando violão enquanto seus pais discutem fervorosamente no cômodo ao lado, já nos dando uma luz do que a produção promete, um coming of age recheado de pontes propícias a identificação.
Quem nunca se enfiou de cabeça em algum hobby aos dezesseis anos para fugir dos pais, da escola, de todos os problemas que insistem em começar a aparecer? O filme roteirizado e dirigido por John Carney (Apenas Uma Vez, Mesmo Se Nada Der Certo) retrata bem uma época em que se criam laços fortes e se nascem sonhos, dosando bem um humor britânico carregado de drama ao decorrer que o longa expõe de maneira mais profunda seus personagens. O principal, Conor, ao ser obrigado a mudar de escola pelos pais que beiram um divórcio, decide criar uma banda para se aproximar de Raphina (Lucy Boynton), uma jovem modelo misteriosa.
Os anos 80 muito bem representados dão um toque nostálgico bem-vindo a Sing Street, que apesar de aparentar ser um clichê, acerta em fazer de sua época não apenas uma retratação, mas uma ambientação que vende sua história e sua música, trazendo toques especialmente originais nas cenas mais sutis. De início, Raphina é a típica cool girl idealizada, sendo filmada com bastante maquiagem e sempre num contra-plongée ressaltando o quanto sua personagem parece intocável, mas isso muda quando aos poucos vamos a entendendo, a câmera passa a trabalhar no nível de seus olhos e a sutileza fica evidente em um belo diálogo dela com Conor em um parque, inclusive, os dois atores têm uma química muito cativante.
Dos demais personagens, como os membros da banda, apenas dois têm espaço para pelo menos demonstrar certa personalidade, mas Eamon (Mark McKenna) nos entrega as melhores cenas do longa quando compõe as músicas com Conor, o que faz com que qualquer fã de Beatles pense em Paul e John. Porém, o destaque dos coadjuvantes é do irmão de Conor, Brendan (Jack Reynor), uma espécie de mentor para uma jornada do herói simbólica. É nele que Sing Street encontra todos seus temas e dramas, a música, os sonhos, a juventude, e a frustração.
Carney sabe muito bem contar uma história musical, ele provou isso no seu Mesmo Se Nada Der Certo (Begin Again), mas aqui ele parece buscar um cinema mais autobiográfico, tratando a juventude, a tarde com os amigos fugindo dos problemas de casa, a paixão que parece eterna, família, e acima de tudo a irmandade de uma forma sútil, extremamente humanizada, onde até o personagem que comete bullying tem sua cena “justificatória”. É um filme realizado para se identificar, para terminar de assistir, ler a mensagem escrita que John deixa após o plano final, e refletir sobre seus amigos, seus irmãos e como a música já te influenciou.
Com um final minimamente surpreendente, o longa se destaca como um coming of age diferente das produções do gênero, sendo mais profundo do que uma primeira assistida pode entregar. Confiem, Sing Street além de ter algo pra você ouvir e cantar, tem também algo para te falar.
O novo livro de Bernardo Carvalho (Reprodução), Simpatia Pelo Demônio (Companhia das Letras, 2017), apresenta o conflito entre amor e violência compreendidos na esfera íntima e coletiva do narrador: o Rato. Com isso, o autor explora a desnível que por vezes atinge o crescimento das pessoas, que, enquanto são profissionais em sua área de atuação, por outro lado, são particularmente amadoras em relacionamentos.
No início do livro adentramos o cotidiano do Rato, o funcionário de uma agência humanitária, autor de uma tese famosa sobre violência, que trabalha mediando conflitos ao redor do mundo. Ele é escalado para ir ao Oriente Médio pagar o resgate do refém (desconhecido) de um grupo terrorista.
Na esfera íntima, o narrador é um divorciado que mantêm uma amizade com a ex-esposa enquanto se sente insuficientemente capaz de acompanhar o crescimento da filha devido ao trabalho que ele exerce. Rato é convidado como palestrante em várias partes do mundo e, em Berlin, inicia uma amizade com um casal homossexual por conta de uma amiga em comum. Um dos rapazes, o Chihuahua, flerta com o Rato, e logo conhecemos a bissexualidade do protagonista.
Como o autor interliga a esfera privada com a particular? Uma situação de vida ou morte. Toda a preparação e experiência do Rato não impede que ele seja surpreendido por um homem-bomba no hotel em que se hospeda no Oriente Médio. A situação extrema desata um nó de lembranças emocionais na última tentativa íntima de reavaliar o que aconteceu e arrefecer a consciência na iminência presente da morte.
Por que os homens lutam? Esta é a resposta que Carvalho busca responder ao longo das 236 páginas do livro. É louvável a pesquisa e a exposição do autor de conceitos da geopolítica da violência bem como as relações psicológicas por trás dos relacionamentos mantidos por chantagens emocionais. Percorremos conceitos importantes sobre mediação de conflitos e também inteligência emocional, contudo, do ponto de vista estrutural, o romance peca por conta da longa digressão utilizada para desenvolver o conflito.
A chave do bom romance é criar perguntas ao leitor e manter sempre uma suspensão de desejo para que ele se sinta impelido a ler a próxima página. Entretanto, o que o autor experimenta é apresentar logo no início o conflito principal (a vida ou morte do Rato nas mãos do homem-bomba), e ampliar a digressão emocional do momento. O efeito empático de prolongar a nossa expectativa de sobrevivência do personagem sai pela culatra por conta do longo parêntese aberto pelo autor, chegando ao ápice de nem mais nos lembrarmos o que estava acontecendo no presente do Rato, pois o desenvolvimento emocional toma a trama.
A digressão, embora necessária, não é cultivada com parcimônia. Nos interessa mais o Chihuahua, o parceiro homossexual do Rato, um mexicano experiente em atrair parceiros e retirar deles apenas o que lhe convém. Um verdadeiro vampiro emocional. A longa digressão é formada pelo fluxo de consciência do Rato, por isso acompanhamos a evolução do Chihuahua da ingenuidade ao profissionalismo. Antes sincero, reservado, e apaixonado, para mentiroso, manipulador e libertino. Bernardo escreve uma escalada fantástica do complexo personagem e tempera o crescimento com referências artísticas, notas sobre conflitos internacionais e pontos de vista interessantes sobre relacionamentos.
Por fim, sobra em Simpatia Pelo Demônio a dicotomia entre amor e violência e o domínio dos temas pelo autor. Personagens bem construídos, complexos questionamentos sobre conflitos pessoais, coletivos, e referências artísticas. Contudo houve um exagero na estrutura do romance que pode tornar a leitura apenas um virar de página enfadonho para sabermos se o personagem morre ou sobrevive ao final.
A Cabana é um best-seller, escrito pelo canadense Philip P. Young, no ano de 2007. Curiosamente, foi uma história que não nasceu para ser publicada, já que Young a imprimiu para entregar aos seus filhos durante o Natal de 2005, pois se tratava de algo que ele escreveu para confortar a si mesmo. Contudo, após despertar o interesse de dois produtores, a história foi reescrita algumas vezes e foi rejeitada em todas as editoras religiosas que poderiam publicá-la, até que os dois produtores (ambos ex-pastores) em questão, Wayne Jacobsen e Brad Cummings resolveram abrir sua própria editora e lançarem o livro. A aceitação foi tamanha que atingiu, além do público alvo, pessoas de diversas outras religiões, além daqueles que não são “pessoas de fé”. Com isso, o livro foi traduzido para o mundo todo, além de figurar na lista de best-sellers dos principais meios de comunicação ao redor do globo o que rendeu, inclusive um desentendimento jurídico entre Young, de um lado e Jacobsen e Cummings, de outro, onde o escritor pleiteou na justiça royalties que não teriam sido repassados.
Como quase todo sucesso literário vira filme, com A Cabana não foi diferente.
Mack Phillips, interpretado por Sam Worthington, é um pai de uma bela, perfeita e feliz família, que toda semana, sem falta, entregam parte de seu tempo para celebrar Deus e os ensinamentos das Escrituras nos cultos de sua congregação. Percebe-se que Mack está lá apenas para acompanhar sua esposa, Nan (Radha Mitchell), a mais religiosa entre os 5 membros da família. A identidade que Nan tem com Deus é tamanha que ela e sua filha menor o chamam de Papai, que seria algo mais carinhoso do que apenas “Pai”. Durante um fim de semana em que Nan precisa trabalhar, Mack leva seus filhos, os adolescentes Kate (Megan Charpentier) e Josh (Gage Munroe) e a pequena Missy (Amélie Eve) para passar o fim de semana acampando nas montanhas, junto de um lago como costumam fazer quase que sempre. Durante o camping, um dos adolescentes se afoga e ao sair para socorrê-lo junto de outras famílias, Missy é sequestrada e nunca mais é encontrada. Inclusive, vestígios de que a menina sofreu abusos e uma consequente morte foram encontrados numa cabana abandonada nas montanhas.
Com esse terrível acontecimento, a história salta alguns meses no tempo e podemos perceber que a família foi destroçada pelo fato. Nan é a mais centrada no que se diz respeito à perda da filha, porém, Mack, Kate e Josh, simplesmente pararam com os sorrisos que tinham anteriormente para viverem uma vida de depressão e desgosto, cada um à sua maneira. As coisas começam a mudar quando Mack tira de sua caixa de correio um envelope com o seguinte recado: “te espero na cabana”. Atormentado por poder confrontar o assassino de sua filha, o protagonista não pensa duas vezes e embarca numa viagem que mudará a sua vida para sempre.
Com essa premissa, rapidamente, a jornada de Mack vai muito além do que ele imagina, sendo que na verdade, ele acaba por encontrar Jesus Cristo, vivido pelo israelense Avraham Aviv Alush, que imediatamente transforma o local afetado por um tenebroso inverno numa bela, ensolarada e colorida floresta. Não demora muito para conhecermos Deus, representado de forma proposital pela figura feminina de Octavia Spencer, além da jovem Sarayu (Sumire Matsubara), que representa o Espírito Santo.
O filme se estende por um longo período em que Mack, além de ajudar a Trindade nos afazeres domésticos (algo bem leve e lúdico uma vez que cozinha com Deus, faz serviços de carpintaria com Jesus e planta com Sarayu), os confronta, muitas vezes com ódio, sobre os por porquês de Deus ter deixado sua filha ser brutalmente assassinada. E é assim que conhecemos Sophie (Alice Braga), que coloca Mack numa emocionante situação. O filme oscila o tempo todo com as emoções do espectador. Num determinado momento arranca risos da plateia, sendo que, minutos depois, é possível ouvir choros na sala do cinema. Esse mix de sensações se deve ao roteiro leve de John Fusco, que tem em seu currículo, clássicos como A Encruzilhada, Jovens Pistoleiros e mais recentemente era a mente por trás da série Marco Polo, da Netflix. Fusco usa tudo em seu favor e consegue fazer piada até com o fato de Jesus conseguir andar sobre a água. Também não podemos deixar de mencionar a direção do inexperiente, porém, competente, Stuart Hazeldine, que até então só tinha um único filme e não sentava na cadeira do diretor desde 2009.
Como dito, o filme é longo e acaba por perder um pouco o ritmo. Nota-se que o segundo ato se estende demais com situações que podem ser consideradas desnecessárias e quase não deixa espaço para a conclusão, que, aparentemente, foi bastante acelerada na sala de edição. Ainda assim, A Cabana tem pouquíssimos aspectos negativos, mas deixa muito claro qual a mensagem que Young, Fusco e Hazeldine queriam passar, tanto no livro, quanto no longa metragem. E podemos dizer que a missão foi cumprida com sucesso. Vale destacar que o filme foi feito para todas as pessoas, uma vez que não existem momentos de “pregação”, mas, obviamente, é um filme que atinge um público específico.