As grandes corporações são o vilão favorito de Hollywood. Em uma espécie de exercício para espantar seus demônios, espia seus pecados e flerta com a dominância cultural e monetária da sociedade. Sendo assim, frequentemente o cinema trata desses temas com certo grau de autoindulgência, e um tanto de desconforto ao se fazer um filme milionário acerca de uma indústria bilionária que busca manipular as pessoas. Filme este que provavelmente fez diversas pesquisas de perfis com os dados fornecidos pro redes sociais para então escolher seu elenco, data de estreia e demais variáveis que possam entregar um produto de sucesso. Até por isso tal tema parece encaixar-se melhor em uma mídia mais defasada, tal qual O Círculo, que era livro antes de ser filme.
No longa, o mundo de um futuro pouco distante está tomando pelo monopólio de uma empresa de tecnologia onipresente, e que agora surge com a pretensão de também ser onisciente, garantindo a todos que o conhecimento é poder, e que todos temos direito a ele. Sendo possível convencer disso surge então a brecha para convencer que abrir sua vida e fazer dela uma série de dados, que serão constantemente analisados e feitos de moeda de troca entre empresas de interesse frequentemente incoerente com sua aparência progressista. À frente deste tipo de empresa, um sujeito comunicativo e quase bonachão, interpretado por Tom Hanks, faz as vezes do Steve Jobs de sua época. Um sujeito cheio de conceitos, ideias e muita ousadia. Um guru, um exemplo de como harmonizar vida e trabalho, e ainda transformar o mundo. E transforma mesmo. O representante real desse empreendedorismo tecnológico baseado em constante revolução, Steve Jobs, no mesmo dia em que abria uma fábrica onde pessoas trabalham em situação deplorável e análoga à escravidão, fazia discurso para graduandos de universidades falando sobre como é importante o trabalho duro e a ousadia, bem como a curiosidade e liberdade criativa. O mundo nos prende demais, diz ele. Precisamos ser livres para pensar e transformar o mundo. É assim que se age neste mundo que agora aprende a viver em rede, com bolhas pessoais e a capacidade de moldar mundos inteiros ao seu bel prazer.
Mae Holland (Emma Watson) é uma jovem não-promissora, presa em um trabalho frustrante e desconectado, sem paixão ou glamour. Ela trabalha em algo importante para o cotidiano das pessoas, mas visto como um trabalho simplório. Um lugar de pessoas abandonadas pelo futuro. Eis que surge através da indicação de uma grande amiga a oportunidade de trabalhar no Círculo, a maior empresa de tecnologia daquele mundo. Uma máquina de dominância global com pufs, videogames, festas, pessoas descoladas que se vestem de modo informal e fashion, que se preocupam com tudo ao mesmo tempo: desde os conflitos na África Subsaariana, às idiossincrasias do mundo das celebridades. Tudo é importante, mas ao mesmo tempo tudo é superficial. Em busca de likes e formas de se mostrar para o mundo, as pessoas criam personagens para si, e escolhem uma bolha para viverem. Criam avatares de si próprios e os vivem com a motivação de quem é incapaz de se conectar com algo que soe um pouco mais profundo. Mae não é assim, ao menos não é inicialmente assim, e isso à faz um bicho estranho em meio aquela gente toda que ama o trabalho, e o prefere em relação à família. Ela sente então que é menos, em uma reversão do sentimento que experimentara em seu antigo trabalho, onde via tudo como entediante e datado.
Apesar de não demonstrar nada de especial, Mae se torna o rosto do Círculo, participa de reuniões e encabeça projetos complexos dos quais parece necessitar apenas ideia e criatividade, nunca knowhow técnico. E é neste ponto que mora boa parte das dificuldades deste filme. Não há um desenvolvimento rela dos personagens, sendo que alguns deles, como o de John Boyega, somem e voltam como se fossem janelinhas do finado MSN. Estão lá online de alguma forma, fazendo algo, mas raramente estão existindo dentro da trama. A exceção é a personagem de Emma Watson, que é onipresente no filme, mas nem isso garante à ela um melhor desenvolvimento, já que o que se vê é uma interação totalmente alienígena com aquele ambiente, que soa como pastiche que realmente é. Embora demonstre e se disponha a tratar de problemas realmente muito relevantes, como a onipresença da tecnologia digital em nossas vidas e como isso nos afasta das pessoas e nos desconecta do mundo e da realidade, sobre as questões de privacidade, excesso de exposição e a geração de um imediatismo decisório, falta estofo para falar disso tudo sem soar tecnofóbico ou parecer só um par de reclamações provinda da ignorância.
Em um final anticlimático, com abertura para indagações rasas, o longa se mostra incapaz de agir como ficção científica, gênero que exige a capacidade de falar do hoje e do amanhã de forma alegórica e fantasiosa, mas servindo de alerta para o mundo o qual queremos viver, que exigirá então novas formas de pensar e agir. Por não saber comunicar seus temas, O Círculo apela para tropes conhecidas e pela memória afetiva que o público tem de seus atores e atrizes, e nisso se exime da necessidade de conectar o público com seus personagens, em um filme ironicamente desconectado com as pessoas e se apoiando em avatares bonitos e pré-concebidos, tal qual as relações que ele mesmo julga e aponta o dedo.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.
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