Autor: Vortex Cultural

  • Crítica | O Anjo Exterminador

    Crítica | O Anjo Exterminador

    O Anjo Exterminador Poster

    Clássico de Luis Buñuel, O Anjo Exterminador, traz uma forte crítica às instituições que pervertem a vida social, embalado em uma irônica mensagem de amor

    O famigerado conceito de “filme de arte” foi desvirtuado de sua ideia inicial, e hoje é usado para pretensamente separar dentro de uma série de filmes aqueles que têm valor artístico e aqueles conhecidos como “filmes comerciais”. Essa abordagem não é só esnobe como errada. Filme de Arte, no sentido estrito, é aquele ancorado em correntes artísticas. Aqui, a corrente é o Surrealismo, envelopado em uma comédia trágica.

    A trama move-se como uma alegoria social. Por algum motivo, 20 pessoas que foram convidadas para um jantar em determinado momento simplesmente não conseguem sair e voltar para suas casas. Nada físico as impede. Ao se depararem com a própria inércia, surgem as desculpas que os convidados da festa dão uns aos outros sobre por que não saírem. Um resolve simplesmente ficar mais um pouco, outro resolve esperar o amigo por educação, outro resolve ficar por algum motivo, todos ficaram também e ao final, pelo fatalismo gerado. E, nisso, o que se restringia à mansão como um todo vai se reduzindo à sala apenas. O ápice do confinamento ocorre quando o mordomo também está restrito à sala.

    A primeira cena mostra um jovem criado, Lucas, saindo da casa por algum motivo, e aos poucos todos os demais criados (menos o Mordomo de aparência aristocrata) vão saindo da casa às pressas. Primeiro, têm alguma desculpa, estão atrasados para alguma coisa, mas eles não sabem bem o porquê estão saindo.

    Aos poucos, com o desespero da impotência, a fome e a sede, os convidados vão se revelando e mostrando quem realmente são enquanto se despem dos ternos e de suas condutas sociais, traindo seus maridos, roubando, maltratando.

    Existe um histórico político em torno do filme que mostra a burguesia de maneira satírica sendo reduzida a animais conforme se expõem à situação. Inclusive, demonstrando seu desprezo pelos pobres numa fala que expressa esta separação passivo-agressiva. Em determinado momento, ao comentar uma noticiam uma das personagens diz:

    “Vi um descarrilhamento de trem, mas não senti pena das pessoas lá. Acho que os pobres têm mais resistência a dor e sofrimento do que nós, então não me importei. Não é como a morte do príncipe Fulano. Ele sim… Tanta classe, que sua morte foi insuportável”.

    A crítica é política e à instituição da família, mas busca atingir a Igreja Católica e as instituições sempre que possível. Logo no início, cordeiros são sacrificados para o bem da burguesia. O Cordeiro é um símbolo poderoso nas instituições judaico-cristãs, com papéis diferentes em cada uma das religiões de deserto (Islamismo, Judaísmo e Cristianismo), mas presente em todas. O Cordeiro na doutrina cristã é aquele que morre para purificar os pecadores, sendo Jesus de Nazaré o principal cordeiro.

    Fora do contexto político-ideológico, há uma bela mensagem cotidiana. Ora, quantas vezes simplesmente achamos que algo maior nos impede de fazer algo? Uma preguiça, um fatalismo, uma descrença e pessimismo sobre os caminhos da vida, vergonha. Tem algo que simplesmente nos impede de fazer coisas das quais somos plenamente capazes e isso nos angustia fortemente. Não à toa, quem parece ter sido poupado do sofrimento são aqueles que apresentaram alguma empatia na cena inicial, em que um dos mordomos cai enquanto os convidados riem, e também quando um jovem casal, antes de tudo, quer apenas ficar junto. De acordo com Buñuel, a salvação está no amor, uma resolução interessante para um filme com uma postura tão pungente. A solução extrema dessa angústia que ancora nossas vidas é a depressão, que não raramente leva ao suicídio. É engraçado também como a quebra do feitiço ocorre na aceitação da normalidade inexistente, aceitando a realidade absurda e fazendo dela o normal, por mais bizarra que seja.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Review | Arrow – 4ª Temporada

    Review | Arrow – 4ª Temporada

    Arrow-Season-4-Poster

    A péssima terceira temporada de Arrow, de fato, foi um divisor de águas para a produção do show. Se os produtores da CW não apresentassem ao espectador uma obra no mínimo convincente, as chances de um eventual cancelamento seriam praticamente inevitáveis.

    E não foi o que aconteceu. Sinceramente, imagino que Arrow só se mantém no ar por conta do universo compartilhado criado, se apoiando no sucesso de The Flash, além de agora contar com Legends Of Tomorrow e com a recém-chegada Supergirl. Com tantos personagens, a série somente convenceu numa de suas subtramas, que justamente contou a parte final da história de John Diggle (David Ramsey) que, desde a primeira temporada, buscava saber quem causou a morte de seu irmão, Andy. Aliás, a dica já havia sido dada na temporada anterior pelo Pistoleiro e confirmada nessa temporada. A C.O.L.M.E.I.A. estava por trás de tudo.

    Justamente a C.O.L.M.E.I.A., liderada por Damien Darhk (Neal McDonough), que foi a maior ameaça da temporada tirando Oliver Queen (Stephen Amell) da aposentadoria. O herói deixou a agora chamada Star City nas mãos de sua equipe, Laurel Lance/Canário Negro (Katie Cassidy), Thea Queen/Speedy (Willa Holland) e John Diggle (que ganhou um uniforme e o nome de Espartano), mas descobriu que Felicity (Emily Bet Rickards), sua futura esposa ainda trabalhava com o “Team Arrow”. Não demorou muito para a jovem convencer Oliver a voltar à ativa com um novo uniforme preparado por Cisco Ramon, personagem de The Flash e cientista responsável por quase todos os trajes do universo.

    O problema é que todas as medidas tomadas nos roteiros de Arrow são incrivelmente preguiçosas, uma vez que, na temporada passada, para preservar a identidade de Queen como O Arqueiro, Roy Harper, o Arsenal (que fez uma breve participação nessa temporada) se entregou usando o uniforme do Arqueiro, sendo que, mais tarde, forjou sua própria morte. Com isso, Oliver Queen retorna a Star City usando o nome de Arqueiro Verde para preservar o legado do arqueiro original. Isso chega a ser uma falta de respeito com o personagem como um todo. Porém, ainda assim, a equipe precisa enfrentar Damien Darhk e a C.O.L.M.E.I.A., uma organização extremamente poderosa, enquanto Oliver Queen, candidato a prefeito de Star City precisa enfrentar nas urnas sua rival, Ruvè Adams, a esposa de Darhk.

    arrow, black canary and john constantine

    Como dito, a C.O.L.M.E.I.A. é poderosíssima e cerca quase tudo entre nós. Ela possui informantes no governo, na polícia e está sempre um passo à frente de tudo e de todos, o que seria mais do que suficiente para a equipe do Arqueiro Verde ser esmagada. Além do mais, um ponto realmente importante na série é que, pela primeira vez, a magia foi introduzida, o que até então não existia no universo. Tivemos esse primeiro contato na primeira parte da temporada durante os flashbacks, que sempre foram tradicionais no programa. Queen, a serviço da A.R.G.U.S., foi deixado na ilha em que naufragou e lá passa a ter contato com uma organização militar que tem muito interesse no local, sendo que, num determinado ponto, acaba por ajudar um certo homem chamado John Constantine (Matt Ryan), que como forma de agradecimento “transfere” uma tatuagem para o corpo de Queen. A magia persistiu por toda a temporada, uma vez que o próprio Damien Darhk possui consigo um ídolo que lhe dá muito poder. Vale ressaltar que é pelo mesmo ídolo que a organização tem interesse na ilha. E nesse ponto, a produção pecou, pois, como dito, não havia como Oliver e sua equipe competirem com Darhk. Ainda que o confronto com Darhk por toda a temporada tenha provocado muita dor para o time, como a baixa de uma importante personagem. O vilão poderia ter causado o fim de muito mais personagens, já que por diversas vezes teve a oportunidade de acabar com o próprio Arqueiro Verde.

    De qualquer forma, a temporada não foi um desastre.

    Durante a segunda temporada de The Flash, ocorreu a estreia da personagem Kendra Saunders (Ciara Renee). Sua aparição na série serviu para dar origem ao crossover com o Velocista Escarlate e Legends Of Tomorrow. Desta vez, podemos dizer que a reunião dos heróis foi completa, uma vez que Vandal Savage (Casper Crump) tenta assassinar Saunders, a Mulher-Gavião, o que obriga o “Team Flash” a pedir ajuda ao Arqueiro Verde e sua equipe, desta vez contando com todos os personagens das duas séries mais o Gavião-Negro (Falk Hentschel). Esse episódio serviu como aquecimento para a já citada série Legends Of Tomorrow.

    E os crossovers não pararam. Ainda tivemos o sensacional episódio de Legends of Tomorrow que se passou na Star City do futuro, onde temos um Oliver Queen grisalho e barbudo, como no seu visual clássico, mas totalmente diferente daquele que conhecemos. Se pudermos comparar, digamos que ele lembra muito o Batman de Ponto de Ignição. Além do mais, tivemos Diggle e sua esposa, Lyla (Audrey Marie Anderson) fazendo uma participação em Flash, além da versão vilanesca  da Terra 2 de Laurel Lance, como a Dark Siren, uma versão alternativa da Canário Negro, mas que possui os poderes exatamente como nos quadrinhos.

    O final da temporada causou ódio naqueles que gostam da série. Por sorte, por conta dos eventos ocorridos no final da segunda temporada de The Flash, que deverá adaptar Ponto de Ignição, nem tudo está perdido e tudo poderá ser consertado. O curioso é a vida imitando a arte, pois geralmente é o Flash quem salva o dia nas histórias em quadrinhos. Só nos resta saber se será The Flash que salvará Arrow de um cancelamento.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Memórias Secretas

    Crítica | Memórias Secretas

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    Associar o novo filme do diretor Atom Egoyan (com roteiro de Benjamin August) ao cultuado thriller de Christopher NolanAmnésia é quase um reflexo do espectador. Em ambos os casos, o protagonista precisa se lembrar todos os dias das tarefas a serem executadas em busca de algo que o complete na missão. Porém, enquanto Leonard faz o tipo durão e jovem, Christopher Plummer entrega Zev Guttman, um frágil senhor beirando os 90 anos com princípio de demência, subvertendo os clichês do thriller de perseguição.

    Guttman e seu companheiro de uma casa de repouso, Max Rosenbaum (Martin Landau), são ambos sobreviventes de Auschwitz. Max, um antigo perseguidor de fugitivos nazistas, consegue rastrear um último comandante do campo de concentração, aquele diretamente responsável pela morte de seus familiares. Então incumbe a Zev a tarefa de encontrar e executar o carrasco de seus parentes, já que o oficial está usando o nome de Rudy Kurlander, um prisioneiro morto na Polônia.

    Após a morte de sua esposa, Zev sai em busca de seu objetivo, e a excelente interpretação de Plummer nos passa a todo momento a fragilidade de um senhor de tal idade em busca de alguma redenção no final da vida. Enquanto Zev viaja, acompanhamos a busca de seu filho Charles Guttman (Henry Czerny) para tentar encontrar o pai.

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    Após rastrear os primeiros Kurlanders, que depois se descobre que não eram quem procuravam, Zev encontra John Kurlander (Dean Norris), o filho de um antigo nazista e saudosista da guerra. O fato de ele e o falecido pai serem nazistas convictos é usado pelo diretor para salientar uma crítica interessante, pois ambos são “colecionadores” de itens nazistas, uma característica de muitos simpatizantes do nacional-socialismo atualmente. A intensa interpretação de Norris como o neonazista John às vezes beira o exagero, mas realiza a função de nos mostrar a dedicação de Guttman em cumprir seu objetivo. Nessa sequência se destaca um dos pontos fortes do filme, a utilização visual e sonora de alegorias aos campos de concentração que sutilmente assustam o protagonista, como alarmes, bombas explodindo em pedreiras, cachorros latindo, dentre outros.

    Ao encontrar o último Kurlander da lista, o filme caminha para seu clímax, com Zev, Kurlander e Charles juntos. Porém, a escolha de subverter a trama e transformar Guttman em um algoz e em objeto de sua própria busca, apesar de ser momentaneamente interessante, enfraquece o próprio personagem antes estabelecido. Somos, em alguns segundos, obrigados a acreditar que aquele cidadão que viveu por décadas nos EUA normalmente, e só agora mostra sinais de demência, havia esquecido completamente quem era. Além disso, o personagem atinge a redenção por um caminho bem conhecido do espectador.

    Enquanto seu amigo Max Rosenbaum se sente realizado pelo seu ardil em se vingar de dois algozes ao mesmo tempo, o espectador talvez não se sinta da mesma forma. Tamanha construção narrativa poderia ter sido utilizada de forma mais interessante se a subversão pela subversão tivesse sido deixada de lado.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • O Superman de Zack Snyder: Messias ou Anticristo?

    O Superman de Zack Snyder: Messias ou Anticristo?

    superman messiasLeio quadrinhos há 30 anos e sou fã do Super-Homem. Com oito anos de idade, eu pulava do telhado de casa com uma toalha amarrada no pescoço, imitando meu herói favorito. Hoje, me impressiona saber que essa geração se encantou com o versão do Superman de Zack Snyder.

    Irei apontar os erros da nova versão do Superman no cinema e lhes mostrar quem este herói é de fato e o que representa para a humanidade.

    superman-messiasMessias ou Anticristo?

    É impossível falar sobre a origem e construção do mito Superman sem falar de religião, visto que a influência é cristalina. Ele é inspirado no messias judaico-cristão – Jesus – a base de formação de sua mitologia e personalidade. O amor que ele sente pela humanidade foi inspirado no amor de Deus pelos seres-humanos: o amor ágape. Homens e mulheres, quando olham para o Superman, o amam na concepção pura da palavra. Ele representa o ideal de bondade, justiça, pureza, bom caráter, otimismo, alegria, força, simpatia e esperança. É um ideal a ser seguido assim como Jesus; uma verdadeira inspiração para a raça humana e que veio ao mundo, enviado pelo Pai, para ser a “luz” dos povos. Semelhantemente a Jesus, o verdadeiro Superman é um ser humilde e respeita a liberdade, a autonomia da vontade dos seres-humanos. Não foi à toa que o fizeram morrer e ressuscitar; ele é o  “Jesus” dos super-heróis das histórias em quadrinhos.

    Contrariando toda a mitologia do herói, construída ao longo de oito décadas, o Superman de Snyder se assemelha não ao Jesus do cristianismo, mas à figura do Anticristo profetizada no Apocalipse. O Anticristo é a antítese do Cristo e, da mesma maneira o Superman de Snyder é a negação de tudo o que o verdadeiro Homem de Aço representa. Podemos observar isso em dois pontos principais.

    Características emocionais: Apesar de ter sido muito bem criado pelos Kent, recebido amor, uma boa educação e nobres valores de seus pais, vemos na recente adaptação do personagem para o cinema um indivíduo desalmado, perturbado, inseguro, angustiado, confuso, pessimista, desorientado, entenebrecido, desprovido de carisma, ou simpatia, que em nenhum momento representa um exemplo ou símbolo de esperança para os seres-humanos. Assim como o Anticristo do Apocalypse, ele está nas “trevas” emocionais e espirituais e não goza de nenhuma luz interior ou exterior. Jor-El se enganou, pois o messias que ele enviou para ser um guia para a humanidade não cumpriu sua missão, na nova adaptação para o cinema. Um ser tão poderoso e tão emocionalmente instável representa um grande perigo para a humanidade. Bruce estava realmente certo. São pessoas com essas mesmas características emocionais que um belo dia surtam e saem matando inocentes, num dia de fúria. Basta apenas que algo acione o gatilho…

    Atuação política: O Anticristo – segundo as profecias do livro do Apocalipse – será um governador mundial que, outrora um grande líder politico, se relevará como um tirano e governará o mundo à sua maneira. Vimos um lampejo dessa distopia, na qual o Superman assume o perfil de um anticristo em um dos sonhos de Bruce Wayne – aparentemente o  líder da resistência contra o regime opressor é capturado e executado pelo próprio Homem de Aço. O Superman de Snyder é um verdadeiro perigo para o mundo, pois é um vilão e ainda não sabe disso. Tudo isso, é óbvio, aponta para Injustice. A maior fonte de inspiração para a construção do Universo DC no cinema é um jogo de vídeo-game…

    E aqui vai minha crítica a Warner: uma das funções sociais da arte é levar esperança, alegria e otimismo às pessoas. No mundo em que vivemos, tomado por guerras e iminências de guerras, onde se mata o diferente e não há amor e respeito ao próximo, essa mensagem através da arte é indispensável e fundamental para a civilização pós-moderna. Hoje, mais do que nunca, precisamos do verdadeiro Superman-messias, o personagem mundialmente conhecido como um dos maiores representantes da paz e da tolerância entre os povos. Um ser que milita pela Paz na Terra, como Paul Dini e Alex Ross mostraram ao mundo. Por que não enfatizar essa faceta que é o diferencial do personagem? As crianças precisam crescer e os jovens envelhecer com esse referencial de herói. Um personagem que deveria ser a celebração da vida e da paz, e que nas mãos erradas se tornou o enaltecimento da destruição e da morte. É esse Superman de Injustice que as pessoas de um mundo corrompido como o nosso precisam ver no cinema?

    Saudades de Cristopher Reeve e Richard Donner

    superman cidade destruida“Uma Metamorfose Ambulante”

    O que costumeiramente ouço falar para justificar a caraterização do Superman de Snyder é que ele é um personagem em desenvolvimento, que ainda não é o Superman. Mas esse argumento não subsiste quando analisamos a trajetória desse herói no cinema. Ora, se ele havia enfrentado três kryptonianos e até executado um deles (em O Homem de Aço); se ele já estava na atividade como Superman há mais de dois anos, teve dois filmes, havia se envolvido em vários eventos, enfrentou o Batman, Lex Luthor, integrou a “Trindade da DC” juntamente com Batman e Mulher-Maravilha; se ele já havia vencido o Apocalypse e até mesmo morrido, o que faltava para ele ser o Super-Homem, para que se alegue que ele ainda estava em desenvolvimento? Lembremos que Jesus – a fonte de inspiração do Superman – já era o Cristo antes mesmo de haver morrido, mas o “Superman” não era o Superman antes de sua morte no longa? Esse personagem do novo filme da DC no cinema está em processo de formação, mas não para se tornar um herói completo, mas de um vilão, pois, afinal, pelo roteiro desenvolvido, o futuro da DC no cinema culminará no Superman-anticristo de Injustice.

    Na verdade, o argumento do processo de “evolução” dessa versão do Homem de Aço do diretor Zack Snyder foi um subterfúgio para defender e justificar uma abordagem rasa do personagem, que não deu certo e foi execrada pelos críticos e milhares de fãs. Era uma abordagem que tinha a pretensão de mudar um mito, fazendo algo “revolucionário”, o “novo” e “moderno” superando o “antigo e ultrapassado”. Mas Snyder deixou claro que não dá para mudar para melhor algo que não se conhece, no máximo destruir.

    Esse indivíduo em Batman vs Superman: A Origem da Justiça, o qual chamam de Superman, morreu no referido filme, e o que era para ser o maior evento dos últimos tempos no cinema não causou nenhum impacto na indústria cinematográfica ou do entretenimento. Não se viu uma nota em um jornal sequer sobre a Morte do Homem de Aço. Em 1990, um simples gibi fez o mundo chorar ao apresentar, de maneira dramática marcante e comovente, a morte desse super-herói. Hoje, o cinema, com todos os recursos que possui, não conseguiu projetar a mesma comoção sobre as pessoas e causar a mesma repercussão na mídia.

    superman funeral filme

    Lamentavelmente, no filme em que o maior super-herói da história sucumbe, o destaque maior é a abertura de pernas da Mulher-Maravilha, que por sinal foi uma personagem mais definida, determinada e autoconfiante, segura de si e de sua função no mundo, do que o tal do homem de aço. A mídia e os verdadeiros fãs não sentiram “A Morte do Super-Homem” porque não teve um Super-Homem para morrer e consequentemente lamentar isso. Não houve empatia alguma porque laços de afinidade, admiração e carinho não foram estabelecidos entre Superman e os espectadores. O mundo não amou esse Superman.

    Snyder se preocupou muito mais em mostrar os músculos do Super-Homem do que a sua alma, e isso agradou a muitas pessoas de uma geração que não tem a mínima noção dos ideais que esse personagem representa e transmite para a humanidade e, por isso, dizem que o Superman era “bonzinho” demais e que precisava “evoluir”, “mudar” e se “modernizar”. Ocorre que os ideias e virtudes de um herói como ele são atemporais

    Snyder não desnudou a alma do Superman porque não deu nenhuma alma para ele. Devido a esse fato, brindou os fãs com um Superman de vídeo-game, arrasa-quarteirão, com o apelo sexual de um gogo boy. Abordagem mais superficial de um herói musculoso e que usa collant, impossível.

    Não acredito que de um processo de “metamorfose”, de “mudança”, realizado por pessoas com tamanha imperícia, saia algo bom…

    superman red eyes

    Um deus sem sua Glória?

    Se houvesse a categoria no Oscar de “pior adaptação de um personagem de quadrinhos para o cinema”, o herói do diretor Zack Snyder seria o mais forte candidato à premiação. Essa é, sem dúvida, a pior adaptação do super-herói realizada pela Warner, inferior, inclusive, até a considerada fraca versão do Superman – O Retorno, lançada em 2006. Mas, para quem começou a ler quadrinhos ontem e não acompanha o herói por três ou quatro décadas, e o conhece como “Superman” e não “Super-Homem”, vai se maravilhar com essa versão fast-food e cheia de esteroides do maior herói da história dos quadrinhos, que teve a sua grandeza reduzida a nada. Super-Homem é muito mais que um “corpo sarado e rosto bonito” que, para o diretor e sua equipe, foi a principal virtude dessa versão. A glória do personagem não se fundamenta na efemeridade, mas em uma alma iluminada, um caráter nobre, um herói perfeitamente definido.

    superman vs batman

    Por isso que Batman, como único herói de uma produção cinematográfica, conseguiu fazer arrecadar um bilhão de bilheteria, (Batman: O Cavaleiro das Trevas, Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge), mas, quando se juntou a esse Superman fake, não teve o mesmo desempenho, mesmo apresentando sua melhor versão para o cinema. O que aconteceu é que Batman e Mulher-Maravilha levaram o filme Batman vs Superman nas costas. Não houve um “fator Superman” para contribuir com a bilheteria; ele foi praticamente um elemento neutro nesse quesito.

    Mas, para que a destruição desse mito no cinema fosse completa, Snyder mostra seu total desprezo pelo Super-Homem ao fazê-lo levar uma surra exageradíssima do Batman (o qual faltou apenas cuspir no rosto do Homem de Aço). Desvalorização da moral do maior super-herói da história se consumará no filme da Liga da Justiça, e no qual Superman não será líder da equipe em sua primeira adaptação para o cinema. O líder será o mesmo Batman que o desmoralizou.

    É assim que se trata uma lenda?! Uma coisa é fazer uma nova versão de um herói; outra bem diferente é desmoralizá-lo e reduzi-lo a nada! O Superman de Snyder não é um “falso deus”; é um deus, sim! Mas um deus sem a sua grandiosidade; um deus sem a sua glória.

    Esse personagem tinha qualquer coisa menos  a “essência” – ou a alma – do Homem de Aço. O que eu testemunhei no cinema foi a desconstrução, humilhação e o escárnio de um mito que admirei por 30 anos. Um filme retratando o mito Superman dessa maneira, é óbvio que não daria certo. Se Superman é tipologicamente o messias, seria Snyder o Judas que o traiu? Assim como os algozes de Cristo, Zack Snyder cuspiu no Superman.

    Texto de autoria de Jamy Milano.

    superman alex ross

  • Review | Assassin’s Creed

    Review | Assassin’s Creed

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    Lançado em 2007 pela Ubisoft, Assassin’s Creed se tornou precursor de uma das sagas de games mais famosas da atualidade. A aceitação do público e a expansão de seu universo propiciaram uma adaptação cinematográfica, que estreará no final do ano; o game seguiu o mesmo caminho de outras franquias, como Resident Evil e Tomb Raider. Considerando o uso de elementos históricos somado a gráficos impressionantes e boa jogabilidade, é fácil compreender o sucesso alcançado.

    A trama apresenta uma disputa secular entre templários e assassinos, em que ambos procuram por um artefato chamado Piece of Eden, com o intuito de usá-lo para estabelecer paz e ordem entre os homens. Porém, seus métodos e interesses acabam por conflitar ao longo da busca. A ação do jogo ocorre na Terra Santa, durante a Terceira Cruzada, e o implacável Altaïr é designado para eliminar nove indivíduos considerados traidores. Contudo, esse cenário é uma projeção em realidade aumentada de lembranças passadas do bartender Desmond Miles, mantido refém pelos cientistas da Abstergo (uma indústria farmacêutica de proporções mundiais, comandada por templários) nos tempos atuais. Desmond é iniciado ao sistema do Animus, um dispositivo capaz de reproduzir as memórias contidas nos genes, e obrigado a refazer os passos de seu ancestral na procura pelo cobiçado objeto.

    A movimentação de Altaïr nos ambientes lembra a mesma da trilogia Prince of Persia, uma variação do Parkour: é possível escalar paredes e construções espalhadas pelo vasto Reino de Jerusalém. O que leva a uma peculiaridade do jogo: os pontos de observação servem como mapeamento do local, logo chegar ao topo dos prédios e realizar o salto de fé (que nada mais é do que se jogar da beirada e ser amortecido por montes de feno, um ‘atalho’ para voltar ao chão mais rapidamente) são uma atividade recorrente, um tanto cansativa, mas que ainda assim compensa pelas belas imagens panorâmicas.

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    Na busca pelos traidores, o protagonista nos leva do castelo de Masyaf aos escombros deixados pela guerra em Acre, e às mesquitas e sinagogas de Damasco e Jerusalém. As cores claras e a riqueza de detalhes impressionam: os prédios e suas minuciosidades, as sombras projetadas de Altaïr, as cidadelas, distritos e souks (mercados) cheios de gente. É provável que, sendo rodado em PC, o jogo apresente alguns lags por conta da alta resolução. Como sempre, é bom verificar se o computador tem as configurações necessárias para rodar sem problemas. Por outro lado, pouquíssimos lags ocorreram quando jogado no PlayStation 3.

    As características furtivas, inspiradas nos métodos dos lendários hashshashin, são outro destaque com o rastreio dos alvos, eliminação e camuflagem em meio à multidão. No entanto, o arsenal disponível é bem reduzido, tendo à disposição apenas a lâmina escondida, facas e espada. Outra limitação se refere à ofensiva de Altaïr, cujas técnicas são gradualmente aprendidas durante a trama: os combates diretos ainda são um tanto ‘engessados’ e há poucas variações de ataque e defesa. As missões paralelas à campanha principal também figuram como ponto fraco, uma vez que estas se resumem a contatar informantes, espionar os cidadãos e realizar pequenas tarefas para obter informações. Todos esses aspectos, para a satisfação dos ardorosos fãs da saga, serão aperfeiçoados nos títulos seguintes.

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    Conforme são abatidos, seus alvos revelam a convicção de estarem fazendo o que acham certo, e o protagonista passa a questionar as ordens e motivações de seu mestre, Al Mualim, que, por sua vez, mantém-se austero quanto ao discípulo. A narrativa atinge seu ápice quando as dúvidas de Desmond e Altaïr convergem para a descoberta da ‘verdade’ que seus opressores insistem em esconder. Nessa realidade mostrada em Assassin’s Creed, os feitos de todos esses homens influenciaram, e por vezes alteraram, o curso da história da humanidade. Mesmo com alguns pontos a serem melhorados, o jogo empolga pelo enredo instigante e passível de estender-se em outras sequências, e também pelos comandos simples e mundo aberto a ser explorado, através de uma intrigante causa que move Altaïr. Afinal nada é verdade, tudo é permitido.

    Compre: Assassins Creed

    Texto de autoria de Carolina Esperança.

  • Crítica | Casamento Grego 2

    Crítica | Casamento Grego 2

    Casamento Grego 2Com diferença de 14 anos em relação ao primeiro filme, Casamento Grego 2 chegou aos cinemas em 2016 com a missão de continuar a história bem-sucedida da película independente com o segundo maior lucro da história do cinema, perdendo somente para A Paixão de Cristo.

    Após descobrir que não estavam casados nesses quase 50 anos, o patriarca e a matriarca dos Portokalos decidem se casar e fazer uma grande festa.

    Novamente com roteiro de Nia Vardalos, a narrativa conseguiu entregar uma história bem estruturada e redonda, com todas as boas motivações dos personagens principais. Tudo está onde deveria estar, e a trama anda de maneira orgânica. Porém, traído talvez pelo monstro da expectativa, Casamento Grego 2 difere bastante do primeiro, e de forma negativa.

    Enquanto Casamento Grego conquistou o público justamente pelo charme de uma comédia romântica mostrando o choque cultural entre o americano médio e a cultura grega, tão pouco explorada no cinema, o novo filme falha mesmo com o mérito de usar uma nova fórmula ao manter o casamento entre os gregos mas sem o peso dramático do choque cultural. Porém, não bastou promoverem situações cômicas na relação social dos diversos personagens.

    O que dá frescor à narrativa é a melhor personagem do filme, Paris. Filha de Toula e Ian, a sua dinâmica no último ano da escola e a preparação para ir à faculdade deixam o filme muito mais interessante através das questões abordadas, como a de deixar o filho seguir seu caminho. Diferente da mãe, Paris rejeita a sua origem, as ordens que os familiares lhes dão e os planos da família. A sua relação com Bennett, que também se descobre um descendente de gregos, é muito mais válida do que a narrativa principal, e talvez, se o filme fosse focado neles ou em seu casamento, produziria maior qualidade para a história.

    A direção de Kirk Jones é padronizada em se tratando do enquadramento e do tom do filme, mas não chegou a comprometer o roteiro. O seu forte é a direção de atores, que conseguiu extrair uma boa mise-en-scène das cenas cômicas.

    Ao lado do roteiro, a atuação é o grande trunfo do filme. Vardalos continua uma boa protagonista mantendo seu carisma, enquanto John Corbett está no automático. As situações constrangedoras da família continuam a funcionar para uma comédia, com destaque para a engraçada Andrea Martin, que dá vida à tia Voula, Lainie Kazam, que interpreta a matriarca Maria, e Michael Constantine, o patriarca Gus. A grata surpresa no elenco está em Elena Kampuris, que consegue dar alguma profundidade a Paris, a adolescente que tem vergonha da família e está nervosa quanto a seu futuro incerto.

    A direção de fotografia de Jim Denault é naturalista e não se destaca em nenhum momento. A edição de Mark Czyzewski dá o bom ritmo do filme, mas também não se sobressai.

    Casamento Grego 2 deve agradar a quem gostou dos personagens do primeiro, o que acabou funcionando para trazer um frescor ao gênero.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Janela Indiscreta

    Crítica | Janela Indiscreta

    rear windowConsiderado um dos grandes filmes de Alfred Hitchcock, Janela Indiscreta se tornou um clássico do cinema principalmente pela metalinguagem que referencia a narrativa visual. Destacou-se também pela qualidade de roteiro, direção e atuação.

    Com a perna imobilizada devido a um grave acidente, um fotógrafo espia seus vizinhos e começa a investigar um deles, convencido de que este praticou um assassinato.

    Baseado no conto de Cornell Woolrich, o ótimo roteiro de John Michael Hayes, que trabalhou com Alfred Hitchcock em outros filmes, tem uma estrutura tão sólida que sustenta quase duas horas ambientadas quase que exclusivamente em um único cenário e utilizando apenas quatro atores.

    O fato do protagonista Jefferies ser um fotógrafo comercial é a desculpa perfeita para ele viver um curioso que se interessa pelos seus vizinhos e os espia pelo zoom de suas lentes, produzindo uma das maiores metáforas da história do cinema. Nós, como ele, estamos espiando esta história pela lente do diretor de fotografia do filme, sem sequer pedirmos autorização para invadir a privacidade alheia, que no caso são os personagens. A janela “indiscreta” de sua casa também é a janela do filme, é o enquadramento do fotograma. A discussão levantada por Hitchcock vai ao ponto central sobre a ética da privacidade, questionada o tempo todo pelos personagens que cercam o protagonista.

    Outro grande trunfo do roteiro é fazer com que elementos de ambientação, no caso os vizinhos, deixem de ser figurantes e se tornem personagens do filme. É bem definido o papel de cada um através da ação, dentro de seus apartamentos. Como eles não falam, cabe a Jefferies, inclusive em outra referência ao cinema, fazer o papel do espectador do cinema mudo e interpretar seus gestos. Isso provoca no personagem a desconfiança em um dos vizinhos que move a trama.

    A ótima direção de Alfred Hitchcock se baseia na direção de atores com marcação visível, influenciada pela estética teatral. Hitchcock consegue dar um peso dramático aos objetos de cena que passariam desapercebidos, como o binóculo, a câmera e as lentes, além dos objetos que caracterizam as casas dos vizinhos. Destaque ainda para a câmera que passeia pela vizinhança como se estivesse pintando-a ao mostrar cada um dos moradores.

    James Stewart consegue carregar a narrativa como protagonista e impressiona pelo seu carisma, apesar de uma atuação teatral e marcada. Grace Kelly, Wendell Corey e Thelma Ritter completam o elenco principal e convencem pelo bom texto.

    A boa fotografia de Robert Burks, que trabalhou com o diretor em outros filmes, é visivelmente cenográfica, recortada em diversas cenas e não naturalista. Ela se destaca nas cenas em que Jefferies espiona seus vizinhos, e na sequência final. A edição de George Tomasini, também parceiro de Hitchcock em outros filmes, impressiona por ter deixado o filme com um ótimo ritmo, tendo em vista que a película se passa em um único cenário. A edição também se destaca na sequência final.

    Janela Indiscreta é um dos poucos filmes que conseguiu não somente fazer referência ao próprio meio, como também levantou grandes questões acerca de tudo que envolve o processo.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Review | Sakurasou no Pet na Kanojo

    Review | Sakurasou no Pet na Kanojo

    sakurasou-no-pet-na-kanojoJá mencionei em outros textos o quanto é difícil acompanhar todos os lançamentos de animações japonesas a cada temporada. Os animes e mangás fazem parte de uma indústria cultural poderosa dentro do Japão, e a qual está sempre produzindo bastante coisa nova. Porém, para quem simpatiza com essa mídia oriental, é muito comum darmos atenção para alguns títulos principais que acabam chamando mais atenção do que outros (seja porque já faziam sucesso antes nos mangás ou porque ganham maior destaque pelos estúdios de animação que os produzem). E é por esse motivo que às vezes vale a pena revisitar temporadas passadas e redescobrir títulos que eventualmente passam batidos.

    Em outubro de 2012 era lançado o anime Sakurasou no Pet na Kanojo (A Garota de Estimação da Pensão Sakurasou, em tradução livre), adaptado de uma série de 10 livros (também conhecidos como light novels no Japão), escrita por Hajime Kamoshida e desenhada por Kēji Mizoguchi. Sakurasou é um dos dormitórios do colégio Suimei conhecido por abrigar as personalidades mais excêntricas do colégio. Um dia, o estudante Kanda Sorata é mandado para lá, expulso do dormitório normal porque abrigava e cuidava de inúmeros gatos de rua em seu quarto. A vida de Sorata muda com a chegada da aluna Mashiro Shiina, uma garota que não consegue fazer nada sozinha, exceto pintar e desenhar. Mashiro é uma artista famosa mundialmente pelos seus quadros e Sorata se vê forçado a cuidar dela, dentro de um dormitório com diversas personalidades peculiares.

    Sorata é o típico adolescente comum: indeciso e angustiado com seu futuro. Seu contraponto direto na história é a própria Mashiro, que apesar de ser desajustada socialmente sonha em virar uma mangaka de sucesso (apesar de já ser uma pintora conhecida). Sorata tem dificuldade em aceitar o jeito de Mashiro e às vezes acaba sendo cruel, apesar de começar a nutrir um carinho especial pela garota Na mesma casa, temos também Misaki Kamiigusa, garota hiperativa e bastante talentosa que já tem sua própria série de anime sendo exibida na TV; Jin Mitaka, o mulherengo e, ao mesmo tempo, o mais maduro da casa, que sonha em ser um grande roteirista; e Ryuunosuke Akasaka, programador, gênio e completamente anti-social.

    Sakurasou no Pet na Kanojo é uma comédia romântica dramática leve, que mostra que a beleza está em seus personagens e nas relações que eles têm entre si. É uma história sobre maturidade, crescimento pessoal e relações humanas, que gera um sentimento agradável nas reflexões das situações ordinárias de nossas vidas.

    Sakurasou no Pet na Kanojo poster

    Na primeira impressão Sakurasou no Pet na Kanojo aparenta ser um anime cheio de fan service, com closes de calcinha e humor bobo, mas o anime vai além e busca conversar sobre assuntos delicados de nosso cotidiano. É uma obra sobre o dia a dia que navega muito bem entre o bom humor e dramas adolescentes, como nossas próprias vidas (talvez não com tantos exageros típicos de animações japonesas, mas enfim).

    Sakurasou esbanja momentos engraçados, mas não se envergonha em tratar o lado mais obscuro da vida. Impossível não se identificar com os anseios, medos e inseguranças dos personagens em algum momento, seja no amor não correspondido, nas amizades verdadeiras, nos fracassos profissionais, nos arrependimentos, nas escolhas certas e erradas e tudo o que soma às nossas experiências de vida.

    Talvez esse seja a maior qualidade de Sakurasou no Pet na Kanojo: nos faz sentir em “casa”. Com o passar dos episódios, ver os personagens evoluindo e, apesar das dificuldades, se encontrarem cada um no contexto de suas vidas é gratificante e aquece a alma. Com certeza um título recomendável para quem aprecia animações japonesas de gêneros diferentes dos tradicionais animes de ação e super-poderes.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Review | Super Metroid

    Review | Super Metroid

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    Se eu fosse um desenvolvedor de jogos, um dos meus principais objetivos como realizador seria trazer o maior fator de replay junto à imersão para meu projeto. Esse é sem dúvida um dos desafios mais presentes dentro das desenvolvedoras da atualidade, com jogos como Dark Souls renovando essa sensação em gameplay e praticamente estimulando o jogador a refazer todo o seu trajeto mais de duas vezes à procura de coisas que ele nem mesmo percebeu que estavam ali. Tudo isso muitas vezes é influência do consagrado Castlevania: Symphony of the Night, de 1997, que não só trouxe essas duas características de maneira cíclica e fractal, como também conseguiu marcar o início do subgênero conhecido como Metroidvania, trazendo filhos independentes dentro desse mesmo preceito. Em 1994, Yoshio Sakamoto e sua equipe, antes mesmo de Koji Igarashi, refinaram de maneira significativa sua própria fórmula com o terceiro título da franquia, Super Metroid, e é sobre esse jogo que faremos algumas considerações.

    Não que cronologia importe muito nos jogos da Nintendo, mas cronologicamente Super Metroid é o terceiro jogo da franquia, a sequência direta de Metroid 2 para Gameboy e o antepenúltimo da franquia, seguido por Metroid Other M para Wii, e Metroid Fusion para Game Boy Advance.

    Praticamente despido de diálogos, os momentos iniciais do jogo dão a única minúcia de texto que vai apresentar. Em compensação, é gritante como a falta a NPCs ou diálogos expositores não diminuem em nada o interesse em apenas prosseguir, aumentando a imersão através do cenário. É como se o único elemento que conversasse de verdade com o jogador fosse o próprio mapa, que está a todo o momento desafiando sua capacidade de continuar a seguir caminho por ele e descobrir qual é a sua extensão, enfrentando seus inimigos e descobrindo seus segredos.

    Essa faceta de mundo semi-aberto 2D plataforma é o maior aspecto da imersão do jogo. Não basta apenas seguir caminho sem ter alcançado o tanque que libera mais um míssil no seu armamento, ou alcançando aquele último quadrado vazio do canto no mapa que parece levar para um caminho diferente do habitual, ou descobrir a janela de tempo correta para fazer Samus quicar na parede até o topo de outra área do mapa sem necessidade de um upgrade. É intrigante como a maior recompensa da jornada é descobrir uma área nova ou um método de acessar uma parte do planeta Zebes, que estava bloqueada por algum obstáculo estranho, e os próprios upgrades na armadura de Samus são a porta para essa quebra de barreira. Isso faz com que tudo dentro do level design seja cíclico e autopreenchido, fazendo com que você muitas vezes revisite o mesmo lugar repetidas vezes na esperança que daquela vez o upgrade seja o correto para prosseguir.

    Pode ser que esse não seja o maior trunfo de Super Metroid como realização, mas talvez seja o melhor fator replay já feito. Você sente que já jogou aquilo algumas vezes dentro da primeira jogada de maneira orgânica. Em Symphony of the Night você se vê na obrigação de explorar aquele mundo novamente como parte da própria exploração, utilizando até outro personagem se quiser. Porém, tornar a primeira viagem algo tão cíclico dentro dos objetivos é um polimento tão sutil e refinado quanto não ter um único loading em momento algum.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Review | Game Of Thrones – 6ª Temporada

    Review | Game Of Thrones – 6ª Temporada

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    Game Of Thrones é a adaptação para a TV da obra literária conhecida como As Crônicas de Gelo e Fogo. Cada livro é composto de um subtítulo, sendo que o subtítulo da primeira obra é justamente o nome da série criada por David Benioff e D. B. Weiss e desenvolvida para a HBO. Desde o início, ficou claro que cada temporada lançada adaptaria um dos livros dessa saga criada por George R. R. Martin, sendo que o terceiro, o maior de todos até aqui, precisou de duas temporadas para ser adaptada. Com o passar do tempo, ficou claro que Benioff e Weiss chegariam a ultrapassar Martin ante a demora do escritor em lançar o sexto livro, previamente chamado de Winds of Winter. Se na temporada anterior já tivemos alguns vislumbres que ainda não foram reportados nos livros, essa sexta temporada, definitivamente, mostrou que os showrunners de fato assumiram o controle criativo da série (obviamente sob a supervisão e consultoria de Martin) e o resultado, acredite, foi satisfatório, superior e promissor.

    Assim como nas temporadas anteriores, seguimos acompanhando a sofrida história da casa Stark, bem como a história das casas Lannister e Targaryen, e suas relações com as casas que, embora menores, possuem suma importância para o desenvolvimento da história e dos protagonistas.

    A Casa Lannister ficou enfraquecida após a morte de Lorde Tywin (Charles Dance) na quarta temporada, o que permitiu mais poderes para que Alto Pardal (Jonathan Pryce) de Porto Real aprisionasse e julgasse os pecadores da cidade. Por conta da prisão da Rainha Margaery Tyrell (Nathalie Dormer) e de seu irmão, Sir Loras Tyrell (Finn Jones), o Rei Tommen (Dean-Charles Chapman) acaba por fazer uma aliança com o líder religioso, colocando fim, inclusive, no famoso julgamento por combate, o que coloca Cersei Lannister (Lena Headey) numa difícil situação, ao mesmo tempo que seu irmão, Jaime (Nicolaj Coster-Waldau), precisa viajar para tomar Correrrio sob proteção do Peixe Negro.

    Ainda que os acontecimentos deste núcleo tenham sido arrastados e extremamente tímidos – com exceção de uma cena ou outra em que o Montanha (Hafþór Júlíus Björnsson) está em ação, ficou claro que havia um motivo para ser assim, uma vez que o último episódio da temporada guardou em sua abertura um lindo retorno triunfante ao poder e cheio de resquícios de maldade vindos de Cersei. Tecnicamente, a cena é muito bonita e ao mesmo tempo chocante, acompanhada de uma bela trilha sonora que faz com que o espectador até torça pela maldade da Rainha-Mãe, que não fala uma palavra sequer durante todo seu tempo em tela. O curioso é que, logo no começo da temporada, Tyrion conta a Daenerys os reais motivos de Jaime ter matado o pai da Não Queimada, Aerys II (o Rei Louco), e quais as suas intenções para com Porto Real caso perdesse a guerra. Esse pequeno diálogo passa a fazer todo sentido depois que vemos a citada cena de abertura do último episódio da temporada.

    O núcleo de Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) há tempos vem sendo o mais fraco de toda a série, e com isso todos os personagens ao seu redor enfraquecem também. Obviamente, sabemos que sua resolução será grandiosa, porém incomoda que todas as situações vividas pela Khaleesi sejam impiedosamente repetidas. Parece que há uma espécie de fórmula, sendo ela composta da seguinte forma: Daenerys acha que é poderosa o suficiente e começa a passar por sérias dificuldades, no entanto a solução para se livrar do problema é sempre um deus ex machina, carinhosamente chamado de “dragões ex machina”, e tudo termina com um discurso de guerra extremamente motivador na língua nativa daquele respectivo povo a que ela se dirige. Pelo menos, desta vez, tivemos o retorno dos Dothraki, o que favorece o Vale Dothraki e todo o seu povo. Enquanto isso, Tyrion Lannister (Peter Dinklage) e Lorde Varys (Conleth Hill) lutam para achar a melhor saída para a paz em Meereen, enquanto Daenerys está desaparecida. Ainda assim, os acontecimentos nesse núcleo foram de extrema importância, já que muitas das casas menores presentes no universo criado por Martin estão fazendo alianças com aqueles que acham que tem a razão. Dessa forma, Daenerys faz sua primeira aliança com uma casa de Westeros, partindo com todo seu exército de Imaculados, juntamente com os Dothraki, nos navios construídos pelos Greyjoy, sob o comando de Yara (Gemma Whelan) e Theon Greyjoy (Alfie Allen).

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    Mas, definitivamente, essa sexta temporada teve os Starks como protagonistas. A sofrível jornada dos irmãos separados ao final da primeira temporada, finalmente, começou a dar indícios de que a vida de Bran (Isaac Hempstead Wright), Arya (Maisie Williams), Sansa (Sophie Turner) e Jon Snow (Kit Harington) começará a melhorar em breve.

    Por conta do desfecho ocorrido ao final da temporada anterior, o foco principal foi a morte de Jon Snow, traído por companheiros da Patrulha da Noite. Numa tentativa desesperada de trazer o Lorde Comandante de volta à vida, Sir Davos Seaworth (Liam Cunningham) e os melhores amigos de Snow recorrem a Melisandre (Carice van Houten), que ressuscita o guerreiro. Nesse meio tempo, Bran continua seu treinamento junto com o Corvo de Três Olhos (Max von Sydow), revisando parte do passado de seu pai, Ned Stark e de alguns personagens que até então só apareciam em relatos. Sansa e Theon ainda fogem do domínio do cruel Ramsay Bolton (Iwan Rheon) e Arya, agora cega, vive mendigando pelas ruas.

    Ocorre que o desenvolvimento do núcleo Stark nessa temporada foi muito semelhante ao dos Lannisters, porém alguns acontecimentos envolvendo a família causaram muita reação e permanecerão na memória dos fãs por muito tempo. Primeiro com relação a Bran: devido a sua condição física, o jovem Stark precisa ficar parado a maior parte do tempo, mas é através dele que descobrimos o que de fato aconteceu com seu amigo Hodor (Kristian Nairn) e sua demência, em uma cena de partir o coração, além de abrir um infinito leque de opções ao personagem em relação a que caminho seguir. E segundo porque Jon Snow passa boa parte do tempo imaginando uma forma de retomar Winterfell para sua família. Num desses momentos, conhecemos a menina Lyanna Mormont (Bella Ramsey), responsável pela Casa Mormont, a mesma casa de Sir Jorah Mormont (Iain Glenn), mais um grande momento da temporada.

    Seguindo a tradição de inserir grandes acontecimentos nos últimos momentos, foi reservada para o nono episódio a Batalha dos Bastardos, que com certeza entra para o rol das mais sensacionais cenas de duelo da história da televisão, tanto tecnicamente quanto narrativamente. Só de equipe técnica, houve uma mobilização de 600 pessoas, além de cerca de 500 figurantes, toneladas e mais toneladas de cascalhos, além de cavalos e dublês para gravar uma cena que levou, ao todo, quase um mês de gravação. E o resultado foi espetacular. Vale destacar que a batalha teve várias influências de O Senhor dos Anéis na visão de Peter Jackson para As Duas Torres e O Retorno do Rei. Apenas a título de curiosidade, o canal CW leva cerca de duas semanas para filmar um episódio inteiro de seus seriados.

    A sexta temporada de Game Of Thrones, sem dúvida, foi uma das mais regulares desde sua estreia em 2011. De qualquer forma, por conta de todos os acontecimentos, ficou mais que evidente que a história de fato está caminhando para chegar ao fim. Afinal, o inverno chegou e só teremos mais duas temporadas com um número reduzido de episódios. Aparentemente, muita coisa ainda precisa ser resolvida. Só nos resta, por enquanto, aguardar mais um ano.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | A Senhora da Van

    Crítica | A Senhora da Van

    a senhora da van

    Baseado em fatos “quase” reais, conforme o espectador é avisado logo no início, o filme conta a história de uma senhora que, após se envolver num acidente de trânsito, passa a viver em sua van. A história é contada do ponto de vista do escritor e autor teatral Alan Bennett (Alex Jennings), responsável pelo roteiro.

    Em 1970, Bennett morava em Camden Town, bairro de Londres que Mary Shepherd (Maggie Smith) adotara como residência. Estacionava seu veículo em frente a alguma casa e ficava por lá durante algum tempo. Devido a seus hábitos pouco higiênicos, os moradores não gostam de sua presença e conseguem, junto à prefeitura, que não seja mais permitido estacionar naquela rua. Se a intenção era que ela deixasse o local, o efeito foi inverso. Bennett, compadecido e ao mesmo tempo curioso, permite que Mary estacione a van em sua vaga na garagem, já que ele mesmo não possui automóvel. O que era para ser temporário, uma estadia de duas ou três semanas até que Mary resolvesse sua situação, acabou durando 15 anos.

    Típica comédia inglesa, de humor leve, por vezes ácido, que se sustenta na figura sempre emblemática de Maggie Smith. Muito diferente da Condessa de Grantham, sua personagem em Downton Abbey, Smith encarna a fétida e teimosa sem-teto com a maestria de sempre. Aliás, é sua presença que faz o filme ser um pouco mais que apenas mediano, já que o roteiro é bem esquemático, sem muitos arroubos de originalidade. Talvez o único ponto fora da curva, menos convencional, seja o fato de o alter-ego de Bennett estar presente fisicamente em cena. Bennet se divide em dois, o que vive e o que escreve. Eles conversam entre si e é nessas conversas que o espectador vê reproduzidas suas dúvidas e observações sobre o comportamento incomum de Mary e sobre o relacionamento ainda mais incomum entre ela e o escritor.

    Mas apesar desse detalhe na representação de Bennett, o personagem carece de carisma. O que sobra em Mary – e que certamente deve boa parte à atuação de Smith – falta em Bennett. E nem é culpa de Jennings. O personagem é apático e gera pouca ou quase nenhuma empatia com o espectador. Mesmo sendo um bom contraponto à atitude enérgica e mandona de Mary, poderia ter sido construído com um pouco mais de tempero, o que teria agregado valor à história. Talvez o escritor seja assim na vida real, mas estamos falando de cinema, e liberdade criativa em prol do enriquecimento da narrativa é sempre bem-vinda.

    Há até um certo mistério na trama, já que se sabe muito pouco sobre o passado de Mary. Por que passou a morar na van depois do acidente? O que ela fazia antes disso? Quem é o homem que aparece algumas vezes para interpelá-la? Quem é o homem que ela visita periodicamente? Todas essas questões ficam pairando no ar até faltar cerca de vinte minutos para o final do filme. Mas nem mesmo isso faz o público se interessar mais.

    Enfim, é agradável de assistir e vai muito bem acompanhado de alguns biscoitos do chá das cinco.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Jardim das Palavras

    Crítica | O Jardim das Palavras

    o jardim das palavrasTakao Akizuki é um estudante de 15 anos que um dia aspira ser um fabricante de sapatos. Em manhãs chuvosas, Takao deixa de fazer a baldeação no metrô e decide matar as primeiras aulas do dia para poder dar uma volta pelos jardins do Parque Nacional Shinjuku Gyoen (localizado em Tóquio). Se acomodando debaixo de um “pergolado” para desenhar sapatos femininos, Takao conhece Yukino, que coincidentemente sempre está presente nas manhãs de dias chuvosos – o que ocorre com certa frequência considerando a época de chuvas (junho, no Japão) – faltando trabalho para tomar algumas cervejas enquanto observa o parque e a chuva.

    O que inicialmente seriam apenas dois estranhos que coincidentemente sempre se encontram no mesmo lugar em dias chuvosos, começa a se tornar uma amizade peculiar entre duas pessoas que, de certa forma, estão buscando um escapismo de suas realidades.

    o jardim das palavras - garden of wordsMakoto Shinkai é um diretor conhecido no Japão pela sutileza artística de suas animações e a condução narrativa guiada pela sua sensibilidade estética. Conhecido por alguns como o sucessor do mestre Hayao Miyazaki (diretor de clássicos do Studio Ghibli), Shinkai tem um jeito peculiar de retratar seus personagens em diversos simbolismos. Conforme as estações do ano passam, seus personagens amadurecem, se descobrem e evoluem. O ato de deixar de entrar no trem evidencia o medo do futuro, do desconhecido, de seguir adiante. Esses são apenas alguns simbolismos imagéticos explorados na trama de O Jardim das Palavras.

    Porém, mais importante é a forma como o diretor trata do “amor”, como algo que vai além da relação física e romântica (que podemos dizer com segurança que é o sentido mais comum quando retratamos deste sentimento) e engloba o afeto interpessoal do cotidiano e a admiração que temos por outras pessoas, as quais são responsáveis por não apenas nos fazer bem diariamente, como nos fazem evoluir como pessoas, nos ajudam a superar nossos medos e nos ensinam novamente a caminhar com nossos próprios pés.

    O Jardim das Palavras é um média-metragem belíssimo (tem apenas 40 e poucos minutos de duração) que explora sentimentos belíssimos, tanto os bons quanto ruins, mas que fazem parte da vida de todos nós. Visualmente arrebatadora e acompanhada de uma trilha sonora sensível, a obra mostra que as pessoas julgando Shinkai como “sucessor” de Miyazaki estão corretas.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Resenha | A Propriedade

    Resenha | A Propriedade

    a propriedade - rutu modanUm dos conceitos mais utilizados e trabalhados pela História de maneira geral é o da memória. De forma comum, memória pode ser interpretada apenas como a lembrança de um determinado fato, evento ou situação qualquer, porém é muito mais complexa. A memória contém a sua própria história. Perceba que a forma como você se lembra de alguma coisa muda com o passar do tempo (o fim de um namoro, triste no início, mas até comemorado com o passar do tempo, pode ser um exemplo simples e efetivo). E há também a construção de uma memória, quando um grupo conta como as coisas foram, ou como esse grupo determina como um dado evento será contado ou lembrado pela posteridade, traduzindo na ideia de memória social. Ótimo, mas qual a relação disso tudo com a belíssima obra de Rutu Modan?

    A história como um todo gira em torno de como as memórias foram construídas e são reconstruídas pelas personagens dentro da narrativa. A sinopse, bastante simples, narra uma senhora judia, Regina, que vai com a sua neta Mica para Varsóvia, onde haveria uma propriedade em seu nome para ser reivindicada. Na verdade, esse é apenas o pretexto para que toda a trama aconteça. Mais do que procurar uma propriedade, Regina foi ao encontro de seu passado, mostrando como, apesar de décadas longe da capital polonesa, muito dela ainda mora naquele lugar. E também mostra como a neta passa a construir as suas próprias memórias e lida com o passado (des)conhecido de sua própria família.

    A partir daí trata-se de uma verdadeira aula de sensibilidade sobre como trabalhar o conceito de memória, uma vez que o autor busca retratar memórias locais e coletivas, como a retomada de Varsóvia dos nazistas, ou a lembrança de quando eles invadiram a cidade (uma passagem muito interessante, pois há uma representação dos nazistas aprisionando judeus, uma forma de não deixar a memória sobre o terror daqueles dias morrer). E também memórias pessoais da senhora, que se reencontra com pessoas e lugares importantes para o seu passado e de como esses encontros e rememorações fazem com ela pense o passado e o presente. Destaque às personagens, bastante críveis e próximas da realidade de qualquer um. Quem tiver um cunhado ganancioso ou uma avó teimosa se identificará de pronto.

    Além disso, é muito interessante como parte da cultura judia é tratada pelo autor, ou como os eventos e festividades da própria cidade são representados, fazendo com que o leitor se inteire de lugares e culturas que são muito distantes da dele, e também perceba que a Segunda Guerra Mundial não se resume apenas a grandes batalhas ou ao Dia D, mas que os eventos relacionados a ela geraram consequências e percepções que são variadas e bastante ricas. Passagens sobre preconceitos e como um povo ou cultura vê outros engrandecem ainda mais o quadrinho. Mas não se confunda, não se trata de uma História de guerra, mas de memórias e vidas de pessoas.

    Assim, A Propriedade se trata de uma leitura obrigatória para aqueles que gostam de gibis que não ficam apenas no mundo dos heróis ou mangás, com mulheres em posições estranhas. Uma ótima indicação para que as pessoas possam sair desse mundo mais restrito da indústria de HQ. A obra fará com que o leitor perceba que a propriedade não se trata de algo meramente físico, mas que memórias e lembranças, e a forma como as pessoas as utilizam, também são propriedades das pessoas. Leitura mais do que indicada.

    Compre aqui: A Propriedade – Rutu Modan

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Crítica | Independence Day: O Ressurgimento

    Crítica | Independence Day: O Ressurgimento

    Independence Day - O Ressurgimento - poster

    O diretor alemão Roland Emmerich tem um fascínio por destruição. Isso ele não esconde de ninguém, uma vez que virou especialista em blockbusters catastróficos de escala global. Emmerich já destruiu parte do mundo em Independence Day em uma invasão alienígena, destruiu Nova York em Godzilla, destruiu novamente parte do mundo com os problemas ambientais de O Dia Depois de Amanhã, destruiu o mundo em 2012, e mais timidamente, destruiu a Casa Branca em O Ataque. Ainda que o objetivo sempre seja o mesmo, podemos perceber que, ainda assim, o cineasta tem uma assinatura, pois, além de conseguir contar as mais diversas histórias dentro do apocalipse, sabe desenvolvê-las com muitos personagens distintos, com suas diversas histórias paralelas que se convergem com o assunto principal.

    Embora já tivesse no currículo dois filmes que hoje são aclamados pela cultura pop, Stargate – A Chave Para O Futuro da Humanidade e Soldado Universal, foi em Independence Day que Emmerich se firmou em Hollywood. Primeiro porque a divulgação do filme (totalmente diferente em 1996) foi certeira, mostrando ao público pôsteres de um gigantesco disco voador em cima de vários lugares espalhados pelo planeta, e no chocante trailer em que uma dessas naves destrói, sem precedentes, a Casa Branca. E segundo porque o filme, que não traz nada de especial tecnicamente falando (com exceção da parte da ação), de certa forma agradou ao público com sua história e desenvolvimentos forçados e – por que não -, bregas. Embora a primeira metade da década de 1990 tenha nos trazido filmes sensacionais, nenhum foi como Independence Day em termos de escala e, principalmente de gênero, ainda que a história e seu desenvolvimento sejam fracos.

    Todo mundo sabia que em algum momento a raça alienígena responsável pelo ataque ao planeta seria vingada. Com isso, os últimos 20 anos foram suficientes para que todas as nações se unissem e desenvolvessem em conjunto uma tecnologia híbrida de defesa que pudesse auxiliar o mundo. Vemos novos tipos de veículos, de armas, de naves, e os caças, que agora possuem a mais alta tecnologia de combate. A Terra, de fato, está bem protegida com várias bases remotas espalhadas pelos planetas do Sistema Solar, além de uma base com humanos na Lua. Fora isso, por toda a órbita do planeta existem canhões muito semelhantes aos canhões primários das naves do filme anterior, além de uma massiva defesa terrestre.

    Tudo começa a mudar quando as diversas pessoas que tiveram aquela experiência sensorial com os alienígenas começam a ter pesadelos e dores de cabeças recorrentes. Assim, somos reapresentados aos personagens do filme anterior, como o Presidente Whitmore (Bill Pullman); David Levinson (Jeff Goldblum) e seu divertido pai, Julius Levinson (Judd Hirsch); e Jasmine Hiller (Vivica A. Fox), ao mesmo tempo em que conhecemos o novo time de protagonistas que se junta aos outros, e também responsáveis pelas histórias paralelas. Patricia (Maika Monroe), a filha de Whitmore, agora adulta, é a assessora da Presidente Lanford (Sela Ward) e tem uma relação com um dos melhores pilotos do Esquadrão Legacy; Jake (Liam Hemsworth), sendo que seu maior rival é justamente Dylan Hiller (Jessie T. Usher), filho do Capitão Steven Hiller, vivido por Will Smith, tido hoje como uma lenda na história americana com uma importância superior a de Abraham Lincoln. Ainda completam o elenco Catherine Marceau (Charlotte Gainsburg), uma estudiosa da simbologia alienígena; e um conhecido dos fãs, Dr. Okum (Brent Spiner), que acorda de um coma depois de 20 anos e que tem uma relação bastante divertida com seu parceiro que engordou e ficou careca.

    Muito se reclamou da ausência de Will Smith que, segundo o próprio ator, estava comprometido com as filmagens de Esquadrão Suicida. Pelo que vemos durante o filme, é importante reconhecer o esforço de Emmerich em trazer de volta 95% de todo o elenco original. De qualquer forma, o Capitão Hiller está como se estivesse presente fisicamente, pois seu legado é lembrado durante todo o transcorrer da fita.

    Independence Day: O Ressurgimento segue os passos de Star Wars – O Despertar da Força, que emulou Episódio IV, e busca, com força, homenagear o filme original, trazendo consigo diversas semelhanças e referências, principalmente pelas situações envolvidas. Mas, por outro lado, é uma forma de não sair da zona de conforto. Aparentemente é um filme mais épico que seu antecessor, mas essa falsa sensação é causada apenas pela gigantesca nave que invade e pousa no planeta e que tem gravidade própria, Porém, é possível dizer com segurança que Emmerich ousou um pouco mais que J. J. Abrams, uma vez que é possível conhecer um pouco mais sobre a cultura alienígena, bem como a maneira como eles se organizam e quais são as suas reais intenções para com o nosso planeta. O que se descobre é que o nosso planeta é apenas um mero detalhe do que pode estar acontecendo no universo.

    Com esse conceito megalomaníaco, a história que era prevista pra ser filmada em duas partes, foi condensada em uma, deixando em aberto aquilo que pode ser (ou não) o início de uma nova franquia espacial. Mas, para isso acontecer, devemos esperar.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | História da Minha Morte

    Crítica | História da Minha Morte

    1066full-story-of-my-death-posterNa pouca filmografia do diretor catalão Albert Serra, é visível sua preferência em abordar aspectos da faceta humana através de personagens retirados da História ou Literatura. Se fosse possível admitir algum sentimento que resulte da obra, dessa vez a curiosidade moveria a pequena fagulha que faz essa obra acontecer.

    História da Minha Morte se trata de um encontro inesperado entre Casanova (Vicenç Altaió) e o Conde Drácula (Eliseu Huertas). Com esse plot, você poderia esperar uma trama envolvente do início ao fim, que amarraria a relação entre os dois personagens com paralelos. Mas, de longe, não chega nem a ser parecido com isso. Antes de tudo, o nome de Drácula nem sequer é citado, e o de Casanova é apenas uma vez pronunciado. Temos uma história que não assimila um contexto mas preza por esbanjar belas imagens enquadradas com uma luz barroca predominante nas tomadas noturnas, enquanto, visualmente, o filme ignora equipamentos que produzam alta resolução para abusar do blur, quase como um impressionista: tudo é visível mas turvo ao mesmo tempo.

    Mas seria descuido dizer que não existem paralelos; de fato existem, e é apenas o único link entre os dois personagens. Casanova é uma espécie de ser que viveu muito mais que os ao seu redor, confinado em seu mausoléu, aprisionado a simplesmente contar histórias de seu passado, aventuras corriqueiras que não interessam a ninguém além dele, e que ao mesmo tempo são fascinantes para qualquer camponês do século XVIII. E por outro lado, sua faceta mais conhecida é presente em quase todo momento do filme: sua habilidade de seduzir e intrigar quase todas as mulheres pelas quais ele passa é uma característica quase mágica, quem sabe… assim como um vampiro?!

    A construção da trama é lenta, se resume em pouquíssimos diálogos que servem de contraponto para os belos enquadramentos. A trilha sonora de câmara é incrível, mas não dura 1/4 da duração, diferentemente do profundo silêncio. Não existe trama a resumir. Além dessa rápida ideia básica que foi introduzida, não resta nada a ser descrito, mas apenas visto. Além de fazer um retrato mórbido dessa personalidade, Serra invoca um conflito inesperado e que demora a aparecer. Seu maior trunfo é nos manter na expectativa para o desfecho.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Como Um Chef

    Crítica | Como Um Chef

    Como um Chef - poster

    Lançado em meio a tantos programas culinários da última década, que discutem e tentam redefinir a cozinha contemporânea, Como Um Chef acaba contribuindo para o tema como uma comédia francesa padrão.

    Um famoso chef de cozinha resolve aceitar a ajuda de um desconhecido ao enfrentar o dono da cadeia de restaurantes que deseja mudar o estilo do restaurante para a cozinha molecular.

    O roteiro do diretor Daniel Cohen em colaboração com Olivier Dazat é bem estruturado em cima de uma comédia com toques de romance e funciona na maioria das situações. A narrativa principal é bem clara e sabe por onde conduzir a história. E apesar das subtramas serem fracas e não acrescentarem muito ao filme, pelo menos não comprometem. Os personagens não são mal construídos, igualmente não são originais e tampouco cativantes. O roteiro é redondo, porém não tem o brilho de um Que Mal Fiz Eu a Deus?.

    O que sobra é a boa discussão que o filme traz sobre o choque que essa nova proposta molecular trouxe ao mundo da gastronomia. Qual a necessidade de modernizar uma cozinha contemporânea já estabelecida? Outro tema interessante é a enorme pressão que os chefs franceses têm ao ganhar estrelas nos guias culinários diversos e manter o prestígio do seu trabalho. Talvez poucas profissões do mundo atual passem pela necessidade de avaliação pública constante.

    A direção de Daniel Cohen acaba não se imprimindo e não compromete o roteiro. O respeito ao roteiro e à composição dos enquadramentos é o seu ponto alto, enquanto a direção de atores é onde ele menos acerta.

    Michael Youn não consegue encontrar o tom necessário que o filme pede, apesar de não comprometer a condução da narrativa como protagonista. Jean Reno está no piloto automático, e o que poderia acrescentar ao filme é suplantado pela preguiça evidente na sua interpretação.

    A fotografia e a edição do filme são honestas, porém o trabalho de Robert Fraisse e Géraldine Rétif, respectivamente, acabam passando desapercebido já que não se sobressaem em nenhum momento.

    Como Um Chef talvez interesse a quem gosta do tema gastronômico, porém a falta de expectativa é bem-vinda para não haver decepção em um filme esquecível.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

    Nota: 2 estrelas.

  • Resenha | Homem de Ferro Noir

    Resenha | Homem de Ferro Noir

    Homem de Ferro Noir

    Como seria se alguns de nossos heróis favoritos vivessem nos anos 1930? Algumas respostas para essa pergunta podemos encontrar na série Noir da Marvel. Criada em 2009 e de forma bastante desbalanceada, diga-se, conta com Demolidor, Homem-Aranha, Wolverine, JusticeiroX-Men, entre outros, que ganharam suas versões ambientadas no universo pulp-noir do período. Mas o resultado dividiu opiniões.

    No caso específico de Homem de Ferro Noir, seria possível dividir essa resenha para tipos diferentes de público: o fã iniciado no universo dos comics ou aquele que é iniciante ou que apenas admira o Homem de Ferro. E o motivo é muito simples: o roteiro.

    Totalmente inspirado em Indiana Jones, Tony Stark nos é apresentado praticamente da maneira que o conhecemos: um bon vivant, engenheiro, milionário, que herdou a herança do pai e que sofre de um problema crônico no coração, que precisa ser recarregado por uma bateria. Tony é um explorador, que assim como “o velho Indi”, busca encontrar os mais famosos tesouros mitológicos. Ocorre que essa busca desesperada de Tony, na verdade, é a busca para a cura de seu problema. O interessante é que Stark é uma espécie de Bear Grylls da década de 1930 e tem todas as suas expedições aventurescas publicadas numa revista serial chamada Marvels.

    E é aí que a trama começa.

    Numa espécie de prólogo, durante uma dessas expedições, os planos de Tony são frustrados quando a Dra. Gialetta Nefaria, amante de Tony, se revela uma nazista e o entrega ao Dr. Zemo e o Barão Strucker. Durante o conflito, Stark perde parte de sua equipe, sobrevivendo somente seu fiel amigo, Rhodes. Ao voltarem para a América somos apresentados a Jarvis, que volta a ser um mordomo, como nas histórias clássicas do ferroso, e à armadura do Homem de Ferro, que se assemelha à Mark I, porém, com um visual muito mais polido e agradável aos olhos. Vale destacar que o problema no coração de Tony, bem como os motivos que o levaram a construir a armadura, não é revelado. E não podemos colocar a culpa por preguiça de roteiro, uma vez que as histórias da série Noir são curtas, o que ajudou na omissão das origens do herói.

    Dando continuidade, o protagonista encontra na gaveta de Nefaria algumas pistas que fazem ele reunir uma nova equipe em busca de Atlântida, o assunto principal da trama que fica um pouco mais interessante, já que passamos a conhecer Pepper Pots e o navegador Namor, numa versão completamente diferente da que conhecemos.

    O problema é o que acontece daqui pra frente.

    O verdadeiro fã de quadrinhos provavelmente odiará a história, principalmente por ela ter sido escrita por Scott Snyder, uma vez que o conhecido roteirista foi duramente criticado por ter praticamente copiado um arco e os personagens de Mandrake. E para piorar a situação, ainda tirou uma cena de uma obra sua, o spin-off de Vampiro Americano. E ainda tem o fato de o coração de Tony ser ligado a uma bateria, recurso muito semelhante ao do filme Adrenalina 2: Alta Voltagem, lançado na mesma época.

    Porém, de um modo geral, Homem de Ferro Noir tem tudo que uma história em quadrinhos de aventuras precisa: locais exóticos, natureza, animais selvagens, nazistas, traições e o famoso resgate da mocinha no alto de um castelo. Um amontoado de clichês, mas que acaba por funcionar por tratar-se justamente daquilo que o público gosta.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

    iron man noir

  • Resenha | Perdido em Marte – Andy Weir

    Resenha | Perdido em Marte – Andy Weir

    Perdido em Marte - Andy Weir - capa

    “Estou ferrado.
    Essa é a minha opinião abalizada.
    Ferrado.
    Seis dias após o início daqueles que deveriam ser os dois meses mais importantes da minha vida, tudo se tornou um pesadelo.
    Nem sei quem vai ler isto. Acho que alguém vai acabar encontrando. Talvez daqui a cem anos.”

    E é assim que conhecemos o protagonista, Mark Watney, um astronauta que, assim como seus companheiros na missão, tinha duas especialidades. No seu caso, ele era botânico e engenheiro mecânico. Como ele próprio se define, “um faz-tudo que brinca com plantas”. O leitor é apresentado a ele em meio a uma crise. Há seis dias, Watney foi abandonado em Marte durante uma tempestade de areia. Após ser arrastado – e perfurado – por uma antena, foi dado como morto por seus colegas, já que o traje espacial avariado parara de enviar seus sinais vitais.

    A partir daí o leitor acompanha a clássica jornada de um homem sozinho em ambiente hostil, lutando por sua sobrevivência. Só que não. De clássica, a jornada tem apenas sua estrutura, pois, de resto, o autor faz uso de uma originalidade, de recursos estilísticos e de linguagem que tornam a história bastante incomum. Para os fãs de sci-fi, lembra demais O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams, pela capacidade de “entupir” o texto de cientificismos sem, entretanto, deixá-lo maçante ou ininteligível. Ambos usam o humor e o sarcasmo como ótimo contraponto ao teor científico da narrativa. Só que enquanto Adams pende mais para o humor, Weir carrega a tinta no sarcasmo. E é divertido demais de ler.

    “Mudando de assunto, hoje é o Dia de Ação de Graças. Minha família deve estar reunida em Chicago para o jantar de sempre na casa dos meus pais. Imagino que não esteja sendo muito divertido, já que morri há dez dias. Caramba, não faz muito tempo que eles saíram do meu funeral.
    Fico pensando se algum dia vão descobrir o que realmente aconteceu. Tenho estado tão ocupado tentando me manter vivo que nunca pensei no que meus pais devem estar passando. Neste momento, estão sentindo a pior dor que alguém pode suportar. Eu daria tudo para avisá-los que ainda estou vivo.
    Vou precisar sobreviver para me redimir.”

    A história basicamente é contada em primeira pessoa, pelo próprio Watney, ao atualizar o diário de bordo da missão com vídeos quase diários. Já seria interessante o bastante se fosse apenas isso, já que a formação científica do personagem torna-o bastante detalhado e didático em suas explicações.

    E seu humor bastante ácido é o complemento perfeito. Mas é lógico que qualquer leitor, assim como o personagem, se pergunta: “Mas e a Nasa? E seus companheiros de missão? será que alguém sabe que Watney não morreu?”. Nesses trechos – que são poucos e breves, felizmente – o narrador em terceira pessoa dá aquele gostinho ao leitor, de saber algo que o protagonista (ainda) não sabe.

    Como em toda boa jornada, a história de Watney é uma sucessão de conflitos/problemas a serem resolvidos com alguns momentos esparsos de calmaria. A probabilidade de as coisas darem errado é aumentada exponencialmente, tanto pelo ambiente inóspito em que ele se encontra quanto pela escassez de recursos, sejam eles para sobrevivência sejam para colocar em prática as ideias criativamente malucas que o personagem tem – por exemplo, acender um fogo dentro do veículo espacial. Por outro lado, acompanhamos a equipe em terra queimando neurônios para encontrar soluções viáveis para resgatá-lo antes que ele morra por inanição.

    Há comentários de leitores reclamando de que diário de bordo do protagonista é nerd de mais e dramático de menos. Ora bolas! O personagem “é” um nerd – significando alguém aficionado por um assunto a ponto de estudá-lo extensiva e ostensivamente. Um astronauta não é uma pessoa comum, no sentido de ser mediano, com conhecimentos, motivações e reações medianos. Obrigatoriamente, o astronauta tem de ser alguém “fora da curva”. E esse fora da curva implica em ser mais pragmático que dramático em situações limítrofes. Watney até tem seus cinco minutos de drama, que estão bem descritos logo no início do livro. Mas a sua natureza nerd logo prevalece e o faz tomar as rédeas da situação.

    “Supondo que eu não faça nenhuma merda com a hidrazina, ainda resta a questão da queima do hidrogênio. Vou acender uma fogueira. Dentro do Hab. De propósito.
    Se você perguntasse a qualquer engenheiro da Nasa qual seria a pior hipótese para o Hab, eles responderiam: ‘Incêndio”. Se você perguntasse qual seria o resultado, eles responderiam: ‘Morte por carbonização’.
    Mas se der tudo certo, vou estar produzindo água de modo contínuo, sem a necessidade de armazenar hidrogênio nem oxigênio. Ela será liberada na atmosfera como unidade, mas o reaproveitador de água irá coletá-la.”

    Para quem apenas assistiu ao filme, dirigido por Ridley Scott, tem-se a impressão de que é só uma versão de O Náufrago no espaço. Mas o livro é muito, muito mais que isso. Como adaptação, o filme consegue até ser fiel ao livro, na medida do possível. Afinal, é impraticável espremer em duas horas toda a saga do personagem. A essência dele não se perde, mas sua verve sarcástica e desbocada fica amenizada (e muito!). Perde-se toda a parte “científica” das atividades de Watney, suas reflexões, suas constantes críticas ao gosto musical e televisivo duvidoso de seus colegas de missão, seus debates solitários sobre o que fazer e como resolver cada um dos problemas que vão surgindo. E é justamente isso que deixa a narrativa envolvente. O autor consegue juntar humor, drama e suspense na medida certa de forma que é quase impossível largar a leitura antes do final.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Monstros

    Resenha | Monstros

    Monstros-gustavo-duarteE se a baía de Santos passasse por um dia de baía de Tokyo e, como é extremamente comum, praticamente cotidiano no Japão, fosse invadida por monstros gigantes? Quais as ações e possíveis consequências deste tipo de situação? Pode-se dizer que essa seria a sinopse da HQ de Gustavo Duarte – Monstros –, que nos apresenta um primoroso trabalho que demonstra o dinamismo que um gibi desse pode e deve ter.

    O roteiro em si é bastante simples, basicamente três monstros gigantes invadem a cidade de Santos e um simpático e pacato dono de “buteco” (antes que venham me corrigir, o buteco é uma instituição adorada de cidades interioranas de Minas Gerais e São Paulo, tal como Bauru, a cidade de Duarte, portanto, se escreve assim mesmo, da forma mais caipira possível de se falar) vai resolver o problema e caçar os monstros que estão destruindo a cidade.

    Porém, o maior destaque da HQ se dá pela narrativa gráfica, já que não existe nenhum balão de diálogo. A grande característica do estilo de Duarte é justamente produzir gibis que não tenham diálogos ou descrições textuais, fazendo com que a relação entre os quadros seja o grande responsável pela condução da narrativa. Aliás, aí se encontra o ponto forte da revista, a narrativa gráfica de Duarte. É impressionante como ele consegue dar fluidez para a sua arte, que neste caso se trata de uma união entre arte e roteiro, já que o desenvolvimento da história e da trama acontece apenas nos desenhos e na relação entre eles.

    gustavo-duarte-portal-mosaicoIsso traz a discussão da própria questão da construção de uma HQ, muitas pessoas ficam atentas apenas aos quadrinhos e aos dizeres dos personagens e esquecem que a arte não se trata de um complemento, mas de elemento fundamental, não como ilustração, mas como narrativa. Basta ler antigas revistas em que todas as ações eram mostradas na arte e descritas nos balões; era muito ruim, podem acreditar. Logo, imagine Monstros como um filme mudo, você vai compreender tudo, não precisa de alguém lhe falando tudo.

    Além da narrativa gráfica, que é o ponto mais importante, o gibi se destaca pela quantidade de referências à cidade de Santos, à cultura pop e à cultura brasileira de forma geral. É interessante vermos partes da cidade como o calçadão, o porto de Santos e o Museu de Pesca serem retratados na passagem dos monstros pela cidade. Também é interessante a quantidade de referências que demonstra a própria personalidade e gostos do autor, como o símbolo do “Norusca”, tradicional time da cidade de Bauru; o símbolo da banda Ultraje a Rigor, que se faz presente em um dado momento e o mais legal neste sentido: o encontro do caçador de monstros com seus três amigos que são a caricatura do Roger (Ultraje a Rigor), Flea (Red Hot Chili Peppers) e Bi Ribeiro (Paralamas do Sucesso). Já a cultura popular é representada por referências como os “causos de pescador”, o ápice da cultura de buteco, o expoente maior do exótico, o símbolo de um local e dos vitoriosos que conseguiram sobrepujá-lo: o ovo colorido de bar (que tem um importante papel na trama). Várias referências são apresentadas, com destaque também para os seriados japoneses, inspiração primeira da HQ.

    monstros 02Enfim, vale muito a pena, mais do que recomendado o gibi de Gustavo Duarte, que se trata de um dos maiores nesta nova geração de quadrinistas brasileiros que estão se destacando no mercado. E, ao ler o gibi e comprovar toda a capacidade do autor, penso que (em tom de desabafo) deve ter acontecido alguma interferência para que Pavor Espaciar fosse tão meia boca. Mas, procurem, leiam! Monstros é muito bom.

    Compre: Monstros – Gustavo Duarte

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Crítica | Vizinhos 2

    Crítica | Vizinhos 2

    vizinhos-2

    Sororidade é um conceito do feminismo sobre mulheres tratando-se como irmãs. É a aliança entre mulheres, buscando companheirismo e apoio. É também um paralelo com as tais fraternidades, as repúblicas americanas tradicionais e formadas por meninos. A definição de fraternidade nos EUA é bastante poderosa, chegando a ser forte influenciadora na vida acadêmica e profissional dos seus moradores. Suas festas também são conhecidas por trotes violentos e situações de abuso.

    É irônico iniciar a análise de um filme escrito e protagonizado por Seth Rogen com uma nota informativa, mas Vizinhos 2 (leia nossa crítica sobre Vizinhos) é uma comédia tipicamente maconheira e incorreta que tem muito a informar.

    Próximo de ganhar seu segundo filho, o casal Mac (Seth Rogen) e Kelly Radner (Rose Byrne) precisa enfrentar novamente um grupo de adolescentes na vizinhança, e colocar-se novamente como os velhos responsáveis, especialistas em evitar que adolescentes se divirtam, mesmo que a contragosto. Desta vez, uma república feminina. Uma sororidade, liderada por Shelby (Chloë Grace Moretz), disposta a provar e livrar-se das amarras de suas vidas anteriores, em que era sempre e sempre incentivada a ter como membros moças comportadas. Diante do desafio, convoca Teddy (Zac Efron), que está da mesma forma como foi deixado no filme anterior, de futuro incerto, visto como velho do alto dos seus 25 anos e angustiado por ver-se incapaz de progredir na vida.

    A passagem da adolescência para a vida adulta tem fronteiras que são difíceis de mapear, ainda mais para a geração Y, que tem a oportunidade de alargar todo tipo de fronteira tradicional. Com a falta de um rito de passagem pré-estabelecido, é possível ver uma grande parcela dos jovens perdidos sobre seu lugar no mundo. O casamento e paternidade/maternidade não são mais rituais tão significativos ou tão cheios de certezas.

    Com um humor ainda baseado em maconha, intestino solto e consolos gigantes, o filme continua tão afiado quanto seu anterior, sofrendo, porém, com a falta do excelente Dave Franco para adicionar sua ingenuidade caótica (tal qual seu irmão) ao delivery de piadas feito pelo elenco. Às vezes o resultado é um pouco mais histriônico do que deveria, além de não contar com piadas do nível da “Festa à fantasia dos De Niros” do primeiro filme, suficiente para fazer alguém rir por até três dias. Ainda assim, o resultado é prioritariamente positivo e bastante engraçado.

    Sempre atento aos temas que busca, o filme demonstra ser eficiente ao elencar os temores adolescentes e adultos, inclusive do mundo feminino, tirando o ar de clube do bolinha dos filmes de Seth Rogen, Nicholas Stoller e companhia, e abrindo espaço para as meninas se exporem como força humorística. Vem delas as mesmas piadas de intestino solto e maconha, além da reflexão sobre a necessidade que todos temos de demonstrar que não precisamos de babás ou tutores. Ao final, valem como experiência os tropeços da vida.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | A Série Divergente: Convergente

    Crítica | A Série Divergente: Convergente

    Convergente

    Seguindo o comportamento adotado por 9 entre 10 franquias que conquistaram algum sucesso nas telonas, A Saga Divergente – Convergente também optou por dividir o seu final em duas partes. O curioso é que, ao contrário dos pioneiros dessa prática, o longa-metragem dirigido por Robert Schwentke consegue estabelecer um arco dramático com início, meio e fim dentro da primeira metade deste último episódio da saga, dando até mesmo a sensação de que aquele poderia ser um ponto final digno para a história. O feito alcançado pelo diretor justifica um final em duas partes com honestidade, sem primar apenas pelo retorno financeiro decorrente das bilheterias.

    A trama leva o espectador de volta a Chicago, onde forças internas e externas influenciam os protagonistas a extrapolar os muros da cidade e tentar entender do que exatamente se trata esse mundo pós-apocalíptico em que vivem. Tris, interpretada por Shailene Woodley, reúne seu ‘grupo’ e, contra a vontade da liderança local, decide explorar o mundo além do muro. O que a coloca como inimiga de sua própria cidade e, ao mesmo tempo, uma intrusa no mundo exterior.

    É interessante chamar atenção aqui para os recursos visuais muito bem utilizados pela equipe de efeitos para ambientar esse universo. A realidade ‘fim do mundo’ da saga mistura ruínas e tecnologia de uma maneira muito crível, sobretudo levando em consideração o baixo orçamento do filme. Trata-se de um misto de CGI e efeitos mais práticos que compõe com eficácia o mapa da região. Uma Chicago em ruínas circundada por um deserto vermelho e inóspito.

    O primeiro ato do filme é quase que inteiramente dedicado a relembrar o contexto herdado do episódio anterior. E aí está um problema: perde-se muito tempo nessa ambientação, que poderia ser sanada de maneira assertiva em menos de dez minutos. Mais uma vez, a escolha aqui foi partir do pessoal para o coletivo, do psicológico para o tátil. Assim, a trama inicia com Tris tentando lidar com seus dilemas e buscando algum parâmetro para a nova ética e senso de justiça empregados pelo ‘governo’ vigente. Demora bastante até entendermos quando a história se inicia de fato e isso compromete o envolvimento do espectador.

    Ainda que em decorrência da pouca presença de suas personagens no texto original, é triste ver atrizes maravilhosas como Octavia Spencer e Naomi Watts subaproveitadas. Mas as atuações do filme variam de medianas a boas, sobretudo por conta da protagonista e de Miles Teller (Whiplash – Em Busca da Perfeição). Já Theo James, que interpreta o rebelde Four, não conseguiu convencer como ator nos filmes anteriores e repete o mesmo feito nesta sequência. Os coadjuvantes entregam desempenhos honestos e conseguem sustentar o drama num bom nível.

    A ação em Convergente soa bastante rasa, quase pueril. Não são poucas as cenas, por exemplo, em que os personagens desenvolvem romances em meio a pontos clímax da história, aumentando o aspecto surreal – e isso não é um elogio – daquilo que está acontecendo na tela. Algumas tomadas parecem ser pensadas para agradar aos fãs, repetindo quase que ipsis litteris os conteúdos do livro que dá origem a trama (o famoso fan service). Justo, em se tratando de uma saga literária tão famosa, mas causa certo incômodo a partir do momento que atrapalha o andamento compassado da obra.

    A Saga Divergente – Convergente – tem inúmeros acertos em relação aos seus ‘concorrentes’, sobretudo Jogos Vorazes, que não conseguiu manter a mesma mescla de entretenimento e cunho político em seus quatro episódios. Embora a história aqui seja relativamente mais simples que a da série de filmes baseada nos livros de Suzanne Collins, os roteiristas conseguiram moldar com bastante habilidade as tramas e subtramas, criando um longa-metragem competente, ainda que lhe sobre didatismo e falte contundência.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.