Autor: Vortex Cultural

  • Crítica | Os Anarquistas

    Crítica | Os Anarquistas

    Na virada do século XIX para o século XX, o anarquismo era a ideologia revolucionária mais radical, com mais adeptos e consequentemente a mais perseguida, tanto na Europa quanto na América. A forma com que se organizavam e viviam a política, sempre apaixonados, serviu de fonte de inspiração para várias histórias românticas, que muitas vezes terminaram de forma trágica, ainda mais no período de refluxo das lutas operárias após a queda da Comuna de Paris e consolidação da Terceira República. É nesse contexto histórico que o diretor Elie Wajeman escolhe para nos contar a história de Os Anarquistas, com roteiro de sua autoria juntamente de Gaëlle Macé.

    Situado na França de 1899, o filme conta a história do policial Jean Albertini (Tahar Rahim) quando é recrutado pelo chefe de polícia para se infiltrar e passar informações sobre um grupo local de anarquistas parisienses. Jean aceita imediatamente e logo é colocado para trabalhar em uma das tantas fábricas para fazer contato com os supostos líderes do movimento. Dotado de carisma, ele logo faz amizade com Elisée Mayer (Swann Arlaud), Biscuit (Karim Leklou), Marie-Louise (Sarah Le Picard) Eugène Levèque (Guillaume Gouix) e a bela e jovem Judith (Adèle Exarchopoulos), por quem logo se sente atraído.

    Logo, Jean conquista todo o grupo, enquanto continua provendo informações vitais para a polícia a respeito das ideias e das ações do grupo, o que torna confuso para o espectador entender as suas motivações, pois ao mesmo tempo em que o mostra preocupado e suscetível às ideias anarquistas e acolhido pelos ativistas, Jean não hesita em momento algum em continuar a informar seus atos à polícia. Ele não tenta esconder ou mesmo dar informações falsas. Continua sem problema algum, mesmo estando apaixonado por Judith.

    Filmes sobre política com casais apaixonados como protagonistas raramente resultam em algo positivo, e nesse caso não é diferente. Apesar de todo o rico contexto histórico da época, os anarquistas do grupo não fazem muita coisa além de reuniões e festas. Ao mesmo tempo, as investigações policiais não oferecem muito risco a eles, a não ser no desfecho da história. O que parece é que todo o contexto foi utilizado apenas para contar a história de Jean e Judith, dois apaixonados de lados diferentes que não poderiam ficar juntos. Se esse fosse o caso, chamar o filme de algo diferente de Os Anarquistas teria sido mais interessante. Porém, a força de tal título, mesmo sem embasamento na história, era mais sedutora.

    Mesmo que visualmente o filme seja vislumbrante com a tonalidade opaca e azul, de tempos sombrios que o grupo e a França estavam vivendo, assim como a brutalidade da vida do pobre da época (que também poderia ser mais explorada), Os Anarquistas falha até mesmo em nos fazer sentir cativados pelo grupo, transformando o anarquismo numa série de bordões e frases bonitas que mais parecem desculpas de jovens para um estilo de vida alternativo do que realmente uma ideologia política. No final, sobra apenas um vazio que a história não conseguiu preencher.

    Para quem procura uma história rica tanto no sentido político, ou no sentido romântico, ou mesmo na soma destes dois elementos, infelizmente Os Anarquistas deixa a desejar em todos eles.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Fique Comigo

    Crítica | Fique Comigo

    fique comigo-minGosta de filmes como Contos de Nova York, de 1989, dirigido por Woody Allen, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola? Ou quem sabe a HQ de Will Eisner com crônicas urbanas cotidianas? Não sei se foi intencional mas Fique Comigo, dirigido e roteirizado por Samuel Benchetrit, recolhe o espírito dessa narrativa cotidiana e a mistura com um pouco de nonsense para seu filme.

    Na trama, o filme traça pequenos contos que se passam entre os moradores de um prédio, dando a impressão que vão focar em prioridade o morador do primeiro andar, Sterkowitz (Gustave Kervern), que se recusa a ajudar a pagar um elevador novo para os condôminos e acaba precisando dele mais que todos eles. Também acompanhamos um garoto (Jules Benchetrit) que acaba construindo uma pequena relação com uma nova moradora, interpretada por Isabelle Huppert; além de um astronauta americano na sua rotina monotonamente diária (Michael Pitt) e que por um acidente cai em em cima desse mesmo prédio e é abrigado por uma dona de casa (Tassadit Mandi).

    Se não fosse o pequeno incômodo da tela propositalmente quadrada, a progressão dos primeiros minutos do longa seria sem dúvida a principal barreira para um olhar menos acostumado com o cinema francês. Esse início é lento e não faz questão de manter o interesse imediato dentro de uma possível história, preferindo o silêncio. Apesar disso todas as tramas começam a fisgar um estranho interesse entre os núcleos da película até o fim. O pior dos desenvolvimentos ainda consegue dar pleno suporte a uma narrativa natural, mas esse mesmo cuidado por parecer legitimamente interessante apenas do meio da história em diante também soa proposital, assim como uma trilha sonora que ressoa em cada uma das passagens.

    Quem sabe seja essa a real natureza de Fique Comigo: pequenas histórias individuais que não fazem muito sentido a não ser que você consiga capturar a essência do que exatamente está querendo ser mostrado pelo todo. Eu não consegui, mas é algo familiar.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Victoria

    Crítica | Victoria

    victoria-posterO plano-sequência consiste em um único take para se filmar uma sequência inteira, sem cortes. É uma técnica cinematográfica que cada vez mais gera polêmica, ainda mais que recentemente tomou a atenção do público devido às campanhas promocionais para filmes que a utilizam. O caso mais famoso seria Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância), mesmo não sendo um único long take (termo inglês), é um filme que, por se promover a partir da ilusão de que o havia, foi visto como “vazio” por muitos. Como se a ferramenta não fosse ligada ao significado e não ressoasse com a mensagem. Outros cineastas utilizam-se dela para testar os limites do cinema; limites da fotografia e sua ordem visual.

    Entretanto, se por um lado muitos encontram no plano-sequência visceralidade e imersão, outros o enxergam como uma forma do diretor exaltar o próprio ego. Uma difícil tarefa cujo único objetivo é fazer por fazer, fazer para se mostrar capaz. Tal argumento indica falta de flexibilidade para com outras técnicas por parte do argumentador. Uma posição natural para aqueles que enxergam o cinema como algo formulaico, os “puristas”. Outras técnicas já foram, também, vistas como passageiras ou desnecessárias. O fato é que o long take é como qualquer outro artifício da sétima arte. Como a cor, como o slow-motion, como o som, como “montagens”; lista que segue. Ainda há muito a ser explorado, especialmente por diretores que desejam o avanço da arte. E fazer por desejo de revolução não desmerece o trabalho. Qualquer tentativa inovadora demanda conhecimento e capacidade por parte de quem o faça e, supondo ineficácia, irá se delatar na própria execução.

    victoriaVictoria não é um filme, não é sobre um assalto a banco, Victoria É um assalto a banco. (Sebastian Schipper, inspirado no que Francis Ford Coppola disse sobre Apocalypse Now).

    Dirigido por Sebastian Schipper, a produção surgiu com intenções de tentar algo novo, arriscar com a forma. Sua narrativa se realiza com uma simples premissa: é sobre um assalto a banco. Não há um roteiro tradicional. Há somente uma história base que demanda dos atores flexibilidade e naturalidade. Entendimento das motivações de seus personagens e situações. Uma execução de mais de duas horas que produziu um longo período de ensaio. O que fez muitos rotularem o filme como teatro, mas esses argumentos se demonstram fracos diante da fotografia de Sturla Brandth Grøvlen que foi, por acaso, creditado em primeiro nos créditos devido a seu esforço e eficiência.

    O filme segue, durante pouco mais de duas horas, Victoria (Laia Costa) que se encontra, logo na primeira cena, dançando em um clube subterrâneo. A utilização das luzes e fumaça já é suficiente para introduzir o público ao estilo de filmagem e abordagem natural e livre da personagem. Na saída ela se encontra com um grupo de amigos que são Sonne (Frederick Lau), Boxer (Franz Rogowski), Blinker (Burak Yigit) e Fuß (Max Mauff). Ela, estrangeira, anda pela rua com eles e logo se entrosam. Há uma boa química presente entre eles e o próprio diretor de fotografia. Sabem quando falar, como falar; casualidade aconchegante e fluida.

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    O que se percebe é cálculo, planejamento. Ainda que apresente deslizes em relação à constante câmera na mão, já que alguns momentos não chegam a sua máxima eficiência devido a isso, não há como negar a precisão. Os momentos em que a música sobe com sua leveza ressoante da personagem principal. As cordas e o piano. Quando os personagens se mostram, mais do que qualquer outro momento, como se não fossem observados. E como esses momentos fazem falta na segunda metade do filme, após o estabelecimento dos personagens e a entrada da problemática do banco.

    Victoria faz do plano-sequência algo primordial para sua qualidade. É algo intrínseco a existência da obra. Faz de tal maneira que não se é possível imaginar o filme de outra forma. Com atores moldados, também, ao formato. E a boa administração entre momentos de movimentação e quietude. Imerge o público de forma a fazê-lo ansiar por mais minutos daquela câmera. A câmera que nunca desliga e nunca desiste de capturar. Até que acaba. E só resta a saudade.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | O Sonho de Wadjda

    Crítica | O Sonho de Wadjda

    wadjda6Uma das gratas surpresas dos últimos anos do cinema no oriente médio, O Sonho de Wadjda é ainda mais surpreendente por ter sido escrito e dirigido por uma mulher, dentro da ditadura da Arábia Saudita que tolhe tantos direitos humanos, principalmente o das mulheres.

    A jovem saudita de 10 anos Wadjda tem como o seu maior sonho uma bicicleta, e para conseguir o dinheiro necessário aceita entrar no coro religioso do seu colégio que dará um prêmio em dinheiro para o vencedor.

    O roteiro da própria diretora Haifaa Al-Mansour acerta em colocar a narrativa sob os olhos já não tão inocentes de uma jovem protagonista. O fato de Wadjda ser focada e determinada, e ao mesmo tempo inocente por ainda ser jovem, é determinante em fazê-la entrar em choque com as dificuldades que enfrenta pelo caminho sem se preocupar muito com as consequências. A personagem deseja uma bicicleta, apesar de não ter dinheiro no momento, e a mãe e a diretora do colégio a desencorajarem, respaldadas pela lei do país.

    Outro acerto do roteiro é mostrar a falta de direitos humanos e questões de gênero em uma ditadura árabe. Durante o tempo todo, a narrativa faz questão de mostrar como as mulheres têm tão poucos direitos em comparação com os homens, como não poder sequer possuir uma bicicleta no caso da protagonista, não sair a rua sem a burca, não ser habilitada a dirigir um carro e não trabalhar em diversos empregos, no caso da mãe, e no caso de mãe e filha serem obrigadas a suportar a possibilidade de que seu marido tenha outra esposa e família.

    A direção de Haifaa Al-Mansour é sólida e consistente e consegue entregar uma boa narrativa audiovisual. As boas composições dos enquadramentos e a competente direção de atores são os pontos altos do filme. Uma mulher como a grande regente foi importante em passar a importante mensagem que o filme se dispôs.

    A jovem atriz Waad Mohammed é uma grata revelação que rouba todas as cenas em que aparece, trazendo qualidade à narrativa. Reem Abdullah interpreta sua mãe e consegue transpôr para a personagem os dilemas de ter uma filha rebelde e um marido prestes a deixá-la. Ahd é a diretora da escola e não compromete como a grande antagonista de Wadjda.

    A fotografia do alemão Lutz Reitemeier é naturalista e se fundamenta nos tons amarelos e marrons, na rua de terra batida onde se localiza grande parte da trama. A edição do também alemão Andreas Wodraschke mantém o ritmo do filme, porém não se destaca em nenhum momento.

    O Sonho de Wadjda vale a pena para quem deseja assistir a um bom filme com questões universais, além de apresentar outra cinematografia do oriente médio que não a iraniana.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Birth of the Living Dead

    Crítica | Birth of the Living Dead

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    Desnecessário dizer o tamanho do impacto do subgênero do terror de “zumbis” na cultura pop. A série de TV The Walking Dead, mesmo com todos os seus problemas, insiste em quebrar recordes de audiência, e as novas gerações cada vez mais se sentem atraídas pelas criaturas lentas e devoradoras de carne humana.

    Se o documentário Doc of the Dead tenta entender um pouco deste fenômeno de forma geral, o filme do diretor Rob Kuhn, Birth of the Living Dead (também conhecido por Year of the Living Dead) enfoca especificamente o filme que deu origem a todo este frenesi pelos mortos, o clássico A Noite dos Mortos Vivos, dirigido por George A. Romero e lançado em 1968.

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    Considerado como o reinventor dos zumbis e introdutor dessa nova, porém antiga, criatura no imaginário popular, A Noite dos Mortos Vivos possui também outras características marcantes que o fizeram ser tão cultuado. Enquanto Hollywood na época fazia apenas filmes épicos caríssimos, ou produções dentro de um formato conservador, o terror era deixado de fora por ser considerado um gênero B, quase perto da pornografia. A fase dos filmes deste gênero havia ficado para trás, com os monstros clássicos e super insetos radioativos.

    Romero e seus amigos de uma pequena produtora de Pittsburgh, que até então só filmava comerciais, decidem fazer um filme de terror baseado em uma história que Romero já havia escrito. Filmado de forma participativa e heroica, em que cada pessoa fazia muitas vezes duas ou mais funções na produção, o filme custou apenas 114 mil dólares. Mesmo contando com a desconfiança de todos sobre a finalização do projeto (inclusive do próprio Romero), o filme aos poucos vai ganhando terreno e conquistando o público enquanto o aterroriza como nenhum outro filme havia feito até então.

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    No cerne deste novo terror está este novo monstro que surgia, mas que não tinha participação de nenhuma conspiração do governo, da mídia ou de quem quer que fosse. Pior: não havia explicação. O monstro estava lá à espreita, e ao mesmo tempo que não era ninguém em específico, era todo mundo. Se em todas as narrativas de terror havia a perspectiva de um novo recomeço no dia seguinte, os zumbis mostravam que não havia. Eles eram uma força lenta, mas incrivelmente resilientes.

    Ao traçar paralelos com o terror da guerra do Vietnã e também da agitação política dos EUA na época do movimento pelos direitos civis, o filme vai por um caminho conhecido, mas acerta ao propor que a atração do público por este tema e por este tipo de monstro se dá justamente pelo fato de que agora o monstro não tem mais receita de como ser vencido. Não há mais segurança e ninguém está a salvo, e era exatamente isso o que a sociedade dos EUA vivia na época, onde a antiga e estável sociedade estava sendo demolida por novos atores sociais e caindo em uma realidade brutal.

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    Com curta duração, o documentário aposta em seu visual arrojado, com storyboards muito bem feitos, para ajudar a contar a história de como o filme foi feito. Porém, com poucas entrevistas, e somente dois que efetivamente participaram na produção do filme original, falta um direcionamento mais voltado a como o filme foi feito além da opinião de Romero. Talvez a presença dos atores originais pudesse ter contribuído mais nesse sentido. Algumas entrevistas de pessoas que viram o filme na época são interessantes, mas sequências de um professor mostrando o filme a crianças soam desnecessárias e um pouco forçadas.

    Birth of the Living Dead possui alguns problemas técnicos. Em diversos momentos conseguimos ouvir barulhos de fundo na captação de som, e a edição também deixa a desejar. Porém, apesar de simples, Kuhn faz um filme eficiente mesmo parecendo mais um bootleg do que algo oficial, como se estivesse parafraseando o objeto do documentário, o que de certa forma deixa um charme. Intencional ou não. Aos fãs do gênero e estudiosos de cinema e cultura pop em geral, é uma boa contribuição.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Resenha | Perpetuum Mobile

    Resenha | Perpetuum Mobile

    PerpetuumMobileCapaDupla[1]

    Perpetuum mobile, ou moto continuum, é o termo em latim para o sonho utópico dos engenheiros: a máquina de movimento perpétuo. Essa máquina hipotética utiliza – e reutiliza – a energia gerada pelo seu próprio movimento. Apesar da impossibilidade física de existirem – ao menos segundo as leis da física do nosso universo – há ainda quem persiga a construção de tais dispositivos.

    Neste quadrinho – lançado inicialmente por financiamento coletivo e agora republicado pela editora Mino – Martin é um eterno insatisfeito. Na cidade fictícia de San Juarez, é ele que vive em moto contínuo, em busca de uma vida que o satisfaça. Suas escolhas podem não ser as mais acertadas, mas ele continua tentando. Em busca de um novo emprego, de um novo relacionamento, de novas experiências. Mas o que fazer com essa busca incessante quando o fim do mundo chega?

    A narrativa não-linear confunde um pouco e pede uma segunda leitura. Mas, a menos que eu esteja redondamente enganada na minha interpretação, a história é um recap dos últimos meses de Martin – algo como o clichê da vida passando diante dos olhos numa situação de perigo ou naquele último instante antes da morte. Vendo por esse lado, faz sentido a não-linearidade da história, uma vez que em situações extremas é implausível que as recordações se organizem em ordem cronológica, aliás, é improvável que sequer se organizem.

    Além da narrativa não linear, há várias digressões do protagonista, que começa a conversar com um amigo imaginário – uma personificação daqueles diálogos internos que todos nós temos. Demora um pouco até o leitor perceber que é disso que se trata – mais um bom motivo para investir numa segunda leitura.

    Sobre o desenho, vale reparar como Diego Sanchez conduz o olhar do leitor. Mesmo se em alguns momentos o conteúdo seja confuso, não se pode responsabilizar a disposição dos painéis, que dá fluidez e, ao mesmo tempo, agilidade à leitura.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

    PerpetuumMobile

  • Crítica | De Amor e Trevas

    Crítica | De Amor e Trevas

    de amor e trevas

    Estreia de Natalie Portman na direção, De Amor e Trevas é baseado no livro de memórias do escritor Amós Oz, que tem o mesmo título. O livro é talvez um dos mais lidos e apreciados na terra natal do autor, Israel. E “um dos livros mais engraçados, trágicos e comoventes” já lidos, conforme a crítica Linda Grant, do The Guardian. É uma pena que o roteiro não tenha conseguido transpor das páginas para a tela o olhar lírico de Amos (Amir Tessler), um menino crescendo durante a expansão do sionismo. Aliás, este é certamente o maior problema do roteiro, tentar abordar da mesma forma o olhar sobre as coisas pessoais – a infância, a família, a mãe, o despertar do talento em contar histórias – e o olhar sobre a transição política de um povo constituindo uma nação.

    A dificuldade de contar a história de forma coesa e envolvente leva ao uso de uma muleta que, por vezes, chega a irritar o público: a narração excessiva. Talvez seja decorrente da falta de experiência, talvez seja apenas uma má escolha de formato narrativo. Mas o fato é que a máxima “Show, don’t tell” é deixada de lado a maior parte do tempo, sobrecarregando o espectador com uma narração cansativa e quase onipresente. É incômoda e atrapalha a imersão na história.

    Para quem conhece pouco da história e da política do Estado de Israel ou para quem não leu o livro, é difícil acompanhar e mesmo entender o cenário sócio-político em que Amos cresce. A abordagem é superficial e, em alguns momentos, frases de efeito são jogadas sem quase qualquer conexão com o contexto das cenas. Enquanto no livro, percebe-se que o avô de Amos é um patriota fervoroso, no filme as visitas dos avós praticamente se restringem a enfatizar o estereótipo do relacionamento sogra/nora. Algo que é abordado en passant, na pessoa do pai de Amos, Arieh (Gilad Kahana), é a importância da linguagem, da estrutura do idioma. Na época, o hebraico passava por uma série de transformações que desembocariam no hebraico moderno. Arieh, um acadêmico frustrado mas esperançoso, gosta de demonstrar seus conhecimentos – de forma gentil, longe de ser pedante – usando a origem das palavras para explicar sentimento e situações. Algumas coisas se perdem por conta da tradução, mas mesmo assim, é algo cativante.

    O que fica marcado é a importância da mãe na vida do jovem Amos, e a fixação dela, Fania (Natalie Portman), com a ideia da morte. Fania é uma mulher inteligente, confinada a um cotidiano medíocre e sem perspectivas. Ela dá vazão à sua verve criativa e, por que não dizer, artística, inventando histórias para o filho. E todas, sem exceção, flertam com o tema da morte. Algumas cenas oníricas dessas histórias só passam a fazer sentido mais para o final do filme quando, após um longo período de depressão, Fania se suicida. Confrontado com essa realidade aos 12 anos, três anos depois, Amos renuncia à vida familiar e muda-se para um kibutz, renegando – mesmo que temporariamente – à sua aptidão como contador de histórias.

    É inegável que Portman encarna Fania como ninguém. Afinal, ela tem o phisique du rôle para personagens sofredoras resignadas. Mas não há exagero, nem nos gestos nem nas expressões faciais ou no tom de voz, mesmo nos momentos em que a personagem parece carregar todo o sofrimento do mundo nos ombros. A dramaticidade está no ponto certo, nem demais, nem de menos. O filme cativa mais pelo que poderia ter sido do que pelo resultado final. E deixa o espectador com vontade de saber mais sobre a história de Fania e Amos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Capitão América: Guerra Civil

    Crítica | Capitão América: Guerra Civil

    Capitao America - Guerra Civil

    O mundo tem se tornado um lugar cada vez mais complexo, embora menos violento, fazendo com que a tomada de decisões se torne uma função cada dia mais ingrata. Se antes era fácil decidir o que era certo e o que era errado, hoje a matiz se diversificou.

    Após o final da Segunda Guerra Mundial, o cientista Oppenheimer fala a público sobre sua participação no Projeto Manhattan (que formulou as bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki). Com amargura, cita Bhagavad Gitá e o texto Mahabarata da cultura Hindu, quando Vishnu tenta convencer o príncipe a cumprir seu dever, e para impressioná-lo assume sua forma com múltiplos braços: “Agora eu tornei-me a morte, a destruidora de mundos”. Já a visão de parte da tripulação do avião que carregava as bombas atômicas, endossada pelo presidente Truman, era “Eu estava obedecendo ordens. Eu fiz o meu dever”. Escolher o argumento do dever é escolher não conviver com a culpa e a responsabilidade, um mecanismo de defesa frequente no qual se convence que não teve escolha. Em uma visão quase romântica, que só poderia ter sido assim, tal como foi. Exatamente qualquer ato malévolo pode ser igualmente reduzido apenas ao cumprimento do dever, isso, porém, não dissolve as questões éticas e atemporais da maldade. Este tipo de reflexão é crucial para evitar que épocas fascistas de nossa história não sejam hoje vistas com romantismo imaturo ou postura blasé.

    Capitão América: Guerra Civil tem início com o grupo dos Vingadores já estabelecido como uma força civil de combate ao terrorismo em diversos países do mundo sem obedecer fronteiras. Com incidentes recorrentes, como os que se deram em Vingadores: Era de Ultron e a falta de participação de governos nas decisões do grupo, surge o medo de o que é se viver num mundo onde se tem heróis fantásticos. Após uma missão frustrada na Nigéria surge o apelo pela responsabilização dos Vingadores em seus atos, quando entra em ação o então secretário de defesa General Ross (vivido Willian Hurt aqui e em O Incrível Hulk) com a missão de colocar os Vingadores sob sua tutela, e assim obedecer as ordens do conselho de segurança da ONU. Ao trazer a questão para o mundo real, ações moralmente duvidosas como o uso de drones para julgar e executar criminosos no oriente médio recebem aceitação popular simplesmente por estarem atreladas a um governo, mas seriam seriamente repreendidas caso viessem da sociedade civil.

    Vivemos em uma época de prosperidade, mas em cuja inocência se extinguiu. Não é mais possível comprar um item sem sequer estar compactuando com trabalhos escravos, exploração da natureza, ou com o terror em países abandonados à própria sorte.

    Steve Rogers (Chris Evans) une todos esses paradoxos em si. Um homem profundamente solitário que busca lutar pelo coletivo. Descrente de instituições em uma visão foucaltiana, que considera as instituições como naturalmente perversas, compreende que o mundo é obscuro e não há inocência na mais simples ação, mas também acredita poder saber o que é o certo e o que é o errado, sem precisar democratizar suas decisões. Tony Stark (Robert Downey Jr, em uma interpretação muito mais sensível que em suas outras aparições) da mesma forma usa seu ego e genialidade para moldar o mundo à sua imagem e semelhança, como um construtor moderno, um futurista que, pela potência de suas ações, faz o mundo se curvar para elas. Repetidamente se observa Stark, assim como Vishnu, tornar-se o destruidor de mundos.

    A incapacidade de ter certezas e a impossibilidade de não agir destrói o interior desses dois personagens, que no fundo veem a tentativa de controle como uma forma de evitar a profundeza de suas consciências e, assim, lutam para garantir algum propósito a suas existências.

    Os irmãos Russo, diretores de Capitão América 2: O Soldado Invernal e dos próximos Vingadores, conseguem discutir estas questões sem dar respostas, a não ser a de que é necessário cuidado ao se entregar por completo a uma crença, ou a corrupção e destruição serão o próximo passo. Distante de criar uma dicotomia fácil, buscam tornar crível o embate entre ao dois lados liderados por Capitão América e Homem de Ferro, ao desenvolvê-lo tão humano quanto possível. A referência aqui é Hamlet, de William Shakespeare, primeiro homem moderno da literatura, que no confronto com a morte diante da caveira questiona sua própria existência e aquilo que se é. Capitão América se torna, assim, o príncipe confuso e amargurado, mas de bom coração e ideais tão robustos quanto falhos, que se tornaria rei mesmo que ainda vivesse em uma casca-de-noz.

    Com uma melhora clara na direção com relação ao filme anterior, em belas cenas de câmera à mão e na opção por usar planos ligeiramente mais longos sem cortes aparentes em diversas cenas, o ritmo de Capitão América: Guerra Civil é impecável, embora o tempo de projeção seja sentido devido ao volume de informação. O trunfo para lidar com tantos personagens é fazer do antagonista uma face alternativa da moeda que será jogada, tornando-o mais um conceito do que um personagem. Tal aposta traz algo recorrente nos filmes do Universo Marvel: a falta de vilões poderosos e capazes de seduzir o espectador, compensada pela boa atuação e os ideais cativantes do Barão Zemo (Daniel Brühl em boa atuação). A impressão é que tudo é gerado pelo caos e aleatoriedade, mas cinema é narrativa, e mesmo que não seja a grande peça de cultura pop que foram outros filmes, claramente inferiores a este, essas opções elevam Guerra Civil como obra.

    Os irmãos Russo lidam bem com o desafio de balancear os protagonismos melhor do que ninguém, conseguindo tornar críveis as opções de roteiro que são puramente funcionais e, com a melhora na direção, as atuações se mostram acima dos diálogos eventualmente verborrágicos de filmes anteriores do Universo Marvel, e com alívios cômicos capazes de contribuir para a dramaturgia vista na tela.

    É o dilema filosófico clássico: uma ideia contra uma ação. O quanto um ideal se sustenta frente às questões práticas de um mundo onde tudo que se pode fazer é uma contenção de danos? De certo modo, o dilema é o mesmo mostrado em Batman vs Superman: A Origem da Justiça, ao mostrar heróis afogados pelo niilismo e em busca de sua própria humanidade, podendo refletir um caminho revisionista do super-herói no cinema — tal qual Deadpool, embora numa direção diferente. Em Guerra Civil, porém, o respiro alcançado é dado de maneira mais carismática e redentora que na obra da DC Comics / Warner, alcançando a luz por meio do sacrifício daquele que é capaz de apanhar o dia inteiro por pura fibra moral, por aquele que prevê um mundo melhor aos seus filhos, pela nobreza herdada, ou pela simplicidade da ótica de um menino de 16 anos que passou a vida apanhando e hoje é capaz de fazer a diferença com seus dons. Com destaque para James Rhodes (finalmente bem utilizado), o Pantera Negra (Chadwick Boseman), Viúva Negra (Scarlett Johansson) e para o excelente Homem-Aranha/Peter Parker, os diversos personagens trazidos aqui são o fio de entusiasmo que faz com que se siga em frente sem perder seu caminho.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

     

  • Crítica | Suíte Francesa

    Crítica | Suíte Francesa

    Suite Francesa - poster

    O que esperar de mais um filme sobre a Segunda Guerra? É, sem dúvida, um dos temas mais reutilizados na história do cinema. Mas o que acabamos de descobrir é que muitas vezes ele se renova antes mesmo negarmos esse conceito.

    Em Suíte Francesa, Lucille (Michelle Williams), uma recém-casada nos arredores de Bussy no centro da França, ajuda sua sogra (Kristin Scott Thomas), incrédula sobre a derrota francesa contra os alemães, a administrar os negócios de aluguel de propriedades em plena Segunda Guerra Mundial. Seu marido Gaston não dá noticias há semanas e isso passa a preocupá-la gravemente. Eis que, durante uma coleta de aluguel, as duas avistam um grupo enorme de pessoas fugindo de Paris e presenciam um ataque aéreo das forças alemãs. Após a ocupação de Bussy, a casa de Lucille e sua sogra se transforma em um alojamento para o oficial Bruno Von Falk (Mathias Schoenaerts), assim como muitas das outras casas da cidade, e ela passa a desenvolver um pequeno romance com o oficial. O filme ainda possui uma sub-trama com Bennoit (Sam Riley), um dos clientes da sogra de Lucille que não foi à guerra devido a sua perna quebrada.

    Apesar da trama simples em desenvolvimento, todas as cenas em que a tensão da invasão e ocupação alemã são dirigidas conseguem expor bem o medo e a inquietude dos moradores da cidade. Planos médios e closes em plano sequência são muito bem enquadrados para descrever uma narrativa quase que em primeira pessoa, recurso que ultimamente tem sido recorrente tanto no cinema como em produções para a televisão. Como o filme se baseia em um livro best-seller, e, portanto, uma obra que necessariamente sofre cortes e adaptações, a forma como a trama discorre deixa a entender que só alguns pontos foram destacados em detrimento da conclusão final. Se tudo ao início parece uma rígida dualidade, pequenos pedaços de tons de cinza são colocados aos poucos, encaixados progressivamente na trama a ponto de tornar o romance semelhante a uma encenação.

    Essa ambivalência de sentimentos é o trunfo da película como um todo: não chega a ser rigorosamente um clichê, mesmo sendo um filme sobre a Segunda Guerra, mas se destaca por uma trama bem escrita. O que de fato fere a perspectiva até os momentos finais do filme é saber o contexto original em que a obra foi escrita, levando-nos a crer que tudo aquilo pode de fato ser mais autêntico que muitas das que foram criadas após o período. Não se trata de uma trama simplesmente, mas de um relato de uma testemunha presente sem perspectiva naquele momento difícil, o que torna o final completamente amargo, mas justo.

    Seria possível dizer que, como em Amor Profundo, o pano de fundo em que a trama se apresenta não apresenta tanto uma mensagem como no desenvolvimento das personagens, tornando essa história congruente em qualquer período. Porém, é exatamente o contexto em que ela se encontra que faz de Suíte Francesa um filme que merece ser visto. Ele poderia ser um Charlotte Gray – Paixão Sem Fronteira, mas é bem mais crível e atraente como narrativa.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Ave, César!

    Crítica | Ave, César!

    ave_cesar_cartazO cinema do humor e do pastiche é uma característica clássica dos irmãos Coen, e a nova produção da dupla, a comédia Ave, César! traz novamente esse elemento a seus filmes, depois de duas produções mais sérias. Em cena está novamente George Clooney, dessa vez como o bonachão ator Baird Whitlock, astro de uma superprodução chamada Ave, César!, que conta a história de um general romano que se converte ao cristianismo após conhecer Cristo. Josh Brolin interpreta Eddie Mannix, um “resolvedor de problemas” do estúdio, que trabalha horas a fio para resolver tudo o que acontece dentro e fora do set a fim de que as filmagens não parem.

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    O mote inicial se dá quando Baird é sequestrado por dois figurantes e levado a uma casa de veraneio de outros trabalhadores de Hollywood, especialmente roteiristas, que explicam cuidadosamente ao confuso ator suas motivações. Curiosamente, todos são comunistas e usam vários jargões do materialismo histórico, quase o convencendo de sua condição. Nisso, a trama também lembra vagamente a de Trumbo: A Lista Negra. Enquanto isso, Mannix precisa encontrar Baird, ao mesmo tempo em que precisa decidir se muda para outro emprego, parar de fumar, encontrar um marido para a estrela solteira e grávida DeeAnna Moran (Scarlett Johansson) e também um ator conhecido para o filme do conceituado diretor Laurence Laurentz (Ralph Fiennes) em uma possível referência a Laurence Olivier. As cenas de Fiennes garantem ótimos momentos cômicos quando atua junto ao jovem e promissor Alden Ehrenreich, interpretando o canastrão ator de faroeste Hobie Doyle.

    Todas essas linhas de história se entrecruzam, porém em momento algum confundem o espectador, pois são extremamente simples, diretas e bem contadas, ao mesmo tempo em que são centralizadas em Mannix, o que torna o foco bem claro. Ao mesmo tempo, a pressa em resolver tantas histórias faz com que a profundidade clássica dos Coen seja deixada de lado, tornando o humor mais raso e menos conceitual. A diferença em relação a Um Homem Sério neste aspecto é gritante.

    Porém, a homenagem/sátira aos anos dourados de Hollywood, com suas megaproduções e seus artistas fabricados sob medida para manter a ilusão do público, funciona muito bem, com a paleta de cores e maquiagem pesada nos atores lembrando de forma precisa o visual da época. O desfecho do sequestro envolvendo Burt Gurney (Channing Tatum) também é digno de nota. A metalinguagem de se tratar a dedicação dos comunistas de Hollywood a URSS quase como um musical é icônica no sentido de que aquilo também era uma idealização de um imaginário para eles, tanto quanto o cinema da época fazia para o público. Porém, essa afirmação visual interessante acaba sendo deixada em segundo plano no final.

    Ave, César! é uma produção de nível técnico muito bom, mas falta em si um centro, uma trama mais enxuta e menos corrida, que nos fizesse digerir e acompanhar mais o que vemos na tela. Os bons momentos valem a conferida, mas deixa muito a desejar em comparação a obras dos Coen que abordaram o mesmo tema.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Estudo de Personagem | Negro Místico

    Estudo de Personagem | Negro Místico

    Negro Mistico

    Ele surge do nada, é sábio, está sempre pronto pra nos ensinar e muitas vezes é o Morgan Freeman.

    Sujeito perdido na vida, enfrentando dificuldades em se adaptar à um novo mundo, novo poder, novas responsabilidades… Eis então que surge um homem misterioso e sem passado, geralmente um faxineiro, zelador, jardineiro… Ele é surpreendentemente sábio e nobre, dono de habilidades muito diferentes daquelas que aparenta ter e sempre passa despercebido aos olhos de todos, menos do nosso herói. Já viu essa história antes? Pois é, ele é o “Negro Místico”(Tchan-tchan, tchan tcham).

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    Após o fim da luta pelos direitos civis nos EUA e a ascensão de negros interpretando figuras públicas (Malcolm-X, Mandela), como uma forma de encarar essas mudanças, a indústria do cinema criou o conceito do “Negro Místico”, ou “Negro Mágico”. Trata-se de um personagem inserido na trama, e que tem como função guiar o protagonista em sua jornada. Ele não precisa ser negro, pode ser um nativo, negro, latino, ou qualquer outra minoria étnica e cultural, o importante é o contraste do herói branco incapaz, e o minoritário capaz; e a inserção do herói numa nova cultura, mais nobre e eficaz da qual mais pra frente ele fará parte. O Negro Místico tem algumas variações:

    Garota Alternativa

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    Garota de vida sem regras que chega para mudar a vida do personagem preso em suas próprias regras, inicialmente prejudicando a vida como ele a entende, mas então, mudando sua realidade positivamente.

    EX:

    • Clementine (Kate Winslet) – Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças;
    • Summer (Zooey Deschannel) – 500 Dias Com Ela e Sim, Senhor;
    • Polly (Jennifer Aniston) – Quero Ficar com Polly;
    • Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead) – Scott Pilgrim Contra o Mundo.

    Asiático Místico (Mestre)

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    Na representação americana da cultura oriental, na qual  asiáticos são geralmente mostrados como pessoas grosseiras e ao mesmo tempo nobres, o Asiático Místico é esse preconceito mostrado de forma positiva. Geralmente faz o herói passar por provações humilhantes para, então, aprender por meio da própria experiência e do sacrifício a ser mais nobre e capaz.

    Ex:

    • Senhor Miyagi (Pat Morita) – Karatê Kid;
    • Mestre Kan – Kung Fu Panda;
    • Senzo Tanaka – O Grande Dragão Branco;
    • Pai Mei – Kill Bill.

    Veja que todos esses exemplos são uma generalização do “Negro Místico”, e apenas fazem pegar preconceitos e colocá-los na tela de forma positiva. A mulher, geralmente retratada como imatura, irresponsável e descuidada, aparece como sendo uma pessoa livre. O asiático considerado ríspido, é mostrado como um pai rigoroso, e etc.

    Estes são recursos artísticos que servem como atalho para inserir uma certa moralidade sem ocupar muito tempo de tela, tanto é que o Místico geralmente não tem passado e surge do nada, é quase uma cota social artística, pois ainda é raro encontrar negros como os heróis, o que nos leva a outros conceitos como:

    O Negro Melhor Amigo

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    Melhor amigo do mocinho, geralmente de minoria, fiel, de modo a nunca esbarrar nos planos do protagonista e está sempre preparado para segui-lo em planos malucos. Geralmente, seu papel quase sempre gira em torno do bem-estar do protagonista (Assim como nos demais exemplos, ele não precisa ser negro, e, na versão feminina, geralmente a melhor amiga não é tão atraente quanto a protagonista).

    EX:

    • Bubba (Mykelti Williamson) – Forrest Gump;
    • Pete Ross (Sam Jones III)- Smallville.

    Uma inversão interessante deste papel é em Independence Day, em que temos Jeff Goldblum como o “amigo negro” de Will Smith.

    Exemplos do Negro Místico

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    Morgan Freeman em:

    Além do Morgan Freeman:

    • John Coffey (Michael Clarck Duncan) – Á Espera de um Milagre;
    • Morpheus (Laurence Fishburne) – Matrix, apenas no começo, pois sua trajetória se altera durante o filme;
    • Hitch (Will Smith Hitch: Conselheiro Amoroso, novamente uma versão do conceito, pois ele é também o protagonista;
    • Rafiki – O Rei Leão;
    • Dr. King Schultz (Christoph Waltz) – Django Livre; invertendo totalmente este papel, e tornando o personagem de cultura maioritária o que antes era renegado aos personagens étnicos (pensem agora sobre as acusações de racismo que o filme sofre);
    • Michael JordanSpace Jam;
    • Omar SyIntocáveis.

    Como veem, temos Morgan Freeman como campeão do personagem ao lado de Stephen King, que usa este conceito diversas vezes em seus livros, como em A Torre Negra, Um Sonho de Liberdade, a Próprio “À Espera de Um Milagre” entre outros. E Will Smith, um dos pouco a conseguir subverter a situação e, também ser o protagonista.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | 007 Contra a Chantagem Atômica

    Crítica | 007 Contra a Chantagem Atômica

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    O quarto filme da franquia James Bond, 007 Contra a Chantagem Atômica, teve a missão de ajudar a consolidar uma das maiores franquias da história do cinema em apenas três anos de diferença para o primeiro filme.

    Após o agente Emilio Largo da criminosa associação Espectre roubar armas nucleares de um avião da OTAN e ameaçar detoná-las em cidades inglesas e americanas em troca de dinheiro, James Bond vai para as Bahamas com o objetivo de impedir a extorsão.

    O roteiro sólido de Richard Maibaum e John Hopkins, baseado na história original de Jack Wittingham, segue a cartilha dos anteriores e mantém os principais elementos dos filmes da franquia que conquistou a legião de fãs, como a motivação dos antagonistas em destruir o mundo, a ambientação em locais paradisíacos cheios de ricos elegantes, os assassinatos e o eterno clima de conquista do protagonista em relação às diversas Bond Girls.

    O que muda na trama do roteiro é a ameaça. Pela primeira vez na franquia a detonação de uma bomba atômica é o grande problema a ser resolvido. O tema, em voga na época após a Crise dos Mísseis em Cuba em 1962, deixa o temor mais palpável, fazendo da trama mais realista, com um medo real do período.

    As ações dos personagens são quase orgânicas, mas existem escorregadas dos roteiristas e forçações de barra para fazer a trama andar. Por exemplo, quando Emilio Largo vai entrar em seu barco no final do filme, ele escolhe ir por baixo d’água sem motivo aparente, o que se torna conveniente para que James Bond mate um dos seus seguranças e entre na embarcação.

    Terence Young volta a franquia após dirigir os dois primeiros filmes. Ele soube usar de sua habilidade para narrar visualmente a história, em especial as cenas de ação e os romances entre o protagonista e as mulheres. Como diretor de atores, ele está no automático, o que não é mais que necessário para os filmes da franquia.

    As atuações caricatas seguem a cartilha dos anteriores. Sean Connery é um bom 007 e Adolfo Celi um vilão memorável. Salta aos olhos as aparições, como Bond Girls, da francesa Claudine Auger interpretando Domino e a italiana Luciana Paluzzi sendo Fiona. E, ainda, as sempre ótimas aparições de quem não poderia faltar ao elenco da saga, Desmond Llewelyn como o chefe de tecnologia do MI-6 Q, Lois Maxuell como a secretária Moneypenny e Rik Van Nutter como o agente americano Felix Leiter.

    A fotografia com tons naturalistas de Ted Moore, que trabalhou nos três filmes anteriores da saga, não consegue se sobressair, porém, faz seu papel em deixar 007 Contra a Chantagem Atômica uniforme. O grande destaque são as cenas embaixo d’água feitas pelo estúdio Ivan Tors, inclusive o belo clipe de abertura com a trilha sonora característica composta por John Barry e Don Black e cantada por Tom Jones é feito com cenas aquáticas.

    A edição de Ernest Hosler dá ritmo ao filme e os 128 minutos não são sentidos por quem entende ser um filme de ação dos anos 60.

    007 Contra a Chantagem Atômica vale a pena para quem gosta de acompanhar a franquia desde o começo, e consegue inserir um tema pertinente à época, deixando o filme mais interessante.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Barbara

    Crítica | Barbara

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    Barbara segue na esteira de filmes alemães recentes como Adeus, Lenin! e A Vida Dos Outros que se propõem a fazer uma revisitação histórica sobre o período para tentar entender o seu impacto no país até hoje.

    Na Alemanha Oriental dos anos 80, uma médica é transferida para uma cidade do interior por causa dos seus planos de fugir do país.

    O roteiro sólido do diretor Christian Petzold em parceria com Harun Farocki acerta ao focar no desconforto da protagonista ao chegar na nova casa. O contraste vem através das cenas de amor escondidas com o seu amante e a frieza no trato com os colegas de trabalho com suas falas curtas e rápidas. Barbara é obrigada a passar por sessões de constrangimento nas visitas dos oficiais do governo, além de ser monitorada pelo colega de trabalho, e é obrigada a lidar com uma paciente que sobreviveu a um campo de concentração de trabalhos forçados. Tendo em vista o lema comunista da obrigação do trabalhador em devolver para a pátria o que lhe foi investido, a premissa do roteiro é bem clara neste ponto: o preço da liberdade.

    Ao mostrar a dificuldade burocrática de se conseguir equipamentos e na incompetência dos médicos locais, a decadência daquela cidade do interior representa o retrocesso que foi para a Alemanha estar parcialmente dividida sob ocupação soviética. O local só se transforma depois que a protagonista chega. Sua presença traz mais humanidade ao hospital, a eficiência no trato com os pacientes aumenta significativamente. A sua humanidade deixa o final do roteiro bonito e comovente.

    Christian Petzold é um diretor competente. A sua habilidade mantém a uniformidade da narrativa, e ao mostrar tempos mortos, seu objetivo é claro retratar a melancolia e tristeza da protagonista, além de ressaltar o regresso do local, que parece que estacionou no tempo. Outro trunfo é a direção de atores, Petzold consegue extrair boas atuações de seu elenco.

    Nina Hoss é o grande nome do filme. A sua boa atuação contida consegue expressar o desconforto de estar ali. A vontade de viver existe, porém está paralisada. Destaque ainda para Ronald Zehrfeld, que interpreta seu colega de trabalho.

    A fotografia de Hans Fromm é uniforme e competente, porém não se sobressai em nenhum momento, da mesma forma que a edição de Bettina Böhler deixa o filme em um bom ritmo e só.

    Barbara vale a pena por fazer parte de um movimento (se é que se pode chamar assim) de filmes que se propõem a fazer uma revisitação histórica sobre um dos períodos mais difíceis que dividiu um país por mais de 50 anos.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Z

    Crítica | Z

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    Em 1964 as forças ocultas tomaram posse do Brasil. Foram controladas e guiadas por interesses estadunidenses para evitar o que poderia ser um novo governo socialista na América Latina. O preço disso foram vinte anos de dor e sofrimento. Em 1964 o desejo de um povo criado para temer o levante comunista foi um dos principais fatores para um retrocesso social e político. Um retrocesso histórico. Um lembrete do quanto temem aqueles que não entendem. E de quanto fazem por medo.

    Os pais que marcharam aos gritos de Pra Frente, Brasil nas ruas, aqueles em nome da família com Deus, tiveram suas filhas e filhos raptados, estuprados, mortos. Ainda que os saudosos repitam Nunca Fomos Tão Felizes, eles não são capazes de saber. Esses não estiveram nos porões da ditadura. Não estavam cientes das dívidas em que o país se afundava com empréstimos do estrangeiro. 1964 foi o ano em que os pais de tantos saíram de férias. O ano em que a ditadura militar se instalou no Brasil com o apoio do povo, mas em outros países ela se fez de outra forma, ainda que com mesmas peças em um tabuleiro de cores diferentes. Há sempre o medo e conservadorismo de valores estimados pelas classes dominantes, há sempre forças ocultas à espreita e alguém que simboliza o que pode haver de melhor. Um cabra marcado para morrer.

    Em grego, Z quer dizer: ele vive.

    Costa-Gavras é conhecido por fazer filmes políticos. Fez filmes como Desaparecido – Um Grande Mistério (vencedor da Palma de Ouro em Cannes) e seu mais recente, O Capital. Z é vista como sua obra mais famosa, possivelmente devido a tratar sobre algo de seu país de origem. Roteirizado por Jorge Semprún e baseado no livro de Vasilis Vasilikos: conta a história verídica do assassinato de Grigoris Lambrakis.

    z-costa-gavras-sceneQualquer semelhança com fatos ou pessoas vivas ou mortas não é casual, é intencional.

    Z (Yves Montand). Líder do movimento socialista na Grécia. Uma figura carismática e de esperança aos jovens que não se interessavam em integrar grupos extremistas de direita. Pregavam a paz e o desarmamento de uma Grécia com forte poder militar. Perturbavam o status-quo com seus gritos e protestos legítimos, mas que antes da instalação da ditadura já se demonstravam sabotados. Espiões e ameaças já eram comuns. Os jovens, no fim, eram vistos como as pragas de uma plantação, como infectados por uma doença.

    Quem combatia o que era visto como praga, doença, era a cura, ou pelo menos assim se exaltavam. Viam-se como os anticorpos no combate a ideologia que crescia no país. Os defensores da democracia. Desprovidos de ideais políticos externos. De novo, assim se viam. Isso é afirmado na primeira cena do filme, quando ocorre um monologo sobre o crescimento do socialismo em um encontro de militares. Demonizam a ideologia e buscam maneiras de poda-la. Controle dos jovens, repúdio aos intelectuais. O que se segue é a demonstração dos sentimentos fervorosos da população, seus comportamentos. Como os grupos se comportam perante seus diferentes. Z chega no país para comparecer a um comício em meio a uma enorme briga entre grupos e com presença da polícia. É na saída desse evento que sofre o atentado. O que ocorre depois são reações e investigações. Tentativas de transformá-lo em mártir e tentativas de calunia-lo.

    A maneira que lidam com a relação massa, imprensa e governo se faz pela tentativa de controle da primeira, sempre. A imprensa segue as ordens do governo e não busca iniciar rebeliões, exceto por um jornalista investigativo que deseja montar o quebra-cabeça para publicar no jornal. Há também o personagem do promotor pragmático, que muitos apontam como verdadeiro protagonista. Segue somente fatos que se depara na investigação, ainda que seja afetado pela suspeita e repulsa perante o que puder identificar como comunismo. Esses dois não são tão vistos como personagens quanto são como conceitos, mas encaixa. Os outros personagens se dividem entre o grupo socialista de Z, sentimental e intenso; os militares, contidos e frios; assassinos e contratados avulsos.

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    A montagem do filme é uma qualidade de destaque, especialmente pela rapidez e intensidade das informações que lida com precisão e agilidade, ainda que com problemas de continuísmo perdoáveis devido a grandeza do filme. Fatos se aceleram em cortes rápidos e a memória de personagens também, em uma forma não linear, o que torna impactante para o telespectador. Rende também um ritmo fluido ao filme, até mesmo quando confrontando os opostos entre os personagens. A câmera se movimenta pelo meio dos personagens e de suas dinâmicas bem atuadas em takes que podem ser considerados longos para o padrão, somado a frames bem compostos e por vezes carregados de simbolismo e significado. A trilha sonora apresenta um ar quase cubano, com seu violão fervoroso e emocional, exagerado.

    Z se demonstra um filme ainda atual, principalmente para países que enfrentam momentos como o Brasil. Levantes de conservadores por medo dos avanços progressistas. Mais do que nunca é a hora de entender e compreender o contexto, entender como melhor lidar e como evitar o aproveitamento por parte de forças ocultas, que não precisam ser necessariamente os militares, mas o sentimento de retrocesso, sentimento de desumanidade. Não importa o quão desolador pareça o momento, deve-se exaltar e sentir a humanidade. Deve-se sentir o pesar daqueles que não escolheram, no seu tempo, o lado fácil da história. E continuar.

    O coração não quer parar. Ele bate.

    Ele vive.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | Chinatown

    Crítica | Chinatown

    8FItRq1pNPeni9FkDYUug7YhfggLançado no meio dos anos 70, Chinatown aproveitou a contracultura que revolucionou o cinema norte-americano e inseriu a marca de autor baseada em um realismo dramático dentro do gênero noir, que havia estacionado no cinema clássico hollywoodiano dos anos 40 e 50.

    Na Los Angeles de 1937, um detetive particular é contratado por uma mulher para investigar a traição que esta sofre do marido, mas descobre que foi enganado quando a verdadeira esposa aparece, revelando uma conspiração na Companhia de Água da cidade.

    O ótimo roteiro de Robert Towne aproveitou fatos verídicos e conseguiu criar uma ambientação diferente de um filme noir mantendo as características do gênero. O interessante do argumento são os elementos noir que variam dos filmes clássicos: a investigação de J.J. Gittes (Jack Nicholson) vai desenrolando uma trama simples até revelar um complexo sistema de corrupção; a falsa mulher fatal que inicia o filme também foi outra marca interessante do autor; os motivos que movem o protagonista são mais sólidos, como ser enganado e virar piada no seu meio de trabalho; os perigos que ele enfrenta são reais, já que está mexendo com a máfia que existe em uma grande empresa como a Companhia de Águas.

    A direção de Roman Polanski conduz com habilidade e destreza o bom roteiro de Towne, desde a escolha dos enquadramentos, passando pela boa direção de atores, até a ótima mise-en-scene. Enfim, Polanski é um maestro que mantém a ótima direção que o havia revelado para o mundo no clássico O Bebê de Rosemary seis anos antes.

    A atuação de Nicholson é um dos pontos altos do filme. O ator consegue compor o detetive com passado obscuro, de moral duvidosa, que tem sentimentos contraditórios quanto a Evelyn, a ótima Faye Dunaway que dá vida a mulher fatal, objeto de desejo do protagonista. Roman Polanski faz uma rápida aparição como o Homem Com Uma Faca. Destaca-se também a participação do ator e diretor John Houston (que, talvez com Humphrey Bogart, seja um dos maiores expoentes dos filmes noir).

    A boa fotografia naturalista de John A. Alonzo mantém os tons alaranjados e amarelos do filme, características dos filmes rodados em Los Angeles que focam muito a fotografia de deserto. Ela se sobressai nas cenas com Dunaway. A edição de Sam O’Steen, além de ser invisível, mantém o filme com um bom ritmo. Ela se destaca nas cenas de ação, como a da perseguição de carro na fazenda e sempre que os dois protagonistas se encontram.

    A direção de arte de W. Stewart Campbell, aliado à composição de cenário e locação de Ruby R. Levitt e ao figurino de Anthea Sylbert, ambientou de forma muito competente os anos 30 de Los Angeles.

    Chinatown vale a pena por ser o tipo de filme que transcende não só o gênero noir, mas também a preferência dos amantes do cinema norte-americano dos anos 70. O tipo de clássico obrigatório para quem aprecia a sétima arte.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Mente Criminosa

    Crítica | Mente Criminosa

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    Se existe algo corriqueiro no cinema de ação é o exagero. Explosões, planos de dominação mundial, perseguições, entre outras distrações que, combinadas, nos enchem os olhos e, algumas vezes, até nos fazem perdoar as imperfeições e deficiências de alguns longas. É exatamente este o problema de Mente Criminosa, do diretor israelense Ariel Vromen. Aqui, o exagero é elevado à enésima potência, causando um desconforto quase que imediato ao espectador em sua primeira metade de exibição.

    Bill Pope, interpretado por um apagado Ryan Reynolds, é um agente da CIA que foi assassinado ao tentar desmantelar um plano de destruição que, segundo a trama sugere, teria consequências globais – temos aqui o primeiro clichê. Na tentativa de dar prosseguimento ao trabalho de Bill, a CIA convoca um cientista vivido por Tommy Lee Jones para realizar um transplante da mente e de suas emoções para um prisioneiro de sanidade mental comprometida (Kevin Costner). Forma-se assim uma história que ganha tons surreais com as oscilações de personalidade de Jericho, personagem de Costner, que se divide entre a vingança àqueles que lhe impuseram esta nova condição e a predestinação em ser o herói, herança deixada por Bill.

    Se a deficiência do roteiro está clara, a direção do filme não fica atrás. Vromen tinha um time e tanto de atores à sua disposição e não conseguiu extrair deles atuações capazes de salvar o longa. Gal Gadot, que aqui interpreta a esposa do policial assassinado Bill, é um dos poucos acertos do elenco. Aliás, a moça que foi uma das poucas unanimidades positivas em Batman Vs Superman – A Origem da Justiça mostrou neste filme que não precisa de um escudo para ser notada. Gary Oldman, que completa o elenco, empresta um pouco de sua credibilidade ao filme. Em suas aparições, surge até mesmo a sensação de estarmos assistindo a outra fita, tamanha a desproporção das atuações.

    Com roteiro irregular, direção confusa e atuações destoantes, Mente Criminosa não consegue ser sério quando precisa. Justamente por isso acaba por se tornar uma experiência cansativa e suas quase duas horas de exibição são sentidas pesadamente. Faltam elementos que gerem empatia com os personagens e facilitem a digestão do texto. Não é nem de longe um dos piores exemplares do gênero, mas certamente não será lembrado com carinho nas carreiras dos envolvidos no projeto.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.

  • Review | Mobile Suit Gundam: Iron-Blooded Orphans

    Review | Mobile Suit Gundam: Iron-Blooded Orphans

    Tekketsu no Orphans

    Robôs gigantes. Trama política. Sangue. Muito Sangue. Crianças lutando como se fossem adultos. Espaço. Lutas no Espaço. Tudo isso junto indica que estamos vendo mais um anime da série Gundam.

    Mobile Suit Gundam – Iron-Blooded Orphans é a 14ª série da longa franquia Gundam. Conta a história de um grupo mercenário de Marte que aceita a missão de escoltar a Princesa Kudelia Aina Bernstein de lá até a Terra. Tal missão não é algo trivial, pois os interesses de Kudelia em nosso planeta vão contra o braço militar do governo geral: Gjallarhorn.

    A trama básica é bem simples, mas para entender realmente é necessário esmiuçar um pouco. Marte é uma colônia exploratória da Terra. Ficou assim após guerras citadas como “Calamity Wars”, onde havia máquinas guiadas por um sistema atualmente visto com “preconceito”: Sistema Alaya-Vijnana, que coloca uma conexão para dados diretamente ligada ao sistema nervoso. Atualmente quem faz a operação e coloca esse sistema é chamado de “Rato do Espaço” e é tratado basicamente como lixo.

    Com Marte sendo uma colônia, o povo de lá é visto como inferior ao da Terra, algo que nunca aconteceu antes na história. Princesa Kudelia é líder de um movimento de liberação de Marte. Para conseguir ao menos começar ter sucesso em sua empreitada, ela precisa chegar ao pequeno ponto azul do universo e conversar com um dos líderes dos três blocos econômicos que compõem o planeta, o único disposto a abrir a janela para acordos. Porém perder sua colônia não é algo que todos querem.

    O grupo conta com vários órfãos que foram obrigados a implantar o sistema em si para lidar com máquinas e trabalhar, como escravos, para o tal grupo mercenário. Após um ataque da Gjallarhorn, um dos mais velhos, Orga Itsuka, assume a liderança, consegue conter o ataque e mata todos os que não gostaram da nova liderança.

    E com isso cobrimos apenas o primeiro episódio. Tekketsu no Orphans estreou em 2015 e a cada episódio evolui a complexidade de sua trama, colocando mais complicações políticas e evoluindo seus personagens.gundam_tekketsu

    E falando de personagens, nós temos muitos. Após a tomada de poder, o grupo é formado quase que totalmente por adolescentes/crianças e isso faz parte do que é trabalhado na trama, em que, em várias ocasiões, eles são lembrados de sua pouca idade.

    Temos em Orga o líder destemido, grande estrategista que sempre tem um plano, aquele que carrega o peso de todo seus amigos nas costas. Ele tem carisma e cativa logo de cara. Ao lado de Orga sempre está seu braço direito, Mikazuki Augus, que, de início, não é carismático, mas um daqueles personagens sem emoção que fazem o que é mandado. Mika, como é chamado, é piloto de Barbatos. O primeiro Gundam dos órfãos possui um Sistema Alaya-Vijnana tripo (o que significa que ele fez a dolorida operação que pode matar quando feita por três vezes, mas que também faz o controle ser melhor).

    A princesa Kudelia é alguém que você se pergunta por que está ali. Como alguém como ela conseguiu liderar um movimento de libertação? Como alguém como ela é chamada de “A Donzela da Revolução”? Por outro lado, é uma das que apresenta maior evolução durante a série.

    Há muitos outros personagens, trabalhados de forma menor que os principais, mas não deixados de lado. Biscuit Griffin cuida das informações e trabalhos administrativos (e com a melhor família de todas. Biscuit tem como irmãs Cookie and Cracker. Eles são um doce de família). Akihiro Atland, que é um “detrito humano” (termo usado para indicar pessoas sequestradas e traficadas para trabalhos escravos. Eles são menores que humanos) e, como tal, não tem lugar no mundo, afinal ele não é humano – no entanto, essa ideia é contrariada por seus companheiros. E por aí vai, são muitos órfãos juntos.

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    A animação não deixa a desejar para uma trama tão rica e com personagens tão interessantes. As cenas de lutas são intensas, empolgantes e bem violentas. Mas não é apenas nas cenas de luta que a série empolga, em partes calmas a narrativa também mostra qualidades.

    A história é bem equilibrada e trabalha personagens no ponto: quando há mortes, você sente seu peso. Com um encerramento excelente e auxílio da trilha-sonora, a série também produz emoção, fazendo com que o espectador se sinta imerso naquele universo.

    Uma trama riquíssima com grandes personagens, Kidou Senshi Tekketsu no Orphans foi um dos melhores animes que estrearam em 2015 e vale muito assisti-lo, te recompensando a cada episódio.

    PS: O anime é criticado por algumas pessoas pela intensidade de certas cenas, principalmente por lidar com crianças. Não há censura nessa parte, crianças portam armas, matam e são mortas.

    Texto de autoria de André Kirano.

  • Crítica | Zootopia: Essa Cidade é o Bicho

    Crítica | Zootopia: Essa Cidade é o Bicho

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    “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor”. Esta frase do educador Paulo Freire rege boa parte do contexto de Zootopia, novo filme da Disney Studios. Adaptada ao contexto do mundo governado por animais da bela animação, é dito: “O sonho da presa é se tornar predador”. Isso dá a dimensão das ousadias tomadas pelo estúdio na concepção de seu novo filme, ao falar sobre as relações entre pessoas de origens diferentes, sobre o não determinismo genético, anti-especismo e a necessidade de cooperação entre seres distintos. Tudo isso com a clara intenção de fugir do clichê básico de que é possível ser tudo aquilo que se quer ser. Não é, a vida traz reviravoltas, mas é possível tomar seu destino nas mãos quando a a oportunidade surge.

    Na animação, a empolgada coelhinha Judy Hopps (Muito bem dublada por Mônica Iozzi) sonha em ser a primeira policial coelha da linda e cosmopolita Zootopia, uma cidade onde seus sonhos podem se realizar. Lá sofre com o preconceito contra sua espécie, oprimida pelo sistema que insiste em rebaixá-la independente de seus méritos. Na cidade ela conhece a raposa Nick Wilde (Muito bem dublado por Rodrigo Lombardi), um típico representante daquele personagem que apresenta um potencial imenso, mas acaba frustrando suas oportunidades por conta de uma visão confusa da vida. Eles se veem unidos para a resolução de uma série de crimes de desaparecimento, e a partir disso criam laços de amizade e troca de experiências.

    A animação sofre com algumas pressas na resolução de alguns conflitos menores, mas tem uma coragem que a coloca como superior: ter uma trama realmente importante, e não apenas a burocracia das histórias típicas que servem apenas como escada para as lições do filme. O mistério do filme é realmente um mistério, te leva a desconfiar de vários personagens passearem por dentro da trama de maneira natural.

    A profundidade dos personagens é realmente o ponto alto de Zootopia. Indo além do bom mocismo típico, diversas cenas são montadas de forma a mostrar que uma boa pessoa ou animal, de mente recheada com boas intenções, pode também ser a cara do preconceito, e que o segredo pra modificar um pouco o mundo é apontar o dedo pra si antes de tudo, pois o verdadeiro rosto do fascismo cotidiano não é uma caricatura de ditador, mas as diversas pequenas ações que fomentam a opressão no outro. Não é fácil, e muitas vezes confuso, afinal “um coelho pode chamar o outro de fofinho, outros animais não”.

    As lições aqui não são morais, mas sim éticas. A moral, algo amplamente distribuído pelos contos de fadas e fábulas, é algo muito mais dogmático e que te obriga a ser de uma tal forma através do castigo e da punição, numa espécie de karma ideológico. Ética, por outro lado, trabalha o tipo de mundo em que se escolhe viver; trabalha convivência e constante diálogo, bem como cotidianas modificações sobre o que é a realidade que nos cerca.

    Mais divertido que o enfadonho Frozen – Uma Aventura Congelante, e conceitualmente mais interessante e profundo que Operação Big Hero ou Detona Ralph, Zootopia estabelece-se como o melhor filme da recente safra de animações 3D da Disney ao ocupar-se de temas relevantes, evitando o antropomorfismo carente de significado que ocorre em animações recentes como em Madagascar, olhando para o racismo e demais formas de preconceito com um olhar otimista e palatável para o público infantil, mas sem diminuir a complexidade do tema.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Dois Amigos

    Crítica | Dois Amigos

    Dois Amigos - poster

    Em determinada cena de Dois Amigos os protagonistas se infiltram em um set de filmagens como figurantes. Há a gravação de uma rebelião de estudantes revolucionários, com direito a fogo e hastear de bandeiras. É possível ouvir a fúria e expectativas dos jovens atores por um futuro melhor, talvez porque não estivessem atuando. E é assim que o diretor quer que seja. Com a veracidade de todos, as emoções compõem aquela juventude. Mas o que há além de pirotecnias e barulho quando não há nada realmente sendo dito?

    Dois homens e uma mulher desenvolvem um estranho relacionamento de “triângulo amoroso”. Entre os membros do elenco: Louis Garrel. E não, não é uma sinopse rasa para Os Sonhadores de Bernardo Bertolucci, mas o primeiro longa-metragem dirigido por Garrel e roteirizado junto com seu amigo Christophe Honoré, que já dirigiu e escreveu outros filmes com atuações de Garrel, como Canções de Amor e Em Paris. É de uma estranha coincidência o longa ressoar o filme mais famoso de Garrel como ator. Mais estranho ainda devido a sua abordagem e progressão de uma história que tem a beleza e as vezes até inocência dos jovens revolucionários, assim como sua visceralidade, que, porém, demonstra um discurso pseudo-progressista.

    Vincent (Vincent Macaigne) se apaixona perdidamente por uma barista da estação de trem. Barista essa com quem já saiu para beber algumas vezes, Mona (Golshifteh Farahani), mas, por motivos que não sabe, não houve retorno. Ele decide, então, pedir ajuda a seu amigo Abel (Louis Garrel) para conquistá-la. O principal conflito é que Mona é presidiária e precisa seguir estritamente as regras do presídio no que diz respeito aos horários de saída e chegada. Esse fato não é sabido pelos rapazes, até porque ela não tem interesse de falar sobre. Eles não se importam em perguntar a ela sobre seus interesses e objetivos, mesmo quando Mona não se mostra interessada. Eles a tiram de sua realidade e a colocam à força em uma jornada pelas ruas da cidade para que pense melhor a respeito de Vincent. Fazem isso visivelmente contra sua vontade.

    De acordo com Abel, “quando uma porta vai fechar você deve meter o pé! ”. Tal frase já denota um dos motivos do pseudo-progressismo do filme. O outro é a promoção, por parte de Garrel, de como esse seria um filme que lidaria com relações “poliamorosas” de forma a introduzir o público a outras realidades; o que não se sucede. Somente seu personagem parece ter uma vida com várias mulheres e ocasionais homens, mas isso não é suficiente para a revolução prometida. Há somente um filme sem estofo suficiente para atingir seu objetivo, ainda que lampeje aqui e ali.

    Os personagens masculinos agem de forma misógina enquanto se disfarçam com o véu dos sentimentos puros e amorosos. Só importa o desejo dos românticos, o daquele que quer ter seu “feliz para sempre”. E até se poderia dizer que assim são realmente os personagens, talvez como uma crítica social aos “homens desconstruídos” e “vanguardistas”, mas não é essa luz que se coloca sobre eles durante o filme, o que torna a mensagem dúbia e danosa. O trio se organiza em dois homens quebrados e egoístas a seu próprio modo, detentores do “direito por amor”, e uma mulher segura de si, que é capaz de se recompor mesmo após se despedaçar; capaz de beijar sem amar. Há então uma dinâmica entre eles que se mostra de forma fluida e bem construída, especialmente devido à naturalidade das atuações. Destaque em especial para Mona e sua cena de dança, que demonstra com contexto e movimentos as complexidades de sua personagem, mesmo sem palavras.

    Em questões técnicas o filme não deixa a desejar, na verdade é o que melhor faz. Garrel apresenta conhecimento técnico tanto em composições de cena como na direção de seus atores, ainda que o problema seja a maneira de abordar profundamente temas complexos. A fotografia ressoa a introspecção dos personagens, geralmente em tons escuros vibrantes, assim como a trilha sonora. A montagem, por sua vez, ordena-se com as aventuras de cada um deles e o conjunto, não dando mais atenção a qualquer um. O final poderia ser poderoso supondo um desenvolvimento que não desse margem para ser “cômico”.

    Louis Garrel estreou com capacidades técnicas e personagens relacionáveis, ainda que com apresentação e evolução duvidosa. Mostra capacidade para desenvolver uma história, ainda que esse fato não seja certeza. Assim como seu personagem, Abel, o público é deixado sem realmente uma conclusão que indique um veredito sobre o que presenciou. Quando se segue uma promessa de protesto revolucionário, é preciso mais do que grito e fogo.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | De Onde Eu Te Vejo

    Crítica | De Onde Eu Te Vejo

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    Ana Lúcia (Denise Fraga) é arquiteta. Fábio (Domingos Montagner) é jornalista. Conheceram-se há 20 anos, ao chegar em São Paulo. Ele, vindo do interior; ela, do Rio de Janeiro. Apaixonaram-se pela cidade e um pelo outro. Tiveram uma filha, Manoela (Manuela Aliperti), agora em idade para cursar a faculdade. A história desse casal e a história construida na capital paulista é contada a partir da sua separação, a partir do momento em que Fábio está de mudança para outro apartamento – que fica do outro lado da rua, exatamente em frente ao apartamento do casal.

    Separados, mas não distantes, ambos tem de aprender a lidar com a nova situação, agravada com a ida da filha para Botucatu, para cursar Veterinária. A tal “síndrome do ninho vazio” se intensifica exponencialmente, já que cada um tem de enfrentar a solidão de seu lado da rua. Aliás, equilíbrio é a palavra-chave para o tom do roteiro de Rafael Gomes e Leonardo Moreira, que combina, na medida certa, drama e humor. Não há extremos, e isso facilita a identificação com os personagens e, consequentemente, a imersão na história. Afinal, as situações vividas por eles são tão do dia-a-dia que dificilmente alguém assistirá sem pensar ao menos uma vez “ah, eu passei por isso também”.

    Interessante notar que Ana, tão conectada ao universo enquanto está no âmbito familiar, mostra-se tão pragmática durante seu trabalho. Ao procurar proprietários de imóveis antigos ou abandonados a fim de conseguir um contrato de exclusividade de negociação da propriedade, seu discurso sobre a transformação, a evolução, a necessidade de mudança bate de frente com os pensamentos de cada uma das pessoas abordadas. Desde Yolanda (Laura Cardoso) criando seus pássaros e curtindo o solzinho do final de tarde; passando por uma loja de sapatos sob medida e outra de vestidos de noivas – “Será que o passado da loja, a quantidade de histórias de amor que passaram por aqui não vale um acréscimo no preço do imóvel?”; até Afonso (Juca de Oliveira), dono do prédio do finado Cine Marabá, que o casal costumava frequentar.

    A relação entre a cidade e o relacionamento de Ana e Fábio – o “destruir para construir” –  é bastante óbvia. Várias das memórias afetivas do casal estavam em locais que não existem mais, assim como os sentimentos que os mantinham unidos. É significativo que em dado momento alguém diga a Ana justamente o que ela costuma dizer aos clientes em potencial sobre a necessidade de transformação, de mudança, de encarar o novo. E, enquanto quem está falando pensa no aspecto físico, fica claro que quem ouve, Ana, está pensando no aspecto pessoal. No seu próprio reinventar.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

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    Sem arroubos estilísticos, de linguagem, montagem ou fotografia, a direção sóbria de Luiz Villaça envolve o espectador e o conduz por flashbacks inseridos cuidadosamente, sem excessos e sem melodramas. Contando a história do casal como um amigo conta um causo a outro. Ou melhor, como Ana – quebrando a quarta parede – a conta ao público. E para ajudar a narrar a história, destaque para a cenografia no apartamento do (ex) casal. Além de ser um daqueles apartamentos em prédios antigos, com pé direito alto, sala ampla, grandes janelas, percebe-se o cuidado com que foi preenchido com objetos adquiridos – ou ganhos – durante a vida de casados e que, em certos momentos, são motivos óbvios de discussão sobre quem fica com o quê.

    Vale destacar o elenco. Tanto a sinergia entre Denise e Domingos, quanto as participações dos coadjuvantes – pequenas, mas bastante significativas, enriquecidas pelo talento de Juca de Oliveira e Laura Cardoso, Marisa Orth e Fulvio Stefanini.

    De Onde Eu Te Vejo é uma declaração de amor à cidade, e uma constatação da necessidade de lançar-se em novas empreitadas sem deixar as lembranças de lado.

  • Resenha | Arco de Virar Réu – Antonio Cestaro

    Resenha | Arco de Virar Réu – Antonio Cestaro

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    “Você vive dentro da sua cabeça. Você não vive no mundo.”

    Primeiro romance de Antonio Cestaro – que já tem publicados dois livros de crônicas: Uma Porta para um Quarto Escuro e As Artimanhas de Napoleão e Outras Batalhas Cotidianas – o livro conta a história de um historiador social, cujo principal interesse é o estudo antropológico de sociedades indígenas, seus rituais e costumes. Narrado em primeira pessoa, o livro conta a história de um homem de meia-idade, primogênito de uma família de pais separados. Família que, como tantas outras, tem seus problemas: a ausência do pai, a fragilização da mãe, a esquizofrenia do irmão mais novo, Pedro.

    A doença mental de Pedro se manifesta na adolescência, quando se inicia um descolamento da realidade e ele passa a vivenciar uma guerra imaginária particular. O narrador tenta de alguma forma encontrar sentido nesses delírios, enquanto seu primo, Juca Bala, quer se valer dessas histórias para fazer um filme. Esse mergulho na loucura do irmão desencadeia no narrador pesadelos recorrentes envolvendo rituais indígenas que se mesclam às narrativas de cunho militar de Pedro. A sanidade do narrador vai se esvaindo aos poucos, até ele próprio descobrir-se doente.

    “Voltando alguns anos no tempo, concluo que foi um engano pensar que a Carolina me acompanharia destemida por qualquer caminho. Há uma ponte entre a fé e a razão que a Carolina, mesmo com a sua formação em ciências humanas, não estava disposta a transpor. Todo o meu esforço para entender além da matéria e do instinto primário da vida ia ruindo com o conhecimento da complexidade das sinapses e seus caminhos sulcados, que tornam a transgressão uma recorrência obsessiva. Por vezes seguia sem o juízo da censura pelos pensamento que seriam do Pedro, e o impacto de antes já não me abalava. Sentia-me só novamente.”
    (p.48)

    A imprecisão (proposital) da narrativa faz o leitor embarcar nas alucinações do narrador, sem saber – assim como ele – onde termina a realidade e começa o delírio. O narrador, pouco confiável devido ao avanço da doença, carrega o leitor consigo em sua tentativa de descrever e entender o que ocorre a seu redor. Faltam coerência e sentido a alguns fatos da trama. A economia de detalhes faz o leitor se perguntar se o narrador está omitindo os fatos deliberadamente ou se é apenas mais um sintoma de seu estado mental, que o faz focar cada vez mais nos seus sonhos em detrimento da realidade.

    A doença do narrador põe em xeque inclusive a existência de alguns personagens – Juca Bala, a Carolina (sua esposa) e dr. Da Veiga existem mesmo ou serão invenções de sua cabeça?

    “Apesar de não saber ao certo em que tempo e circunstância mudei para dentro da cabeça, depois de resistir e tentar outros entendimento, tive que aceitar que tenho passado a maior parte da vida na cabeça, onde prazeres, afeição e coragem se misturam com ódio, vergonha e medo. E, de acordo com o dr. Da Veiga, um medo que se instala na cabeça com propósito de moradia não é medo normal, é medo complexo, que passa a existir independentemente da influência de qualquer elemento causador.”
    (p.112)

    O trabalho com a linguagem é primoroso, resultando numa narrativa ágil e envolvente que leva o leitor a questionar, junto com o personagem, quais os limites entre sanidade e loucura.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.