Categoria: Cinema

  • Crítica | Nocaute

    Crítica | Nocaute

    Nocaute 1

    A consequente trajetória do inconsequente e metido lutador poderia render um enredo e uma construção de personagem interessante, que fugiria aos estereótipos já vistos em Rocky e Jake LaMotta. O ponto triste é que eu não gosto de usar esta probabilidade, mas poderia.

    Nocaute narra a história de Billy Hope (Jake Gylenhaal), um exímio e feroz lutador de boxe já consolidado no circuito mundial, mas que demonstra irresponsabilidade e displicência, tanto no ringue quanto fora dele. Ele é casado com Maureen (Rachel McAdams), que poderia ter maior tempo no filme, já que seu papel é morto justamente para trazer o aditivo emocional e o ponto principal para a contextualização de Billy. Ambos possuem uma filha, Leila (Oona Laurence), que aos poucos no filme vai entendendo a questão do pai ser violento e irresponsável consigo mesmo. A partir da morte de Maureen, é iniciada a derrocada de Billy em sua vida pessoal e profissionalmente.

    Neste instante, o roteiro e o enredo começam a ficar pautados por clichês de filmes do clássico lutador que busca motivações, redenção e se recolocar no papel de pai, irmão, filho, seja lá qual for o grau parentesco/familiar que é apresentado. A direção do Antoine Fuqua é muito boa. Um diretor que tem uma boa estética noturna e urbana, sabe usar controle de câmeras, o que além de intensificar a emoção e o sentimento da cena em si traz uma movimentação bem presente, que te coloca numa posição boa nos momentos de clímax e nas lutas. A atuação de Gylenhaal é, mais uma vez, espetacular. Mesmo seu personagem não trazendo características novas ou algum drama peculiar que talvez lhe escapasse da identificação casual, ele sustenta bem e se entrega não só fisicamente, mas também com cargas dramáticas bem impostas.

    Sua relação com a filha é impressionante, talvez o ponto principal do filme. A atuação da Oona é brilhante, destaca um talento bem natural. As cenas de diálogo e principalmente de revolta com o pai fluem muito bem, são orgânicas e tensas. Há uma cena entre eles, que marca a transgressão do 3º ao 4º quarto, que visceralmente choca por ela não ser boba e ter uma construção e capacidade de percepção que surpreende até mesmo Billy. A participação de Forest Whitaker, como treinador Tick Wills, potencializa o filme, no entanto a história fica mais uma vez presa em arquétipos já analisados e vistos em outros filmes que possuem essa fórmula na semântica da motivação e redenção.

    Fuqua é um diretor bem cotado em filmes de ação mais independentes. Lágrimas do Sol e até o interessante O Protetor dá a credibilidade de alguém que surpreendeu a academia por trazer uma comunicação mais urbana e concentrada em ideologias e universos periféricos em Dia de Treinamento. Ele perdeu acentualmente ao calcar os personagens em cima do já caricato lutador renegado em busca de redenção, mas compensou ao humanizar mais esse universo que é perceptivelmente frio, assim como é a atuação do rapper 50 Cent.

    Texto de autoria de Adolfo Molina Neto.

  • Crítica | O Pequeno Dicionário Amoroso 2

    Crítica | O Pequeno Dicionário Amoroso 2

    O Pequeno Dicionário Amoroso 2 A

    Dezesseis anos após o episódio original, O Pequeno Dicionário Amoroso 2 se inicia em um ambiente semelhante ao mostrado no primeiro, se valendo do pesar do luto para, mais uma vez, reviver sentimentos constrangedores e inexoráveis para os românticos. Sandra Werneck retorna à direção, somando forças com o co-realizador Mauro Lima, que reúne em si uma inspiração para contar dramas não vistos em sua filmografia desde Meu Nome Não é Johnny, sendo da parte dele uma boa parcela do mérito em retratar as tramas mais joviais.

    O roteiro de Paulo Halm, Rita Toledo e Werneck se vale novamente da química entre Gabriel (Daniel Dantas) e Luiza (Andrea Beltrão), que seguiram suas vidas, e que se encontram em pontos decadentes de suas atuais relações. A inquietude e insatisfação os fazem se reunir novamente em torno do saudosismo de uma relação que já havia se provado fracassada, mas que ainda assim é aludida graças a teimosia e a vontade de amar que ambos carregam. Ao mesmo tempo, o argumento faz troça com a modernidade, mostrando as gerações futuras lidando com seus próprios dramas, ainda que o cunho interessante esteja no casal primário.

    O desafio de Werneck era não repetir todo o formato do primeiro filme, e apesar de manter inúmeros aspectos inalterados, como as passagens de tempo que aludem as sensações e frustrações comuns ao viver, a fórmula de falar diretamente ao público é quebrada, sem grandes danos para a estrutura narrativa, já que o artifício abandonado pouco combina com a atual forma de contar uma história no cinema. A coragem dos realizadores proporciona um filme enxuto, interessante, que discute muitos temas sem deixar as pontas mais importantes soltas.

    O repaginar da temática é feito de modo delicado, com o esmero e cuidado que um artesão tem em retomar a sua obra-prima. O conjunto de eventos mostrados demonstra erros, acertos e atos comuns a todo e qualquer ser que precisa amar para se sentir completo. A complexidade do homem não precisa ser obviamente apontada como um aspecto único da espécie, já que isso já foi estabelecido antes, mas ao contrário: o texto não é condescendente com o expectador, algo bastante incomum dentro do mainstream do circuito de cinema brasileiro.

    Os planos fechados e closes ajudam a salientar a condição de hereditariedade presente no comportamento dúbio e não certeiro de Alice (Fernanda Vasconcelos), que repete as mesmas cismas de indecisão do pai. As falas somente fazem alusão ao que o visual já prevê , mas não cai no erro de ser redundante.

    O desfecho causa espanto, especialmente por não temer contorcer paradigmas e verdades ditas absolutas, tanto no gênero romance quanto nas comédias românticas. As mensagens compartilhadas pelas personagens têm sobriedade em demasia, não pecando sequer pelo excesso, mesmo quando se foge das convenções que costumam sagrar o matrimônio como a epítome do final alegre. A busca eterna pela felicidade não necessita ajustes moralistas para ocorrer, tampouco formulários de banalidade. Necessita-se somente de disposição para viver e de indisposição para reprisar os mesmos erros pretéritos, e em O Pequeno Dicionário Amoroso 2 a comunicação é praticamente perfeita entre interlocutor e receptor, sendo fluída do início ao desfecho.

  • Crítica | Perversa Paixão

    Crítica | Perversa Paixão

    Perversa Paixão - poster - capa bd

    A inquietude de Clint Eastwood proporcionou em 1971 uma nova função para sua carreira cinematográfica assumindo, além do papel principal, a direção no suspense Perversa Paixão. O primeiro passo de um diretor que seria ilimitado em suas produções, ousando a cada novo lançamento e destacando-se com um estilo pessoal de filmagem apoiado em suas inspirações e nos ensinamentos ao lado de Sergio Leone e Don Siegel, entre outros com os quais trabalhou.

    Rodada em apenas 21 dias, marcando a economia que se tornou exemplo seguido na carreira de Eastwood, sua estreia se destaca pela narrativa intensa e um estilo que, desde já, apontava-o como um grande diretor contemporâneo devido a coerência narrativa. Ainda que este filme não seja destacado como suas produções posteriores, é notável a segurança pela qual o diretor assume o cargo e imprime suas características neste ofício como se fosse um processo natural além de um desejo.

    Na trama, Dave é um radialista de sucesso que mantém um programa diário nas madrugadas. Devido ao estilo mulherengo e bon vivant, perde a namorada após uma traição. Um dia, uma de suas ouvintes o encontra e os dois iniciam um breve romance, o qual faz a garota não se sentir disposta a ser dispensada por outras mulheres, iniciando uma perseguição obsessiva pelo locutor.

    O suspense se apoia na fixação da mulher diante do radialista, uma situação que transforma a adoração em assédio, permeada por uma visão equivocada do amor. Um conflito agressivo que fez de outra produção, Atração Fatal, um clássico do gênero. No decorrer da narrativa, a história cresce acompanhando a loucura da fã através de um amor obsessivo e sem razão aparente.

    A precisão da fotografia em tons escuros apoia a tensão dramática em cenas feitas à meia-luz, representando simultaneamente tanto um cotidiano realista quanto amplifica a carga de suspense. Uma característica de composição de imagem que Eastwood manteve em sua filmografia ao lado de cenas que abrem em panorama e terminam focalizando a personagem principal.

    Como amante obsessiva, Jéssica Walter, cuja atuação concorreu ao prêmio de Melhor Atriz em 1972 no Globo de Ouro, brilha como a fã sedutora que vê no locutor um amor ideal. A sensualidade inicial da personagem vai se transformando em possessão e raiva conforme o radialista nega a relação com Evelyn, resultando em ataques verbais e físicos. Mesmo que a escalada de agressões deixe implícito que atos extremos surgirão, a incredulidade do radialista diante de tais atos reflete a impressão e emoção do público.

    Devido ao distanciamento temporal desta produção, é possível observar a modificação crítica no decorrer no tempo. Inicialmente, a recepção não foi positiva. Porém, a construção de uma carreira sólida na direção aponta hoje para uma melhor análise para esta primeira produção bem composta como um thriller de suspense, e que destacava o estilo do diretor. O talento de Eastwood sempre se fez presente, não à toa sua obra seguinte, O Estranho Sem Nome, retomaria com qualidade o estilo que o consagrou: uma bela releitura que se tornaria seu primeiro grande filme como cineasta.

  • Crítica | Canções do Segundo Andar

    Crítica | Canções do Segundo Andar

    Canções do Segundo Andar 1

    Levando em consideração eventos que seriam supostamente atrelados ao acaso, Canções do Segundo Andar é a primeira parte da trilogia da vida de Roy Andersson, que remontaria ao modo de um conto do hemisfério norte de situações reais e sem sentido. A trama já começa de um modo grotesco, sem receio de explorar a nudez feminina via terceira idade, passando assim que é permitido para momentos igualmente agridoces onde situações do mundo corporativo ganham contornos de degradação e estranhas atitude de submissão, que remetem ao desespero do homem em perder sua função trabalhista.

    Andersson reproduz a realidade de casais cotidianos sem pudor, explicitando uma nudez pouco erótica, ao menos para as imposições estéticas vigentes, enquadrando em sua lente pessoas de compleições e pesos comuns, expondo varizes, imperfeições naturais e amputamentos, resumindo-as em situações chave, cuja possibilidade de ocorrer em mundo comum são ínfimas.

    Cenas do cotidiano do cidadão médio são interpretadas como números musicais, semelhantes operetas, que dão um tom jocoso a interpelação da rotina, tentando poetizar os momentos de mediocridade humana, através de uma sucessão de fatos bastante improváveis, que parecem estar unidos no conto por mero acaso e coincidência, mas que aos poucos se entrelaçam.

    As cores escolhidas pelo departamento de arte são quase todas átonas, dominando o cenário e os figurinos das personagens. Os tons grafite, marrons e afins curiosamente convivem bem com elementos religiosos e com as referências múltiplas ao suicídio, associando de modo bem categórico as duas práticas que a priori, seriam postas em lados opostos ideologicamente. O descontrole emocional também acompanha o modus operandi dos personagens, como se o medo e receio fossem o mote de seus comportamentos, causado entre outros fatores por questões amorais, em sentimentos egoístas e centrados no interesse próprio indiscriminado e restritivo.

    A carga de niilismo é alta no roteiro de Andersson, ainda que sua faceta seja mais voltada para uma misantropia pouco maniqueísta, onde o ódio ao homem e aos seus semelhantes é retratado através de momentos de escatologia suprema.

    Os momentos finais do roteiro encerram um pouco com a sutileza que permeava o filme até então, já que explicita nos períodos derradeiros a ojeriza aos símbolos religiosos fálicos, já criticados antes pela hipocrisia aliciadora dos personagens e também pelos tons coloridos escolhidos. Canções do Segundo Andar necessita da atenção de seu espectador, ao passo que aventa a miséria interna do homem diante de seus maus agouros e suas más intenções.

  • Crítica | A Escolha Perfeita

    Crítica | A Escolha Perfeita

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    É sintoma claro de velhice o uso do passado como referencial único e inquestionável para avaliação cultural. Tal engajamento com o passado leva a crer que hoje em dia não há obras equivalentes àquelas que definiram e representaram gerações passadas, tal como o cultuado Clube dos Cinco. Em novos tempos, novos interesses e anseios, não cabe mais aos novos representantes da juventude a rebeldia ingênua de outrora, ao menos não nos mesmos moldes. Desde temas tristemente sérios como em As Vantagens de Ser Invisível e Juno, a celebração ingênua da felicidade de Pequenas Miss Sunshine e Super Bad, filmes marcam e desenham o mapa desta geração, e com A Escolha Perfeita não é diferente.

    Na história, Beca (Anna Kendrick) é uma garota indisposta com relação à tudo que se refere à ter seu futuro desenhado por outras pessoas. A aspirante à DJ frequenta a universidade por pressão de seu pai. No outro lado do campus, a equipe feminina de acapella tenta quebrar a hegemonia da equipe masculina na competição. Após um fracasso escatológico durante a final da última competição associado não à incompetência, mas sim devido à pressão em serem bonitas talentosas e multifuncionais, a equipe se desfaz e junto com ela o sonho das Bellas de Barden de mostrar que são capazes. Tal pressão faz com que a equipe frequentemente evite se expor ou ousar em suas apresentações, de modo à ser aquilo que esperam delas. Qualquer semelhança com as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em seus dia-a-dia não é mera coincidência.

    Na tentativa de revitalizar a equipe, os moldes desta se alteram. Das meninas de corpos perfeitos e voz de princesa da Disney, dá-se lugar à personagens desajustadas, como a própria Beca e àquela que rouba a cena em cada um de seus segundos em tela: Amy Gorda( Rebel Wilson). Assim ela se anuncia, de forma assertiva ao demonstrar que tem consciência daquilo que dizem dela pelas costas, mas que nem por isso iria esconder-se dentro de si, usando a intenção jocosa daqueles que olham torta para sua aparência como uma ferramenta de autoafirmação. Ela é gorda, não se importa e sabe disso. Sabe também que é muito mais do que seu “design” aponta. Aliado à isso, Rabel Wilson tem a capacidade de transmitir uma agressividade ingênua em seu olhar e fala, fazendo de suas piadas que poderiam facilmente serem consideradas como de gosto duvidoso uma forma de exaltar-se, mas sem necessariamente rebaixar alguém.

    Produzido por Elizabeth Banks, que atua como uma das comentaristas do disputado torneio universitário de Acapella, dando o contraste ideal para os comentários misóginos de seu parceiro John (John Michael Higgins) e assim relevando o tom de crítica das piadas que surgem ao longo do filme, deixando claro ser uma obra que tem como objetivo discutir o papel feminino no mundo de forma séria, mas sem deixar de fazer ser uma comédia.

    Se de um lado o humor age como uma forma de debochar do outro sob o verniz de que “É apenas uma piada”, o uso deste deboche para ressaltar a contradição ética que é ser machista é um dos grandes acertos de A Escolha Perfeita.

    O feminismo protagonizado aqui releva uma abordagem realmente interessante ao evitar o máximo possível ser maniqueísta, e abandona os desejos de competição Masculino vs Feminino em prol de um discurso de abertura de oportunidades e respeito nas relações. Muito diferente dos filmes das décadas de 1990 e 2000, onde a menina feia era incapaz de se mostrar como quem era, usando óculos gigantes e cabelos amarrados apenas à espera de um rei do baile que pudesse mostrar para ela a sua verdadeira beleza mesmo que sua motivação seja apenas vencer a aposta de levar a desajeitada da escola para o baile. Esse template foi reproduzido em diversas ditas comédias românticas sem se dar conta de sua atmosfera machista, onde a mulher só poderia revelar-se ao mundo sob o papel de fêmea, limitando-se à ser uma costela do homem e vencer por sua beleza e fragilidade. Inclusive, tal coisa surge como piada entre Beca e seu interesse amoroso, Jesse (Skylar Astin) relevando a consciência do filme de que o romance não precisa ser evitado e nem mesmo ser um objetivo, só precisando fazer sentido e ser saudável.

    A Escolha Perfeita surge em 2012 como representante feminino dos filmes que relatavam as relações de extrema amizade dos meninos, conhecido como “bromance”, enquanto as meninas eram representadas como seres insensíveis às necessidades dos meninos. E assim, com suas músicas pop e o uso de brincadeiras pretensamente destinadas às meninas, como a brincadeira do copo, —Que originou uma das grandes demonstrações da representatividade que este filme alcançou com o clipe Cups— A Escolha Perfeita trata de um momento histórico de extrema importância na cultura pop onde a mulher é a verdadeira protagonista.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | À Beira do Abismo

    Crítica | À Beira do Abismo

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    De maneira semelhante ao personagem Bill Halleck, de A Maldição do Cigano, a obra de Stephen King nos cinemas ou televisão carrega um fardo. O panorama dessas adaptações revela um gráfico desigual sem equilíbrio entre excelentes tramas ou versões descartáveis. A vasta obra do autor, tanto em romances quanto em contos, naturalmente, pode apresentar pontos altos e baixos. Porém, pressupõe-se que uma trama adaptada seja forte o suficiente para uma boa produção.

    Dessa forma, chega a ser incompreensível o contraste entre tais produções feitas com esmero e outras cuja história não ultrapassa a potência de uma ideia. Lançado em 2012, À Beira do Abismo se encaixa na segunda categoria. Baseada em um conto de Sombras da Noite, primeiro livro de histórias curtas do autor, a produção se desenvolve a partir da premissa de um ex-policial fugitivo que, para provar sua inocência, ameaça suicidar-se.

    A partir desta ação, a narrativa apresenta a motivação da personagem. A tentativa de suicídio, porém, é uma distração para revelar outra história paralela, tão inverossímil como a primeira. A situação extrema causa impacto mas se apresenta de maneira fria, sem uma justificativa plausível.

    Ainda aproveitando o sucesso de Avatar, Sam Worthington estrela a produção sem o impacto necessário em sua interpretação – um fato que atravessa sua carreira como um todo – sendo pontual somente na urgência do policial Nick Cassidy. A falta de credibilidade da personagem principal transforma em mais aparentes as falhas narrativas, ainda que o público anseie descobrir sua motivação e a das demais personagens.

    O fraco impacto do thriller não se sobressai nem mesmo em algumas cenas que tentam aprofundar-se nos personagens ao redor do policial, mas que parecem fora de tom em relação à obra em geral. Sendo uma potencial boa história de um excelente escritor que, mais uma vez, sofreu o peso da maldição de sua obra mal adaptada para o cinema.

  • Crítica | 20 Centavos

    Crítica | 20 Centavos

    20centavos 1

    Tiago Tambelli tenta dar um viés de maior inserção ao redor das manifestações contra o aumento da tarifa , evento que ocorreu na maioria das metrópoles brasileiras Filmado a partir das câmeras que registravam o que ocorria no entorno dos tumultos, a métrica e edição se assemelha bastante com o que foi visto no documentário Praça Tahrir, narrando os acontecimentos a partir das sensações que o jovens militantes tiveram ao viver na pele o enfrentamento com as autoridades.

    A câmera flagra a expressão atônita dos policiais, algumas vezes reagindo hostis ou completamente acuados na frente das filmagens, quando não, em uma amálgama dos dois comportamentos. A luta do povo contra o povo parece comprimir o cidadão comum, o homem que vive a rotina de trabalhador explorado perseguido quando finalmente reage aos séculos de compressão que sempre sofreu.

    O conteúdo registrado contém uma veracidade ímpar, reunindo pessoas comuns em torno de ideais díspares. A parcela populacional inconformada era multifacetada, formada por jovens, velhos, brancos e pretos, alguns a favor de baderna, mascarados, depredando propriedade pública para chamar a atenção a sua causa e outros tantos pacifistas. Ambos os lados eram respondidos com sprays de pimenta, borrachadas e bombas de gás de efeito moral, além de infelizes disparos a queima roupa.

    A lama e o caos presente nas cenas de arrombamento remetem a momentos de guerra, diferentes das recentes manifestações falsamente pacíficas pela mídia com cenas bem distintas de fotos de policiais abraçando crianças. O que se vê pelas ruas de São Paulo é  a perseguição de militares agindo violentamente contra os manifestantes, ao som do irônico hino nacional, fruto dos versos que diziam: “verás que o filho teu não foge a luta”, lamentando que não há mais aqueles que se deitam eternamente em berço esplêndido.

    Tambelli não se incomoda em mostrar o espancamento que alguns militantes realizam contra os policiais, fazendo valer a resposta igualmente violenta que sofreram no começo. A truculência ocorre entre manifestantes, motivado pelos militantes que agridem os que tomam atitudes partidárias. Setores mais reacionários queimam bandeiras do PT, CUT e qualquer referência vermelha da foice e martelo. A visceralidade é parte do caráter da edição, nem um pouco complacente com os alvos biografados, exibindo fogo, sangue e revolta, nem sempre pensada.

    Não há  qualquer alívio para nenhum dos dois lados também pela dificuldade em distinguir quais os gritos são mais elevados ao lado esquerdo ou direito do quadro político brasileiro. O fato do país não ter qualquer tradição popular em manifestações faz com que a demonização destes gritos seja comum por parte do povo mais conservador e especialmente pela parcela midiática que se vale da manutenção do status quo para manter sua audiência intacta.

    A simbologia presente no ato de queimar uma roleta de ônibus resume o motivo de estopim, iniciado pelo conhecido Movimento do Passe Livre. O desfecho do documentário não passa uma mensagem final, sendo difuso como foram a maioria das tardes e noites onde se ocuparam as principais avenidas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e outros, o qual o foco era em uma revolta, formado na maioria por jovens, pobres, que não aguentavam mais a exploração calada, destacando que o respeito só deve ser entregue a quem o pratica.

  • Crítica | Poder Absoluto

    Crítica | Poder Absoluto

    Poder Absoluto - Poster

    Nem é preciso falar muito quando se trata de Clint Eastwood, um dos poucos sujeitos de Hollywood que é extremamente competente em atuação e direção. Embora seu talento para atuar e dirigir seja notório, o que talvez as pessoas não percebam é que Clint sabe contar histórias. Ele conta ótimas histórias já criadas, lançadas em papel, bons romances, muitas vezes desconhecidos, mas que guardam ótimas histórias. E esse é o caso de Poder Absoluto.

    O livro Poder Absoluto foi escrito por David Baldacci e roteirizado por William Goldman, dono de duas estatuetas da Academia, além de outras 14 indicações e assim, ficou “fácil” para Clint dirigir o sucessor de As Pontes de Madison. Dona de uma premissa simples, porém chocante logo num primeiro momento, a fita se desenvolve num ótimo thriller policial e político de encher os olhos, com cenas inteligentes, diálogos precisos, sem esquecer, inclusive, de uma ou outra cena de ação. E claro que não podemos deixar de citar o “trio de ferro” dos atores principais aqui presentes. Além de Clint como protagonista (ou seria antagonista?), temos Gene Hackman e Ed Harris.

    Luther Whitney (Clint Eastowood) é um conhecido e veterano ladrão de joias, que passou ausente boa parte da criação de sua filha, Kate (Laura Linney), tendo, portanto, uma relação conturbada com a moça, uma das promotoras de justiça da cidade. Além de ser expert em adentrar em residências super protegidas, Luther é o melhor no que faz e, assim, decide fazer um último furto para garantir de vez sua aposentadoria. Adentrando uma mansão vazia, furta todas as joias pertencentes a um casal milionário que está viajando. Porém, acontece que só o marido parece viajar, uma vez que sua esposa adentra à residência com seu amante. Luther se esconde num closet e testemunha, através de um espelho de uma face, as preliminares de um casal bêbado, que resulta num crime bárbaro.

    O detetive Seth Frank (Ed Harris) tem a certeza que o crime foi cometido por Luther, por conta do modus operandi para invadir a casa e das joias furtadas e isso intervém ainda mais na relação do veterano ladrão com sua filha. Luther presenciou um crime ao qual não pode revelar assim de forma aberta, pois o amante da mulher assassinada é o homem mais poderoso dos Estados Unidos, o presidente Allen Richmond, vivido por Gene Hackman.

    Assim começa o tradicional mas competente jogo de gato e rato, uma vez que Frank quer Luther preso e o presidente, assim como o marido da mulher assassinada, o querem morto. O interessante é que tal jogo não se estende somente a Luther, Frank e o presidente e é justamente onde reside a graça da trama. Há algo muito maior por trás deste “simples” crime.

    O destaque do filme fica pra atuação de Clint Eastwood e Ed Harris, mais precisamente quando estes dois dividem a tela. E também é sempre interessante acompanhar Luther com sua filha, além de todas as situações em que se coloca para conseguir provar sua inocência. Mas como dito, tem momentos em que parece que o filme não trata somente da história de Luther, o que o torna obrigatório.

    Poder Absoluto pode não estar na lista dos melhores filmes do diretor, mas a trama e o elenco cativam desde o começo, sendo simultaneamente inteligente e conduzindo bem os clichês, não aquele clichê que decepciona, mas aquele em que o espectador, ao assistir, proferirá algum palavrão, cuja tradução estará próxima de um sonoro “uau!”.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Dragão Vermelho

    Crítica | Dragão Vermelho

    Dragão Vermelho - Poster

    Um ano após o lançamento de Hannibal, a esperada continuação de Silêncio dos Inocentes, foi o tempo suficiente para que uma refilmagem de Dragão Vermelho, primeiro livro sobre o canibal de Thomas Harris, fosse anunciada e, de maneira às avessas, finalizasse a trilogia sobre a personagem.

    A obra já havia sido adaptada para as telas por Michael Mann em lançamento anterior ao filme consagrado. Embora seja uma obra elogiada, Anthony Hopkins não interpretava a enigmática personagem, o que motivou esta nova versão. Inicialmente, o ator seria substituído por um ator mais jovem, mas uma maquiagem rejuvenescedora foi o suficiente para que o ator assumisse novamente Hannibal.

    A narrativa de Dragão Vermelho possui pontos estruturais semelhantes com Silêncio dos Inocentes. O agente do FBI Will Graham pede ajuda ao renomado psiquiatra para resolver um caso de assassinato envolvendo duas famílias. Diferindo-se de Clarice, Graham possui uma relação de trabalho com Hannibal quando suspeita do psiquiatra em uma série de assassinatos e se torna responsável por levá-lo a prisão.

    No papel de Graham, Edward Norton compõe um interessante personagem que, graças à série, Hannibal, ganhou o destaque necessário na interpretação de Hugh Dancy. Até então, Graham nunca havia sido páreo para a popularidade de Clarice Starling de Jodie Foster. Inteligente e destacado por sua aptidão em compreender a mente de criminosos e interpretar com precisão cenas de crimes, o policial sente um medo aparente de Lecter, ainda que tenha sido responsável por sua prisão e, consequentemente, provado sua superioridade intelectual. A caracterização de Norton – exceto pelo estranho cabelo aloirado – é contida, mas suficiente para transmitir a insegurança diante do canibal e destreza na condução da investigação.

    Abordando tanto a investigação quanto o vilão do título, a história tem um interessante equilíbrio entre as frontes conflitantes de bem e mal. O Dragão Vermelho é composto entre o grotesco de suas ações – crimes chocantes que atraem o leitor da narrativa policial em geral – e um escopo psicológico que justifica os atos desse homem que viveu a infância com uma mãe agressiva. Desenvolvem-se tanto a batalha do policial versus assassino como a relação entre Will e Hannibal, um monstro aparente que transita entre os dois polos, ajudando a polícia ao mesmo tempo que se comunica com o vilão, um fã assumido dos feitos de Lecter.

    A direção de Brett Ratner mantém o estilo de Jonathan Demme, uma tentativa de simular a claustrófica ambientação de O Silêncio Dos Inocentes. O ponto mais fraco da trama seja talvez sua personagem de maior nome. Em cena, Anthony Hopkins não mantém uma presença bem composta como na história lançada em 1991. Sua personagem parece afetada demais, com uma prosódia mais exagerada do que a composição anterior e sem o mesmo brilho, como se sentisse desconfortável de alguma maneira além da personagem. A suposta maquiagem rejuvenescedora não funciona e parece limitar o ator, como se evitasse expressões faciais para não marcar sua idade avançada. Talvez, com a tecnologia atual – a qual rejuvenesceu Michael Douglas de maneira impressionante em Homem-Formiga –, fosse possível uma interpretação mais apurada que corrigisse posteriormente eventuais marcas de velhice em seu rosto. Ainda assim, a elegância ambígua de Lecter está intacta em sua interpretação.

    Mesmo esta interpretação estranha não é capaz de destruir o bom equilíbrio da trama e as outras boas atuações que sustentam o suspense, com uma boa versão de um dos grandes vilões do cinema. Uma produção que não se configura como a obra-prima de 1992, mas muito melhor executada do que o terceiro ato dirigido por Ridley Scott.

  • Crítica | O Agente da U.N.C.L.E.

    Crítica | O Agente da U.N.C.L.E.

    Agenda da UNCLE 1

    Ainda na esteira de remakes dos seriados sessentistas, Guy Ritchie se encarrega de apresentar uma versão em longa metragem para o show de TV homônimo, exibido entre 1964 e 68 e continuado por alguns telefilmes. A nova roupagem compreende um filme de época, filhote da Guerra Fria, sustentado a partir do charme evocado do programa protagonizado por Robert Vaughn e David McCallum, tomando por base também a tensão presente na disputa ideológica dos Estados Unidos com a União Soviética.

    O mote do roteiro envolve uma cooperação entre as duas partes dissonantes, como se somente no campo imaginário de uma aventura escapista pudesse ocorrer uma interação não beligerante, semelhante demais ao modo dque Alan Moore propôs em seu Watchmen, e que Zack Snyder claramente não entendeu em sua versão para o cinema de 2009. Ritchie reprisa os mesmos maneirismo visuais de Sherlock Holmes e Revolver, ainda que não consiga imprimir neste Agente da U.N.C.L.E. o mesmo espectro sanguíneo comum a sua filmografia, tendo momentos de absoluta frigidez em tela.

    O estilo de filmagem se vale de muitas tomadas escuras, que por sua vez, remetem a ausência de luz da época, gerada pela ambiguidade de seu cenário político. A Berlim Ocidental dos anos sessenta é completamente estilizada, o que se explica no produto original, pelo costume de demonizar os países socialistas. A dubiedade é manifestada até na escolha de sua musa inspiradora, a misteriosa Gaby, que tem na beleza de Alicia Vikander um deleite visual pouco expositivo, mas ainda assim, arrebatadora, semelhante a muitas mulheres fatais de filmes noir.

    A tradução da rivalidade econômica entre as partes é feita através da caracterização de Napeleon Solo e Illya Kuriakin. A escolha de Henry Cavill para executar Solo, repete a fórula do realizador britânico em usar figuras de popularidade crescente para ascender a fama de seus novos produtos, como com Downey Junior em Sherlock Holmes, o que de certa forma até repete o êxito. O mesmo não se pode dizer de Armie Hammer, que nem tem no falso sotaque a falha mais gritante, já que o argumento assume os soviéticos como fruto da mesma moralidade americana, inclusive nos conceitos ligados ao matrimônio, descaracterizando completamente o abismo de ideais dos dois distintos segmentos populacionais.

    A filmagem possui estilos diversos em si, entre eles, um visualmente muito semelhante ao visto em Sin City, especialmente nas cenas de perseguição de carro, mostrando a preferência de Ritchie pelas cópias a Quentin Tarantino, mas na parte mais superficial das suas fitas. As brigas constantes entre Illya e Solo enfraquecem o plot,fazendo as cenas de suspense parecerem banais, soando assim artificiais até os momentos de luta e tensão sexual.

    O roteiro melhora um bocado da metade para o final, a despeito até dos estereótipos forçados. A menos a trama de espionagem é bem urdida, lembrando os bons momentos de Intriga  Internacional e dos filmes de Sean Connery como 007. Há um cuidado, nesse período em retirar da URSS a figura de vilã, retratando até mesmo os modos governamentais dos EUA como algo bem distante do que o discurso moralista comum aos presidentes fazia, buscando uma neutralidade que mesmo soando forçada, funciona em alguns niveis, se levar em conta as intenções do texto.

    Apesar das muitas influências, o filme de Ritchie possui uma personalidade e identidade próprias, não caindo no erro de parecer uma cópia de tantos outros remakes de franquias antigas. No entanto, carece de fervor e inspiração, sobretudo por parte do elenco, que parece estar a todo momento em modo automático de atuação. Apesar de a suspensão de descrença não cair por completo, a proposta ambiciosa de apresentar uma neutralidade em meio a uma época de extrema ambiguidade carece de seriedade e de uma melhor construção ética, que era uma espécie de mea culpa dos produtores da série, e que neste, soam absolutamente anacrônicos e vergonhosos, não consertados sequer pelos remendos feitos pela ação britânica, que visa equilibrar forças.

  • Crítica | Bird

    Crítica | Bird

    Bird - poster

    É difícil dizer algo sobre isso no momento. Enquanto escrevo isso me cerco ouvindo novamente toda a trilha do que acabei de assistir. O mais agradável em ver um amante desse gênero como realizador de um filme desses é a sobriedade na construção dramática e nas atuações. Você não se questiona em momento algum na imersão que ele propõe, só está lá e é apenas isso.

    Bird, dirigido por Clint Eastwood e lançado em 1988 narra em suas quase três horas de duração o desfecho final da vida de Charlie Parker. O sagrado Jazz, que estava ali antes das guitarras, que ressoa forte tal qual o rastro de uma chuva no dia seguinte e até hoje deixa o frio por onde passa, me parece ser o personagem principal, antes mesmo de Charlie.

    O filme se inicia esteticamente como um noir, mas como quem não te quer como espectador. Logo após um show, podemos ver Charlie sendo interrogado por sua esposa, Chan (Diane Verona) após um rápido monólogo. Claramente não somos convidados ali, e aparentemente nem ele. Estamos falando de uma biografia que não é certamente engessada, mas, caso não lhe traga interesse por ir atrás do assunto, certamente será uma ótima viagem dramática e musical. Volto novamente no ponto do noir, não só pelo figurino e pelo ano que se passa, mas diretamente pelos diálogos entre Whitaker e Verona. Existe uma relação forte entre as duas pessoas, mas ela é tratada da maneira mais humana possível, enriquecendo mais ainda algo que já seria sensacional simplesmente pelo que aborda.

    Ele traz um retrato de época, mas que também é registro musical de pelo menos três momentos distintos. É confuso pensar ao final de cada cena qual foi o tempo de gravação total do filme, pois encaramos diversos recortes temporais dentro de uma mesma elipse, que retorna de maneira bem didática de onde ela partiu, mas ao mesmo tempo dentro dela existem múltiplas passagens históricas e pontos de vista diferentes. E nesse acompanhamento não linear da história de Parker que pude capturar uma divisão do clima que o filme propõe logo após encerrar sua primeira hora de exibição. Você pode se perguntar o que ele tem a mostrar depois de tudo o isso e os arcos seguintes te levam a respirar uma nova jornada de maneira perfeitamente clara, adoçando o momento, principalmente depois desse momento com mais música. Fico a pensar que em primeiro momento ele de fato trazendo o pior momento da vida de um gênio para depois voltar ao filme. É uma maneira dura de contar a vida de alguém, mas ao final não consigo imaginar se poderia ser feito de outra maneira.

    Apesar de tudo isso o real protagonista é de fato Forrest Whitaker, que entrega uma interpretação cheia de camadas, tiques e maneirismos para encarnar o saxofonista. Todo o elenco de apoio é incrivelmente bem escolhido. Existe uma pequena cena durante um dos flashbacks que te mostra perfeitamente o que era a febre musical de New York nos anos 50 nas costas de um personagem. E não é apenas porque dentro desse estilo reside o ouro cultural do povo americano, o filme toma um cuidado particular em quando começar a tocar sua trilha sonora, e é nesse cuidado que a música vira a dualidade tão pesada de uma história trágica. Não é possível ditar ou prever coisas assim e a película faz bem em não julgar de fato o que houve ali: simplesmente mostra passagens do que foi, no final talvez tenha sido o medo que encerrou a vida de um dos gigantes da música, mas que sua sombra nunca sumiu. Apesar de tudo isso não foram feitos muitos filmes sobre Jazzistas, mas Clint conseguiu registrar em pouco drama, algo único.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | O Assassino Em Mim

    Crítica | O Assassino Em Mim

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    Em uma pequena cidade do Texas, em meados dos anos 1950, o sub-xerife Lou Ford está diante de um impasse. Atendendo aos pedidos da população, precisa dar um ultimato a uma moradora que mudou-se recentemente para o local, mesmo que não se sinta motivado para tal. Porém, a preservação dos bons costumes e a manutenção da ordem o obrigam a ir até a casa desta mulher, cuja profissão é deitar com outros homens por dinheiro e prazer, e pedir que saia gentilmente da cidade. O próprio sub-xerife se considera um homem honesto, trabalhador e com poucos vícios mas, ao ver a figura curvilínea de Joyce Lakeland, decide deixar estas qualidades de lado, cedendo a tentação inevitável.

    A história de O Assassino em Mim se baseia na obra homônima de Jim Thompson, autor americano reconhecido pela crueza de suas histórias. A trama é apresentada pela própria personagem central em uma narrativa em off que expõe seus conflitos internos. Porém, mais do que um recurso de estilo, cada acontecimento em cena também é filtrado pela visão do xerife, transformando o público em testemunha ocular da visão particular do xerife.

    O senso de realidade é manipulado pelo personagem central, dando-nos a impressão de que, a princípio, temos apenas um conflito breve de um homem da lei que se entrega aos desígnios de uma mulher. Somente no desenrolar da ação, conforme adentramos o cotidiano de seus pensamentos, compreendemos a motivação direta de Ford. Um ponto de vista que transforma a brutalidade de pesadas ações violentas em atos comuns, como se a conduta da personagem não estivesse errada ou fosse agressiva.

    Diante de tantas obras que acompanham a personagem da lei, Thompson se aprofunda em uma mente obtusa incapaz de reconhecer seu desvio do comportamento normal. Dentro de sua psique, as reações extremas são consideradas naturais e, por consequência, estas impressões são passadas ao público. O choque que recebemos vem da incredulidade, do absurdo e da frieza do sub-xerife ao tratar suas agressões e assassinatos como meras imperfeições de caráter que podem ser corrigidas com força de vontade e um número mínimo de vítima.

    Através da personagem, a trama também situa o público no coração americano, em um universo de falsos bons costumes e preconceitos morais enraizados. O ambiente também é responsável pela repressão psicótica que a personagem retinha até então. Por flashbacks que retomam sua infância, observamos que, desde o princípio, havia um desnível em seu caráter que foi expandido após perder laços familiares e não mais conseguir conter a fúria interna.

    Interpretado por Casey Affleck, a dose de fúria e sutileza da personagem é bem desenvolvida, demonstrando como o ator é muito mais denso do que seu irmão famoso. O jeito franzino, os traços suaves e a voz um tanto arranhada se modificam quando o seu demônio interno assume e guia-o. O Assassino em Mim é um interessante estudo sobre como funciona a mente desviada a partir de sua própria visão do mundo exterior, uma história que também merece ser lida na narrativa original de Thompson.

  • Crítica  | Depois que o Pornô Acaba

    Crítica | Depois que o Pornô Acaba

    Depois q o Pornô Acabe 1

    A primeira cena do documentário apresenta uma família normativa, com uma mãe amorosa respondendo os anseios da filha, ajudando-a com um computador cor de rosa, que remete a uma infância feliz e idealizada, livre de qualquer controvérsia maior do que o escopo conservador do americano médio pode ter. A rotina vivida pela mulher focada pela câmera é a mesma de muitos dos que se aposentaram da indústria de filmes adultos, de pessoas que serviram de inspiração para muitas fantasias voluptuosas de pessoas comuns, cujos gostos variam absurdamente.

    A ascensão destes profissionais ao “mundo real” quase sempre é traumática, uma vez que os mesmos que consumiam seus produtos, refutam a presença das pessoas dentro do mainstream, sofrendo a dura repressão do conservadorismo exacerbado, que normalmente esconde a hipocrisia latente. A escada emocional que a trajetória destes exibe é uma fama efêmera, em um momento em que são os artistas tratados como deuses, correspondendo a cada pulsão e tensão sexual do homem, para logo depois ser lançado a um limbo existencial, que ou os exclui ou os trata como lixo. Todo esse ideário é exibido com menos de um quarto de hora.

    Uma faceta assustadora se demonstra nos contos de fãs dos filmes hardcore, com revelações de tentativas de estupro e demonstrações de violência física ou ameaça destas, impingidas principalmente sobre as atrizes mais famosas. A cultura do estupro se manifesta também no pensamento do estadunidense, fortificada pelo uso contínuo da deseducação geral, acompanhada ou não de drogas, que facilitam o pior da alma e mentalidade a aflorar, claro, somente revelando o que já habita suas combalidas e torpes consciências.

    O mundo normativo costuma excluir aqueles que por motivos mil não se enquadram no padrão de moralismo, especialmente os que tem a vida sexual ativa desde cedo. A indústria pornô serve como um norte para muitas dessas pessoas, e a conclusão é tirada após falas das celebridades do meio, como Amber Lynn, Mary Carey, Asia Carrera e tantos outros. A origem em clubes de strippers e de gravidez indesejada são terrenos profícuos para uma pré-vida pornográfica, sem falar da óbvia fonte vinda da prostituição. A tendência de uma rotina de exageros e uso contínuo de drogas é fortificada por alguns dos entrevistados, que até destacam que em muitas outras profissões isto é comum, mas que nesse gênero, é quase uma regra, dada a rejeição extrema que estas pessoas sofrem, além do desesperador conceito de ter sua intimidade exposta, para uso alheio, tendo como retribuição a pecha de que o que elas praticam é na verdade um crime, aos olhos dos pregadores da moralidade.

    Em determinado ponto, até por condições financeiras paupérrimas, datado do avanço da internet, muitos dos atores veteranos precisaram sair, por perder espaço e por ter dificuldades em equilibrar as contas, uma vez que o cachê passaria a cair em consideração ao número de horas em que estariam expostos. A fuga era quase sempre malfadada, encontrando a maioria refúgio em ambientes religiosos, que aparentavam ser sensíveis às suas necessidades monetárias e emocionais.

    Assim que se retiram do ambiente fechado dos filmes XXX, os atores são massacrados pelos mesmos que se masturbavam com eles, em uma vingança puramente invejosa e falsamente ideológica, de quem tem dificuldades até em se aceitar, por isso, persegue aqueles que um dia lhe propiciaram prazer. A equação proposta pelo diretor Bryce Wagoner mira em múltiplos possíveis culpados, sem decidir enfim qual é pior, o trabalho pornográfico ou os consumidores, elevando a vítima somente os profissionais que tem sua carne e ideias expostas, pois suas imagens invariavelmente estarão associadas a uma prática que prossegue vista de modo satânico.

    Aos entrevistados, o que resta são as famílias que construíram, quando muito, já que a pele deles é tão falha e sujeita a doenças mortais, desde as DSTs até câncer. Incrivelmente, após tantas lágrimas, a maioria dos depoentes exibe vidas corriqueiras inspiradoras, com herdeiros que a abraça, ao contrário do que os progenitores fizeram. O paradigma apresentado ao final da montanha russa emocional presente em After Porn Ends é até otimista, ante todas as desgraças mostradas em tela, fechando de modo agridoce a fita polêmica, que discute o quanto o sexismo é prejudicial ao espírito humano, em um retrato de uma faceta comumente ignorada na pós-modernidade.

  • Crítica | A Troca

    Crítica | A Troca

    a troca

    A Troca (Changeling, EUA, 2008) acabou sendo um dos filmes mais diferenciados da carreira de Clint Eastwood como diretor por causa da temática progressista dentro de uma absurda história real de uma mãe que tem seu filho sequestrado e a polícia devolve outra criança no lugar.

    A telefonista e mãe solteira Christine Collins tem seu único filho levado por um estranho em 1928 e a polícia de Los Angeles devolve outra criança. Com a ajuda do reverendo Gustav Briegleb, ela entra em uma luta contra toda a polícia e acaba desbancando a corrupção dentro da corporação.

    O roteiro original de J. Michael Straczynski acerta ao seguir cronologicamente os fatos reais. Ao fazer sumir a criança logo no começo e ver que poucos policiais cooperam com o caso, já temos uma ideia do enorme drama que aquela mãe vai enfrentar. Ser apresentada à outra criança pela polícia com o intuito de posar para os jornais só piora a sua psiquê e estabelece o grande dilema ético do filme.

    A teoria de conspiração que começa a permear a sua cabeça faz com que ela seja presa por policiais corruptos e vá parar no sanatório. A não cooperação com o médico da instituição demonstra a qualidade inquebrável da protagonista e é aí onde reside a força do roteiro. A luta incansável da protagonista só revela outros temas relevantes ao filme: ela precisou do auxílio do reverendo Gustav Briegleb para tirá-la do sanatório e ajudar na batalha dentro do tribunal contra o departamento de polícia.

    A atuação de Angelina Jolie é contida em quase a totalidade do filme, conseguindo criar uma mãe arrasada e sem vida, já que está sem seu filho. Ela se sobressai principalmente nas cenas dentro do sanatório, as mais memoráveis e que mais dialogam com a premissa do filme. John Malkovich, por sua vez, dá vida ao reverendo revoltado com a corrupção imoral da polícia de Los Angeles, suas nuances e atuação não comprometem a obra.

    A direção de Clint Eastwood continua sublime na composição do quadro e no posicionamento da câmera. Porém, ele opta pelo tom melodramático na direção geral dos atores, o que faz cair um pouco a qualidade de A Troca.

    A fotografia de Tom Stern (que trabalha com Clint desde Dívida de Sangue) é característica de filme de época, mas não é realista; possui um tom um pouco onírico. A edição de Joel Cox (que começou a trabalhar com o diretor em Rota Suicida) em parceria de Gary Roach (edita seus filmes desde Cartas de Iwo Jima) é invisível na maior parte da narrativa, não há um plano memorável.

    A Troca é dos filmes mais diferenciados de Clint Eastwood por causa da temática, que junto de Invictus e Cartas de Iwo Jima talvez seja a trilogia mais progressista do cineasta ao longo da sua carreira como diretor.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | O Último dos Moicanos

    Crítica | O Último dos Moicanos

    O Último dos Moicanos (The Last of The Mohicans, EUA, 1992, Dir: Michael Mann) é daqueles filmes que poderiam surpreender como um dos melhores da década, mas não chega lá, mesmo com a direção de Michael Mann e tendo Daniel Day-Lewis e Madeleine Stowe como protagonistas. Durante a guerra franco-inglesa na América com a participação de diversas tribos indígenas, Nathaniel Hawkeye, um branco criado por índios moicanos, se apaixona pela filha de um coronel inglês e ajuda a protegê-la e a sua irmã da nação inimiga huron.

    O roteiro escrito pelo diretor junto de Christopher Crowe, baseado no livro de James Fenimore Cooper, segue a estrutura de filme de guerra na sua primeira metade. Quando as filhas do coronel inglês são atacadas pela traição dos hurons e mohawks, e depois salvas pelos moicanos e levadas ao forte, temos a premissa do filme: a frágil aliança entre homem branco e povos indígenas na América colonial.

    Ao termos como protagonista e herói um homem branco como filho do líder dos moicanos, o filme sintetiza toda a forma de colonização do continente americano e expõe os seus problemas. Um homem branco abandonou a civilização e foi viver entre os indígenas, desta forma, ele está recusando o seu passado? Ele se recusa a participar da guerra entre franceses e ingleses, ele é confiável para os homens brancos ou até mesmo entre os moicanos? Ao se apaixonar por uma mulher branca, Hawkeye vai voltar a ser Nathaniel Poe e negar a sua criação entre os moicanos?

    A divisão que a narrativa promove deixa a história mais interessante, abandonando a guerra franco-inglesa para a disputa entre moicanos e hurons. O tom de aventura passa a ditar a história e o embate entre Hawkeye e Magua se torna inevitável, mesmo que este aconteça entre o seu pai adotivo e chefe, Chingachgook (o verdadeiro último dos moicanos) e o antagonista.

    A atuação de Daniel Day-Lewis se mantém num nível acima dos demais, porém o roteiro poderia dar mais destaque à sua capacidade dramática ao invés de dilui-la em suas cenas de ação. Inclusive tem um vídeo no youtube só com as cenas onde ele só corre. Madeleine Stowe consegue imprimir o que as cenas pedem à ela. Outro destaque do elenco é Wes Studi como o antagonista Magua, da nação inimiga dos hurons.

    Daniel Day-Lewis correndo.

    A direção de Michael Mann difere de todos seus filmes, geralmente policiais e urbanos, para uma aventura histórica. Ele consegue tirar boa atuação do elenco, ainda que limitados pelas cenas de aventura do roteiro. Porém, a decupagem, posição da câmera e o enquadramento mantém a qualidade de Mann como um grande diretor, mesmo estando fora do seu porto seguro.

    A fotografia do italiano Dante Spinotti é naturalista dentro do possível do que o roteiro e a direção pedem. A edição de Dov Hoenig e Arthur Schmidt é linear e invisível, mas se destaca nas cenas de batalha, como quando eles são surpreendidos, e nas mortes finais, como a da Alice Munro e de Magua.

    O Último dos Moicanos ainda mantém uma qualidade, fazendo com que possa ser apreciado ao longo dos anos. Mesmo não sendo a obra prima que poderia ser, o filme chama a atenção pela forte história e todas as questões que levanta ao longo de quase duas horas.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Que Horas Ela Volta?

    Crítica | Que Horas Ela Volta?

    Que Horas Ela Volta 1

    Pensado em sua essência para estabelecer o diálogo com o público, que é representado por seus personagens principais, Que Horas Ela Volta? apresenta um drama real e comum, cuidadosamente orquestrado pela diretora Anna Muylaert, a mesma do surpreendente Durval Discos, e do simpático Obrigado Por Fumar. O filme, protagonizado por Regina Casé, representa um passo à frente na carreira de todos os envolvidos na produção do longa-metragem, resultando em um texto sólido e uma atuação assustadoramente sóbria da apresentadora global.

    Val é uma retirante que no início do filme é enquadrada em cenas turvas ou de costas, numa representação que une a impessoalidade de sua profissão, como cuidadora e babá, e um modo de fugir da dificuldade em maquiar Casé para simular uma drástica passagem de tempo. Já nos primeiros minutos é estabelecida uma profunda carência, tanto da protagonista quanto da criança da qual esta cuida, o jovem Fabinho – que na fase moderna seria representado por Michel Joelsas –, ambos sem as figuras de adulação que gostariam de ter por perto: a mulher sentindo falta de Jessica, sua filha que ficou no Nordeste, enquanto o rapaz pergunta a que horas sua mãe voltaria.

    Na fase atual, Val é tratada a priori com muito respeito por parte de seus dois patrões Barbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), um casal de condições financeiras abastadas, que tem um ideário bastante diferente: a esposa histriônica e esnobe profissional de moda, e o marido um homem rico, depressivo e de gostos artísticos refinados. A construção das personagens é baseada em homens e mulheres comuns e seus arquétipos, algo que para o espectador mais ranzinza pode significar simplismo. No entanto, essa representação tenta atingir avatares universais para alcançar o maior denominador comum, uma ponte de fácil travessia para o público retratado, facilitando a compreensão para o espectador mais simples, mas sem subestimá-lo.

    A chegada de Jéssica (Camila Márdila) a São Paulo, para prestar vestibular para uma faculdade muito concorrida, mexe com a rotina de todos, especialmente com o ideário de Val. A herdeira é o exato oposto de sua matriarca, uma moça inteligente, contestadora, que não aceita a divisão de classes, algo que faz obviamente entrar em rota de colisão com o pensamento de Bárbara, estabelecendo uma relação que se deteriora a cada momento, de modo gradativo e fluído.

    Os temas discutidos são maduros, mas seu discurso não possui qualquer intenção de parecer panfletário ou gratuitamente culposo para as figuras da classe média alta brasileira. O estabelecimento da hierarquia é realizado com uma certa dose de crueldade, no entanto é pouco ácido, visto que não é necessário vilanizar ou demonizar as figuras que exploram o proletariado, para não desumanizar os que se valem do esforço alheio mal remunerado para ter seu conforto. Os abusos são muito mais emocionais e certeiros do que os dos folhetins mexicanos, com causas, brigas e efeitos bastante condizentes com a realidade.

    Que Horas Ela Volta? é um singelo conto de solidão, submissão e subversão de conceitos, onde o instinto de sobrevivência é louvado, mas ainda assim bastante discutido. A trajetória de Val, Jéssica e tantas outras mulheres é mostrada de um modo simples, tocante, emocional e realista, referenciando em tela o universo de tantos brasileiros da parte norte e produzindo alguns pequenos momentos de vingança. A obra apresenta uma trajetória edificante e de franca evolução, a despeito de um breve apelo à suspensão de descrença, o que evidentemente não compromete a ternura da história.

  • Crítica | Homem Irracional

    Crítica | Homem Irracional

    Homem Irracional 1

    Baseado na aleatoriedade da filmografia recente de Woody Allen, que apresenta quase sempre um filme interessante seguido de um rançoso, Homem Irracional é tão assertivo quanto uma bala que penetra a testa após uma roleta russa. O trailer e materiais promocionais apontavam para mais uma simples história de superação, onde o deprimido e resignado escritor e mestre Abe Lucas – executado por Joaquin Phoenix em uma forma rotunda quase irreconhecível – chega a um novo ambiente: uma universidade pequena para lecionar, onde conhece a jovem e apaixonante Jill (Emma Stone), que provocaria nele uma virada de perspectivas, comum em tantas comédias românticas recentes.

    O fato da premissa se assemelhar com a do filme de Marc Lawrence, em seu  recente Virando a Página, quase fez o filme sofrer o mesmo estigma que A Origem sofreu quando teve seu drama comparado ao de A Ilha do Medo. Mas o paralelo só serviu de despiste, o primeiro de tantos outros, uma vez que o argumento não se rende a essa solução fácil de inspiração baseada em outrem para funcionar.

    A saída para a crise existencial de Abe não é ligada a libido, ou ao frescor causado pela volúpia de consumir “carne nova”. Pelo contrário. Suas mudanças posturais ocorrem em decorrer da nova motivação que toma para si e para os efeitos que seguem após suas atitudes mais enérgicas na tentativa de mudar o status quo – ou ao menos é esta a desculpa que o homem entrega para si.

    A escolha de Allen por um estilo diferenciado em Homem Irracional se prova uma saída excelente para a mesmice que sua filmografia insistia em cair, dando um motivo metalinguístico plausibilíssimo para a verborragia que normalmente permeia suas obras. Justifica até as narrações variadas entre Jill e Abe, em um resgate e quase homenagem  a tradição de Scorsese vista em Os Bons Companheiros, ainda que o mote e os significados sejam bastante diferentes neste do que foi no pretenso filme de máfia, guardando algumas poucas e notáveis semelhanças entre os dois produtos.

    O texto tem bastante do conteúdo ideológico de Um Homem Sério, ainda que as semelhanças pareçam muito mais ideias que ululam pela cabeça do roteirista do que influência direta. O caráter da discussão no entanto é muito parecido, como se fossem estes parentes distantes, cujo ideário cresceu similar apesar da gritante distância entre um e outro.

    O jogo de cores que Woody Allen escolhe tanto nos figurinos quanto nos cenários faz com que todo o falatório sirva apenas para explicar, para as plateias menos ávidas pela temática de mistério, o que transcorre na tela, como um autêntico mcguffin, tão comum nos filmes de suspense. A tonalidades das vestimentas de Abe evoluem para tons fortes, com o decorrer de sua mudança ideológica, passando de tons átonos para grafismos mais vívidos e claros, retornando a tons graves após as tomadas de decisões polêmicas que tomam. Todas as transformações espirituais que acometem o personagem são notadas pela sua mudança de vestuário, aspecto que também acolhe Jill.

    O estigma visual torna o roteiro ainda mais inteligente, valorizando o acaso primeiro em relação ao conteúdo teórico, e depois refutando a questão instintual, discussão esta tão repetida nos diálogos, mas que somente ganha contornos reais quando mostrado no ecrã, sem descrições de falas. Quando a imagem diz tudo por si só. Allen faz um brilhante retorno aos primórdios do cinema mudo, em que a narrativa imagética era o suficiente para entreter e embasbacar seu público, e no qual o inverter de expectativas era um aspecto básico da arte.

  • Crítica | Corrente do Mal

    Crítica | Corrente do Mal

    Corrente do Mal 1

    Evocando a paranoia de Annie, personagem assustada e interpretada por Baily Spry, Corrente do Mal exibe alguns dos maus modernos, como o péssimo hábito de espalhar correntes de participação e a costumeira perseguição a quem tem vida sexualmente ativa, um estilo comum dos filmes slasher, e iniciado com Psicose de Alfred Hitchcock e Halloween de John Carpenter. Já nos primeiros momentos, há uma bizarra e sanguinolenta morte, e seu intuito é inserir o público no espectro de extrema violência da fita.

    O diretor David Robert Mitchell prossegue investigando os estranhos hábitos do norte-americano médio, após o seu O Mito Americano da Festa do Pijama, dessa vez focando na aleatoriedade das maldições constantes exibidas nos baratos contos de horror. O começo do drama, já em outro núcleo, é chefiado pela perseguida Jay (Maika Monroe) e trata de assuntos chave, como a cultura do estupro, sequestro e desprezo misógino, aspectos que se utilizam da espiritualização e demonização do algoz para alertar os perigos atuais, especialmente no background das comuns fobias femininas.

    A câmera de Mitchell é muitíssimo bem enquadrada, dando enfoque nas sensações terríveis pelas quais passam as vítimas de violência sexual e moral, tomando cuidado para não exacerbar qualquer coitadismo ou outro aspecto normalmente usado para banalizar o hediondo ato da violação. A direção se torna prodigiosa ao optar por planos longos, em nada condizentes com outras obras dos grandes estúdios dos EUA, especialmente os que produzem cinema de horror.

    Outro efeito interessante é a gama de personagens jovens, que não imita a quantidade exacerbada de estereótipos bobos vistos nos slasher movies e afins. O maior avatar disto é logicamente Jay, que tem nas mudanças que ocorrem no corpo a maior mostra, já que a mudança transcorrida com a moça não faz menção somente ao monstro e ao mal intangível, mas especialmente ao trauma que sofreu após a péssima interação sexual que teve com o homem que deveria “protegê-la”. O que se vê é uma mulher confusa, sozinha, praticamente incapaz de se defender dos seres e sentimentos que a perseguem.

    As aparições que teimam em atormentar Jay são sempre ligadas a sacrilégios sexuais, variando entre homens e mulheres, ainda que as figuras femininas sejam mais assustadoras, quase sempre nuas, em uma referência clara e hostil à livre representação da sexualidade feminina. A punição a atos malévolos é quase exclusividade das mulheres, como se fosse a ovulação o principal componente que atrairia a violência e a morte da autoestima.

    A trama se desenrola com alguns assassinatos pontuais impingidos pelas criaturas que somente Jay consegue enxergar. Seu pavor aumenta assim que ela percebe que, se não transferir sua maldição a outrem, seu destino será a morte, assim como os que antes sofreram a marca daquele mal. Sua jornada para se livrar tanto daquela sina quanto da culpa de ser indiretamente responsável por tantas possíveis mortes faz ela se tornar ainda mais melancólica, optando por uma drástica solução para sua questão.

    Os sustos não são tão bem engendrados, assim como alguns dos efeitos especiais executados nas capturas das vítimas. Mas a presença do subtexto faz valer o esforço em Corrente do Mal, uma vez que o conteúdo é normalmente o calcanhar de Aquiles de produtos como O Espelho, A Face do Mal ou Annabelle, se assemelhando em estilo e linguagem ao assustador Thanatomorphose, se diferenciando de seus primos pobres graças ao background de seu diretor.

    As soluções encontradas para combater os perseguidores da personagem principal não têm sustentação lógica, são pensadas por um grupo de tolos adolescentes que só querem se ver livres do tormento que os cerca. No entanto, mesmo este defeito serve à trama, uma possibilidade daquela condição ser inexorável, onde o destino é inevitavelmente trágico, emulando as características do mundo real, além de ser esta uma possibilidade bastante plausível, em se tratando das personagens focadas. Corrente do Mal consegue ultrapassar os clichês do gênero, apresentando uma história forte e referencial, denominando a si mesma como uma excelente surpresa dentro do cenário de terror atual.

  • Crítica | Interlúdio de Amor

    Crítica | Interlúdio de Amor

    Interlúdio de Amor - poster bd

    Terceiro filme de Clint Eastwood do outro lado das câmeras e primeiro sem sua participação como ator, Interlúdio de Amor não demonstra a precoce versatilidade do diretor após incursão no suspense em Perversa Paixão e no western O Estranho Sem Nome, identificando um desejo de não se limitar a um único estilo de composição cinematográfica.

    Neste romance simples, cuja base trabalha personagens em universos diferentes, um dos temas recorrentes em sua filmografia, a velhice, se apresenta como reflexão e contraste na relação que une Frank Harmon, um homem de meia-idade, divorciado e bem-sucedido, e a jovem Breezy, uma adolescente hippie de coração puro e libertário: representações distintas da sociedade da época.

    Apoiada no enlace amoroso, a história não retrata as diferenças do casal, como um embate tradicionalmente ressaltado em muitas narrativas do gênero que usam a problemática para evitar o romance. A abertura sem julgamentos de uma relação aparentemente díspar, cuja idade se destaca como diferença evidente, produz um interesse genuíno entre os personagens, abertos o suficiente para ouvir um ao outro e, com isso, se encantarem, representando um estado de acúmulo sábio vindo de opiniões e vivências diferentes.

    Mesmo que a garota pareça mais destacada no pôster e no título original do filme, o roteiro de Jo Heims (escritor de Perversa Paixão) mantém a leveza, mas não impede a compreensão dramática exposta na visão diferente de cada personagem. Porém, o enfoque é voltado à mudança entre a juventude e a maturidade, sendo esta última um equilíbrio entre o acúmulo de sabedoria em detrimento de um refreamento natural pelo medo de tudo que possa ser novo, aqui representado pelo amor e pela juventude da jovem. Simultaneamente, a visão da sociedade se projeta nos atos das personagens, gerando conflitos de preconceito devido à relação de idade entre o casal. Mesmo que o tema seja difícil, a trama enaltece a importância do casal e de como os pares consideram seu amor e sustentam-no perante estes preconceitos, aceitando-os ou não.

    Eastwood demonstra domínio na direção dando pistas de seu estilo narrativo em câmeras de movimento e panoramas que se aproximam lentamente das personagens centrais. A fotografia, embora tradicional, é coerente com uma história simples, distante dos tons escuros presentes em grande parte de sua filmografia e identificados desde Perversa Paixão. Trabalhando com qualidade os clichês do gênero, Interlúdio de Amor surpreende por apresentar um registro narrativo bem conduzido, ainda que hoje seja difícil analisar a obra inicial de Eastwood sem permeá-lo com a aura de qualidade e paixão mútua entre o amor do diretor pela arte e a devoção de seu público.

  • Crítica | Palavras Diabólicas

    Crítica | Palavras Diabólicas

    Palavras Diabólicas - Poster

    Lançado em 2013 nos Estados Unidos, o filme de terror Palavras Diabólicas chega aos cinemas brasileiros com um atraso de dois anos. É natural que algumas produções demorem devido a demanda de lançamentos com maior bilheteria. O país, porém, como sempre teve uma afinidade com o gênero, recebe anualmente diversos filmes do estilo, tanto nos cinema quanto diretamente em home video.

    Dirigido e roteirizado por Roze, Palavras Diabólicas é o segundo longa-metragem do diretor. O baixo orçamento da produção é explícito logo nos primeiros minutos de história. Na trama, uma criança de uma pequena cidade desaparece, e as lendas locais atribuem o sumiço a forças demoníacas. Incrédula sobre tal crença, a mãe recusa a acreditar, mesmo quando a garota retorna com a língua mutilada e outras crianças do local começam a sofrer estranhos fenômenos.

    Divididos entre a credulidade e a conspiração, a urgência que um desaparecimento deveria criar nunca é desenvolvida com qualidade. Os moradores permanecem apáticos na maior parte do tempo, e mesmo quando o acontecimento da sinopse ocorre com outras crianças, nem mesmo há qualquer sinal de espanto. Dentro de sua história, as personagens não convencem e, evidentemente, o roteiro simples apoiado em um acontecimento padrão de qualquer filme do gênero não ajuda a empolgar ou assustar.

    Devido ao baixo orçamento, as cenas de impacto são minimizadas, mostradas de maneira parcial ou com a câmera voltada para outro ângulo fora do acontecimento. Ainda que muitas produções consigam criar, com a ausência de exposição, uma tensão, a aparente aleatoriedade de ângulos e planos não parece planejada para tal, parecendo uma filmagem má realizada que nem mesmo o estilo found footage, e suas câmeras na mão tremendo e propositadamente falhando, é capaz de compor.

    Além da filmagem, nenhum ator consegue interpretar os sentimentos necessários para que o público perceba a urgência da situação, parecendo apenas um jogo simulado mal executado pela falta de talento de cada um deles. Sem apresentar nada original, reciclando um argumento comum ao gênero, a produção é quase um gasto desnecessário de energia e película para um resultado tão ruim.

  • Crítica | O Ciclo da Vida

    Crítica | O Ciclo da Vida

    ciclo da vida 1

    Tratando de uma fase da vida bastante específica, O Ciclo da Vida começa através de um show de mágicas inocente, que entretém os homens e mulheres de idade avançada, graças a ingenuidade muito suscetível nesta fase carente da vida. O lugar onde onde residem os personagens de Zhang Yang, chamada de Casa de Repouso Guanshan tem seu povo composto por uma gama de pessoas de diferentes backgrounds, sem qualquer aplacar de demonstração de suas aparências, rugas e sinais de idade avançada, não glaumourizando e nem retratando de modo coitado essa etapa inexorável a existência humana.

    O ponto de diálogo da trama com o espectador é Ge (Huanshan Xu), um sujeito que acabava de sair de sua rotina independente para então adentrar em lugar onde todos os “detentos” são muitissimos subordinados, a mercê da bondade alheia. A sensação de fracasso o envolve, como se sua condição fosse culpa de seus pecados regressos, que o fizeram chegar ao ponto de não ter posse sequer de uma cama própria. Para que a adaptação seja mais rápida, os outros internos constróem um móvel para que ele repouse e possa ao menor dormir no modo mais normativo possível.

    O astral dos senhores é normalmente voltado para o alto, indiferente aos fatores físicos de clara decadência, representados pelas rugas, calvícies e pelos membros atrofiados de alguns. Sem explicações prévias, o roteiro apela para um didatismo que demora a se expor por completo, exibindo vagarosamento o drama familiar de Ge e seu filho e neto. Após muito deliberar, o grupo liderado pelo velhor Zou (Tian Ming Wu)  decide fazer a tal viagem sem o consentimento da geração de filhos e netos deles, conseguindo um meio de transporte de uma forma clandestina, o que faz eco com a reaproximação de Ge com seus descendentes, resumindo em si um conto de intolerância e refutar  a um possível legado.

    O caminho percorrido, que serviria de libertação do ambiente prisional do asilo recai em outras questões, especialmentedepois que os filhos e netos interceptam o caminho dos anciões. A jornada deles passa a ser de auto descoberta, invertendo o dito popular de que “cachorro velho não aprende truque novo”. A dificuldade que os debilitados tem em executar o simples teatro que se propuseram no início, remete a dificuldade rotineira dos homens de idade avançada de executar mesmo os hábitos corriqueiros do dia a dia, e prova que a vida não pára por estes anos, que ainda há uma enorme gama de sentimentos e experiências que podem e devem ocorrer nessa época, além das claras relfexões a respeito dos erros pretéritos e do azedume comum a esta parcela da idade.

    O desfecho e as reverências são voltadas para uma figura, mas servem de alegoria a todos os homens e mulheres idosos, seres de setenta a oitenta e tantos anos, que decidiram não resmungar, e dar vazão aos primórdios e instintos de suas almas, encontrando suas partes artísticas e sentimentais tardiamente, mas há tempo ainda de alcançar seus tentos. Zhang Yang consegue estabelecer uma história simples, tocante, com uma trilha que acompanha os passos de descoberta de seus heróis, sem apelar para um escopo demasiado melodramático, tendo em seu tom um dos pontos mais certos e belos de O Ciclo Da Vida, dando um fim de existência digno para todos os humanos retratados pela câmera.