Categoria: Cinema

  • Melhores Filmes de 2014, segundo Doug Olive

    Melhores Filmes de 2014, segundo Doug Olive

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    Se o leitor ainda não conferiu os filmes abaixo, faça-se o favor.

    10 – Carvão Negro, Gelo Fino, de Yi’nan Diao

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    Inspirada versão chinesa, colorida e divertida do coreano Memórias de um Assassino. Misto de drama de ação com denúncia sócio-política dos tempos atuais no país, o filme, através de cenas filmadas em excelência total de consciência do poder de suas situações, sem medo de explorá-las no que diz respeito à concepção de cada plano, tratados aqui como se fossem muito mais que unidades de cena, se torna memorável em proposta, abordagem e resultado.

    9 – O Conto da Princesa Kaguya, de Isao Takahata

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    A animação do ano vem novamente, assim como Vidas ao Vento em 2013, do lendário estúdio Ghibli, fato que torna qualquer justificativa dispensável. A intensidade sentida no amor, na sutileza e ternura por cada imagem narrada na história é algo que em 2014 foi similar apenas com O Menino e o Mundo, pérola brasileira do gênero. Contudo, a adaptação e apropriação pelo Cinema de uma antiga lenda japonesa por Takahata impressiona e hipnotiza, graças a uma rara magia e sedução, raramente atingidas na década presente.

    8 – Norte, o Fim da História, de Lav Diaz

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    A brutalidade e a graça está sob o filtro de uma experiência, ou seja o treino demorado do olhar, da percepção, vibração emocional e a calma leitura fotográfica que o filme nos permite. De uma panorâmica aérea sobrevoando a aldeia que um prisioneiro deixou pra trás, até o fim do voo entre as grades da prisão: é por essas e por outras que o filme parece ter uma hora de duração (São 250 minutos a favor da liberdade de expressão, em terra de ditadura e insegurança civil, tudo traduzido em narrativa visual nas cores e costumes culturais da belíssima Filipinas). Lav Diaz também realizou em 2014 o ótimo Do Que Vem Antes, com 338 minutos quase tão fortes quanto.

    7 – O Expresso do Amanhã, de John-ho Bong

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    Difícil imaginar outro cineasta no comando do filme. Entre cenas de ação impecáveis, a situação de um mundo antes dividido fora do trem se propaga em ritos e choques sociais condensados entre paredes opressoras e frias, onde pessoas de várias nacionalidades se unem e se separam para sobreviver. Filmaço de ação à moda dos anos 80, ambicioso e que extrai da ambição os seus maiores méritos, mas cuja falta de publicidade atrapalhou maior repercussão com o grande público. A ser descoberto sem perda de tempo!

    6 – Um Pombo Sentou num Galho e Refletiu Sobre a Existência, de Roy Andersson

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    O surrealismo em doses cavalares a serviço do cenário, da tragédia e da salvação; tudo junto e misturado numa mistura deliciosa. De influência literária total, Andersson corrói a leitura que lhe inspirou e transforma as migalhas numa peça sólida de Cinema do mais alto nível de humor, a ponto de, com certeza, inspirar outros em outras jornadas artísticas num breve futuro à frente. O impacto da imaginação de dois homens exaustos de suas vidas não ganhou concorrência em 2014, com resoluções expressionistas ímpares na memória do espectador.

    5 – O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson

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    É o Cinema de Jacques Tati e Stanley Kubrick feito para todas as idades e mentalidades. Uma viagem dinâmica por um museu de curiosidades à prova do tempo, por razões perceptíveis a olho nu, com ótimas decisões conceituais e um sabor agridoce (precisamente) irresistível dentro e fora do colorido hotel homônimo, apenas outra instância do sertão volátil e astuto de Anderson. A senti-lo e deixá-lo absorver na maior tela possível, de peito aberto.

    4 – Mapa Para as Estrelas, de David Cronenberg

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    Sátira amarga a Hollywood, celeiro de bizarrices às vezes normais, outras nem tanto, mas jamais naturais ao espírito humano que Cronenberg coloca em escanteio, no seu modo chocante de fazer Cinema. Não há espaço para pessoas de bem ou pessoas do mal, apenas criaturas fazendo o que é necessário à sobrevivência e à morte inerente, seja como ela venha a aparecer aos personagens no fim, meio ou começo. O filme de terror não oficial do ano, com Juliane Moore na pele da celebridade que todo paparazzi quer ter em suas lentes. Aqui, não usar máscaras ou maquiagem não é ser natural, mas um crime.

    3 – Era Uma Vez em Nova York, de James Gray

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    Era uma vez, a esperança e um manifesto sobre suas facetas na pátria das promessas. No filme de Gray, o ouro é a ironia: A beleza da fotografia na feiura das condições que as prostitutas ainda são submetidas, os olhos da mocinha, a magia do showman, o bom mocismo do mocinho. Acima de tudo, o despertar da realidade em um liquidificador de causas e consequências apoiadas num primor de Cinema que só não transcende, por pouco, a tênue linha entre o certo e o errado num jogo trágico, e, ironicamente, lindo; imperdível.

    2 – Amar, Beber e Cantar, de Alain Resnais

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    A atuação coletiva de 2014, o último filme de Resnais, e outros marcos que o tempo nos irá revelar em relação ao filme. Grande homenagem humilde e profunda ao teatro, cinema, música e a qualquer forma de análise. O cineasta imita um pintor e injeta energia de principiante no verdadeiro cenário de seu epitáfio filmado: a nebulosa de seus atores, livres e soltos num frescor de renovação ideológica, se Fellini realmente estava certo ao dizer que “todo cineasta realiza o mesmo filme, sempre”. O canto de cisne do artista foi um trago da essência do que Resnais dedicou sua vida a aprimorar, desde os anos 40 até agora. Infelizmente, só até agora.

    1 – Bem-Vindo a Nova York, de Abel Ferrara

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    O cineasta pode ser o mais corajoso dos artistas quando quer ou precisa, e Ferrara, um dos maiores em atividade tanto na América quanto no mundo faz desconstruir estudos em prol da crueza, do escândalo, da denúncia e de tudo o que ainda é implacável, num mundo implacável. Retrato social nu e impressionante, totalmente artístico, totalmente real, atual, e 100% necessário em tempos que o Cinema tende a ser cada vez mais indolor, mostrando em Bem-Vindo a Nova York muito do que o público não gosta de ver, e por isso, merece exercer sua ética e lucidez ao desbravar o filme de maior impacto e especulação de 2014.

    Outras menções: O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese/ Ela Volta na Quinta, de André Novais de Oliveira/ Dois Dias, Uma Noite, de Jean-Pierre Dardenne/ Jersey Boys: Em Busca da Música, de Clint Eastwood/ Noites Brancas no Píer, de Paul Vecchiali/ Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro/ Relatos Selvagens, de Damián Szifron/ Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard/ Sob a Pele, de  Jonathan Glazer/ e Ida, de Pawel Pawlikowski.

  • Crítica | Michael Kohlhaas: Justiça e Honra

    Crítica | Michael Kohlhaas: Justiça e Honra

    Michael Kohlhaas - Justiça e Honra

    Michael Kohlhaas: Justiça e Honra adapta o romance homônimo, publicado entre 1808 a 1810, de Heinrich von Kleist. O autor baseou-se na figura real de um comerciante local para desenvolver sua novela, que trata a vida de um homem dividido entre a justiça dos homens e a concepção interna de honra.

    A estrutura original da obra, dirigida por Arnaud des Pallières, foi mantida. Porém, a ação se desenvolve em Cévennes, no centro-sul da França. Mads Mikkelsen interpreta o personagem do título, um comerciante de cavalos que, para atravessar uma ponte, é indevidamente cobrado. Deixando em sua guarda dois de seus melhores cavalos e um vassalo como segurança, o vendedor retorna ao local dias depois com o pagamento e encontra os animais machucados e desnutridos e o vassalo, morto. Desejando justiça, o homem pede à corte um julgamento. Após ter o pedido negado, Kohlhaas decide impor sua vontade à força perante a injustiça que o tribunal cometeu.

    A novela é considerada um dos livros preferidos de Franz Kafka, e também responsável por uma das poucas aparições públicas do escritor para fazer leitura de trechos da obra. Trata-se, inicialmente, de uma história com ideário romântico, com uma personagem central incorruptível vivendo a tensão entre a justiça divina e a dos homens.

    Ao ter seu direito retirado por um nobre, Kolhaas utiliza sua influência e capital para arregimentar um exército que lute por sua causa. O grupo destrói locais que estão sob proteção do nobre, e esta violência chama atenção da Princesa Real, que tenta interceder. Porém, há um elemento paradoxal diante desta disputa. A busca quase fanática por justiça pelo comerciante o transforma em um pária diante do mesmo conjunto de leis. O exército não poupa homens, mulheres ou crianças, compondo um cenário curioso a respeito do que é, de fato, a justiça para o personagem.

    Há tensões inversas dentro da história: a injustiça cometida pelo nobre com a devida consequência do ataque de Kolhlhaas, e a ciência por parte do comerciante de que, ao decidir levar suas atitudes até o limite, as leis também serão aplicadas contra si. A honra perde seu contorno heroico e parece questionar a fragilidade do que pode ou não ser considerado correto ou justo. Pode um homem em sua jornada por justiça retirar a vida de inocentes que não lhe fizeram mal? Como um bem maior definido pela honra pode ser capaz de derrubar séculos de leis criadas pelo Estado para, justamente, evitar que atos como esse saiam impunes? A luta do comerciante contra o nobre também pode ser lida como uma análise das classes sociais vigentes na época, ainda que a deturpada justiça do personagem demonstre uma vontade maior em desenvolver seus interesses pessoais do que tratar de uma representação entre esferas de poder.

    A produção escolhe uma narrativa lenta, semelhante à prosa do século XIX. São cenas que evidenciam a beleza do interior da França e desafiam a percepção de que se trata de um país civilizado. A natureza pacata parece remeter-se a épocas anteriores, e o vazio dos cenários concentram ainda mais o drama do personagem, muitas vezes único em cena. A composição de Mikkelsen para Michael Kohlhaas segue o mesmo estilo de outras caracterizações anteriores do ator: são interpretações bem calculadas e contidas e que, em momentos chave, despertam maiores sentimentos. Um conjunto que faz do comerciante um homem dúbio, ciente de sua justiça ao mesmo tempo que parece realizar tais atos com sentimentos calculados. Uma dúvida que gera controvérsias, desde a figura impassível até o mencionado senso de justiça.

    A produção muito bem realizada tem méritos por não apresentar em cena nenhuma eclosão de drama ou sentimentalismo, acompanhando a jornada de Kohlhaas sem um julgamento prévio, além daquele estabelecido pelo próprio comerciante. Porém, a referida dubiedade de sua figura retira parte da simpatia que a personagem poderia conquistar. Como se a moral sobre justiça e honra fosse o principal porto para reflexão, e não o homem que a executou.

  • Crítica | V/H/S

    Crítica | V/H/S

    A primeira vez que tive contato com a franquia V/H/S foi quando o trailer do segundo filme, V/H/S 2, havia sido lançado. Os fãs de terror e os sites especializados estavam em polvorosa com o conteúdo daqueles poucos minutos. E, sim, o conteúdo era interessantíssimo, intrigante, e principalmente assustador.

    V/H/S é um projeto audacioso de Brad Miska, conhecido por ser um dos fundadores do site Bloody Disgusting, talvez o maior portal sobre terror já feito. Consiste na reunião de curtas-metragens de terror gravados em fitas VHS. O projeto fez muito sucesso, rendendo mais duas continuações, sendo que Miska, ao criar a franquia, entrou em contato com promissores diretores e roteiristas, que entregaram histórias muito bem feitas e principalmente cheias de tensão – algumas delas com finais surpreendentes –, as quais passaremos a analisar a seguir.

    TAPE/56

    Dirigido por Adam Wingard e escrito por Simon Barret, Tape/56 é o curta-metragem base para todas as outras histórias. Um grupo de jovens delinquentes anda pela cidade aprontando pegadinhas, praticando vandalismo e até abusos sexuais, tudo, obviamente, documentado por câmeras. Eles são recrutados por um amigo a invadir uma casa para recuperar a mítica Fita 56. Ao adentrarem a residência, encontram o dono morto, sentado no sofá, em frente a uma televisão, com diversas fitas VHS no chão. Um deles senta-se em frente à tela e começa a assistir à primeira fita VHS, enquanto os outros procuram mais fitas pela casa.

    Tape/56 é o único curta que é intercalado com os outros justamente porque cada um deles é visto por um membro dos delinquentes. De longe, é a história mais fraca, porque contém os clichês menos interessantes dos gêneros de suspense e terror.

    AMATEUR NIGHT

    A primeira fita a que o grupo assiste é dirigida e escrita por David Bruckner, e mostra alguns rapazes se divertindo num pub quando conhecem duas jovens, sendo uma delas bastante esquisita. Após muita bebedeira, eles conseguem convencer as moças a passarem o resto da noite com eles num motel barato. Embora o desfecho da história seja o mais comum possível, o mérito desta fita recai na atuação dos atores, deixando o espectador tenso e com medo, assim como os protagonistas.

    SECOND HONEYMOON

    Second Honeymoon mostra um casal, como o próprio nome já diz, vivendo sua segunda lua de mel, viajando pelos Estados Unidos e dormindo em motéis à beira de estrada. Em uma das noites, eles recebem uma visita inesperada. Aliás, a cena em que a visita aparece é muito bem feita e realmente causa intrigas, fazendo aquele que está assistindo a ela se perguntar várias coisas. O desfecho é muito inesperado, mas totalmente plausível. A fita conta com a direção de Ti West, que também escreveu o curta.

    TUESDAY THE 17TH

    Fita totalmente inspirada em Sexta-Feira 13, Terça-Feira 17 conta a história de quatro amigos indo acampar num local onde uma das personagens jura que foi a sobrevivente de um massacre ocorrido tempos atrás. A semelhança com a história de Jason Voorhees é tão grande que os personagens, inclusive, nadam num lago, em alusão ao Crystal Lake. O que difere do clássico do terror é justamente a ameaça, que, mesmo sendo violentíssima e agressiva, manifesta-se de uma forma que só a câmera consegue captar, por meio de interferências. Muito bom!

    THE SICK THING THAT HAPPENED TO EMILY WHEN SHE WAS YOUNGER

    Dirigido por Joe Swanberg e escrito por Simon Barret, essa talvez seja a fita com o final mais surpreendente de todos. James é um médico que está viajando a trabalho e mantém contato, pela webcam, com sua namorada Emily, que vem reclamando de um inchaço em seu braço. A jovem também acredita que o apartamento para o qual se mudou é mal assombrado. Esse segmento lembra bastante Atividade Paranormal, mais precisamente o quarto filme da franquia, em que algumas das manifestações da entidade se dão enquanto a protagonista conversa por meio da câmera com o namorado. Ao contrário do quarto filme do segmento milionário, The Sick Thing… é muito melhor, com um final que te deixa com um semblante de dúvida, algo que talvez nunca será explicado, mas que demonstra a mente doentia dos roteiristas do projeto.

    10/31/1998

    Como o próprio nome diz, o último conto de V/H/S se passa durante a noite de Dia das Bruxas, em 31/10/1998, e mostra um grupo de rapazes se preparando para uma festa de Halloween que acontecerá numa casa. Ao chegarem ao local, eles percebem que a mansão está aberta, mas vazia, o que é muito estranho. Porém, ao irem ao sótão da mansão, eles descobrem um grupo de homens prestes a assassinar uma moça aprisionada por eles. Aparentemente, trata-se de algum ritual satânico, e os jovens conseguem evitar a morte da garota. Ocorre que, na verdade, eles impediram um exorcismo, e a entidade demoníaca passa a se manifestar pela casa toda. Braços saem pelas paredes, objetos de decoração voam pela casa. Tudo muito bem feito (considerando o orçamento “pobre”) e muito bem conduzido pela direção colaborativa do grupo conhecido como Radio Silence, formado pelos diretores e roteiristas Matt Bettinelli–Olpin, Tyler Gillett, Justin Martinez, Glenn McQuaid e Chad Villela.

    O saldo de V/H/S foi tão positivo que existem outras duas continuações: V/H/S 2, de 2013, e V/H/S Viral, de 2014.

    Quem se preocupa demais com detalhes técnicos ou com a qualidade dos curtas deve passar longe da obra, pois vai reclamar bastante. A impressão é que o projeto foi feito para os fãs mais hard core, aqueles que cresceram assistindo a grandes clássicos do terror, mas que não são um primor de técnica. Outro detalhe importante é que, para alguns, será fácil reconhecer algumas homenagens, ou easter eggs. O estilo é o já desgastado found footage, que, aqui, não é um problema, uma vez que contribui para a tensão dos contos e que de certa forma ajuda a mascarar as falhas técnicas. Que mais fitas e talentos sejam descobertos!

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Relatos Selvagens

    Crítica | Relatos Selvagens

    Uma coisa é verdade: A versão pós-moderna de Amarcord não faz feio, pelo contrário, faz rir quem suspeitava que o cinema argentino fosse invejável ao do Brasil. Essa colcha de retalhos toda empolgada é uma heterogênea visita, às vezes sem qualquer consciência de expressões peculiares a determinada história, mas com noções muito fortes de impacto e narrativa em blocos, ao clássico de Fellini, ou melhor, a partir do clássico, sem nenhuma responsabilidade com o cânone italiano em questão, nesta crítica.

    Relatos Selvagens é uma viagem histérica de um sociólogo que esqueceu seu remédio tarja preta em casa no embarque de um trem que atravessa a Argentina, recolhendo histórias (não tão diferentes assim) de seus conterrâneos. Assim, o filme encontra sua apoteose sumária em duas passagens diferentes mas que se completam na missão de sintetizar o filme: a inicial e hilária reunião coletiva em um avião, onde todos se encontram sem saber como nem por onde, e a rebeldia do personagem de Ricardo Darín diante de um sistema corrupto, enfatizando – em analogia – a insatisfação do cidadão comum perante a conjuntura política do país. Se melhor tratadas, essas e mais uma ou duas exaltações poderiam ser as únicas do filme, tamanha é a força e o forte destaque em meio a outras nem tão favoráveis ao saldo inegavelmente positivo da obra.

    Uma iniciativa corajosa, apoiada pelo já lendário Pedro Almodóvar, que produz um material equilibrado, fragmentado por excelência, conduzido pelas peculiaridades de cada história às suas próprias, enquanto uma peça única, mas que consiste de glória e lembrança mais pela iniciativa do que pelo quadro geral e reunido. É a moldura de algo abstrato que uma perspectiva objetiva denuncia – feito pulga atrás da orelha, seja nas conclusões dos blocos ou em certa lucidez incompatível ao todo – não encontrar verniz, caso a peça venha a ser tratada como uma só, sem seus fragmentos. Relatos Selvagens, além de ter aberto a 38ª Mostra de Cinema Internacional de SP, é o típico filme que tenta se encontrar de várias formas, e atira para os lugares certos sem qualquer exagero ou aspecto digno de reprovação, mas, sabe a história do sujeito que de identidade em identidade esquece quem é, de fato? Então…

    Ainda sobre paralelos e resgates sensoriais de nível atemporal, a loucura orquestrada por Fellini celebra os vários tipos de esgotamento comportamentais do animal social, sempre em grupo, em constante mudança deste social, sem especificar, contudo, se o mudar consiste em melhoramento ou atraso. Em Magnólia e Babel, de Paul Thomas Anderson e Alejandro Iñárritu, obras bem mais recentes, nota-se a antítese relativamente bem-sucedida aos esgotamentos nervosos de uma das comédias mais tradicionais da Itália, esbanjando nestes dois filmes, e agora em Relatos Selvagens, então, o também nobre exercício de expor os traços mais imutáveis do ser humano (compaixão, raiva, bom-senso – ou a falta dele –, instintos primitivos de todos os tipos) em um contexto bem mais realista e de caráter emergencial, como se o mundo fosse acabar após qualquer decisão que qualquer representante das menções acima possa vir a tomar.

    Em 2014, com meia dúzia de situações absurdamente reais, ou sonoramente absurdas, o satírico cinema dos irmãos Coen casa com o cínico de Haneke na América Latina, e a boa – ótima – recepção das audiências e críticas mais diversas só pode revelar uma coisa: esse é o mérito de uma produção que contém, entre seus altos e baixos, entre o limite e o não limite, em tempos de politicamente correto, momentos de orgulho de certas fontes históricas, que o filme de Damián Szifron se apropria de atualizar, e se apropria muito bem; um antônimo bem construído de qualquer leveza que possa existir na sobrevivência humana de cada dia – ou noite.

  • Crítica | Acima das Nuvens

    Crítica | Acima das Nuvens

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    A câmera de Olivier Assayas foge de qualquer efeito estático, movimentando-se de modo tremido, como se sofrendo movimentos involuntários. A primeira personagem a ser retratada é Valentine (Kristen Stewart), uma moça ocupada, que usa o telefone para se comunicar com os profissionais que cercam sua cliente. Nas primeiras falas, a intérprete afasta o estereótipo de mulher insensível, conseguindo, com poucas expressões, subverter o julgamento feito a ela e que a fez ficar famosa, fechando o ciclo de críticas azedas a sua performance em tela.

    A trama de Acima das Nuvens gira em torno da obsolescência, focada no drama da atriz veterana Maria Anders (Juliette Binoche), que vê a personagem que a fez tão celebrada ser entregue a uma novata. O caminho que o trem faz, atravessando o continente europeu, serve para levá-la ao confronto com sua contraparte, para ensaiar uma possível interação com a estrela hollywoodiana, contrapondo-se dois mundos no mesmo palco.

    A viagem na estrada sobre trilhos, rumo ao inconveniente embate, é irrompida por uma péssima notícia: a morte de um autor e dramaturgo muito próximo a Maria. Além de realizar  os espetáculos, a artista deveria também receber um prêmio em homenagem ao falecido, além de dividir as honrarias com um antigo desafeto Henryk Wald (Hanns Zischler). O primeiro e revelador encontro físico entre os dois reativa as rusgas do passado, rememorando velhos traumas, depois narrados por Anders. A intimidade da atriz é revelada por verborrágicas conversas dela com sua curiosa assistente Valentine, que contempla ávida todo o discurso de Maria.

    O convite para interpretar outro papel na peça faz a protagonista viajar dentro de si, procurando uma nova motivação válida para executar o trabalho. A partir dali, ela não seria mais a musa, e sim uma coadjuvante, simplista, prostrada ante a beleza e juventude de Jo-An Ellis, cuja trajetória inicial coincide com a de sua intérprete, Chloë Grace Moretz, por ter menos de 20 anos, ser uma estrela em ascensão e ter protagonizado um filme de herói. Ao escrutinar a intimidade da nova “substituta”, Maria se depara com uma pessoa problemática, agressiva com os paparazzi e pouco afeita às gracinhas da imprensa. A fúria e a dor da atriz excedem o comportamento normativo, fazendo dela uma artista errática, que age por instinto, com um senso artístico latente, que não consegue se encerrar internamente, fazendo-a agir como uma louca. A manifestação tresloucada do talento faz Anders mudar de ideia, se preparando para as sobras que sua carreira lhe deixou.

    O desenrolar das emoções da atriz revela um medo de se mostrar decadente, e com um receio ainda maior deste movimento tornar-se uma verdade absoluta. Todas as suas certezas são questionadas, desde seu talento, envelhecimento aos olhos vistos – apesar da ainda mui bela compleição da nudez de Binoche – e as fraquezas de espírito, que a fazem querer desistir de tudo a todo instante. As pressões mentais atingem também a sua auxiliar, que aceita um outro ofício em um continente distante, dando um fim definitivo à extensa e íntima relação de interdependência.

    A heroína da fita percebe suas falhas de relação, repensando todas as suas ações, ao aceitar conversar com Jo-Ann, passando a se afeiçoar pela intrépida jovem, fazendo a aceitação do tal papel mais tragável, apesar de toda a confusão moral que envolve a novata.

    A aceitação do fato de ser obsoleta é quase ofuscado por conhecer uma persona tão ligada aos desígnios de diva presentes no comportamento de Ellis. Assistir à versão mais jovem de si, andando ao seu lado e cometendo erros semelhantes aos que Maria passou é demasiado grotesco, mas é uma sensação subalterna diante do desejo de reinvenção.

    Anders descobre que a transformação é o caminho mais digno a seguir, provando ser superior à sina que estava prestes a abraçá-la. A transformação que sua mente sofre se reflete em sua postura em tela, evoluindo-se a ponto de não precisar mais lançar mão de seu passado e currículo para sentir-se plena. Acima das Nuvens é um filme sobre evolução, que trata as relações inexoráveis à existência humana, tomando o estado de depressão como uma tela em branco, jogando com a alma e espírito humanos para apresentar uma contemplativa história de superação, distante de qualquer melindre ou covardia narrativa.

  • Crítica | A Entrevista

    Crítica | A Entrevista

    A Entrevista 1

    O narcisismo da curiosa persona do ditador norte-coreano é cantado por uma simpática menininha, que destaca os feitos hostis de seu país, além de xingar largamente a política dos Estados Unidos. Kim Jong-un (Randall Park) mostra-se como uma figura controversa, um personagem semelhante à caricatura dos piores líderes políticos da história. O modo como a figura pública é exibida é jocoso e distorcido, como se espera de uma fita de humor explorada por um comunicólogo sensacionalista.

    Dave Skylark, vivido por James Franco, é um apresentador que faz da fofoca o principal plot de seu programa, tendo já nos primeiros minutos de exibição uma revelação bombástica relacionada a Eminem. Cada mexerico que ele consegue tirar dos artistas é louvado por seu produtor, Aaron Rapoport, interpretado pelo co-diretor Seth Rogen, que repete a parceria razoavelmente boa, depois de É o Fim, com Evan Goldberg. A valorização da faceta cinza do jornalismo é a tônica do trabalho dos citados, e é em meio a uma das demonstrações de segredos grotescos de artistas que vem a notícia de que a Coreia do Norte executou um ataque terrorista.

    A perda de audiência mexe com o complexo narcísico de Skylark, que em uma pequena investigação percebe que o político asiático é fã de seu trabalho, e dessa forma o jornalista abutrino resolve tentar explorar tal estratagema. Passando por cima de todas as improbabilidades, Aaron é chamado a conversar com os representantes do tirano. O encontro se dá em um local ermo, distante da civilização, e ocorre rapidamente unicamente para o humorista acima do peso zombar da dificuldade que o ditador tem em utilizar informação, uma vez que os termos discutidos poderiam ser enviados em um simples e-mail. O que Un chama de estilo, os americanos acreditam ser “atraso”. Logo, o comunicador vira a notícia, sendo alardeado por inúmeros colegas que o criticam por glorificar um assassino.

    Uma agente da CIA intercepta os protagonistas com uma missão árdua. A dificuldade que Aaron e Dave têm em se concentrar em algo que não seja os seios de Lizzy Caplan, e sua Agente Stacey, é mais uma crítica superficial ao machismo implícito no modo de pensar do americano médio, que não consegue se concentrar sequer no belicismo que é comum ao dia a dia imperialista. A espera por uma propaganda velada ao capitalismo é cerceada, até mesmo por causa do caráter absolutamente debochado da fita.

    O modo como a Coreia comunista é retratada não é uma versão ainda mais pobre de Cuba: até os personagens estadunidenses se surpreendem por não haver fome nas ruas ou miséria nas esquinas de Pyongiang. Logo, Kim Jong visita Dave para tietá-lo antes da famigerada gravação. Apesar de toda a valorização do ridículo via pastiche, o modo como o roteiro mostra o líder coreano é até leve, com poucos defeitos realmente lamentáveis. O que realmente é execrável é a postura de filho rejeitado, que dá prosseguimento aos planos do procriador em uma tentativa de compensação, além da inveja clara à política super-capitalista dos EUA, nada que não seja esperado vindo de uma produção hollywoodiana. A figura demasiada carismática de Kim faz o apresentador se confundir com relação a suas preferências, certezas, missão e abordagem midiática, claro que através de uma análise política rasa.

    Com a polarização errada no posicionamento, Skylark passa a agir lealmente ao seu novo amigo, dando as costas aos seus amigos e nação, com um comportamento à la síndrome de Estocolmo, e do modo mais cretino possível. No entanto, o patriotismo e senso de dever falam mais alto, realocando a mente do personagem de volta ao lugar onde jamais deveria ter saído, “coincidentemente” no momento em que o roteiro perde um pouco do seu fôlego.

    A mácula de desrespeito em relação à figura do soberano do filme não é justificada em momento algum. Como mencionado antes, a crítica ao partidário não é profunda: mesmo nas cenas em que ele é mostrado nu, não há qualquer piada fácil, como referências a um membro diminuto, ou algo que o valha. A reviravolta comportamental visa desconstruir a imagem divina do líder ante os seus conterrâneos, claro, levando em conta o julgamento ocidental sobre a sua figura, o que certamente motivaria em qualquer adepto do personagem biografado um incômodo atroz. Mas nada que chegue perto da completa humilhação vista em Team America, de dez anos antes, que julgou seu pai, Kim Jong-il, como um puppet master infernal.

    O discurso de Un, ao ser questionado sobre os alarmantes números de famintos, destaca o embargo dos EUA ao seu país, assim como a alta massa carcerária, formando uma incômoda alfinetada ao país que se julga dono do mundo. O decorrer da entrevista é catastrófico, para os dois distintos lados. A posição de fragilidade de Kim Jong colaborou, inclusive, para todo o alarde do ditador, assim como a cena em que ele é executado.

    A revolução tosca acabou sendo televisionada e tratada a sério, não condizendo em nada com seu gênero humorista. Um preço alto, presumindo-se que os ataques a Sony foram promulgados por agentes de Kim Jong-un. Não há qualquer justificativa para a transmutação do filme, de comédia dentro de tela, para o drama fora dela.

    O posicionamento radical do tirano parece ter ocorrido mais por este não crer que qualquer sanção legal aos envolvidos na produção fosse atrapalhar as vendas de ingressos ou a propagação do ideal do que uma ofensa verdadeira à sua moral. O desfecho feliz, com Aaron, Dave e seu cachorrinho embarcando em paz rumo a América, exibe para o público a ingenuidade da fita, presente em cada ação, e em cuja supervalorização e desnecessária seriedade por parte das autoridades norte-coreanas – e das forças “terroristas” – transformou A Entrevista em algo muito maior do que deveria ser, atraindo uma atenção que não existiria certamente sem este tipo de publicidade.

  • Crítica | Operação Big Hero

    Crítica | Operação Big Hero

    Operação Big Hero - poster brasileiro

    Desde Enrolados, a Disney vem traçando um novo caminho em ascensão, distanciando-se da época em que as melhores produções eram feitas pela Pixar e reassumindo o posto de grande produtora de animações, como na época viva de seu criador e postumamente a ele, até o final da década de 90.

    Operação Big Hero realiza uma união positiva entre dois universos: a narrativa costumeira do estúdio, lançada anualmente nas férias, e o estilo dos animes tradicional no Oriente – uma composição que resultou, para a Nickelodeon, na excelente animação Avatar – A Lenda de Aang. A história se passa em San Fransokyo, um criativo nome híbrido de São Francisco e Tóquio como uma maneira de preservar o produto americano mas que demonstre a influência da cultura do Japão. Envolvido em lutas clandestinas de robô, o prodígio Hiro – não à toa, seu nome é homófono (palavras de mesmo som) ao título do filme – é um desses garotos que representam a criatividade e o talento que surgem sem a necessidade de uma educação formal. Porém, seu irmão Tadashi deseja para o garoto um futuro mais útil e, ao levá-lo ao laboratório em que trabalha, o menino se interessa em estudar no local. Para isso, é necessário realizar uma apresentação de uma nova invenção para ser aceito no colégio.

    Em comparação com o filme anterior do estúdio, o premiado Frozen – Uma Aventura Congelante, a história foge do clássico universo de princesas e reinos. Em uma época de dissolução de gêneros, é difícil apontar a produção como se voltada a este ou aquele público em específico. Porém, é evidente que o enredo está mais focado na ação do que no elemento emotivo e amoroso do interior.

    A trama é baseada em um gibi da Marvel Comics, sendo esta a primeira animação da empresa lançada pela Disney. Estranhamente, como vem acontecendo com outros casos de direitos autorais, o estúdio de quadrinhos informou recentemente que não publicará novas histórias de seu gibi devido ao lançamento do filme, em parte porque o conglomerado do Mickey também possui direitos sobre alguns personagens. Devido às delicadas negociações destes direitos, alguns não concluídos, os nomes e as etnias dos personagens foram mudados.

    De qualquer maneira, o ritmo dessa aventura aproxima-se do conceito de uma história em quadrinhos feita nos Estados Unidos, porém claramente utilizando o traço padrão oriental, e ação e humor equilibrados. A Disney está atenta aos novos tempos, demonstrando sincronia com o que o público atual espera de uma animação. Hiro é um personagem que contém os traços característicos dos heróis do estúdio, porém também demonstra novos contornos, uma novidade introduzida recentemente nos roteiros, em que, mesmo com a bondade predominante, há uma maior gama de sentimentos, entre eles a raiva e o desejo de vingança, que perpassam os pensamentos do menino. Uma queda do personagem mais puro para ascensão de um mais crível. Também, o público tem exigido este maior grau de realidade nas produções animadas, elemento que também fornece a criança um aspecto maior de representação do mundo. O roteiro confia na habilidade de cada infante em saber a importância do bem contra qualquer ato malévolo.

    Se a composição destas histórias sempre segue um padrão formular de uma trama com uma mensagem universal que atinja também as crianças, é interessante como roteiristas sempre são capazes de escolher um ótimo personagem para a comédia. Em Enrolados, o cavalo Máximus representava o riso; em Frozen, o boneco de neve que gostava de abraços quentinhos. São personagens que sempre ressaltam uma personalidade própria e um tipo de humor non sense ou bobo. O representante da comicidade, e também parte integrante do grupo de Hiro, é o robô BayMax, criado pelo irmão do garoto como o futuro da Medicina, um agente da saúde robótico. Ele tem a personalidade típica de uma inteligência artificial que faz análises objetivas a respeito do que o cerca, o que provoca confusões interpretativas com expressões e palavras de mais de um sentido. Composto de vinil, que lhe dá a proporção de um robô cheinho, o tamanho do autômato também faz o público rir quando em cenas de ação, um riso tão simples que atinge o espectador de maneira universal, ainda que pareça funcional apenas para uma plateia mais infante.

    Mesmo sem um roteiro complexo, ao contrário das produções da Pixar que, costumeiramente, sempre são analisadas por suas narrativas em camadas, Operação Big Hero vai direto ao ponto por meio de uma história simples, como uma animação deve ser, e equilibrada entre a sensibilidade e a diversão em forma de ação.

    Além do filme, o bonito curta-metragem O Banquete apresenta-se antes do longa. Uma história curta tradicional, sem a animação em terceira dimensão e poucos diálogos em cena. Durante seis minutos, acompanhamos a trajetória de um homem pela visão de seu cachorro. As fases da vida do homem são representadas pelo tipo de alimento dado ao cachorro. Inicialmente, sobras de pratos gordurosos e, após a relação do dono com uma chef de cozinha, pratos requintados e bem apresentados. Uma bonita maneira lúdica de observar a transformação do tempo e a evolução natural do ser humano. Duas experiências cinematográficas opostas vistas em uma mesma exibição.

    Por fim, fica a recomendação para o espectador aguardar até o final dos créditos de Operação Big Hero, para ver uma cena final com um grande conhecido do público.

  • Crítica | Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros

    Crítica | Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros

    Debi e Loide A

    O começo tímido, que se vale de piadas sexistas pouco ofensivas, introduziria uma dupla de protagonistas estúpidos, pensada pelos irmãos Peter e Bobby Farrelly. Lloyd (Lóide) Christmas (Jim Carrey) é um condutor de limousine de moral frágil e que tem na figura de sua patroa Mary Swanson (Lauren Hoolly) a sua musa. Seu pouco traquejo com as mulheres garante momentos de absoluta comicidade e falta de noção, com explosões tomando a estrada enquanto pratica direção perigosa. A despedida de sua amada – que acabara de conhecer – é emocionante, segurando o público de imediato, inserindo-o no drama. Logo ao acenar o “tchau” para a moça, após uma trapalhada, o espectador percebe uma trama policial escondida atrás de toda a pataquada da fita.

    Do outro lado da cidade, sua contraparte Harry Dunne (Debi, na versão brasileira, interpretado por Jeff Daniels) exibe todas as suas inabilidades como cuidador de cães. Ao final do dia, os dois amigos voltam ao apartamento que compartilham, desempregados, fruto, é claro, da incompetência de ambos. Cansados de fracassos sucessivos, eles resolvem se aventurar, viajando para Conneticut a bordo de seu cachorro-móvel.

    Na estrada, eles arrumam confusão com alguns caipiras, demonstrando covardia e instinto de sobrevivência, algo que os faz pregar peças nos bullyers e até nos policiais. A hilaridade idiota é a tônica dessas interações. No decorrer da viagem, Lóide tem sonhos de cunho erótico com Mary, imaginando os momentos em que o romance finalmente se concretizaria, incluindo rodas de amigos cujo centro das atenções era ele e suas piadas. Em determinados pontos, ele fantasia discussões intensas nas quais destila seus supostos dotes de briga, espancando um restaurante inteiro, como um Bruce Lee retardado, tomando o coração do chef, à força, para logo depois sonhar com as curvas de Mary, em que os seios expostos da garota como faróis de caminhão demonstram que a virgindade é o maior trunfo do personagem.

    A química entre Carrey e Daniels se dá especialmente pela troca de ofensas e pegadinhas entre um e outro, uma eterna competição para provar quem é mais infantil e imbecil, quase sempre sendo Lóide o vencedor. Qualquer um que atravessa o caminho da dupla sofre as agruras de estar ao lado de pessoas tão incrivelmente irritantes, mas absurdamente gentis e solícitas. Curioso como a ingenuidade dos dois consegue cooptar também um bom coração.

    À procura da bela mulher, os amigos sofrem muitas perdas, até terem noção de que carregam uma maleta repleta de dinheiro. O consumo indiscriminado de dinheiro nos eventos mais supérfluos possíveis. Suas atitudes fazem mal a praticamente tudo que os envolve, deixando um rastro de destruição ao matarem aves raras e esmigalhando propriedades públicas enquanto tentam se divertir.

    A rivalidade entre os dois se acirra ao perceberem estar os dois emotivamente envolvidos pela(s) mesma(s) mulher(es), algo natural, uma vez que há falta de tato de ambos com o sexo oposto. Logo, Lóide acaba por passar pelo destino da mesma moça que flertou antes com Harry, enquanto o amigo loiro se diverte na neve com Mary. A mágoa atinge a personagem de Jim Carrey, que não consegue esconder sua frustração e se vinga dele, pondo laxante na solução alimentícia do amigo.

    A disputa faz com que Lóide se jogue desesperadamente nos braços de sua amada, tentando se declarar a ela, se frustrando após descobrir que ela é na verdade uma pessoa casada. Após muita discussão e situações das mais toscas possíveis, os dois seguem seu caminho, retomando o valor da amizade, salvando um ao outro, mostrando uma inexoravelmente unida relação que suporta toda e qualquer barreira. A comédia dos Farrelly não tem qualquer mensagem edificante ou evolução aparente, mas dá voz a valores simples, como companheirismo e desapego material, sob uma ótica boba que fez muito sucesso entre o público infantil e ajudou a salientar um subgênero da comédia, que se vale de pastelões e de piadas físicas.

  • Crítica | Amar, Beber e Cantar

    Crítica | Amar, Beber e Cantar

    Alain Resnais foi um pintor de emoções: literalmente pintava humanidades e o avesso à frente de nossas óticas e tópicos pessoais de aceitação. Foi ou é? Será? Seu legado é extenso desde muito antes do óbito do artista, e homem apaixonado pela arte, arte da luz, captação de movimento e fluxo narrativo de tantas belíssimas histórias, compôs, pintou e tocou feito marinheiro seu barco à frente, tão à frente a ponto de nos deixar órfãos de sua presença, agora retida e ampliada, é claro, em seus clássicos eternos, infinitos em gênero, ação e interpretação. Chabrol, Rivette, Resnais eram expressionistas tímidos, nos intimidavam feio com suspiros, angústias nos olhos, de tão fortes suas intenções. O francês não brincava em ofício, mas brincava sem dó com nossa percepção da vida, distorcia, refinava-a. Em Hiroshima, Meu Amor, o que estamos vendo: um casal de fantasmas perdidos numa paixão insondável? Uma alma que se vê dividida em dois corpos? Não é possível colocar ou espremer em palavras, daí o Cinema pra cumprir tamanha tarefa além-vocabulário. Dói não a partida, mas saber que não haverá mais estreias com seu nome. Resnais virou cineasta de Mostras especiais, de herança, cineasta de parâmetros a outros no futuro; Resnais, como tantos outros, virou uma bússola. É o destino. É a única chance do mortal virar imortal.

    Amar, Beber e Cantar é um digno desvio de linguagem e homenagem para com a verdadeira obra-testamento de Resnais, o colosso de 2006 Medos Privados em Lugares Públicos, um dos grandes filmes da primeira década do século 21. O filme de 2014, o último do mestre, é delicioso, feito pra se comer com os cinco sentidos. De degustar a precisão da anatomia exposta e as tripas, sobretudo as tripas do que move a história por detrás da imagem, em terreno subjetivo onde o que acontece é projetado – ou não. Não é teatro filmado, é alegoria transposta, é microcosmo assinalado em realidade recriada, obtida a nós, o público, em diferentes ângulos de um mesmo cenário limitado, de poucos metros, menor que um palco teatral, mas onde absolutamente tudo pode acontecer a todos em cena – tudo o que envolve os sentimentos humanos em sua imensidão de causas e consequências. Mas William Shakespeare já fazia isso, e, antes dele, todos também! E é isso que Resnais resgata em seu novo filme: A beleza do resgate quando há algo de reconhecidamente pertinente a se resgatar. A obsessão, a desconfiança, o desprezo, a mentira e a competição já eram datados nos tempos de Otelo e Hamlet, e não é por isso que hoje não os praticamos mais; senão, ainda mais.

    Uma história pessoal, tragicamente cômica e comicamente trágica entre amigos, sobre o teatro, em um teatro, filmada no cinema. Deu nó? Não vale falar de metalinguagem, é impreciso, torto, mas pode ser entre tantas abstrações um caminho para demonstrar a intimidade do Cinema com o Teatro, como um completa o outro em pretensões que simplesmente não merecem ser atribuídas a eles. Obras magníficas tal A Balada de Narayama, Noite de Estreia e Cantando por Detrás das Cortinas são herdeiros diretos da junção do berço e da evolução tecnológica da atuação humana; esse reflexo que o público tem de suas ações normais ou não, quem pode saber? A todo momento, aliás, Resnais joga peteca com um e outra, com palco e câmera, tocando o terror com personagens comuns surrealmente despreparados aos desafios e imprevistos da vida real.

    O resultado é, de novo, delicioso, com uma mise-en-scène, um arranjo, um ambiente geral exemplarmente bem estruturado e ativo em cores, formas e resumos visuais de extrema importância para o entendimento da história sobre a comédia humana, a graça vital por apenas estar vivo, cercado por pessoas tão vivas e coloridas, e a chance de achar esse humor percebendo a brevidade da vida, em especial. Contudo, tal ambientação, tal norte às dependências da realidade onde o filme se encontra e acontece, é aqui, acima daquilo que compõe os cenários em filmes rasos e gigantes apenas no visual, como Avatar, os próprios atores. Os atores são o cenário, e há poucos aspectos mais nobres no Cinema ou no Teatro que isso (nos filmes de Cassavetes ou nas peças de Molière, esse respeito é recorrente). Resnais coloca meia-dúzia de sacos de defeitos ambulantes pra contracenar, num verdadeiro ping-pong sensorial à beira do overacting, do excesso, da histeria, da perda do controle emocional (a atuação geral é irretocável, mas Sabine Azéma dá um show, uma atriz extraordinária).

    Muitos podem acusar Amar, Beber e Cantar de ser apelativo: é homérico a questões já analisadas no cinema de Resnais; entretanto, sem a sua elevada carga emocional, seria superficial ou não tão penoso de se aprofundar, e, com certeza, não seria a obra-prima moderna e eterna sobre as relações humanas que acaba por ser. Ambicioso e singelo na medida certa, Resnais não era, é, com honra ao mérito, um pintor, e dos mais sensíveis e malandros; perpétuo equilibrista entre o abismo sem volta da razão e emoção.

  • Crítica | Olho Nu

    Crítica | Olho Nu

    Desde o início da carreira, Ney Matogrosso é um intérprete impossível de ser definido em poucas palavras. Em plena ditadura, ao lado dos Secos & Molhados, foi um transgressor pela postura exibida no palco, entre pinturas, adornos, danças e nudez, elementos que ainda mantém em sua carreira. Em entrevista recente, reconheceu que se tornou um representante de tabus persistentes na sociedade. Mesmo negando assumir a bandeira de qualquer causa, sabe de sua força autêntica.

    O homem de um profundo olhar imagético se mantém na ativa e bem representado em discos elogiados, turnês de sucesso, trabalhando na produção de outros músicos – dirigiu o show Coração Inevitável de Ana Canãs – e também com vigor para, vez ou outra, estrelar produções cinematográficas – foi o bandido da Luz Vermelha na continuação Luz das Trevas, dirigido por Helena Ignez.

    Olho Nu é uma obra documental que foge dos padrões do gênero e faz de Matogrosso um personagem da própria história. Não se trata de um documentário linear que apresenta depoimentos a respeito do cantor, nem mesmo conta sua trajetória como artista. Dividido entre imagens antigas e cenas contemplativas do cantor visitando sua casa da infância, demonstrando o contato direto que faz com a natureza, o documentário volta-se mais para uma obra de cunho metafórico e memorialista do que um documento narrativo da densa história de Ney.

    É um documentário-ensaio – se é que existe tal definição – que reverencia a figura conhecida pelo público. Um projeto que se transforma em uma obra para iniciados, voltado àqueles que conhecem sua obra e, por consequência, compreendem as informações, imagens e videos apresentados. Não há assunto não abordado pela obra. Porém, sem uma linha narrativa aparente, perde-se espaço para definir, mesmo que brevemente, quem é Ney Matogrosso.

    Em entrevista, o próprio cantor afirmou que sentiu falta de maior exposição, ainda mais que algumas facetas de sua vida tenham sido citadas brevemente. Levando-se em consideração que é um artista que sempre permitiu a observação do público, sempre foi autêntico em expressar suas opiniões e nunca se esquivou de perguntas polêmicas, é entristecedora a lacuna deixada pelo documentário.

    Sem ousar desvendá-la, a figura de Ney Matogrosso, que tem 40 anos de carreira e 70 de vida, é contemplada no documentário. Evoca poesia em suas imagens, desconhecendo que o próprio intérprete basta neste quesito, registrando com sua voz aguda diversas e grandiosas canções. Falta alguém que o observe com profundidade e realize uma obra, seja biografia ou documentário, à altura deste Homem – com maiúsculas.

  • Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 1

    Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 1

    De Gosto de Sangue a Inside Llewyn Davis, uma análise geral e não-datada sobre as diretrizes da obra de Joel e Ethan Coen. Da parceria primordial com Sam Raimi a dois lugares cativos nas expectativas de crítica e público, feito mais que raro, senão raríssimo. Suas obras são trabalhadas com mãos de pelica juntamente a todas as possibilidades do cinema, em seu estado humilde, para apostar em temas ricos, intentando criar algo inédito, como que com o ímpeto de um fracassado que aposta tudo na única chance de sua vida.

    A moral e a força dessas obras vêm em forma de lenta infiltração atrás da parede da sala, apesar da rápida duração, geralmente, das mesmas. Em um punhado de entrevistas dedicadas a dissecar o que está por trás dos estímulos da filmografia vigente, os cineastas não cedem a surtos didáticos sobre seu caminho no cinema, carregado de marcos em dobro.

    Gosto de Sangue (1985)

    É o gatilho elencado por toda a cinefilia acumulada antes do primeiro projeto de quem é aspirante a artista e não sabe o que é ser um, mas sabe que é. Gosto de Sangue é uma barca de sushi de boa parte do que já foi produzido no gênero policial, seja das influências das fantásticas décadas de 60 e 70, ainda que oriundas do gênero noir, aqui tudo revisitado, à tona mais uma vez, sem preconceitos ou pudores através de uma visão particular de cinema, em notório, ainda sentindo a necessidade de evolução gradual. No primeiro lance é costumeiro somar a inexperiência do(s) realizador(s) diante daquele gostinho de quero mais, afinal nem todos se chamam Orson Welles ou John Houston (ambos, curiosamente, iniciaram seus passos ao rol das lendas no mesmo ano, 1941). Contudo, em Gosto de Sangue, os irmãos compram a briga dos mais exigentes e tentam assumir calmamente uma maturidade a ser comprovada, jogando com elementos que viriam determinar o “ao longo” da carreira; humor dramático, um constante drama irônico com o humor trágico dos laços humanos (o trágico aqui é literal), e uma violência doméstica indomesticável, satírica e inesperada, cada vez mais requintada daqui em diante. A quem tem olhos de lince, a história apoiada nos conflitos expostos da persona de Frances McDormand já apontava polos distintos enquanto únicos no cenário audiovisual do meio dos anos 80, povoados de inúmeros nortes, é verdade… Todo filme é uma odisseia indiscutível a quem o faz, que seja Ulysses então a melhor analogia a qualquer filme prematuro e experimental.

    Arizona Nunca Mais (1987)

    Sergio Leone imortalizou o homem desconectado da sociedade que vive, sem passado e futuro definidos, lutando para sobreviver no presente. Nicolas Cage se consagrou como a personificação pública do ator desastroso no potencial duvidoso dos filmes que resolve atuar. Antes de protagonizar o cult Coração Selvagem, de David Lynch, Cage, o “melhor pior ator” do mundo, embarcou no mundo das loucuras racionais de Arizona Nunca Mais, a última obra não esquematizada dos Coen, pois corre irresponsável sem críticas sociais, políticas ou artísticas, adiantando o tempo e dando indícios dos quebra cabeças geniais que viriam a seguir, agora com a parceria (nunca reconhecida) de John Goodman. Cheio de momentos impagáveis, Cage faz quiçá outra personificação típica dos irmãos: O desajustado que talha as próprias rugas através dos problemas que não consegue evitar rumo a lugar nenhum, ou melhor: A glória ou a tragédia, sem meios termos. Ponto decisivo na jornada dos cineastas, provando a quem se deixar convencer que sabem ser pop sem vender suas almas no mercado proibido a doutrinas autorais, o que acabou sendo uma verdade, mesmo que, na época, a constatação pareceu ter vindo cedo demais. Aqui, os Coen descobriram que podem ser masoquistas na nutrição de suas crias, e adoraram a satisfação disso!

    Ajuste Final (1990)

    Caso os Coen já tivessem a experiência obtida aqui desde os tempos de Gosto de Sangue, Ajuste Final seria o estopim dos irmãos. Possivelmente, a obra mais pretensiosa dos irmãos, vinda de uma nítida confiança tanto da indústria por eles, quanto deles para eles mesmos. Homenagem explícita a grandes clássicos do gênero que pertence e extravasa com elegância, alternando estilos e funções diferentes de filmagem para uma única proposta com base no cinema de identidade, reflexivo enquanto reflexo do que já foi feito no mural da história da arte. É em Ajuste Final, legítimo “filme de gângster”, em todos os sentidos, que os Coen se mostram de súbito exímios diretores de atores, característica que seria amplamente divulgada pela publicidade oriunda da qualidade de seus trabalhos, não puro marketing. Pop, mas pessoal demais para passar na Tela Quente. Vale uma ressalva: A pretensão aqui se torna positiva através da ambição na escala do projeto, ainda inacessível nos tempos de Gosto. Numa história tipicamente noir, em plena década de 90, o cenário diegético continua avesso a tendências e didatismos falando muito sem dizer especificidades, cebolas em formas de filmes esperando pacientemente o descascar. Além de contar com participações dos amigos Sam Raimi e Steve Buscemi, para quem pergunta o porquê dos Coen terem virado cult, este e o próximo exemplar são as melhores respostas. Eles mereceram.

    Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991)

    Há quem diga que em Ajuste Final eles começaram a se levar a sério demais, mas na verdade seu domínio artístico que foi. Viver a vida dependente da promoção artística não é fácil, seja nos subúrbios urbanos ou no cume da montanha de Hollywood. O clímax de Barton Fink sintetiza, por meio de ação, tragédia e conclusão aberta o que é a vida do escritor, do artista que tenta ser um. Os Coen riem da própria desgraça, em um momento que eles podem ser dar a esse luxo sem serem chamados de abusados. O dom de escolher protagonistas indispensáveis segue forte, a soma rica da qualidade dos detalhes simples, a precisão em condensar pequenas ideologias em prática grandiosa sem se apoiar no quilate de superprodução, e o fantástico bom-senso impulsionado pela criatividade pulsante sempre foram exemplares nesta espécie de metalinguagem satírica, no viés da obra do grande Molière. “Eu sou um artista, eu crio mundos na minha cabeça!”, grita a persona introvertida de John Turturro em certo momento, e leva um soco da vida caindo de cara no chão. Quem nunca passou por isso, de qualquer jeito? Todavia, não é só na identificação em âmbito público que Barton Fink se consagra, senão no desnecessário segmento que faz com que Joel e Ethan não precisem se importar em se reinventar, pois têm nas mãos, para todos os estilos, todos os temperos que existem a ser misturados. Eles realmente não precisam se preocupar. Cinema é culinária.

    Na Roda da Fortuna (1994)

    A linha de raciocínio da dupla cineasta continua a mesma: Um personagem que pensa pertencer ao mundo onde permanece por vontade própria, numa metalinguagem sobre o modus operandi da indústria do entretenimento. Em uma entrevista de 2013, os irmãos deixaram claro que não assistem a seus próprios filmes após o cansativo trabalho requerido de pós-produção. Antes disso, o mesmo entrevistador aponta o quão sadio é rever suas produções, dar uma segunda olhada do ponto de vista de quem ainda precisa garimpar os pontos de quem já possui uma visão 360º de tudo. Na Roda da Fortuna inaugura esta prática na filmografia deles, pois é o típico camaleão que se camufla em uma mera diversão ainda que muito bem construída (com estereótipos inofensivos) a quem não está voltado, por exemplo, às vértices que apontam a uma análise capitalista no mercado da publicidade predatória americana – global, hoje em dia. Considerando que seria fácil demais empunhar escudos críticos em um terreno como este, os Coen definitivamente se especializam aqui no que se tornaram mestres nos próximos trabalhos: Polvilhar interrogações onde só poderiam haver pontos finais, ou pior, somente exclamações! Uma aventura descontraída no mundo dos efeitos especiais, o filme segue sendo o de mais fácil acesso dos irmãos, agradável a gregos e troianos em sua proposta de fácil adaptação pública e midiática (é extremamente fácil de imaginar uma montagem teatral à história). Ao mesmo tempo, Na Roda da Fortuna contém a oferta de enxergamos mais do que realmente existe em uma obra – na ótica de Guy Debord, os Coen seriam anarquistas. Graças a Deus.

    Fargo: Uma Comédia de Erros (1996)

    Como sinônimo de atestado de qualidade, no decorrer do balado prêmio Oscar houveram três comédias as quais realmente mereceriam a premiação máxima: Jejum de Amor (1940), de Howard Hawks, Annie Hall (1977), de Woody Allen, e Fargo. Fato é que o gênero ganhou novos fôlegos, relativamente, após a estreia e dissipação das influências dessas três obras vitais para uma revitalização da satiricidade na sétima-arte, até o presente momento, é claro. Ao realizar um produto cínico e lenitivo a todos os males do mundo, os Coen, dupla naturalmente voyeur, que assiste sem se envolver, sabiam que tinham muito a falar, e conscientes do poder da narrativa entre imagens deixaram a história discursar por si mesma, em total exatidão nas segundas, terceiras e quartas intenções implícitas nos matizes de sangue, gelo e implicações sociais, como de praxe. Talvez o melhor verbete para ilustrar Fargo e suas tramas paralelas seja esse, “exatidão”, pois quem o assiste pela primeiríssima vez não se dá conta disso. É como se Jerry Seinfeld parasse de ser um bom menino e tomasse as rédeas do jogo nesta que pode ser considerada peça-chave, ou pelo menos eficiente, no processo de desconstrução criativa que consiste na definição crítica de um filme. Uma dica: A neblina que abre o sexto filme dos Coen esconde exatamente o que é sentido até o final, mas muito mais do que toda a magnitude que já foi mostrada.

    O Grande Lebowski (1998)

    Um estudo duplo de personagens que só poderia ser tramado pela mente duplicada dos cineastas, aqui encarnando as figuras icônicas de Jeff Bridges e Goodman num tour de force do cinema independente americano com nítidos ares predominantes de um monopólio libertador, sob o manto da criatividade, resvalando no ato vulgar da libertinagem, por pouco. Tudo cresce ao redor da colcha de retalhos desenvolvida, como se a pretensão germinasse em solo fértil a tanto e fosse tão bem cultivada quanto poderia ser. Os Coen continuam rindo de seus propósitos, e chamam todos para rir junto desta vez. O Grande Lebowski é um manifesto que acontecerá mais vezes na história do cinema, e cada um será oriundo da representação de uma geração que envelhece, finalmente, e quer ver suas representações temporais retratadas na arte do enquadramento. Isso, sem esquecer-se do gosto agridoce da ironia que vem da reprodução de certos elementos atemporais, como o Jesus Quintana de John Turturro, de longe a criação mais nonsense dos realizadores. De descobrimento, crítica e análise o filme não tem nada, além do masoquismo inseparável do DNA dos Coen: É um puro acerto de contas com o espírito de uma época, sem um pingo de ego na mistura, “but well, it’s just like, my opinion, man”.

    E Aí, Meu Irmão, Cadê Você (2000)

    A filosofia sensorial sóbria dos irmãos, cultivada desde os idos da Universidade de Cinema de NY, perturba com êxito o marinheiro de primeira viagem em águas serenas de tubarões invisíveis, mas há o que falar quem essas águas ainda faz afundar e revisitar, logo após sobreviver do último mergulho. Logo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? segue como um tiro pela culatra, em forma mais de ensaio que um verdadeiro filme dos Coen, nos moldes tradicionais da filmografia vigente. Ao adaptar o intrincado e vasto poema de Homero, fica a impressão de tentativa válida, contudo jamais páreo para os outros trabalhos da dupla. Os irmãos compreenderam que o que tinham em mãos era uma metáfora com suas criações, e simplificaram em suas decisões o material original na forma de uma belíssima fotografia que salta aos olhos, e nas expressões faciais conflituosas, basicamente, do trio de condutores deste “road-movie” frio, incomunicável nas suas ondas de sintonia que se chocam simultaneamente. Uma obra que tem vergonha de ser tudo o que poderia ser, de emoções abafadas por uma espécie de legitimidade que não chega a lugar nenhum em belos compostos cênicos, como fragmentos de uma contradição. O aperfeiçoamento prático da sabedoria pessoal dos contadores da história, todavia, são tão legíveis quanto o instinto humano de sobrevivência e de autodestruição, aqui retratados pela visão particular dos Coen, nem tanto, pela primeira vez. Na falta de experiências realmente construtivas no pacote encabeçado por Clooney, Turturro e Tim Blake Nelson, fica na memória uma cena memorável da Ku Klux Klan, e a certeza de que os irmãos Coen entram de vez na sua fase adulta deste ponto em diante.

  • Crítica | Uma Nova Chance Para Amar

    Crítica | Uma Nova Chance Para Amar

    Romances com personagens maduros são um tanto raros no mercado comercial. Dentre os poucos lançados anualmente, filmes sobre a maturidade, ou a velhice, são retratados com um exagero realista e com personagens desolados, quase fatalistas, vivendo a infelicidade até o fim de suas vidas. O cinema abre espaço para dramas existenciais, mas nunca reconhece a possibilidade de existência do amor em outras épocas, além da juvenil.

    Estrelado por Annette Bening, Ed Harris e Robin Williams (em um de seus últimos papéis em cena), Uma Nova Chance Para Amar apresenta Nikki, uma mulher devastada pela perda do marido, falecido em uma praia mexicana durante uma viagem amorosa. As cenas iniciais do longa demonstram com habilidade o passar do tempo da vida da personagem e de como a memória do cônjuge ainda se faz presente em seu imaginário, nos objetos em comum do casal e em situações cotidianas. Uma lembrança que lhe causa choque ao reconhecer, em uma galeria de arte, um pintor idêntico ao marido.

    A leveza agridoce do início do roteiro, composto com qualidade nas citadas cenas cotidianas, se intensifica em um melodrama que procura atingir o emocional do público. A princípio, a trama analisa a delicadeza do ser humano perante a perda de entes queridos, ainda mais em um acidente inesperado. A personagem central demonstra fragilidade interna e parece procurar neste homem, semelhante à sua alma gêmea, um retorno ao passado; fazer deste novo amor uma representação do marido.

    O roteiro direciona sua narrativa com maior intensidade para o romance que irá acontecer e à análise da necessidade de um mínimo de preparo psicológico para o conhecimento, a compreensão e a aceitação de outro ser humano. Embora a questão do duplo seja apresentada em breves diálogos, justificando que não há nenhuma pessoa genuinamente única, a trama focaliza a confusão interna da personagem nesta projeção semelhante de dois personagens.

    Ed Harris sustenta ambos os papéis, sendo capaz de entregar nuances diferentes para cada um deles: mais alegre para o marido falecido, mais irônico e contido para o pintor. A princípio, a semelhança causa estranheza também no espectador, e, sem estarmos cientes do enredo, é possível pressupormos a fragilidade da saúde de Nikki. Seria o público um cúmplice de um desvio psicológico ou quem corrobora com a semelhança de ambos? Novamente, o longa não parece interessado em analisar a negação do luto, mas foca diretamente o conflito entre homem e mulher em uma relação amorosa. Este enfoque dramático amplia-se conforme conhecemos a história oculta do passado de Nikki. Uma proposta arriscada por depender da recepção emotiva do público e da aceitação de que o enredo possui um conceito minimamente realista.

    Por outro lado, o enfoque romântico gera bonitas cenas de amor maduro e, distante de um fatalismo exagerado, compõe com naturalidade um quadro de personagens equilibrados mesmo em situações limite. Robin Williams, em uma de suas últimas performances, interpreta um viúvo que também sofreu a perda da esposa. Um laço que o une a Nikki como um triste clube que relembra a brevidade da vida. O bom elenco de veteranos produz a credibilidade deste roteiro sentimental e melodramático que atinge o espectador pelas interpretações, demonstrando que mesmo a maturidade física requer também apoio sensível para poder amar.

  • Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    O atual cinema francês não tem nada de atual, é de tradição e de comprometimento social como vem tentando ser desde os anos 60, com a resistência de grande parte da crítica e dos cinéfilos franceses, temerosos – no fundo – pelo tamanho das garras e presas da globalização prestes a engolir tudo e todos, muito além da terra do croissant e de outros clichês idiotas. Em termos de prestação de serviço ao registro da vida do público, de mistificar o que não cabe em jornais ou revistas, o cinema française mistifica e expande o sentido de seu microcosmo sócio-político como, hoje em dia, nenhuma outra filmografia de qualquer país consegue fazer, e esse é o principal de seus méritos: não apenas evitar ser uma televisão gigante com fatos não descartáveis, se atendo apenas a interesses públicos, como foi no século XXI o cinema inteiro da América Latina, mas ser mais teatro do que TV, muito mais nobre do que o horário nobre da telinha – como Alan Resnais tratou objetivamente de provar na ‘‘peça filmada”, ou no ‘‘filme encenado”, que é Amar, Beber e Comer, grande e rica obra de 2014.

    Mas nenhum filme desde a virada do milênio encantou tanto o mundo feito Amélie Poulain, de 2001, com um visual acachapante (e a beleza de Tautou) em prol do impacto que uma história simples e comum pode ter, se contada usando todo o poder absoluto da sétima-arte. Esse filme levou às grandes massas um cinema até então muito ligado à intelectualidade exagerada, digamos, algo arrogante e frio como ficou conhecido desde os tempos que Godard, Chabrol, Rivette e outros cineastas mandavam no jogo da exposição artística – de novo, com muito desdém pela turma mais antiga, acostumada só com Renoir e Carné, artistas de cinema em estado bruto. A Nouvelle Vague também já é passado, e, agora, Uma Viagem Extraordinária é a consolidação, o fruto do que começou no ano de 2001, quando o cinema do sotaque parisiense e do l’amour e da revolución ficou mais pop e livre do que nunca. E todo mundo, claro, amou e está amando o que não precisa mais ser rebelde – mas que não evita ser quando é preciso.

    A beleza e o encantamento como difusores de um conceito. Esse é a ideia, iniciativa e visão de Jean-Pierre Jeunet, o mais comportado dos surrealistas, justamente por ser mais expressionista que surreal, apesar de brincar de um jeito único com as duas vertentes. Para o artista, usar a lupa da graça ao analisar a vida neste mundo é básico, é uma obrigação a ser alcançada em cada facho de luz contra as sombras da desgraça. Com influência visual de grandes artistas do passado, franceses, americanos, e principalmente britânicos, poucos cineastas filmam o mundo de maneira mais viva e exuberante que Jeunet – Malick e o fotógrafo Roger Deakins podem entrar na lista. É burrice dizer que a estética de Amélie Poulain já não encanta mais, 10 anos depois, pois quem ainda não conhece o cinema de Jeunet vai se encantar do mesmo jeito ao assistir à obra, ao absorver a história francesa (em solo americano) de um jovem gênio, Spivet, um guri carismático que decide cair no mundo em busca de um prêmio conquistado por uma de suas invenções – que mais remete a um daqueles projetos de Da Vinci.

    O fantástico vem da extravagância que faz o filme ser o ícone de si mesmo. Tudo é visto pelo deslumbre que só uma criança vê o banal, o cotidiano, que não tem mais graça, visto da janela de um trem por um adulto, já integrado demais na vida real. O garoto Spivet é irmão do menino de Os Incompreendidos, cada um em uma realidade, mas unidos na curiosidade pelo proibido; ambos netos de Cabral e Colombo, todos sedentos pela promessa do além-abismo devido à sede pelo amanhã. Assim sendo, antes de ser um cientista, o moleque é descobridor da vida, e antes de ser um artista, Jeunet é adulto o bastante para expor sua criança interior na pele de outra, e sem medo de ser feliz. O resultado é o melhor e mais belo filme infantil desde O Garoto da Bicicleta, de 2011, na tradição do primeiro filme da história a se dedicar ao universo infanto-juvenil: O Ator Tokkan Kozo (1929), do mestre Yasujiro Ozu.

    Uma Viagem Extraordinária pode investigar o papel da criança no mundo de hoje, diferente da época do filme de Truffaut, mais livre e inteligente do que as gerações passadas para se libertar de dogmas familiares e descobrir seu lugar no mundo, de forma prematura. Ou ainda, pode debater o autoconhecimento através das relações pessoais que uma viagem nos traz, a todos nós, independente de nossas idades, por que não? Acima de tudo, atrás da paleta de cores e da experiência audiovisual que nos convida a assistir várias vezes o filme, sempre descobrindo algum sentido novo, com certeza é indiscutivelmente gratificante quando o cinema americano brinca de ser francês, e brinca de maneira tão graciosa.

  • Crítica | Libertem Angela Davis

    Crítica | Libertem Angela Davis

    Libertem Angela 1

    A evocação primária de Libertem Angela Davis envolve uma forte trilha sonora, muito ligada ao ideal da principal biografada. Os gritos de “freedom” acompanhados do groove inserem o público na aura de luta pela igualdade racial, mais do que qualquer cena anterior à trilha. Após a apresentação, toda a formalidade é quebrada de modo necessário, expondo as indignidades que os marginalizados padeciam, além da resposta agressiva que os manifestantes sofriam, agredidos com brutalidade e repressão por parte dos policiais, com a mesma medida violenta que eles viam nas ruas, longe dos holofotes. A desfaçatez reinava no modus operandi das forças armadas, na tentativa de manter o estado totalitário no poder, sem que nada mudasse.

    O cunho político do documentário de Susan Lynch visa analisar o momento histórico pelo qual passava os Estados Unidos da América, antecipando a condição que seria vista mais tarde na África como Apartheid. O viés escolhido é o olhar de uma professora, uma função de fundamental importância na sociedade civil e que contribuía para a filosofia social predominante, até que esta norma muda. Ao menor sinal do ensino – em escolas segregadoras, que separam alunos por cor – dos ideais marxistas, faz-se dela uma inimiga do governo e da ordem imperante.

    A luta das autoridades com Angela era política, tomada pela paranoia da Guerra Fria, que fazia perseguir quaisquer afiliados do Partido Comunista, uma vez que o discurso era tratado como algo “diabólico”, tirado de contexto a fim de parecer ir contra a tradição, família e propriedade. Nos discursos do povo manipulado, havia gritos de “volte para a Rússia” e “volte para a África”, além de exibir uma variação ainda mais pesada de preconceito racial, com desenhos caricaturais de Davis assemelhando sua figura à caracterização da população zulu.

    Toda hecatombe ocorria ao lado do recrudescimento da máquina de governo, com o governador Ronald Reagan achando em Davis uma párea e perigosa inimiga do país, claro, junto ao estouro do confronto no Vietnã e a ascensão dos Panteras Negras. O estado de sítio estava instaurado, e uma guerra civil tomava o asfalto, fruto da dificuldade de evolução e de reflexão do antigo discurso de Abraham Lincoln. A igualdade parecia cada vez mais distante.

    Em razão de um incidente, na época muitíssimo mal explicado, Angela Davis foi indiciada, tendo sua prisão decretada e executada sob muitos protestos, que alegavam manipulação de informação por parte da mídia. A culpabilidade da professora foi tão alta que até o presidente Richard Nixon a endossou. A pena para Davis incorreu no desejo de extradição, o que intensificou ainda mais a onda de protestos.

    O caráter de atualidade do filme é impressionante, especialmente por notar-se a praticamente nula evolução a que o mundo se submeteu, mesmo após 40 anos decorridos após o início do movimento. A controvérsia a respeito dos direitos à liberdade política e da marginalização do “diferente” prossegue em países de diferentes histórias e tradições de luta, dos mais ricos até os ditos subdesenvolvidos; alguns com arquétipos mudados: dos negros sendo substituídos por outras minorias igualmente marginalizadas, como o público LGBT, ao lado da perseguição dos que pensam à esquerda, e contra tantos outros. E a questão racial ainda longe de ser resolvida.

    A contextualização documental mostra muitos registros visuais da época, assim como inúmeros depoimentos dos envolvidos, até de lados opostos. Serve como um bom retrato do panorama cronológico, tanto que reforça a injustiça presente no julgamento de Davis, uma vez que o argumento é um dos poucos fatores em cujo contexto abrange todas as falas. Os membros do movimento e os mais conservadores enxergam a professora da mesma forma: uma lutadora dos direitos civis.

    O recurso narrativo para remontar as cenas do tribunal – que obviamente não poderiam ser filmadas – foi perene ao exibir uma arte peculiar entre os depoimentos dos entrevistados. O destaque ao penteado black power de Angela revela uma idealização do ícone acima da figura humana, do símbolo da eterna luta de classes presente no epicentro do capitalismo do século XX.

    A poesia vencia no discurso desintoxicante da ré, que lutava contra os grilhões que amarravam os seus braços e os de muitos. O conteúdo do filme de Lynch é contestador, assinalado pela fala do branco advogado de defesa, Leo Branton, que profere ao também branco júri, o qual decidiria a sentença de Davis, convidando-o a pensar de modo diferente:

    “Eu quero que você interprete um papel comigo, para os próximos vários minutos: eu quero que você pense “preto”. Eu quero que você seja negro. Não se preocupe. Vou deixá-lo voltar a ser branco quando isto acabar. Se você é negro, você sabe que seus antepassados foram trazidos a este país como escravos. E o Supremo Tribunal dos EUA determinou: não há direitos. Uma pessoa negra tinha que ser o que os homens brancos queriam, e era obrigada a respeitar esta decisão. Uma intelectual como Angela Davis sabia disso. Cada vez que uma pessoa negra erguia a voz em apoio a liberdade e à liberdade do homem negro, foi assassinada. E, por isso, você sabe todas essas coisas, se você é Angela Davis ou se você é negro. Você, como negro, não se pergunta por que ela fugiu, só se pergunta: por que o mundo permitiu que fosse apanhada?”

    Após toda a luta, o desejo da já idosa Angela Davis é que a discussão amadureça, além até de seu reclame. O lema de sua vida é voltado para que mais vitórias, como as que conseguiu naquela época, se repitam, na tentativa de tornar o mundo moderno o mais igualitário possível. Libertem Angela Davis consegue informar e emocionar o público de maneira equilibrada, com a inserção total do espectador no drama da biografada.

  • Crítica | O Massacre da Serra Elétrica (1974)

    Crítica | O Massacre da Serra Elétrica (1974)

    Texas Chainsaw Massacre - classic poster

    Valendo-se do pensamento tipicamente repressor predominante no Sul dos Estados Unidos, aproveitando a estrada do clássico hitchcockiano Psicose, e também tendo em comum a base da história real de Ed Gein, O Massacre da Serra Elétrica foi o pioneiro dos slasher movies nos anos 70, uma obra responsável por elevar seu realizador Tobe Hooper a habitar o seleto hall de mestres do terror ao lado de John Carpenter, George Romero, Wes Craven, Mario Bava e Dario Argento, graças a uma abordagem transgressora de um conto interiorano.

    As fotos exibindo as partes putrefatas revelam a corrosão e decomposição de espírito dos humanos que seriam mostrados em tela, uma ruína de alma abissal. Os corpos empilhados ou em pé causam sustos imediatos no espectador, inserindo o público no terrível drama que será visto adiante. O vermelho profetiza o caráter sanguinolento do roteiro de Hooper.

    A câmera por trás dos arbustos funciona na trama como uma observadora anônima, a inserção do público na história, representando os olhos normais perante o mundo bizarro. Mesmo os menores incidentes são tratados pelas lentes como eventos trágicos. O velho bêbado tenta avisar aos soberbos rapazes das estranhezas típicas do lugarejo, mas eles não lhe dão ouvidos.

    O grupo de jovens, liderados por Sally Hardesty (Marilyn Burns), teria uma surpresa horrenda durante a psicodélica road trip que fazem. Tencionando uma viagem repleta de libertinagem, eles atravessam o Texas com sua van. Ao estacionar o veículo, o grupo é abraçado pela tradição familiar pervertida pelo canibalismo, que tem em Leatherface o seu maior expoente no quesito físico, sendo o braço forte dos facínoras, cuja intenção de matar é uma correção dos sacrilégios que os jovens fariam. Ao menos era essa a ótica do ultramoralista clã texano.

    Até a falta de talento dramático do elenco ajuda a assinalar a estranheza daquele microuniverso tão distante da realidade e do mundo comum. Os cortes rápidos, variando entre um personagem e outro, denotam pressa, uma sensação que se sobrepõe à prudência. Mesmo com todos os avisos, os moços vão em direção ao matadouro. O anseio pelas obras da carne pesaria em seus destinos. O macabro lugar, repleto de móveis feitos à base de ossos humanos, logo lembraria aos imberbes moços e moças da efemeridade da vida, chegando a um destino infernal.

    Ao analisar a plateia do cinema, notam-se risos involuntários que revelam o quão sádica é esta nova geração. O grupo de vilões, cretinamente caricatos, aumenta a aura fantástica e bizarra da trama, tornando o desespero que toma os irmãos Hardesty, plausível. O tal “sentimento” não seria nada diante do horror que viria, com Leatherface cortando Franklin (Paul A Partain) em frente à câmera e aos olhos de Sally.

    Diante do medo de sucumbir, a “virgem” promete se entregar aos malfeitores, fazendo o que eles queriam. Sally corre desesperada, atravessando a propriedade, se jogando na caçamba de uma picape para fugir dos demônios que a perseguiam. O corte seco que Hooper dá na gargalhada desesperada da moça resume toda a perversidade contida no clássico, com o sangue escorrendo sobre a pele da scream queen, lamentando-se por uma existência certamente traumática para os terríveis dias que a acompanhariam até o seu falecimento.

  • Crítica | Êxodo: Deuses e Reis

    Crítica | Êxodo: Deuses e Reis

    Êxodo - Deuses E Reis 1

    A frieza dos números proferidos antes da ação começar é quase como um alerta, um aviso aos desavisados sobre a morosidade que estava prestes a ocorrer. Passados 1300 anos antes da “era comum”, somados a 400 anos de escravidão do povo hebreu, Ridley Scott foca a parte burocrática da Bíblia para introduzir o público no épico que retrata o segundo livro das escrituras cristãs sagradas, no qual se destaca um povo devoto, apesar das adversidades que ocorrem em seu cotidiano escravagista.

    O Moisés de Christian Bale seria um resistente. Mesmo nas cenas em que é mostrado agindo a favor do país que o acolheu, percebe-se um bocado de hesitação, fruto de uma desconfiança ainda não justificada, visto que o filme começa com o protagonista já adulto. Coincidentemente, a trajetória do Libertador começa semelhante a de outro herói ao qual Bale deu vida, pois Batman e Moisés começam suas jornadas na meia-idade – ainda que em Batman Begins haja variados flashbacks da traumática infância do destemido protagonista, e o segundo já comece mostrando Moisés ornado com vestes douradas, remetendo à condição real do hebreu criado no palácio.

    Um dos pontos facilmente notáveis é a estrutura narrativa “clonada” de Gladiador, talvez o último sucesso indiscutível do diretor. A posição do herói, antes ao lado do tirano império para depois voltar-se contra ele, é a mesma, assim como a estranha coincidência entre Maximus e Moisés, ambos muito admirados por seus mentores, em detrimento da figura que sucederia o trono da instituição monárquica. Reside o primeiro dos muitos problemas de Êxodo na completa ausência de interpretação do estrelado elenco. Quase todas as performances são realizadas no piloto automático, exceção, talvez, de John Turturro, que faz um iluminado Seth – faraó do começo do filme. Sigourney Weaver, Ben Kingsley, Bale e até Joel Edgerton atuam de forma mecânica, com muitas dificuldades de demonstrar qualquer sentimento em tela, o que prejudica demais a rivalidade que deveria haver entre o futuro faraó Ramses (Edgerton) e seu primo/irmão Moisés.

    Apesar do caráter épico da obra e das cenas em CGI serem deslumbrantes, o mesmo não se pode dizer da postura do protagonista. O Libertador de Israel deveria mostrar-se um sujeito em franca evolução, um incrédulo que passa a acreditar no Deus de seus pais e que, com o tempo, retorna a confiança que tinha desde os tempos em que reinava sobre todos. Quanto à primeira parte, não há crítica alguma. Bale consegue interpretar bem o herói falido, mas não consegue ser nada parecido com o colossal personagem bíblico. Não parece a figura imponente que deveria subjugar o inimigo comum do Povo de Deus, representado por Babilônia e Roma em tempos posteriores e neste, mostrado como o Egito. A frase dita pelo príncipe egípcio de que “a verdade não é uma boa história” se encaixa perfeitamente no arquétipo do personagem, ainda que essa “verdade” seja bastante discutível.

    A primeira recusa ao chamado transforma Moisés em um homicida, em uma versão diferente da bíblica, mas fiel em essência e ideia. Esse é o catalisador da mudança que o leva a ser pastor e pai de família. No entanto, a transição é problemática, pois seu retorno à terra dos escravos como um eremita faz Moisés parecer insano, um louco que cedeu à pressão dos muitos anos no deserto, movido por vozes de Um Invisível. O estigma de louco piora ao revelar o comportamento de seu futuro discípulo, Josué, vivido por um Aaron Paul ainda mais entorpecido do que em Breaking Bad.

    Moisés logo abandona o arquétipo de resignado profeta para se tornar um guerrilheiro visionário, liderando os seus como o general que inspira a resistência aos tiranos. Os métodos que começa a usar são pouco ortodoxos, extremamente belicistas, errados aos olhos do Criador. A ideia de mostrar os hebreus insatisfeitos é bela – e válida –, mas soa forçada e inverossímil.

    Há uma tentativa de compensação das falhas de conteúdo com o realismo auto infligido às pragas egípcias. O visual é belo, mas não consegue esconder as terríveis falhas de motivação dos personagens centrais, especialmente o estupefato comportamento do líder israelita, que não tem qualquer segurança em seus mandos e desmandos.

    Nota-se uma leve elevação da qualidade dos filmes de Ridley Scott, mas que é somente notada pela extrema decepção que foram O Conselheiro do Crime, Robin Hood e Prometheus. Moisés é um libertário sem nuances, um líder irresoluto durante a fita inteira, incapaz de evoluir, distante demais do arquétipo de Libertador, como é conhecido na Bíblia Sagrada, não inspirando qualquer confiança ou avidez por mudança. Êxodo: Deuses e Reis tenta ter pompa e procura ser magnânimo, mas sofre os defeitos de concepção, injustificáveis sequer pelo fato de ser um blockbuster.

  • Crítica | Ida

    Crítica | Ida

    cartaz

    Neve. Jardim. Pegadas na neve do jardim, ou no jardim de neve, nunca saberemos… Tudo mais branco que preto. Neve, mais neve, muito mais, e nela um brilho causado pelo que lá se cria e levanta, mesmo com o mundo engolido pela desolação térmica. O cosmo de Ida é assim, preto no branco e vice-versa, óbvio e silencioso, muito diferente daquilo que os snow flakes em Millennium, de David Fincher, escondem, num filme muito mais antigo, porém filmado em 2013. É orgulhosamente defasado, sem-vergonha quanto a isso por ser totalmente contemporâneo, debaixo dos panos, do hábito católico – por sua técnica tão antiga quanto qualquer monocromia de Ingmar Bergman, potencializada pela tecnologia de luz, sombra e de temas ainda relevantes hoje em dia. Um filme maquiado de velho e que engana quem não vê, sequer sente o que está além.

    Ida é um dos melhores filmes de 2014, e não é em vão. Sua excelência é um espelho sob o sol do meio-dia! O filme grita sem dizer nada, é um leque de assuntos sendo prata e pérola, e é universal tendo conventos como cenários contextuais, quase nunca ao ar livre, quase sempre tímido. Seu caráter de identificação subjetiva e abstrata explica a resistência por diálogos expositivos – o filme sente que não precisa dizer muito, já que os olhos fazem o trabalho dos ouvidos fácil, fácil. A cada close da noviça Anna (Agata Trzebuchowska, nasceu para o papel), águia em pele de pardal, a obra é despida em nosso subconsciente como um tiro na cara. A gente sabe o que vê, mas explicar é outra história. Quando Anna vai assistir, no escuro, na surdina, a um concerto de rock’n roll em uma de suas viagens pela Polônia com sua tia Wanda (Agata Kulesza), seus olhos desenham a aquarela de um primeiro amor totalmente incompreensível, temeroso ao extremo tanto quanto inocente acerca do instinto que brota debaixo do manto negro, moral e muito mais que só o espectador poderá – ou não – decifrar.

    Obra, portanto, de causas e consequências, muito bem contrabalanceadas sem quase um pio. A religião é, contudo, nem uma nem outra, e sim meio, caminho regulador começado no difícil passado familiar da noviça, e de término incerto até o final, um fim no mínimo surpreendente devido, o qual somos (des)preparados para aceitar, no desfecho.  A todos quer afetar com semi-conclusões e dínamos atirados a interpretação, à lucidez obrigatória do público, o diretor Pawel Pawlikowski, filósofo e escritor europeu, faz qualquer um esquecer-se da popular Polônia dos filmes antigos de Andrzej Wajda ao usar e abusar dos aspectos sóbrios, emocionais e misteriosos de outros mestres, como Carl Theodor Dreyer (A Palavra), Kenji Mizoguchi (Rua da Vergonha), Yasujirô Ozu (Era Uma Vez em Tóquio), Claude Chabrol (Os Primos), Jacques Rivette (lembrado nas cenas externas), ou o próprio Ingmar Bergman (Persona é influência óbvia), sendo Anna a provável versão feminina do santo Francisco, do clássico de 1950 de Roberto Rossellini, mas com uma certa angústia interna que remete ao Zé do Burro, de O Pagador de Promessas. O Cinema dorme em paz quando trata de emoções humanas.

    Anna é a Madalena que foi para o mar, na menção a Chico Buarque. Foi ao mundo, outro mundo, o de céu azul, azul original que Michelangelo reproduziu na capela. Um road-movie banhado na decisão pessoal de almas livres, ainda que, no filme, pesadas e trancafiadas por preceitos às vezes corrosivos nos direitos de ir, vir e ser. Tal resolução encontra seus desafios na história e seu tempero na roda de valores do filme, valores céticos apenas à falta de liberdade humana e de identificação de um ser diante do livre-arbítrio e que consiste em ser, por fim, um ser coletivo e individualmente emocional e plural. A noviça vai aprendendo isso na estrada, ao empinar pipa com sua vida no papel, lá em cima. Sempre temerosa, em contraste com a autoconfiança e mão leve de Pawlikowski, sempre ciente das escolhas e rumos do seu filme. Bela obra, ademais além de sua aparente algidez albina.

  • Crítica | O Protetor

    Crítica | O Protetor

    o-protetor

    Em 2001, o diretor Antoine FuquaDenzel Washington fizeram uma parceria que incendiou as telas de cinema. Juntamente com Ethan Hawke e o roteirista David Ayer, a dupla lançou o incensado Dia de Treinamento, excelente filme policial que rendeu o Oscar de Melhor Ator para Denzel por seu controverso personagem Alonzo Harris. Agora, em 2014, Fuqua e Washington retomam a parceira, mas com um resultado aquém do esperado

    Neste O Protetor, Denzel encarna Robert McCall, um cidadão aparentemente comum, com uma estranha mania de cronometrar seus atos mais mundanos. Conhecido por sua camaradagem com seus colegas de trabalho, McCall sofre de insônia e sempre passa suas noites em uma lanchonete próxima à sua casa. Lá, acaba criando amizade com uma prostituta adolescente vivida por Chloë Grace Moretz (em aparição fugaz). Quando a garota é surrada por seus cafetões, Robert resolve tomar a justiça com suas próprias mãos. Entretanto, seus atos acabam levando-o a uma guerra com o crime organizado, guerra essa que vai exigir que McCall desperte algumas habilidades especiais há muito adormecidas.

    O roteiro escrito por Richard Wenk não se aprofunda muito nos personagens. McCall, o personagem de Denzel, é retratado como um homem pacato e metódico. Logo adiante, fica claro que ele possui um transtorno obsessivo-compulsivo. Isso é interessante, mas fica uma sensação de vazio, pois não se apresenta um motivo claro para aquele comportamento e nem como ou quando aquilo se iniciou na vida do personagem. A maneira como esse distúrbio é apresentado nas cenas de ação toma uma clara inspiração em filmes de super-herói, pois o transtorno é filmado quase como um superpoder. Uma saída interessante do diretor Fuqua, mas pouco explorada. Seu passado também é pouco trabalhado, sendo apenas mencionado superficialmente quase ao final do filme. Os personagens secundários são pouco desenvolvidos, provocando uma centralização excessiva do filme na figura do seu protagonista e na prostituta vivida por Chloë Moretz, que, ainda que peça central para o ponto de ignição da trama, pouco aparece. A personagem faz um pouco de falta, mas pelo menos foge-se da figura da donzela em perigo.

    O ritmo do filme é um pouco arrastado em certos momentos, mas pelo menos o diretor Antoine Fuqua está mais contido e não tenta emular o chinês John Woo, seu colaborador em Assassinos Substitutos. Fuqua filma algumas sequências sensacionais, principalmente o primeiro embate de Denzel com os exploradores sexuais. Também se esmera ao filmar algumas sequências mais violentas, tornando-as quase poéticas. Tomem como exemplo a cena do saca-rolha e a da pistola de pregos. Porém, o ritmo um pouco arrastado e alguns exageros da trama acabam por diluir o impacto da obra. A fotografia é estilosa e se aproveita muito bem de algumas paisagens urbanas da cidade de Boston. Entretanto, uma sequência mais carregada de efeitos digitais torna-se superficial e desnecessária em meio ao desenvolvimento do filme.

    Denzel Washington, aqui, atua quase como se estivesse no piloto automático, uma vez que seu personagem não exige muito de seus talentos dramáticos. Mas, mesmo que sua interpretação esteja em modo autômato, ainda está bem acima da média dos atores da atualidade, e seu Robert McCall é um personagem carismático. Merece destaque Marton Csokas, que vive o bizarro vilão incumbido de matar McCall. O restante do elenco apenas desfila pela tela, e nem as participações de Melissa Leo e Bill Pullman acrescentam muita coisa.

    Ainda que possua muita falhas, O Protetor é uma diversão escapista que merece uma espiada. Principalmente porque fica claro que esse filme poderá representar o início de uma nova franquia cinematográfica. Vamos torcer para que o próximo seja mais caprichado que esse filme.

  • Crítica | Homens, Mulheres e Filhos

    Crítica | Homens, Mulheres e Filhos

    Homens-Mulheres-Filhos

    O acesso à internet utilizando computadores pessoais, tablets e celulares demonstra o alcance da informação nos dias de hoje. Boa parte das interações humanas é atualmente mediada pela rede – provavelmente por uma conexão sem fio – e por algum sistema eletrônico. Uma rede mundial conhecida pela população, e utilizada em demasia para busca de necessárias informações sobre como viver melhor, e pelo vício inerente a qualquer atividade humana.

    Homens, Mulheres e Filhos, sexto longa-metragem de Ivan Reitman, é adaptado do romance de Chad Kultgen, conhecido pelos romances retratando as relações – principalmente, sexuais – dos Estados Unidos. A obra traça um panorama de personagens inseridos neste moderno mundo contemporâneo onde a comunicação virtual é uma realidade paralela ao nosso cotidiano.

    A primeira cena do longa-metragem apresenta o espaço e a sonda Voyager, parte de um projeto da NASA criado em 1977 para estudar outros planetas. Em 2013, a sonda foi o primeiro objeto a sair do sistema solar. O famoso cientista Carl Sagan foi responsável pela seleção de diversas informações terrestres com o intuito de comunicar com outros seres. Estas informações são apresentadas em uma narrativa em off como base comparativa entre a vastidão do Universo e a importância da Terra, uma casca insignificante perante o infinito.

    Uma teia de personagens é apresentada diante desta era virtual. São homens, mulheres e adolescentes que mal se comunicam e utilizam o meio virtual como projeção de suas frustrações, sejam elas sexuais, como ocorre com o primeiro personagem a surgir em cena, Don Truby, um pai que acessa sites de pornografia online no computador do filho; familiares, quando Patricia Beltmeyer monitora ativamente os passos da filha, Brandy; ou utilizando-se de um meio para conquistar lucro e fama, como faz a mãe de Hannah Clint ao criar um site para a publicação de ensaios semi nus de sua filha; entre outros personagens que, em maior ou menor escala, utilizam a internet para dar vazão a seus vícios ou desvios emocionais e sexuais.

    O roteiro transforma tais elementos de maneira redutiva, fazendo cada personagem uma representação de um vício, com situações que beiram a fatalidade iminente. Relações que são alteradas pelo curso de outras vidas, demonstrando que nem pais, nem filhos têm a orientação adequada para adaptar-se a estes novos tempos. Trata-se de uma maneira extremamente dramática que enfatiza o lado negativo da relação virtual. Seria ela a base ou parte da justificativa para os duros tempos atuais.

    Sendo uma ferramenta utilizada diariamente pela grande parcela da população mundial, torna-se evidente, através de observação direta, que o mundo virtual apresenta elementos positivos e negativos. O roteiro parece calculado para ser excessivamente dramático e, dada a ênfase no lado negativo das relações e destes mundos paralelos, um tanto panfletário.

    Para fundamentar as histórias apresentadas, o bonito texto de Carl Sagan, Pálido Ponto Azul, é citado em cena e está presente no começo e no fim da trama. Um recurso para demonstrar de maneira explícita um enredo que o público já compreendeu, a saber: devemos ter consciência de como estamos lidando com as relações humanas tanto no interior familiar como no cotidiano externo.

    Em obras anteriores de Reitman, mesmo apresentando histórias contemporâneas ásperas, como a do vendedor de cigarros sem moral; da escritora de young adult que ainda vive como adolescente; do amor como uma fuga da realidade; e da gravidez na adolescência, o diretor e seus parceiros roteiristas sempre trabalharam enredos que variam tensões positivas e negativas, compondo um estilo agridoce e bem equilibrado.

    É inegável que as tramas apresentadas possuem uma base real, mas a concentração de tantos personagens exibindo seus vícios, parecendo desconhecer informações, análises, estudos e diversos elementos sobre a mudança de estruturas que a rede virtual trouxe, transforma o roteiro em um exagero calculado para provocar uma espécie de choque e de ruptura.

  • Crítica | O Abutre

    Crítica | O Abutre

    Em clima noir, longa de estreia de Dan Gilroy faz análise incisiva sobre empreendedorismo amoral e sensacionalismo barato.

    O que ocorre quando um pensamento corporativo sem limites e elementos de psicopatia convivem no mesmo corpo? Difícil imaginar… Até porque sabemos que respostas para perguntas hipotéticas costumam ser pouco precisas. No entanto, não seria de todo improvável que a solução para esse questionamento fosse sintetizada em Lou Bloom, protagonista de O Abutre, longa do roteirista Dan Gilroy, que estreia na direção.

    Análise direta e incisiva de um “espírito empreendedor” distorcido, o filme também expõe as engrenagens que movem, por meio do sensacionalismo mais rasteiro, determinado tipo de programa televisivo – bastante popular tanto nos Estados Unidos quanto por aqui. Acredite: várias situações exploradas pelo roteiro acontecem de fato – sobretudo quando a desgraça e o sangue humanos se tornam tijolos fundamentais na construção de índices de audiência. Não se trata de jornalismo verdadeiro, mas de exploração barata.

    Jake Gyllenhaal compõe um personagem tão assustador quanto verossímil. Ele personifica um empreendedorismo sem qualquer tipo de freio moral unido a uma psicopatia com delírios de grandeza. Metas devem ser estabelecidas e conquistadas – os meios para alcançá-las, seja lá quais forem, são todos aceitáveis. Sua flexibilidade de consciência é mostrada desde o início. Porém, não se trata exatamente de um vilão – classificá-lo dessa forma seria reducionista. E personagens complexos como este não devem ser minimizados ou rotulados.

    Na trama, Lou Bloom, um homem pobre, de vida solitária e dono de mentalidade ambiciosa e objetividade afiada, descobre que pode lucrar bastante ao registrar situações violentas nas madrugadas da cidade – o material é vendido para uma emissora de TV que o exibe no telejornal da manhã. Uma das diretoras do canal – Rene Russo, naquele que é, disparado, o melhor papel de sua carreira – o entende e o incentiva.

    A partir do ponto em que a cooperação e entendimento entre os dois personagens são criados, a linha que deveria balizar a ética profissional é apagada sem maiores preocupações.

    Gilroy demonstra segurança impressionante para quem senta na cadeira de diretor pela primeira vez. A direção de atores, a condução das cenas automobilísticas em alta velocidade e – principalmente – a captação das imagens noturnas de Los Angeles, num inevitável clima noir que lembra bastante alguns enquadramentos vistos em Colateral e Drive, são belas e precisas.

    Sobre esse último ponto, grande parte do mérito vai, também, para o diretor de fotografia Robert Elswit, que, em 2008, conquistou um Oscar pela concepção visual de Sangue Negro.

    O Abutre é um filme de entendimento rápido – sua trama segue uma estrutura linear e a maneira como é contada é lógica -, e o roteiro é enxuto e eficiente. Porém, convém deixar claro que esta é uma obra de digestão lenta – as reflexões que ela propõe deverão ficar por dias na mente de quem assistir a ela.

    Há abutres à solta em todos os lugares – afinal, a oferta de carniça é vasta. Este filme nos ajuda a enxergar esse cenário com lentes mais precisas.

    Texto de autoria de Carlos Brito.

  • Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Fazendo da piada a sua maior pauta, tentando alcançar o público popular: este é o resumo da linha editorial do jornal Meia Hora, o tabloide do grupo comunicacional O Dia. Encabeçado por Angelo Defanti, o documentário resgata as origens da publicação desde a proposta de resgatar o cunho de populacho que a antiga publicação tinha.

    Por vezes, a editora do Meia Hora foi acusada de não ter sensibilidade. O caso da briga de Dado Dolabella e Luana Piovanni foi por este viés, com uma brincadeira de trocadilho típica do jornal. Segundo Humberto Tziolas – atual editor-chefe – e Henrique Freitas, antigo editor da publicação, são “ossos do ofício, uma vez que o chamariz era valioso. O diferencial que capturava a atenção do leitor logo de cara teria de ser inédito, e não meia-boca.

    Para o teórico Muniz Sodre, o jornal popular pode fazer troça com a notícia, pois usar uma parte engraçada para evidenciar a verdade faz parte do comunicar, ainda que isso fuja um bocado do ideal, como é o caso dos noticiários populares.

    O folhetim ficou famoso por suas notórias homenagens póstumas e obituários. O gosto, ou desgosto, pelo artifício diverge de pessoa a pessoa, e o fato disto ser polêmico faz parte do modus operandi do Meia Hora. A trajetória do O Dia variou muito: de jornal conhecido pela máxima “se espremer, sai sangue” à rival do O Globo, a gazeta praticamente se tornou o único jornalzão após a queda do Jornal do Brasil. Com a adição de O Extra, que desbancou grande parte dos órfãos leitores do O Dia, o grupo encabeçado por Gigi Carvalho resolve recontratar Eucimar de Oliveira, antigo editor-chefe do jornal e criador dos formatos de O Extra.

    Pensando em algo de baixíssimo preço e voltado para o boy, para o cozinheiro, para o garçom e para toda a classe C, nascia o Meia Hora. Apesar da máxima parecer preconceituosa, o público abraçou a publicação, com as vendas caracterizando o maior diferencial para desbancar o argumento de que o leitor é subestimado.

    A base da discussão para as capas prima por fofoca, ação policial, os quatro times grandes do Rio, prestação de serviços, como anúncios de oportunidades de emprego e, claro, fofocas de famosos; a desgraça dos famosos faz o luxo do leitor.

    Outro estratagema é o tratamento dado à morte de bandidos, em que se confunde jocoso com comemoração das mortes dos culpados pela lei. A acusação de fascismo, inclusive, é, às vezes, justificada pelos editores logo depois da edição ser publicada. O tripé “Sangue, Sexo e Futebol” garante ibope; a ética é de difícil fusão. A lógica simplista é complicada, por vezes fazendo com que o jornal assumidamente abra mão da piada. Para os editores, as capas mais importantes são as provocativas, que cobram uma postura veemente das autoridades, especialmente das polícias. Esta é a parte séria.

    A autoria da ideia por trás do Meia Hora não é assumida por parte dos comunicadores. Enquanto a ex-dona do grupo, Gigi de Carvalho diz que foi ela a responsável, Eucimar prefere deixar para os outros depoentes falarem a seu respeito. Os méritos a respeito da paternidade da matéria são valorizados pelos números das vendas do jornal.

    Segundo a teoria da comunicação, não há uma abordagem menos ou mais ética, ao menos do ponto de vista da linguagem. O que pode ocorrer é o juízo de valor vazio ou desonestamente parcial, acusação na qual a publicação não é comumente enquadrada. O modo como o tabloide se popularizou pode ser encarado de duas formas: a primeira é mais crítica, abordando a tentativa de expressar o pensamento das classes econômicas menos favorecidas de maneira fútil e sensacionalista, o que gera um pensamento preconceituoso, de fobia ao pobre. Outra alternativa é enxergar a questão como mais uma manifestação dos marginalizados, que finalmente têm um material para ler que realmente os represente, não os tratando como estranhos, tampouco ditando a eles o que pensar.  Defanti faz toda a investigação que precisa via câmera. A abordagem ainda permite ao espectador tomar partido de acordo com o próprio repertório, salientando que o coitadismo com que a maioria do público do folhetim vê é indevido, já que não é ele digno de pena ou comiseração.