Categoria: Cinema

  • Crítica | Scorpio Rising

    Crítica | Scorpio Rising

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    Movido pela trilha sonora frenética, a câmera de Kenneth Anger passeia pela oficina mecânica, repleta de peças de moto espalhadas por seu espaço físico. Aquele ambiente é quase como um universo à parte, onde somente os anjos “malditos” pela sociedade podem habitar. Resgatando a iconografia visual de O Selvagem de Marlon Brando, porém muito mais contestador que o filme de 1953, Scorpio Rising consegue através de uma narrativa elaborada, que não deixa se ser simples, passar uma mensagem ao mesmo tempo conciliatória, saudosista e conteste.

    Primeiro filme que misturava elementos de motor style com uma trilha regada a rock ‘n’ roll, o curta de 1964 é normalmente esquecido pelos aficionados por motovelocidade, talvez por conter em si uma linguagem sem qualquer fala, com o som provindo da jukebox imaginária como principal elemento argumentativo, além do transitório visual que mostra o personagem principal – se é que pode se chamar de protagonista – vivido por Bruce Byron (Scorpio) customizando sua máquina, e algumas demonstrações de como a sociedade os via, através de pequenos bonecos, que emulavam as perseguições entre os policiais e aqueles marginais.

    Claro que se tratando de Kenneth Anger, a mensagem seria de discussão de símbolos. Já que os tais motociclistas selvagens seriam páreas da sociedade e avatares da rebeldia, o diretor resolveu tomar para si algo que era até óbvio, que é a erotização da figura do selvagem, que através do seu couro, seus óculos escuros e suas máquinas potentes, causa terror no conservadorismo típico do americano médio, mas que neste é ainda mais agressivo, revelando que a relação entre os membros do clube era muito mais que algo apenas fraterno, e sim camuflava uma forte atração mútua. O que impressiona é que a plausibilidade do argumento é enorme, dada a clara erotização enrustida neste arquétipo.

    Pelas paredes dos cenários é possível notar cartazes e pôsteres, de Marlon Brando e de James Dean, que além de reforçar a pulsão e tesão dos amantes de velocidade por estes, remete também a uma clara homenagem, do realizador de um cinema que também está à margem do mainstream, underground em sua essência, mas que também sabe reverenciar os alunos do método de Constantin Stanislavski, inclusive ousando ao mostrar um ato comum na rotina, tanto dos atores quanto dos nômades do asfalto, que era o uso incontrolado de drogas inalantes, sem a preocupação de tornar isto palatável para público algum; inclusive transgredindo mais que Sem Destino e seus primos, escondendo o ato de “cheirar” apenas por uma luva de couro, em plenos anos sessenta, com a contracultura em ebulição, mas ignorada pelas parcelas mais moralistas da sociedade estadunidense.

    Quando um dos personagens focados é mostrado se preparando para montar em sua motocicleta, acontece um paralelo com cenas de um filme bíblico obscuro, onde se vê Jesus passeando com seus discípulos e curando um cego. As cenas mostram o grupo de arruaceiro se esgueirando pelos becos escuros, atacando uns aos outros, em movimentações suspeitas – sendo algumas até explícitas, com cenas que remetem até a estupro, mas que são preconizadas especialmente pelo choque de ideologias, uma vez que o foco dado são em figuras icônicas e signos que remetem a autoridade, como os dos moto-clubes e da bandeira com a suástica centralizada.

    Talvez para o público menos afeito aos midgnight movies e ao cinema underground, este Scorpio Rising possa ser visto como algo ofensivo – certamente não foi este que Anger tencionou alcançar, e sim seus pares, seus iguais, os afeitos a discussão de sentidos e que não se contentam com o que a indústria produz para eles, isto muito antes da instituição do conceito de blockbuster imposto por Steven Spielberg e George Lucas. O uso da juventude transviada para ser o catalisador da mudança contém uma forte mensagem política, que em seu final toma até as rédeas de um filme denúncia, que flagra uma sociedade que oprime o indivíduo, unicamente por este ser diferente dos ditos normais, e claro, sem a necessidade tola de ter de se justificar ou de suavizar seu recado através de moralismos presentes no cinemão estadunidense.

  • Crítica | Jango

    Crítica | Jango

    Reunindo pedaços de informes oficiais da época em que o biografado era um político ativo, Jango começa com a viagem do então vice-presidente a China, que ficaria famosa por ter sido tão “longa”, que não permitiria a João Goulart assumir seu posto como o mandante máximo do país. O medo vermelho, o mesmo que predominava no gigante asiático. O filme de Silvio Tendler não tem qualquer pudor em escolher lados, assim como os que subiriam ao poder e que seriam criticados pela fita.

    Jânio Quadros, até então presidente, circulava com toda a sua ebriedade ao lado das “forças ocultas” (fala do próprio roteiro), junto aos militares, levantando uma série de teorias a respeito das origens do golpe. Enquanto corre a trilha de Wagner Tiso e Milton Nascimento, é mostrado um registro fotográfico saudosista, que remetia ao período histórico menos conturbado antes da tomada de poder e claro, a intimidade de Jango.

    A narração de José Wilker busca dar ainda mais importância a biografia do político, um homem, segundo os altos, sempre comprometido com as causas sociais. A ascensão dele é flagrada, desde o começo da carreira, muito próximo ao segundo governo de Getúlio Vargas, como também seus serviços de parlamentar, as corridas eleitorais ganhas e perdidas e claro, a assessoria que prestava a Juscelino Kubitschek. Jango seria o primeiro político mandante sul-americano a ter autorização de pisar em solo soviético, o que claramente pesaria contra ele anos depois.

    A ascensão de Jânio Quadros é destacada, especialmente os seus modos ultra-moralistas, que incluíam a proibição da veiculação de biquínis na televisão. Era um delegado no poder, alinhado com os interesses da classe média, a mesma que foi denunciada por Arnaldo Jabor em Opinião Pública. No entanto, a posta de Jânio era tão curiosa que ele condecorou Ernesto Guevara, conhecidamente ligado à esquerda vermelha, o que demonstrava o desequilíbrio das suas aspirações e comportamento político. Enquanto Goulart estava na China, fazendo o mesmo que fazia em Moscou, Jânio Quadros renunciaria, deixando Ranieri Mazzilli no poder provisório.

    O medo de que o Brasil se tornasse uma nova Tchecoslováquia seria o principal motivo do motim organizado pelas forças armadas. Mesmo com as atitudes contrárias de famosos políticos, como Leonel Brizola, era tarde, já que os governadores de grandes estados como os de Rio e São Paulo deflagaram a repressão imediatamente.

    A preocupação da direita brasileira com relação a Jango ocorria, claro, pelos contatos do presidenciável, mas foi muito agravada pela opinião declarada de John Kennedy. Além de tencionar conter a dívida externa brasileira, procurava também interferir em alguns dos seus planos econômicos, pois aos seus olhos, estes eram muito semelhantes ao ideal socialista, obviamente, quando analisados pela perspectiva do mandante da nação que era a principal inimiga da URSS.

    A narrativa varia entre os momentos contemporâneos de 1984 e a pregressa vida de Jango quando ainda não era vice, até a tomada de poder por parte dos militares. O período em que Goulart foi presidente, mas com muito menos poder do que deveria, uma vez que se implantou uma política parlamentarista que curiosamente acabou com o término de seu mandato, foi curto, para logo depois ser “convidado” ao exílio, no Uruguai.

    Já com o Regime instaurado no Brasil, e longe de sua pátria, João Goulart via as outras pátrias do Cone Sul serem dominadas por ditaduras de direita, tendo na deposição do chileno Salvador Allende o seu tiro de misericórdia. Segundo familiares, o ex-político sonhava em retornar a sua pátria, mas impossibilitado por sua débil saúde, morreu no exílio, em 1976, sabendo que poderia ser um dos alvos da Operação Condor, que estreitava as relações entre os governos latinos tirânicos e que “coincidentemente” teve muitos dos seus opositores encerrados em mortes misteriosas.

    O jornalista Carlos Castello Branco declarou em nota que Jangomorreu como um peão perdido à procura do seu galpão“, em virtude de não poder voltar ao seu lugar de origem. Somente seu cadáver voltaria a sua cidade natal, a gaúcha São Borja. O filme de Silvio Tendler acaba contando uma parte importante da história brasileira, ainda que sua ótica seja parcial, claro, sendo jamais injusta, uma vez que essa voz nunca havia sido garantida ao político, tampouco aos seus adeptos.

  • Crítica | Miss Violence

    Crítica | Miss Violence

    O começo do fim. O fim de uma família. Uma árvore cortada não por meio de força externa, mas corroída por um invasor cupim que, em um segundo de posse de suas raízes, começa aos poucos a degradação da prejudicada estrutura interna. A primeira denúncia são os frutos que caem em direção ao solo, agora desnutridos, e se espatifam no chão, a polpa estourando – imaginem a cena. A queda junto a decadência marca o declínio de qualquer germinação, sendo assim uma questão de tempo (curto) para a árvore da vida, a partir dai, ostentar apenas o epitáfio já anunciado.

    Miss Violence deseja mexer com seu psicológico. Aos despreparados, vai e consegue bem, porque choca e seu intuito principal é o choque com um verniz de estudo financeiro e social da atual crise que a Grécia ainda enfrenta, com sua população refém de um sistema incrédulo às demandas públicas. O que acontece dentro de uma árvore, um ser vivo à beira do abismo? não é a pergunta certa. Aonde ela assegura suas raízes para resistir a queda total é a pergunta a qual o filme de Alexandro Avranas investiga inteligentemente com poucas palavras, movimento em quadro ou extra-diegeses, dissecando o valor positivo ou negativo das ramificações familiares em tempos de cegueira e emergência existencial. Não há otimismo ou pessimismo.  Não há filosofia ou canções de ninar, gosto de fábula; nada. É desse nada que surge a força do não verbal transformando a atmosfera de cada close ou dose de silêncio em objeto quase  palpável, cortante, visível.

    É o exercício mudo de se assistir três tigres tristes se debatendo numa jaula. Aguenta quem pode. Uma espiral de reviravoltas com base nutrida pela claustrofobia vivida e suportada longe de olhos públicos, sempre entre quatro paredes, no qual tudo o que é visível tem uma importância tão grande quanto o poder da palavra em filme de Woody Allen. O poder neste caso repousa em detalhes: as cortinas sempre fechadas, o silêncio que exclama feito buzina de caminhão e a realidade na mesa do jantar que nos toca por alcançar os personagens, vítimas de si mesmos, com o poder de um jato em rasante no céu.

    Se Miss Violence é gratuito, frio e denso demais, prevendo a opinião da maioria dos espectadores que assisti-lo, o contato com a depressão de uma realidade burlada por uma câmera (que tenta ser invisível mas não consegue atingir tal efeito) também dita de forma extrema e sem meias verdades a impressão do público. Contudo,  nada na projeção omite a certeza quanto a sensibilidade do autor, imerso até o primeiro chacra num miserável cotidiano, árvore que jamais será a mesma, e que pode existir no vizinho ao nosso lado, universalmente. Destaque para as atuações: Sete tigres tristes à flor da pele. Um comediante morreu em Nova York. Uns dizem que foi suicídio. Vai saber.

  • Crítica | Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho

    Crítica | Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho

    Vencedor do Grande Prêmio do Júri e Urso de Prata em Berlim 2013, a composição quase documental de Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro, de Danis Tanović (Terra de Ninguém), é a escolha correta para contar uma história que deseja ser um retrato fiel da realidade delicada da Bósnia e Herzegovina.

    Dentro de um cenário desolado, vivendo em um bairro periférico, Nazif (Nazif Mujić) é o patriarca de uma família composta por sua esposa e duas filhas pequenas. Homem trabalhador, ganha seu dinheiro por meio da venda de ferro-velho. Pequenas quantias suficientes para subsistir entre as contas essenciais e o alimento. Diante desde equilíbrio precário, a vida da família se transforma em martírio quando a esposa, Senana (Senada Alimanović), adoece.

    Diante desta dificuldade, Nazif leva a esposa até o hospital, que, embora faça um procedimento paliativo, não pode realizar a cirurgia necessária para evitar a morte  da mulher devido à ausência de registro e plano de saúde. O catador segue uma via crucis pela cidade à procura de quem possa ajudá-lo na cirurgia da esposa.

    E eis a invisibilidade de um cidadão comum e com baixa renda para encontrar o apoio do governo que deveria ampará-lo. Dentro de suas engrenagens, a morte da esposa seria uma baixa qualquer, um número estatístico do país. A família não só vive à margem da sociedade como também foi marginalizada por esta. Um dos diversos problemas que a Bósnia enfrenta há muito tempo. Desde a década de 90, o país vive um sério problema de pobreza, e o mês de dezembro e notícias recentes informam que a crise atual é uma das mais severas do país.

    Nazif e a família são um retrato vivo da desolação local e de como um governo não ampara seus cidadãos. Um exemplo que se ajusta em qualquer situação mundial que não fornece os benefícios básicos para o cidadão viver. À procura de ajuda para a esposa, o catador encontra médicos especialistas particulares e organizações sem fins lucrativos, mas sempre esbarra ou na falta de dinheiro ou em empecilhos burocráticos que impedem a ajuda imediata.

    A resiliência da personagem dá um rosto a uma multidão que vive em carência crônica e precisa sobreviver com unhas e dentes para manter-se vivo diante desta realidade agressiva. Ampliando a intenção de uma realidade documentada, os personagens trazem o mesmo nome dos atores, e o desfecho encontrado para a problemática não poderia ser mais próximo do improviso cotidiano: diante de um governo omisso que não fornece o básico à população, o que restam é encontrar maneiras de burlar as engrenagens e entortar a burocracia para que se tenha o mínimo para sobreviver.

    O filme evoca a triste realidade que nos cerca, feita da maneira mais fiel possível para parecer um retrato fotocopiado de uma história invisível. Sem arroubos cinematográficos, nem exageros cênicos. Feito de carne, osso, fé, desolação e miséria.

     

  • Crítica | Whiplash: Em Busca da Perfeição

    Crítica | Whiplash: Em Busca da Perfeição

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    Antes de abrir os créditos iniciais, ainda com a tela negra, ouve-se um barulho frenético de uma baqueta tamborilando agressivamente sobre os tambores, num solo longo, o único ponto existente naquele universo que seria apresentado no filme de Damien Chazelle. A tônica do que seria Whiplash apresenta-se antes mesmo do “início do filme”, como uma longa preparação de um sujeito que busca o sonho de viver da arte.

    Andrew Neyman (Miles Teller) mostra-se tão entorpecido pela ideia de tocar o instrumento que se impressiona com qualquer audição de seu trabalho, na escola de música de Shaffer. Na execução de seus ensaios, ele vê vultos, silhuetas formadas pelo seu inconsciente e desejos, que, aos poucos, ganham contornos reais. Sua perspectiva é completamente distante e distinta da de seus entes queridos, mesmo diante de seu pai – vivido discreta mas magistralmente por Paul Reiser -, o homem que sempre lhe apoiou mesmo não o entendendo completamente, seja pelo choque de gerações, seja pelos níveis díspares de ambição.

    Shaffer é uma escola onde deveriam brotar anseios pela música, mesmo sendo ali o lugar em que são sepultados muitos desejos de notoriedade. Quando o sonho começa a se materializar, a trilha sobe num suspense atroz. A expectativa em parecer perfeito o faz se atrasar e “quase” – mentira – perder o encontro com o mentor. O método paramilitar do regente funciona, ao menos para ele. A mão de ferro ajuda-o a separar os bons dos maus músicos, ainda que a crueldade impere, às vezes. O agressivo método chega a ser cômico, dado o seu tom caricatural.

    A entropia e um pouco do caráter estabanado do protagonista permitem a Neyman ser titular na banda de Terence Fletcher (J. K. Simmons), que é um referencial enquanto professor, músico e garimpador de talentos. O estado de espírito de Andrew é mostrado pela câmera na mão, tão passional quanto a mente juvenil do formando. A busca pelo ideal é sangrenta e exige tudo do personagem, o que o faz perder o tato com aqueles que o consideram caro.

    Ao mesmo tempo que a raiva deveria predominar em seu ser, Andrew vê na piedade uma boa forma de encarar seu maestro exigente. Nem mesmo a emoção o faz aplacar o castigo físico a que se impõe. Em alguns pontos, ele encara a rigidez do ensino louco de Fletcher como combustível para sua luta, um obstáculo a mais para sobrepujar na jornada rumo ao sucesso.

    O envolvimento de Andrew com a música faz submeter o drama a seu público. Mas nem isto parece ser o suficiente em determinado momento, e ele cede à pressão dos que antes achavam-no fraco, denunciando seu antigo mentor após ser agredido. A leveza com que Fletcher apresenta os acordes no piano é diferenciada de seu método docente – no reencontro dos dois, o regente já teve sua derrocada –, como se os dois personagens fossem encerrados na mesma mente e psiquê, fazendo-o um ser ainda mais rico. A desgraça faz o professor se mostrar mais solícito; seu intuito é empurrar os alunos a conseguir superar suas expectativas.

    No retorno aos palcos, convidado por Fletcher, Neyman vê uma chance de retomar sua jornada rumo à fama, mas, ao executar os acordes, tem uma terrível surpresa. A rivalidade está presente e, junto ao azedume vingativo do mestre, o aluno é esmagado pela banda e plateia. Diante da queda iminente, ele contra-ataca, fazendo do palco seu objeto de revanche, uma emocional réplica digna dos grandes, semelhante ao que a sua ambição sempre buscou, pervertendo-se todos os preceitos do maestro ante sua presença e a dos seus, ganhando o jogo – ao menos em alguns momentos – na casa do adversário.

    A guerra de ego prossegue até mesmo ao final da música, com a última tentativa de apogeu de Andrew. O papel de condutor é incumbido ao baterista, não mais ao maestro. Suas vezes de Charlie Parker o fazem sentir o torpor de dar o seu máximo, passando por cima de todas as convenções e formalidades. Ser grande envolver ser mais do que ele é, exercer mais o que lhe é devido, ter mais braços do que um simples par, e também contrariar a si próprio, para que, finalmente, o talento bruto se aprimore e dê vazão a sua essência. Neste espírito, o filme de Chazelle tem na excelência a sua madura adjetivação.

  • Crítica | Ventos de Agosto

    Crítica | Ventos de Agosto

    A paisagem de uma vila costeira no interior de Pernambuco é o lugar perfeito para narrar o conto bizarro e fantástico de Ventos de Agosto. Uma história que louva a vida simples, típica do brasileiro. Gabriel Mascaro usa a multiplicidade de cores, tanto de pele quanto de seus cenários, para remeter a condição de mistura inerente ao povo brasileiro, fazendo da miscigenação o diálogo entre realidade e o bizarro.

    A história é narrada a partir das vivências de simples aldeões (na sua maioria formada por não atores), pessoas comuns que não tem consciência de que sua imagem será exibida dentro de uma produção vista por parte da população. Como personagens “fictícios” temos Jeison (Geová Manoel Dos Santos) e Shirley (Dandara Morais) um casal de jovens catadores de coco sem muitas preocupações na vida, além do árduo trabalho e da sexualidade aflorada cedo. Aos poucos, a vivência é atravessada por questões existenciais ligada a noção do finito.

    A mudança na rotina dos personagem ocorre quando um documentarista pesquisador de ventos – vivido pelo diretor Gabriel Mascaro – adentra a intimidade da aldeia. Ao ser tragado pelo mar, seu cadáver retorna nas areias da praia e Jeison decide limpar e exumar o defunto. a personagem percebe o vazio de sua existência mas sem qualquer possibilidade de intelectualidade ou arrogância elevada tratando-se de uma epifania. A reação é comedida e conformista.

    Os fenômenos pluviais mostram uma natureza que interfere no cotidiano do homem, natureza esta que não oprime-o apesar de tocá-lo. O Divino existe mas não é tratado com temor, apesar do poder magnânimo. O ideário de Ventos de Agosto parecem frutos de um microuniverso que, ao mesmo tempo, é repleto de completude e se encerra perfeitamente em si.

    Os belos corpanzis exibidos em tela remetem a fugaz natureza que envolve a trama, eximindo esta obra de qualquer necessidade de artifícios banais ou mecânicos. A mocidade é mostrada como bela e digna de louvor enquanto a velhice é um ser de compleições tristes, marcadas por uma vida de tropeços e hachuras, representadas nas rugas de uma das anciãs da vila.

    Mascaro apresenta um filme simples cuja mensagem passa pela designação do destino de cada um dos personagens. Jeison demonstra uma mudança de ethos ao final, deixando de lado a obsessão pelo belo corpo de sua antiga musa para se dedicar ao destino digno para o morto, mesmo que a não-civilização e distância do lugarejo à cidade o impeça de concluir a trajetória. Uma trilha sonora roqueira encerra o filme, quebrando o clichê que  – principalmente – os sulistas costumam dar ao nordestino, aumentando a profundidade do roteiro de Mascaro e Rachell Ellis.  A abordagem do diretor ao seu filme é semelhante a do personagem em tela: agressiva, invasiva e completamente despudorada.

  • Crítica | O Cordeiro

    Crítica | O Cordeiro

    Centrado nas montanhas da Anatolia, uma região da Turquia onde é exigida a circuncisão de seus meninos, que logo é seguida por uma festa de celebração, O Cordeiro (Kuzu) conta a trajetória de uma família que tem muitos problemas, tentando manter a estabilidade entre seguir as rígidas tradições do local e o equilíbrio emocional da família.

    A história é bifurcada, mostrando essencialmente os dramas adultos, que variam nas trajetórias dos pais, em que o homem não tem condições de sustentar seu lar, tornando-se assim um ser inseguro, sem perspectiva de uma auto-estima saudável ou algo que o valha. Nem mesmo para repreender seus filhos com pequenas broncas ele consegue.

    A história paralela mostra a visão agridoce e essencialmente fantasiada de Mert (Mert Tastan), o caçula da família, que vive sua infância em um lugar árido, mas que ainda guarda uma imaginação fértil, capaz de levá-lo às paragens mais incomuns e nonsense possíveis. Motivado por uma anedota contada por sua irmã mais velha, ele acredita correr perigo de morte caso seu pai não consiga um carneiro para realizar a festa que comemoraria a sua circuncisão, crendo piamente que caso eles não consigam, o próprio menino seria o prato principal do banquete referente ao rito de passagem.

    Os preconceitos sociais típicos do vilarejo são tratados de modo anedótico, pelos olhos de uma doce criança, que ainda não tem autonomia para pensar sozinha, somente repetindo os maus pensamentos que ouve. O menino sofre na pele a diferenciação social entre as classes. Experimenta a estrada como uma criança Kerouac, sofrendo do vento, da fome, da neve e do bobo medo de ser sacrificado, após a brincadeira da irmã. Apesar de sofrer ações indiretas em sua rotina, o menino sequer tem noção de que ele e sua família sofrem uma exclusão social por méritos da desgraça de seu patriarca.

    A lente de Kutlug Ataman é feita em grande parte da película no recurso de câmera na mão, no intuito de imitar a realidade presente nos gêneros documentários, e em quase toda a duração do filme ela acerta, uma vez que a verossimilhança é a tônica dos dramas mostrados em tela. O espectador é convidado a experimentar as mesmas sensações dos personagens, desde a depressão do pai, Ismail (Cihat Gök), o desespero da mãe Medine (Nesrin Cavadzade) e a docilidade de Mert, tendo em toda a sua ingenuidade e sinceridade as melhores tiradas, tanto as sérias quanto as cômicas, repletas de escapismo pueril e balanceado.

    O desespero de Medine a faz recorrer a ações temerárias, que visam mudar o quadro em que vivem a custos altíssimos, quase nunca logrando êxito, tendo até sua ética discutida pelos circunvizinhos, piorada mais por ser aquela uma sociedade paternalista e que liga a honra às posses.

    A volúpia pela ostentação junto aos vizinhos faz o casal correr atrás de dinheiro de modos nem sempre dignos, com a mulher penhorando seus bens e o homem pondo a venda o seu corpo, rediscutindo o conceito de mais valia. A humilhação paira sobre a cabeça da mãe, que se põe em posições dificílimas, assim como aos seus filhos, indo ao encontro da infiel, implorar que deixe seu marido.

    O desespero de Ismail é tanto que ele chega a ficar foragido, sem dar qualquer sinal de vida ou assistência aos seus. A fuga dele é motivada por insegurança e vergonha, conceitos ligados demais ao machismo e chauvinismo típicos do lugarejo. O roteiro insiste em retomar o assunto a todo o momento.

    Quando o fatídico dia chega, a vergonha maior é evitada com o serviço de banquete regado ao carneiro, bulgur e ayran. O ritual joga uma fina e frágil camada de hipocrisia sobre a igualmente frágil estrutura familiar, que por sua vez é sabiamente registrada pela câmera de Ataman. O final demonstra uma ruptura que se via necessária há muito, e que finalmente ocorre após os escândalos sexuais daquele que deveria ser o protetor da família, mas que na prática só fez envergonhar e maldizer os seus. O destino de Medine e Mert teria qualquer chance de não ser trágico, uma vez que estava longe daquele que impingiu temor e inseguridade em suas vidas.

  • Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Há muito não se via um registro de cunho esquerdista explícito no Brasil. Há muito. A maioria utiliza-se de metáforas e manobras de marketing pra tapar o sol com a peneira. A famosa produtora O2 Filmes e o jornal Folha de São Paulo de posse de tais circunstâncias uniram fatos e relatos ao útil e agradável, dando voz ao povo, falando em tom publicitário e jornalístico o que o povo quer e fez ouvir, captando o devido caráter subversivo (para um tabloide que apoiou a ditadura e parece se redimir a quem não esquece disso). O efeito multidão, o resgate da repreensão policial (encontrada todos os dias nas periferias), a cobertura sacrificante dos tipos de imprensa dentro da unidade informativa: tudo em Junho representa, da forma mais clara e direta possível, o sentimento e a comoção pela representatividade almejada entre os semestres de 2013. Os responsáveis e as razões são levados tão a sério quanto a credibilidade que a maior produtora e o segundo maior jornal do país conseguem assegurar e manter durante a narrativa com fôlego de cobertura ao vivo.

    Em ordem cronológica, Junho se mantém, se expande e aumenta a carga de denúncia e reconstituição na proporção que as manifestações tomaram: um rastro de pólvora, indo muito além dos grandes centros, incluindo dentro do congresso de Niemeyer; a reputação do hino nacional e a reverberação acadêmica que não resistiram ao levante; a ira que profetizou Bob Dylan e fez roubar o destaque da dita “Copa de Todo Mundo” – sério? – e atrair a atenção do mais alto nível do judiciário brasileiro; do quarto poder celebrado nesta expressão em 1955,  usada pela primeira vez pelo teórico de comunicação norte-americano James Carey. Utilizando a avaliação de vários outros mediadores da opinião pública e do senso comum geral, percebe-se que:

    1. O documentário é um programa político de um canal de televisão disposto a atrair o cidadão que clama por mudanças civis;

    2. A investigação das motivações sociais e dos parlamentares, talvez anárquicas em ambos os casos, e próximas em suas afetações complementares, depende única e exclusivamente do espírito crítico de quem assiste e sente esta produção, só assim respondendo suas perguntas, tecendo o mérito da obra;

    3. É interessante, porém incompleto, o modo com que causa e efeito são redigidas, constatadas ao longo do material, do eco dos gritos, da contradição de um torneio mundial de futebol ser realizado num país exausto pela falsa confraternização esportiva, como se o paralelo das agruras entre a festa nos estádios vitoriosos e uma saúde/educação/segurança/previdência/população carcerária fracassadas ganhassem síntese pela panorâmica de um drone sobrevoando os protestos e movimentos. Senão pela ideia a partir do poder da imagem, o espectador é mais uma vez submetido à qualidade das informações que recebeu e recebe;

    4. Esse viés democrático também se contradiz por não dedicar um minuto à versão da Polícia Militar, por pior ou melhor que esta seja.

    Tamanha a certeira injustiça com os méritos das imprensas locais, o documentário e a Folha acertam por não irem além do foco ocorrido em São Paulo. Mas sugerem que em diversos estados e municípios brasileiros, com sensibilidade e prudência exaltadas, revelaram a mesma alma revolucionária que em 2014 não morreu, sobrevivendo por todo o território ainda marcado nas entrelinhas pela ditadura de anteontem. E o que começa como peça publicitária se revela, entre testemunhos e a relevância social de cada um deles, uma aquisição incansável e honesta até o último minuto, mas com forte gosto de vinagre à quem acha que tá tudo bem. Tá tudo tranquilo.

    Atualizado: Esta crítica foi escrita um dia antes das eleições de 2014, quando o Brasil ainda acreditava em mudanças estruturais no sistema civil que parece representar, sim, a maior parte do povo. Hoje, 06 de outubro, um dia após o resultado eleitoral, tudo continua igual, e Junho se torna, a partir de então, o manifesto de uma revolução que nunca aconteceu.

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  • Crítica | Sem Evidências

    Crítica | Sem Evidências

    O crime como ação, subtração de uma vida e causador de desordem na sociedade é sempre um ato chocante. Um vandalismo que ultrapassa a lei invisível – ou divina, dependendo de sua crença – de que não se deve matar um semelhante. Ação suficiente brutal para modificar estruturas à sua volta.

    Sem Evidências analisa um famoso caso de assassinato, reconhecido, principalmente, pela investigação e condução confusas e errôneas. Trata-se da investigação e do julgamento que culparam três adolescentes – conhecidos como os Três de West Memphis – pela morte de três crianças em 1993. Um crime brutal ocorrido no interior de uma floresta e apontado, na época, como um ritual satânico.

    A morte de infantes atribuída a um ritual satânico são contornos que aprofundam o choque destes assassinatos violentos. Comum em séculos passados, o infanticídio é visto com maior atenção e espanto pela sociedade, em parte, devido à percepção psicológica de que a criança é um ser em formação, ainda puro e inocente, que nunca deveria ser submetido a qualquer ato grotesco. Em um país com parte da população cristã, referir-se a estas mortes como um ato satânico foi o suficiente para que surgissem hordas revoltosas desejando vingança, além de colocar nos holofotes a investigação da polícia, que deveria ser minuciosa, à procura dos culpados.

    A intenção da obra é trazer à tona a parcialidade da verdade em um caso que foi construído sem a clareza necessária e, em julgamento, descartou evidências importantes para o desfecho e a sentença dos adolescentes envolvidos. O enredo acompanha tanto as famílias em luto, centralizadas no drama de Pam Hobbes (Reese Witherspoon), mãe de uma das crianças, quanto a investigação paralela de um detetive (Colin Firth) contrário à condenação e que, em meio aos erros da polícia, tenta descobrir a verdade para salvar os adolescentes.

    Baseado no livro investigativo de Mara Leveritt, a história aproxima-se mais de uma exibição assistida e reconstituída do que um suspense dramático sobre assassinatos brutais. Como um estudo de caso, é fiel em apresentar datas e acontecimentos factuais, mas não se trata de uma filmagem-documentário, e não há nenhum ponto de tensão desenvolvido para uma narrativa ficcional.

    Se parte de um crime consiste na recepção da sociedade e da mídia e na punição dos culpados, é necessário um viés dramático que conduza a experiência. Ao apresentar cenas distantes e imparciais, a história dá a dimensão completa de como o assassinato foi repercutido e os erros perpetuados durante sua execução judicial. No entanto, faz do público uma mera testemunha de uma história criminal que, anos depois, apresentou novas provas, demonstrando o mal andamento da investigação local.

  • Crítica | Doméstica

    Crítica | Doméstica

    A partir de imagens capturadas por adolescentes que registraram as ações de suas empregadas domésticas, o diretor Gabriel Mascaro produziu o documentário Doméstica. O formato de apropriação e edição de imagens alheias é comum no cinema de Pernambuco, onde a mão do realizador se exibe através da edição e, igualmente, na condução da emoção.

    A perspectiva dos jovens que gravam suas incursões é engraçada. Eles exibem uma visão além do cotidiano conhecido e têm um poder imenso de fazer qualquer pergunta e conduzir a narrativa como quiserem, claro, sob a supervisão de um cineasta.

    A improvisação das lentes garante momentos de excentricidade, revelando episódios cômicos ao mesmo tempo em que produz carga dramática. O caráter agridoce permeia a maioria dos registros com depoimentos de vidas marcadas por momentos traumáticos ligados à infidelidades conjugais ou dramas familiares e uso de entorpecentes, um público que, na maioria das vezes, só encontra retorno emocional no repertório romântico executado pelos artistas bregas.

    Os dramas das moças variam entre amores complicados e nem sempre correspondidos – acompanhados de sinceras lágrimas – e dos maus tratos dos primeiros patrões. Em comum, há questões de casamentos infelizes, um padrão que abre a discussão para inúmeras teorias sobre o caso.

    O flagrante exibe o óbvio analisado sob a ótica fugaz de Mascaro. A costumeira rotina dessas profissionais centraliza-se no cuidado de famílias, mas quase nunca de si mesmas.  Uma das entrevistadas, que trabalha desde os 11 anos de idade, reflete sobre o tempo que passou mais em casas alheias do que com a mãe. Em alguns momentos, a casa dos patrões é um refúgio para a grave realidade de violência familiar que sofrem. Notável e até assustador perceber que a casa dos outros é um refúgio do inferno caótico da própria rotina pós-trabalho.

    Outro fator comum nestas histórias é a perda de filhos em eventos trágicos, seja por assassinato – cujas origens não são reveladas, talvez por vergonha – ou por maus tratos de cônjuges. Espancamentos são comuns, assim como a vilania do homem, justificada pelos atos atrozes de alguns deles.

    A origem do preconceito com estes trabalhadores é um dos fatores de maior estranhamento. Um desprezo que vai além dos patrões e se faz presente até mesmo nos familiares. Em um dos casos, um senhor trabalha cuidando de uma garota de 16 anos devido a uma triste separação com sua família e a ausência de condições financeiras para bancá-los. O desprezo é a tônica de sua vida.

    O desfecho documental deixa uma sensação distante de qualquer discurso panfletário ou demonização de indivíduos. As personagens mostradas ou citadas são críveis e condizentes com a realidade que atravessa a existência do brasileiro, fazendo deste Doméstica mais do que um espécime cinematográfico. Um retrato de uma faceta comum do povo brasileiro.

  • Crítica | Jogo da Memória

    Crítica | Jogo da Memória

    A referência óbvia ao jogo de cartas infantil deveria alertar o mal agouro que viria ao público. Jogo da Memória, de Jimi Figueiredo, deveria ser um conto obscuro sobre a busca por um reencontro que não se conclui. Simônia Queiroz interpreta (ou ao menos tenta) Karine, uma ex-modelo que retorna à sua cidade natal – Brasília – para realizar o inventário de sua falecida mãe. Nesse ínterim, a personagem reencontra pessoas importantes do seu passado, reabrindo velhas feridas, especialmente aquela causada pelo abandono de sua filha.

    A inabilidade de Queiroz em passar emoção em tela é funcional, uma vez que sua personagem parece estar sempre aérea, alheia a realidade que a cerca. O núcleo familiar da protagonista atinge extremos como a boa execução dramática da atriz mirim Laura Teles e a completa atuação desmedida de Rosanna Viegas que consegue ser ainda mais alheia do que a protagonista mas sem desculpas de um recurso narrativo como muleta.

    O roteiro é um tanto confuso, além de repleto de convenientes coincidências e também permeado por personagens completamente descartáveis. Falta emoção ao triste reencontro entre Karine e seu antigo amado, vivido por Dalton Vigh, um personagem que possui uma loja de antiguidades e se torna responsável por discussões dignas de comerciais de margarina em que se fala abertamente sobre curiosidades como a suposta autoria de Stanley Kubrick para a filmagem do pouso do homem na lua, introduzindo o público de um modo óbvio às informações em tom de “você sabia?”.

    É a partir deste núcleo que o trabalho de resgate da memória perdida de Karine deveria ocorrer. É neste ponto que ela se depara com seus amigos mais próximos, permitindo o fluir da intimidade. Mas isto não ocorre. O que se vê são situações exageradas com uma tensão sexual além da natural causada pelos casais desequilibrados nas cenas, destacando a figura do namorado de Karine – executado por Flávio Tolezani – a epítome da condução equivocada. Uma sub-trama que não acrescenta nada ao produto final e causa vergonha pela violência estilizada, não condizente com a produção.

    A quantidade de caracterizações bizarras aumenta a cada cena com atuações ou engessadas ou superficiais. As situações vividas pelo elenco global – composto também por Vivianne Pasmanter – tem um cunho nonsense com cenas que remetem à psicodelia do uso de entorpecentes que permanece entre um recurso funcional e incomodo a quem assiste.

    O filme não se posiciona entre o público mais crítico e nem mesmo pelo espectador menos seletivo. Sem qualquer reflexão, o desfecho nem mesmo encerra o ciclo iniciado na sinopse. A premissa se perdeu em meio as desequilibradas cenas que tentam parecer sofisticadas com base em grafismos visuais. A falta de substância e conteúdo predominam neste Jogo da Memória, a despeito do bom começo de Figueiredo em Cru.

  • Crítica | Garota Exemplar

    Crítica | Garota Exemplar

    A narração da intérprete Rosamund Pike contempla uma ode a automartirização de mulher, afirmando merecer castigos físicos e mentais. Amy Elliot é a alcunha da relatora, uma escritora best-seller que comemora cinco anos de casado com Nick Dunne (Ben Affleck), um sujeito inexpressivo e passivo, apesar de ter alguns fatos no passado que supostamente desmentem esse arquétipo tacanho e tímido.

    O encontro cósmico, que reuniria o casal focado na trama é mostrado de modo leve, moderno e deveras atrativo. Ele livraria Ela do deslumbramento, fazendo-a se apaixonar, pervertendo a ideia do ludibriação entre um e outro. Nick era belo, inteligente, sedutor, como todo o mal da Terra.

     Após o preâmbulo, Dunne se mostra surpreso com o sumiço de sua amada. O roteiro em forma de recordatório esconde de modo muito competente a falta de dramaticidade de Affleck, usando isto a seu favor, além de apresentar o afeto dele por sua amada de uma maneira singular, tão única quanto sua percepção do mundo em volta. As feições de Dunne são difíceis de ler, especialmente porque a trama favorece o seu mistério, grafando sua ironia e mantendo longe as informações que preencheriam o quebra-cabeças.

    A chegada do pai de Nick senil representa não só o inconveniente de parar a investigação, mas também o temor de a insanidade acometê-lo como na geração anterior. O relato via diário de Amy prossegue, torpe, sujo, sacana e real. Os estratagemas se encaixam tão bem que parecem até armados, montados para formar o puzzle perfeito. Garota Exemplar consegue ser simultaneamente um thriller e um objeto vago e de difícil decifragem.

    O modo como as pistas são despostas apresenta elementos pseudo-metalinguísticos, quase quebrando a quarta parede, ainda que tal exercício seja bastante comedido no início, regado a um humor nonsense, condizente com a literatura de Amy, como uma caça ao tesouro, de intenções não expostas por completo.

    Da exemplar personagem Amazing Amy até a pervertida e – segundo ela mesma – garota má, a senhora Dunne se mostra confusa, irresoluta e preocupada com o que ocorrerá sob seu lar. Ela luta para não ser a megera controladora. A gentileza com que Nick trata a todos é confundida com falta de preocupação, fruto da sua dificuldade em ser ou se mostrar empático. Ele se sente grato pela ajuda do povo, mas vive um inferno encerrado em si mesmo.

    Aos poucos é revelado o descontentamento de Amy em mudar-se para a terra de seu cônjuge – Missouri – longe da urbanidade de sua Nova York. O fracasso em salva sua sogra faz custar muito de sua moral, uma vez que ela era a válvula de escape para ele, somente usada no sexo. Um objeto. Notar o desprezo não é nada perto da percepção dele em estar amedrontada.

    A insensibilidade acaba sendo mais um indício de culpa e de associação a sociopatia para o marido da “vítima”. Nick sente-se estafado por sempre ser julgado como um crápula por praticamente todas as mulheres em tela. O fato dele não ser um exemplo de conduta não garante a si a culpa automática. As mentiras que pratica pregam contra a sua inocência e ele não para. Fato é que ambos se sentiam como intrusos.

    O roteiro apresenta alguns twists, exibindo a desaparecida arquitetando um plano, cujo senso de punição e vingança, supostamente feita pela mulher. Tudo urdido como deveria ser, pelas mãos de uma perfeita e experiente contadora de história, que busca justiçar aquele a quem machucou-a, pondo a testosterona como objeto de ódio. O ego amargurado a faz ser verborrágica em seu processo de revide, absolutamente fria e minuciosa. O paradigma da vilania muda, desde a suspeita do impingidor do mal até a feitoria do plano maligno. Até o trabalho detetivesco muda de mãos, numa assaz estratégia narrativa em reverter clichês do gênero policial.

    As falhas de concepção dos planos de Amy/Nancy ajudam a aumentar o escopo de realidade, assim como o transtorno de limpeza dela. Mesmo dando errado o primeiro plano, ambos os lados da contenda prosseguem avançando, movidos por instinto na maioria das vezes. Até os papéis de manipulador e manipulado mudam, assim como há reviravoltas com relação a quem dá as cartas a mesa.

    O cinismo carregado nos atos de cada uma das pessoas mostradas pela câmera de Fincher proíbe o espectador de torcer por qualquer um dos personagens. O jogo de lobos prossegue, repleto de erros e de surpresas da parte dos que pareciam ingênuos ou incautos. A situação consegue se sustentar tão louca – e sanguinário – que o planejamento secundário beira a perfeição, assim como a direção da obra. A lente de Fincher é tão fria quanto o caráter de Amy, igualmente psicopata e calculista. A falsidade manipuladora e carismática de Garota Exemplar faz deste um dos melhores suspenses de sua filmografia, destes, o que mais valoriza a ambiguidade de alma e de ethos, sendo deveras amoral, cuja culpa ou arrependimento passam longe, onde o sangue dos inocentes é facilmente retirável, com um ato tão corriqueiro quanto um banho antes de dormir.

    A vida idílica e dissimulada ganha o posto de fantasia suprema, numa alegoria ao eterno teatro chamado casamento, cujo uma das partes tem de viver sob o fio da navalha, como uma presa fácil a espera do seu abatimento inexorável. O roteiro Gillian Flyn é baseado na dualidade típica de um casal, se valendo de um personagem feminino forte, que conta uma história forte, valendo-se da manipulação, a mãe de todos os pecados de vaidade, que faz da tirania da felicidade a base do sentido hipócrita de viver.

  • Crítica | Colegas

    Crítica | Colegas

    “Eu quero ver o mar!”, “Eu quero voar!”, “Eu quero me casar!”.

    Sob o clima revolucionário da trilha sonora de Raul Seixas, a comédia de Marcelo Galvão traz à tona temas mais do que reais e sérios. Colegas acompanha os sonhos de Stallone (Ariel Goldberg), Márcio (Breno Viola) e Aninha (Rita Pook), três amigos com Síndrome de Down que fogem da instituição onde moravam desde crianças, em busca da realização seus maiores desejos, respectivamente: ver o mar, voar e se casar.

    Inspirados pelos seus filmes favoritos, eles vivem dias de Thelma & Louise, viajando até Buenos Aires enquanto são caçados por uma dupla de policiais bonachões e pela imprensa sensacionalista que os transforma em uma gangue de criminosos fortemente armados e perigosos.

    O filme é uma trama cheia de citações e referências a grandes clássicos do cinema, como Pulp Fiction, Cães de Aluguel, Homens de Preto, Exterminador do Futuro e A Vida é Bela. Para os colegas que trabalhavam na videoteca, esses filmes eram realmente inspiradores e sustentam um enredo tão surreal quanto as histórias que eles desejavam viver.

    A aventura de Stallone, Márcio e Aninha começa com a invasão a um circo abandonado, assaltos a restaurantes, uma pescaria em alto mar, um casamento, um show onde arrumam briga, um tango ao ar livre e um jantar francês sofisticado. Nesse meio tempo, os protagonistas, vividos por um elenco altamente talentoso e preparado, se deparam com questões comuns à vida das pessoas com e sem deficiências, como a sexualidade, a saudade e a independência.

    A produção aborda um tema de grande peso polêmico com a leveza da comédia e um sutil descompromisso com a verossimilhança, lembrando uma epopeia contada por um narrador (Lima Duarte) que brinca com a realidade em cenas improváveis na vida de um adolescente. A deficiência é abordada com poucos tabus, transformando o preconceito em algo risível.

    O tom pastel presente na fotografia de Rodrigo Tavares contribui para a ambientação do filme entre as décadas de 1970 e 1980, mostrando a alta qualidade da produção que teve reconhecimento internacional e levou sete prêmios no ano de 2012.

    O filme também alcançou grande notoriedade com a campanha #vemseanpenn, realizada pelo ator Adriel, que, inspirado pelo seu personagem, lutou pela realização de seu sonho: conhecer seu ídolo. Em Uma Lição de Amor (I Am Sam, 2001), Sean Penn viveu o papel de Sam Dawson em uma história de um deficiente intelectual que cria a filha com a ajuda dos amigos, filme que trouxe grande notoriedade para o tema. A abordagem da deficiência no cinema de forma pouco comum e estigmatizada como foi feita em Colegas, abre os olhos do público para a simplicidade e espontaneidade com que o assunto deve ser tratado.

    A atuação de Leonardo Miggiorin, Marco Luque, Juliana Didone, Otávio Mesquita e tantos outros nomes populares da televisão brasileira fica ofuscada diante do talento e da autenticidade da interpretação dos protagonistas, que mesmo enfrentando tantas adversidades, seguem inabaláveis em suas jornadas fictícia e real.

    Texto de autoria de Mayra Massuda.

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  • Crítica | Sin City 2: A Dama Fatal

    Crítica | Sin City 2: A Dama Fatal

    O começo, repleto de cortes rápidos, é seguido por uma cena em que Frank Miller faz uma aparição típica de Stan Lee nos filmes da Marvel, aproveitando-se das benesses de ser um criador e também realizador do longa. O início, excessivamente escapista, faz mais referência ao último filme de Miller (The Spirit: O Filme) do que ao Machete de Rodriguez, o que faz acreditar que o criador do texto original teria maior ingerência na direção compartilhada, a despeito de toda a boataria que envolveu a produção do primeiro episódio.

    O preâmbulo é feito por Marv, personagem, vivido por Mickey Rourke, que, curiosamente, morreu no episódio anterior. Mais uma vez, uma bela apresentação dos créditos estilizada. Na história paralela de Johnny (Joseph Gordon Levitt), são resgatados plots que envolvem personagens cujo destino já havia sido decidido outrora, envolvendo-os em outros pecados, outros vícios tão torpes quantos os que preconizaram a primeira fita. Sin City parece ser um lugar tão escuso que até mesmo os que não vivem mais no mundo dos vivos costumam visitar a cidade. A pendenga de Johnny com Roark (Powers Boothe) é de cunho pessoal e familiar.

    Os subplots se misturam, compartilhando a mesma linha temporal, variante nos núcleos e nos múltiplos amoralismos. A plataforma plural claramente revela momentos mais interessantes com histórias menos apetecedoras. A trama envolvendo Dwight (Josh Brolin) demonstra isto exemplarmente, mesmo que suas cenas sejam de um grafismo agressivo ímpar tanto nos atos violentos quanto no torpor sexual, que causa no personagem um complexo de submissão quase automática à sua musa, Ava (Eva Mendez). Ao menos é nesse período em que é mostrada a cena mais gore e trash do filme, tão digna de nota quanto de gargalhadas.

    A sedução típica da dama fatal envolve os personagens e, claro, o espectador, não só pela nudez bem fotografada por Rodriguez, mas também pelo trabalho sonoro, praticamente perfeito, seja na montagem, seja na voz rouca de Green. As curvas femininas continuam obviamente sendo um dos pontos altos do filme, no entanto têm de conviver com constrangedoras cenas em que as belas mulheres se submetem a show-offs e exibições toscas de poderio armamentista, enquanto são reapresentadas às mulheres de Old Town. As soluções sensuais, fora as da personagem-título, são demasiadamente fáceis, apresentando uma desnecessária aura de pastiche, não condizente até mesmo com o universo milleriano. O tremor da perigosa relação entre Ava e Dwight finalmente se cumpre, e de um modo até surpreendente se comparado com o que o roteiro apresentou até então.

    A banca continua a aceitar as apostas de Johnny, mesmo após sua quase completa destruição. A designação da disputa quase edipiana termina anticlimática, mas é ramificada, abrindo a chance de Nancy Callahan (Jessica Alba) dar vazão a sua raiva e ao seu desejo de vingança. Em alguns momentos, a atriz até demonstra um pouco mais de dramaticidade se comparada a sua habitual filmografia, mas nada que fuja do ordinário e lugar comum de pautar toda a sua apresentação apenas em sua bela aparência. A cena em que sua personagem chora, à frente da TV, transita entre a empatia do público junto à carismática personagem esbarrando na dificuldade da sua intérprete em passar emoção.

    Por mais que o primeiro filme tenha tido um impacto enorme entre os fãs de quadrinhos e do cinema blockbuster violentíssimo, a sensação deixada por este Sin City 2 é o de um filme datado, que deveria ter sido lançado logo após o episódio um, se valendo do hype, mas que não o foi. Tudo na abordagem da película faz pensar que o projeto não era a prioridade de Robert Rodriguez, dado seus outros produtos autorais para a televisão e cinema, além da óbvia demora na produção deste filme. Tudo piorado pela sensação de A Dama Fatal ser um produto requentado, sem muito alma e substância, coisas que sobraram no filme exibido há nove anos.

  • Crítica | Uma Relação Delicada

    Crítica | Uma Relação Delicada

    A diretora Catherine Breillat frequentemente causa controvérsia devido à forma aberta com que aborda a temática sexual em seus filmes. Sua marca registrada são histórias que exploram a sexualidade feminina com um estilo frio e analítico, sendo explícita de modo pouco usual. Em 2005, Breillat sofreu um AVC que a deixou hemiplégica, com o lado esquerdo paralisado, o que não a impediu de continuar fazendo filmes. Depois de fazer Une vieille maitresse, em 2007, planeja rodar Bad Love, filme escrito especificamente para ter Naomi Campbell como protagonista. Conhece Christophe Rocancourt, um golpista reconhecido, e quer que ele esteja em seu filme, como par de Naomi. O produtor recusa Rocancourt e, por esse e outros motivos, o filme acaba não sendo rodado. Aproveitando-se da debilidade de Breillat, Rocancourt consegue “extrair” dela mais 800 mil euros. Acusado pela diretora em 2009, Rocancourt foi indiciado e julgado culpado de abus de faiblesse (abuso de fraqueza) – aproveitar-se da vulnerabilidade de uma pessoa tendo ciência desse estado vulnerável, exercendo pressão no intuito de levá-la a ter atitudes prejudiciais a ela mesma. No final de 2009, Breillat escreveu o livro Abus de faiblesse, em que relata esses eventos e que serviu de base para o filme.

    No filme, Maud Shainberg (Isabelle Huppert) é a diretora que sofre o AVC; e Vilko Piran (Kool Shen) é o escroque que se aproveita da vulnerabilidade de Maud. A atuação de Huppert é excepcional. Tão verossímil que chega a ser aflitivo ver as tentativas da personagem de se virar sozinha. A empatia causada é tamanha que o espectador se percebe fazendo os mesmos trejeitos da atriz, principalmente com as mãos e lábios. E não apenas isso. É irritantemente incômoda a falta de coordenação da personagem e mais incômoda ainda a percepção de que não deveríamos nos irritar com algo que está fora do controle dela. Não há qualquer dúvida de que Huppert carrega o filme nas costas, transpondo para a tela a personalidade incisiva da diretora. O que fica evidente é que o corpo pode ter sido debilitado pelo AVC, mas a personalidade continua “firme e forte”. E justamente por isso fica difícil para o espectador acreditar que seja possível que uma pessoa tão enérgica – beirando a prepotência – e tão resiliente se deixaria enganar dessa forma por um escroque assumido.

    Em contrapartida, Kool Shen é tão inexpressivo quanto o vigarista promovido a ator que representa. Noveleiros das antigas se lembrarão da atuação “emblemática” de Ricardo Macchi como o cigano Igor, na novela Explode coração. Shen tem uma performance tão carismática quanto Macchi. E o restante do elenco é tão apático, que mal se consegue lembrar quem é quem na história.

    Enquanto o primeiro terço do filme envolve o espectador na recuperação de Maud e na adaptação, nada fácil, à sua nova condição; o restante perde força enquanto vemos Vilko se “infiltrando” na vida de Maud e se aproveitando da fragilidade dela para explorá-la. A falta de empenho da diretora em tornar palpável e crível a situação de abus de faiblesse em que Maud se encontra faz a narrativa perder ritmo e intensidade. Não ser convincente o bastante faz o espectador ficar se perguntando por que diabos alguém inteligente agiria assim – assinando cheque após cheque – em vez de se compadecer dela em sua derrocada.

    Fugindo do seu estilo habitual, o filme talvez permita a Breillat uma espécie de catarse, uma forma de sublimar e deixar para trás o que lhe ocorreu. Contudo, mesmo sendo um filme bem executado, não consegue impressionar o espectador o suficiente para ser lembrado além daquele bate papo pós-sessão.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Angry Video Game Nerd: The Movie

    Crítica | Angry Video Game Nerd: The Movie

    Quem é o Angry Video Game Nerd e por que fazer uma crítica desse filme? Bom, para quem passou os últimos dez anos dentro de uma caverna sem acesso à internet de qualidade (Esse fato pode ser questionado, mas quem liga? Esse post é meu!), devo primeiramente contar uma breve história de um rapaz e seu trabalho.

    Apaixonado desde a infância pelo gênero dos filmes de horror dos monstros da Universal, James Rolfe cresceu um fanático pelo gênero da sétima arte. Começou fazendo histórias e até mesmo fotonovelas para seu próprio divertimento e o de seus amigos. Ao por suas mãos em uma filmadora caseira, começou a desenvolver suas próprias produções. Em 1999 cursou a Universidade de Artes da Philadelphia até seu término, em 2004, depois começou trabalhando como editor de vídeos enquanto trabalhava em seus próprios projetos. Juntava suas ideias com amigos, preparava um pequeno cenário no quintal de sua casa e começava a filmar. Essas brincadeiras renderam a Rolfe vários filmes amadores até os dias de hoje. Mais tarde, em 2007, largou o emprego para se dedicar à carreira e ao seu website, o Cinemassacre, onde divulga todos os filmes de sua autoria, reviews, séries e, lógico, os episódios do AVGN. Seus vídeos também foram divulgados através dos sites Gametrailers e Screw Attack, aumentando ainda mais seu público.

    Por volta de 2004, quando houve o início da onda de vídeos e séries amadores lançados na internet, nascia uma criatura ranzinza, tosca e nerd. O Angry Vídeo Game Nerd (AVGN), personagem criado por James Rolfe e estereótipo de gamer aficionado, surgiu através de uma paródia de sua própria frustração com jogos de vídeo game que costumava jogar na infância. Não que ele realmente detestasse os jogos, mas eram jogos primordiais, no início de uma era, e, por isso, eram tão difíceis e complicados que acabavam por despertar raiva e frustração quando ele não conseguia terminar o dito jogo, desferindo palavras de ódio e gestos obscenos para acalmar a amargurada experiência. Originalmente chamado de Angry Nintendo Nerd, o projeto focou primeiramente os jogos do NES – o Famicom no Japão ou Nintendinho para nós, brasileiros – mas acabou tendo o nome trocado para prevenir problemas de direitos autorais e também para expandir seu repertório de xingamentos e lamúrias para outras plataformas, aumentando a quantidade de reviews e também de público. Em 2006, essa brincadeira acabou crescendo junto a Rolfe, destacando sua imagem por todo o mundo através da internet e do Youtube, alcançando um grande e fiel público além do próprio vídeo game.

    O lançamento do filme põe fim a oito longos anos de produção que envolveram grande parte da vida de Rolfe, que contou com a ajuda de um crowdfunding realizado na internet para ter seu projeto finalizado. A história do filme se baseia em uma piada em cima de um jogo real, que é citado no seriado E.T. – O Extraterrestre, baseado no filme homônimo lançado em 1982. A lenda diz que o game era tão ruim que foi o responsável pelo crash da indústria de jogos em 1983, e, para tentar arcar com as despesas, a Atari, produtora de E.T., teria sumido com mais de centenas de cópias, enterrando-as no deserto de Alamagordo no Novo México. A história é demasiada ridícula, confesso, mas, por incrível que pareça, tem até um pouco de verdade nesse caso (que não tem a ver com a história, então deixa pra lá).

    O AVGN: The Movie tem como base os próprios episódios da série do personagem de Rolfe, O Nerd, que aqui trabalha em uma loja que vende jogos de vídeo game e tem um vlog onde constantemente fala sobre o assunto, porém somente comentando os piores e mais frustrantes jogos já feitos. Isso o leva a criar uma legião de fãs que passam a comprar e dar maior valor a estes games, contrariando tudo o que ele fala em seus vídeos.

    O filme inicia-se mostrando o que seria uma empresa desenvolvedora de jogos, as Indústrias Cockburn, começando a desenvolver o que seria a continuação do pior de todos os jogos já criados e que seria propositalmente ruim para poupar gastos com desenvolvimento e produção. Para arcar com as despesas, Mandi (Sarah Glendening), a produtora, diz que fará com que O Nerd faça um vídeo-comentário a respeito do jogo, dando toda a mídia necessária para que as pessoas comprem-no. Para fugir da tarefa de realizar essa crítica, O Nerd, junto a seu colega Cooper Folly (Jeremy Suarez), irá provar que o mito sobre o primeiro jogo, que é um dos maiores mistérios do mundo do jogo eletrônico, nada mais é do que uma farsa para pôr fim a uma perseguição de sua vida: ter que jogar o pior jogo já criado. Ao tentar desvendar o mistério, ele descobre que o jogo está ligado a uma conspiração governamental envolvendo a queda do OVNI de 1947 em Roswell e a área 51. Como se nada mais bastasse, acidentalmente é despertado Death Mwauthzyx, o deus-mostro de todo o universo (!?) que estava adormecido dentro do Monte Fuji. Cabe agora ao Nerd não somente desvendar o mistério do jogo como também salvar a humanidade.

    A história é muito tosca, completamente sem noção e dotada de feitos toscos com miniaturas e fantasias de monstros dignas dos seriados japoneses. É hilariante! Para um fã, tanto de filmes B como dos seriados de Rolfe, se torna um filme super divertido, como se fosse um grande episódio de quase duas horas. Não por ser feito por seus próprios criados, mas por ser uma adaptação bem fiel a seu personagem, bem melhor que muitas adaptações que surgem hoje em dia. Além de um projeto pessoal, esse filme também funciona como uma grande homenagem a diversos filmes e jogos, mostrando diversas piadas que fazem referência ao público nerd e à cultura pop atual. A produção teve um orçamento de pouco mais de 350 mil dólares, e, apesar dos efeitos toscos mencionados, estes foram inclusos propositalmente para garantir o visual exageradamente precário dos filmes antigos. Todas as menções de jogos, produtos e lojas foram maquiadas com nomes paródicos (E.T., por exemplo, ganhou o nome de Eee Tee) para também evitar problemas de direito autoral. Mas isso só deixa o filme mais engraçado. Além disso, há várias aparições especiais, como a do próprio desenvolvedor do jogo original mostrado em E.T.

    O filme teve sua premiere em 21 de julho em alguns cinemas selecionados dos EUA e no dia 27 foi exibido no Fantasia International Film Festival (FIFF). Seu lançamento foi no dia 2 de setembro no Vimeo.

    Texto de Autoria de Bruno Gaspar.

  • Entrevista com o diretor de Cinema Lucas Sá

    Entrevista com o diretor de Cinema Lucas Sá

    Com Nua Por Dentro do Couro, um dos curtas de terror e sedução que foi exibido na Mostra Competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o diretor maranhense Lucas Sá apresenta um cinema plástico, pautado em curvas femininas e no erotismo exacerbado pelos belos corpanzis de suas atrizes, fazendo valer a típica brasilidade que há na latente sexualidade tupiniquim e, claro, sem pudores ou temor de parecer politicamente incorreto.

    Ao conversar conosco, Lucas fala do curta exibido, destaca um pouco das influências que o levaram a fazer cinema a executar o ofício ainda tão novo e imberbe. Com apenas 21 anos, demonstra uma intimidade com a câmera típica de quem a conhece comvivacidade proveniente de sua pouca idade.

    Você havia citado anteriormente a influência de Brian De Palma (Carrie- A Estranha) e Dario Argento  no seu cinema. Queria saber se além deles você vê um pouco de Wes Craven, Lúcio Fulci e Roger Corman no seu trabalho.

    Talvez eu tenha visto tantos filmes de discípulos do Corman que talvez eu nem perceba mas certamente influenciou. Do Lucio Fulci tem muita da maquiagem. Citaria também Cronenberg, pois o tentáculo do monstro que fizemos é muito influenciado pela A Mosca, a coisa melequenta feita de látex e clara de ovo. Mas acho que a grande influencia mesmo é Argento no sentido de transformar a cena violenta em algo grandioso. A beleza exibida antes da violência, antes do gore. Sinto falta de algo mais palpável no cinema brasileira, tirando Rodrigo Aragão. Eu tentava me convencer de que no Brasil dá pra fazer isso, mesmo que tenha humor inserido na tela.

    Sobre direção de atores…?

    Bom, ás vezes eu me deixo levar. A Gilda (Gilda Nomacce, atriz que interpreta a “noiva” do monstro) começou a improvisar, fazendo uma cena de orgasmo que não ia ser exibida naquele plano, mas ficou tão boa que deixei. Ali foi ela que me dirigiu. Se estava tão bom, não tinha porquê tirar. O improviso dela é ótimo, perder o controle não é uma perda, essa interação de diretor e ator funciona bem, eu acho. Já Miriã Possani é mais contida, mas não quadrada, o que combina mais com o personagem. A Gilda tende a ir para o lado cômico, eu gosto. Até fiquei surpreso pelo filme ter passado aqui, por ser muito trash. Fico pensando em que os críticos (mais antigos) achariam do meu jeito de dirigir, se achariam imaturo…

     Você consegue passar para a tela as belas curvas de suas atrizes, como foi fazer isso?

    Meu intuito era seduzir mesmo o público. A intenção é essa desde o começo. Os filmes do Dario Argento sempre tem mulheres muito lindas. A beleza feminina em tela tem muito poder de causar muito impacto. Tem algo ali que me atrai. A Gilda mesmo sem maquiagem e acabada consegue erotizar muito, especialmente na cena do orgasmo que transita entre vários tons de sensualidade. Aumentada com a câmera lenta que aliada  a umamúsica excitante faz chegar a uma sensação orgásmica. Tudo a ver com as cenas de cunho lésbicos do filme.

    Como vocês fizeram o monstro?

    O monstro foi feito pela Gabriela Lamas, nossa diretora de arte, ela estuda comigo. Ela é excelente. Fez até o pé que é retirado da vítima. A criatura era a catarse do filme e foi feita de modo tosco, mas que ainda assim atinge o objetivo de chocar. Foi ela que operava o monstro. A produção custou seis mil reais, por isso preferimos não mostra-lo. Eu não vi o aparato até a a hora da gravação e acho que Gabriela fez isso de propósito. [Ri]. Ele é bem bonitinho no começo mas depois vai ficando feio. Ainda não há um corpo inteiro. Ele foi moldado em látex líquido e a gosma foi feita com clara de ovo e corante de bolo.

     Você disse que Nua Embaixo do Couro seria parte de um longa-metragem…

    O curta faz parte do longa, encaro como parte, semelhante ao que aconteceu com Hoje Eu Quero Voltar Sozinho e Eu Não Quero Voltar Sozinho (longa e curta de Daniel Ribeiro), com um complementando o outro. A ideia me assombra há uns cinco anos, sempre falava dele para os meus amigos, até que a Gabriela me convenceu a fazer e também passou a querer muito realizá-lo. Não acho que isso tira a potência nem do longa nem do curta. As lacunas deixadas no filme foram propositais, tudo está em seu devido lugar. Sobre o longa,  Gabriela e eu dirigimos um TCC de Cinema, dele talvez saia um edital de curta. É diferente do que já fiz, um drama-romance com bastante suspense. Uma direção compartilhada comigo fazendo o que já sei. Depois disso quero fazer um longa chamado Convite Para um Enterro com clima um pouco macabro e engraçado. Depois farei o longa de Nua mas dois ou três anos depois. Tenho uns quarenta minutos de gravação, mas para ficar perfeito teria que fazer um roteiro e incrementar mais.

  • 10 Filmes Políticos

    Politicagem, quando a desvalorização ética e moral é tendência, seja nas ações políticas, ou nas iniciativas públicas no horário eleitoral, cuja real utilidade chega a causar vergonha alheia no eleitorado. O cinema não previu esse ou outros fenômenos que vão e voltam, mas já mostrou vários lados desta moeda, que se encontra hoje mais desvalorizada que o real nos tempos atuais de inflação. Abaixo e sem uma ordem de preferência, quase uma dúzia de bons exemplos sobre o tema, de valores político e artístico inestimáveis.

    I – Dr. Fantástico (1964), de Stanley Kubrick
    A crítica visão política de Kubrick, por todo o exclusivo estilo de sua filmografia, não poderia ser diferente. O ridículo e o desastre de um sistema à beira do colapso, comandado à flor da pele por homens desesperados para serem salvos, em um mundo confuso que tentam salvar em seus hemisférios e contrastes dissonantes, e só o aparente milagre de um cadeirante voltar a andar pode impedir um mundo desses de explodir em cacos e paranoia. Ou não…

    fantástico

    II – Masculino, Feminino (1966), de Jean-Luc Godard
    Cada um em seu quadrado, ainda que na mesma sociedade, como homens e mulheres enxergam não apenas o seu oposto, e sim o cenário que os circunda, influencia e os trata diferente, nas diferenças que sustentam ambos os gêneros. Sem cair em clichês, Godard cria sua mais profunda e diversa, a mais inclusiva análise sócio-política de sua carreira militante, em Masculino, Feminino. Lidar com uma miscelânea de temas através da típica poesia Godardniana, e uma genial narração diegética em forma de diálogos inteligentes e pertinentes, enquanto o filme constrói uma identidade própria… não é fácil.

    masculino feminino

    III – M.A.S.H.(1970), de Robert Altman
    Extremamente bem construído entre arcos e desfechos paralelos (a edição do filme ainda é uma das maiores para histórias múltiplas do Cinema), M.A.S.H. é hilário, de humor corrosivo às digressões morais e às loucuras que podem ocorrer nas possibilidades surreais de uma guerra armada. Crítico sem ser didático sobre a questão, é a comicidade americana olhando pro próprio umbigo e tendo que rir da sujeira e imundice acumuladas, durante as incertezas de uma condição política extremista.

    MASH

    IV – (1969), de Costa-Gavras
    Registro imparcial a ponto de poder ser confundido com um improvável mockumentary, ou seja, uma versão hiper-realista da ficção sobre a realidade das coisas, tamanha é a fidelidade ao implacável momento ditatorial que Cuba ostenta em sua recente história pós-colônia americana. Por ajudar a construir um padrão da qualidade das produções contestadoras nos anos 60, Z virou um monumento jornalístico e histórico sem preço ou precedentes, senão categórico quanto aos idos que imortaliza e inspira por alguma atitude semelhante, em outras realidades dignas de uma denúncia de força similar.

    Z

    V – O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin
    A maior comédia política do Cinema, muito provavelmente, sendo que nunca a ironia de um cineasta foi tão longe, a ponto de, mais que parodiar, então avacalhar tanto Hitler quanto aqueles que pensavam poder se defender por acreditarem em uma paz impossível, no auge da Segunda Guerra. A cena do Globo terrestre nas mãos de um ditador, ou a tristeza manipulada de uma raça inteira, independente de lados e acasos, no inesquecível discurso final do proletariado a frente de uma câmera, com voz e visibilidade pela primeira vez… Sob dimensões lógicas e sensoriais, no fundo ou na superfície, é o Chaplin mais completo e corajoso.

    ditador

    VI – A Mulher Faz o Homem (1939), de Frank Capra
    A utopia de um homem só, batalha individual, otimista e bem-intencionada, em cenário de princípios políticos maiores e incompatíveis quanto aos de um senador honesto e sincero. Uma visão alternativa quanto ao papel de um bom representante público, inserido numa câmara de predadores da constituição, ironicamente, em um dos berços da democracia e da luta ideológica para faze-la valer a pena. E em meio a um enorme conflito de interesses partidários, o fato é que nunca, em Hollywood, se fez um Cinema tão saudável ao bem-estar do público, sem ser moralista, ingênuo ou chato, igual ao Cinema fraterno de Frank Capra.

    smith

    VII – Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha
    O atestado oficial do cineasta estadista e engajado que Glauber Rocha não conseguia evitar em ser. Engajamento poético sem delírio ou conceito lenitivo quanto as polêmicas situações políticas brasileiras, no século XX (a popular mão na cabeça não existia em seus manifestos de Cinema Novo). Em Terra em Transe, produto maduro e consciente, a cena em que um casal se encontra no meio de uma manifestação pública falsamente revolucionária, é um esplendor a quem captura um filme além da imagem, esta inserida em contexto que verte sociologia e populismo prático, em típicas doses Glauberianas de potência extrovertida. Transe é um leão selvagem numa jaula que, liberto, quer e consegue devorar tudo e todos.

    terra

    VIII – Memórias do Subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea
    Taxi Driver versão guerrilha. Comparações em voga, Memórias não deixa de ser um introspectivo e psicológico complemento prévio a Z, de Gavras, acerca das consequências de uma imposição cultural pelas frentes do movimento separatista de Fidel Castro, em Cuba, e do preço na vida social de um cidadão esquecido por Deus, e pela própria autonomia de exercer sua cidadania em uma Havana imprevisível, e devidamente filmada em Preto e Branco, em um grande estudo de personagem que grita e esperneia sua impotência, pelo silêncio apocalíptico da nação ao redor.

    memórias

    IX – Outubro (1928), de Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov
    Filme gigante, literalmente. O verdadeiro épico de Eisenstein é uma catarse elucidativa a respeito da consagração histórica, artística, e como efeito imediato, de um documento humanitário em forma de Cinema. Cinema contestador, onipresente nas questões que debate em suas poderosas imagens, frutos da ambição de um cineasta, Outubro é o tipo de filme que não se faz mais, em lugar algum do século XXI. O filme que comemora o décimo aniversário da Revolução Soviética, de 1917, é um dos poucos exemplos que, por não ter medo de levantar bandeira sobre o que acreditava merecer a celebração, se tornou imortal.

    outubro

    X – Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula
    Os contornos e limites do direito de liberdade de expressão, do ponto de vista da mídia, o quarto poder num estado de democracia, são traduzidos em excelência e importância vertebral a partir de investigação à moda antiga, em Todos os Homens do Presidente. Um filme simbólico o bastante para ser um parâmetro além dos tempos de Nixon, e do impacto que uma má reputação pode causar numa sociedade à beira de fatos, meias verdades e mentiras sobre quem a comanda e a mantém informada, com muito, muito custo. O jornalismo e a política adoram dividir a cama, mas trabalhar juntos é outra história.

    presidente

     

  • Crítica | La Sapienza

    Crítica | La Sapienza

    A definição da palavra sapiência refere-se ao excesso de conhecimento, algumas vezes relacionado a onisciência, típica do Divino. O novo filme do francês Eugène Green apresenta esta sensação, se valendo de arquétipos que a priori são vazios e frios, mas que ao longo da fita exibem curvas dramáticas atrozes e vidas repletas de angústias e anseios, quase sempre não alcançados.

    A câmera de Green em La Sapienza contempla monumentos europeus, artes barrocas e clássicas, antecipando o ideal arquitetônico dos personagens que mais tarde serão explorados pela lente inconformista do diretor. As relações mostradas a partir do casal Alexandre (Fabrizio Rongione) e Aliénor (Christelle Prot Landman), cuja aproximação está claramente deteriorada graças a rotina de anos lado a lado, uma postura vinda de ambos os lados, o maior catalisar dessa condição.

    As relações frias, formais, rígidas e distantes seguem por todo o roteiro, especialmente quando a dupla resolve mudar para a Itália. A troca de país os faz discutirem a respeito da rigidez da língua francesa que serve mais como uma alegoria à insensibilidade do casal médio francês. O enquadramento de fala individual mais uma vez remete à distância entre as linguagens, onde microcosmos tão distintos teimam em se tocar.

    A rotina insossa do par é cortada por uma dupla de irmãos, cuja menina desmaia em meio a rua, tendo em Aliénor o seu socorro. Agradecidos, Goffredo (Ludovico Succio) e Lavinia (Arianna Nastro) oferecem a hospitalidade do estabelecimento comercial de sua mãe para que a dupla se instale. Ali há uma convergência entre duas gerações distintas, separadas por um abismo de interesse totalmente diferente, ainda que tenham nos dois homens – Goffredo e Alexandre – a mesma paixão pela arquitetura.

    Depois de “discutir” de um modo tão civilizado que mal parece uma briga, dada a quietude de ambos, Aliénor manda seu marido viajar com Goffredo, para estimular o rapaz nos estudos do ofício em ser arquiteto. O homem de meia-idade prefere ainda manter uma longitude segura, encerrado em sua autossuficiência discutível, mas aos poucos começa a se afeiçoar ao rapaz, revelando até os motivos que o fizeram se apartar de sua esposa, levantando até a hipótese de um herdeiro indesejado como catalizador de uma reaproximação.

    O pupilo e o mestre finalmente se encontram e se aceitam dentro de seus arquétipos, após longas divagações e negações, que remetem a uma profunda reflexão de suas vivências separadas e mais tarde, conjuntas. A troca de experiências entre os amantes da arte é como uma relação, não sexual, mas de emoção e sentir, que consegue fechar o seu ciclo, dentro da relação entre o jovem e o ancião, e entre as partes do par focado desde o início, levado por um roteiro que se fecha assaz poético.

  • Crítica | Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário

    Crítica | Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário

    Os Cavaleiros do Zodíaco é um anime japonês que chegou ao Brasil há exatos 20 anos. O desenho contava a história de cinco amigos que se tornaram protetores da Deusa Atena e, apesar da violência, tinha como foco, basicamente, a amizade, o perdão e a superação, já que era recorrente que os os protagonistas não se davam por vencidos, sacrificando (muitas vezes) suas vidas em prol do próximo. Juntando estes três conceitos numa disputa de poder bem elaborada e bem amarrada, não tinha como dar errado.

    O enredo ambientado na Grécia teve como ponto de partida a fuga de um cavaleiro chamado Aiolos, que carregava um bebê que acreditava ser a reencarnação de Atena. O bravo guerreiro acabou sendo morto a mando do Mestre do Santuário, que o acusou de ser um traidor. Porém, ainda vivo, Aiolos consegue entregar o bebê ao senhor Mistumasa Kido, o qual promete criá-lo, além de guardar sua armadura da constelação de Sagitário para o cavaleiro mais honrado quando este tiver a idade necessária. Com isso, a Fundação Kido foi criada, abrigando crianças órfãs das mais diversas nacionalidades. Posteriormente, cada uma das crianças foi enviada a várias partes do mundo para ser treinada. Assim, cerca de 10 anos depois, a jovem Saori Kido, dando continuidade ao legado de seu avô, Mistumasa, realizava a Guerra Galáctica, um torneio, disputado entre todos os cavaleiros do orfanato, cujo prêmio era a bela armadura de Sagitário de Aiolos.

    Essa simples premissa mudou para sempre a vida de Seiya, Shiryu, Shun, Hyoga e Ikki, além de ter mudado a vida de muita gente (inclusive deste que vos escreve). O anime fez um sucesso estrondoso no Brasil e no mundo.

    O arco seguinte ao da Guerra Galáctica faz com que Seiya e os outros percebam exatamente onde eles estão metidos, uma vez que os cavaleiros que cresceram no orfanato não são os únicos cavaleiros existentes. Eles apenas fazem parte de um universo de 88 cavaleiros, cada um sendo protegido por uma constelação do zodíaco, sendo que sua maioria acredita que Saori Kido é uma impostora, o que coloca os outros cavaleiros como traidores, dando início a uma saga de mais de 50 fantásticos episódios.

    E é exatamente dessa saga que se trata A Lenda do Santuário, dirigido por Kei’ichi Sato e roteirizado por Chihiru Suzuki simplesmente para homenagear os 40 anos de carreira do mestre Masami Kurumada, criador e desenhista do mangá Os Cavaleiros do Zodíaco. Com isso, a animação em CGI buscou condensar, em apenas uma hora e meia, mais de 50 episódios na tentativa de fazer com que um novo público conhecesse o anime, além de trazer aquela nostalgia a todas aquelas crianças que hoje estão na casa dos 30 anos. Mas foi em vão.

    Partindo do princípio de que o filme se chama A Lenda do Santuário, significa que a história, por ser uma lenda, não precisava ser contada exatamente do jeito que aconteceu, o que tornariam plausíveis as muitas alterações na história. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. Não há problema algum no fato de todas as armaduras terem sido alteradas; ou até mesmo a manifestação do cosmo nos cavaleiros ter sido reduzida a brilhos nos detalhes de suas armaduras; ou o cavaleiro de ouro de Escorpião ser uma amazona (que mostra o rosto). O problema está justamente onde não houve alteração. Aqui no Brasil, a Diamond Films, que cuidou da distribuição, fez um esforço tremendo e competente para trazer os dubladores originais da saga, mas, ainda assim, Seiya (Hermes Baroli), Shiryu (Élcio Sodré), Shun (Ulisses Bezerra), Hyoga (Francisco Bretas) e Ikki (Leonardo Camilo) se tornaram completos estranhos, talvez por terem muito pouco tempo de tela, visto que o filme é centrado em Seiya, deixando muito pouco espaço e diálogos para os outros. Ikki só aparece duas vezes e isso é um absurdo.

    As lutas também sofreram pesadas alterações e muitas das consideradas clássicas nem chegaram a acontecer, tornando a transposição das 12 casas algo relativamente fácil. Talvez o maior absurdo tenha sido a luta entre Shiryu e Máscara da Morte, de Câncer, o cavaleiro mais cruel das 12 casas que, aqui, foi reduzido a uma cópia barata da pior imitação de Jack Sparrow já vista (ele tem até o cavanhaque com miçangas). Se no anime a casa do Cavaleiro de Câncer é toda adornada com os rostos agonizantes das pessoas que ele matou, em A Lenda do Santuário, os rostos são coloridos, alegres e cantam, ajudando o cavaleiro em um número musical ridículo, buscando emular de forma pífia o que a Disney faz de forma competente.

    E não é só. Tirando as partes que foram mal aproveitadas da versão original, não há nada que seja nostálgico no filme. Por mais que todos os cavaleiros gritem seus golpes conhecidos, não se vê, em nenhum momento, por exemplo, os movimentos que eles fazem antes de tais golpes, como o “balé do cisne” de Hyoga ao soltar seu Pó de Diamante ou os movimentos de Ikki ao invocar a Ave Fênix.

    A trilha sonora é péssima e muito baixa, reduzida sempre à mesma música, não remetendo em nada à ótima trilha sonora original, que consistia em poucas músicas empregadas em momentos certos na história. Pegasus Fantasy só toca no trailer.

    Porém, o filme não é um desastre completo. O Santuário não é localizado na Grécia e fica numa outra dimensão. Tanto que, para chegar lá, os cavaleiros precisam unir seus pingentes onde estão suas armaduras para que os personagens possam se teletransportar. De qualquer forma, o Santuário é lindo. O visual respeita bastante a série clássica, mas traz detalhes grandiosos que a animação dos anos 80 não tinha qualidade técnica para mostrar. Há uma população que mora lá, o Mestre se reporta à população e é escoltado pelos imponentes Cavaleiros de Ouro. As 12 casas são enormes e bem distintas umas das outras, como no anime, e aparentemente são casas de verdade, como as sensacionais mansões dos sheiks árabes que estamos acostumados a ver, o que faz com que as batalhas, portanto, sejam nos saguões dessas mansões.

    E, finalmente, as armaduras. Quando as primeiras imagens começaram a ser divulgadas, percebeu-se que as armaduras sofreram muitas alterações, porém ainda é possível reconhecê-las vestindo os cavaleiros de bronze, cada qual com sua cor predominante. O acabamento é caprichado e conta com uma gama maior de tons. Elas não brilham tanto como no desenho, mas contam com detalhes incríveis, e o destaque fica para as armaduras de Pégaso e Fênix. Já no que diz respeito aos Cavaleiros de Ouro, suas armaduras foram as mais alteradas. Consegue-se reconhecer as ombreiras de Shaka de Virgem ou o chifre de Mu de Áries, mas alguns cavaleiros, como Aiolia de Leão, tiveram suas vestimentas totalmente reformuladas, sendo o destaque (presente em todos os cavaleiros) a adição de um capacete que se fecha durante a batalha, o que deixa o visual dos cavaleiros bem agressivo.

    Infelizmente, Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário deixou muito a desejar, porém, embora o desempenho nas bilheterias tenha sido modesto, mas chegando a liderar por algum tempo aqui no Brasil, o filme deverá ganhar uma continuação, conforme confirmado pelo produtor Iosuke Asama (também responsável pela Saga de Hades), o que é bom, considerando que os defensores de Atena poderão ganhar uma segunda chance e mostrar a que vieram.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | A Grande Escolha

    Crítica | A Grande Escolha

    Que o Super Bowl é um espetáculo, todo mundo sabe. A grande final do futebol americano é um evento de proporções gigantescas, que move uma enorme quantidade de dinheiro, para os Estados Unidos e mexe com as emoções dos ianques. O que poucas pessoas fora de lá sabem é que antes do início do campeonato existe um evento chamado “Draft Day”, no qual os 32 times que compõem a NFL escolhem novos jogadores egressos do futebol universitário. É nesse ambiente que se desenvolve A Grande Escolha. Em vez de fazer mais um drama esportivo focando uma equipe disputando um campeonato, os roteiristas Scott Rothman e Rajiv Joseph e o diretor Ivan Reitman preferiram ambientar o filme na disputa que ocorre nos bastidores do esporte.

    A trama do filme retrata a jornada do gerente-geral do Cleveland Browns, vivido por Kevin Costner, em sua jornada de negociações durante o “Draft Day”. Além de ter que administrar a parte esportiva do time, o personagem ainda que lidar com vários aspectos de sua vida pessoal, com a relação delicada dele com o novo técnico do time e também com a expectativa de toda uma cidade que sonha em ver seu time de coração de volta à elite.

    Tudo isso pode parecer monótono e formulaico, mas o diretor Ivan Reitman consegue transformar o filme em um grande show sobre os bastidores do esporte. A direção ágil do diretor, que faz um excelente uso de telas divididas, não deixa a peteca cair em nenhum momento. Momentos melancólicos e cômicos são filmados com perícia e não sucumbem ao sentimentalismo gratuito. Existe ainda uma fuga do didatismo que costuma ocorrer nesse tipo de filme. Tudo é exibido de forma que mesmo os espectadores que não são familiarizados com o esporte possam entender. Os diálogos do filme também são muito bons, principalmente nos momentos de negociação.

    Kevin Costner tem uma ótima performance no filme, e seu rosto de homem comum transmite bastante credibilidade ao papel. Seu Sonny Weaver Jr. é um personagem muito inteligente e que tem uma lábia fora do comum. O ator se equilibra bem nos momentos mais tensos e também nos melancólicos, além de fazer uma ótima dobradinha com Ellen Burstyn, que interpreta sua mãe. Jennifer Garner, responsável por interpretar o interesse romântico de Costner, se sai muito bem e foge do estereótipo de mocinha deslocada em um mundo totalmente masculino. Sua personagem transita muito bem no ambiente sem parecer forçada. Denis Leary e Frank Langella, respectivamente o técnico e o dono do time, estão competentes como sempre. Cabe ressaltar também que os amantes do esporte vão se deliciar com as participações especiais de grandes ídolos (Sim! Terry Crews já foi jogador de futebol americano e aqui está fazendo um papel sério!).

    Dinâmico e bem conduzido, A Grande Escolha é um filme que remete aos bons momentos cinematográficos de Ivan Reitman e Kevin Costner, além de mostrar para as pessoas que os bastidores de um esporte podem ser tão tensos e interessantes como uma final de campeonato.