Categoria: Cinema

  • Crítica | Capote

    Crítica | Capote

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    Benett Miller estréia na direção de longas-metragens lançando mão da história de uma das personalidades mais controversas e polêmicas do ambiente literário/jornalístico. Capote começa focando o caso investigado pelo cronista e registrado em seu último livro A Sangue Frio. O horrendo massacre do Clã Clutter e todas as relações provindas dele são se tornam crives graças a magistral interpretação de Phillip Seymour Hoffman – sua transformação é assustadora, a afetação, a voz, os trejeitos, tudo nele é distinto e diferente do que havia feito em filmes anteriores e extremamente parecido com a figura do individuo biografado.

    A eloqüência de Truman é louvada pelos seus chegados. Em uma mesa de jantar ele é mostrado discursando sobre o roteiro de Bonequinha de Luxo, contando de forma hilária os causos junto a Blake Edwards (diretor do filme) para logo depois, começar um relato emocionado a respeito da perda de sua mãe, e como auxiliaria seu desolado padrasto – cujo qual retirou o seu sobrenome. O registro de Miller é perfeito, não soa piegas, é real, tocante e consegue mudar a abordagem de forma rápida, ajudando a angariar ainda mais empatia das pessoas dentro e fora de tela, de uma forma absolutamente manipulativa sim, mas não pedante.

    A persona de Perry Smith (Clifton Collins Jr.) mobiliza a alma do escritor e o faz sentir algo além da misericórdia por sua alma desgostosa e amargurada. Os sentimentos que acometem o protagonista são confusos para o próprio e o interesse do dramaturgo aumenta notadamente, visto o tamanho que seu texto ganha, de um simples artigo para um livro inteiro: “Meu livro vai devolve-lo ao reino da humanidade, eu nasci para escrever isto” – mesmo sem ter rabiscado uma palavra sequer, mas o autor classifica o futuro escrito como o romance documental do século.

    O detetive responsável indaga Truman a respeito do título da futura publicação (A Sangue Frio) se este seria pela referencia óbvia a crueza dos assassinatos ou pela relação dele com os ditos criminosos. O processo de concepção das palavras é flagrada com uma câmera acima dos ombros e da cabeça do escritor, a lente mostra ele na máquina de escrever com pilhas de folhas empilhadas de forma organizada. Também é aventada a dificuldade dele em encontrar um final para a sua história, o desfecho teima em ficar em suas mãos.

    A diferenciação entre os momentos dele como centro das atenções, nas festas dentro das mansões e nos momentos dentro do cárcere junto ao seu objeto de análise é pontuada pelo comportamento completamente diverso. Há um abismo entre as duas formas de agir, o que demonstra a perfeição de Hoffman em viver e retratar as nuances do Capote homem.

    A questão proposta pelo realizador não é até onde a relação Perry/Truman  chegou, mas até onde ela poderia chegar e como esta evoluiu dentro da psique de cada um dos envolvidos. Esta passou por momentos de amizade, cumplicidade, amor platônico e por meros interesses profissionais – todos esses estágios explorados um a um e de forma verossímil em todos eles. Enquanto a sentença de Smith não é cumprida, Capote não consegue levantar o lápis, a melancolia em que mergulha nos últimos 30 minutos desmentem qualquer negação que fizera dantes negando seu envolvimento emocional com o encarcerado analisado, as feridas em si causadas foram profundas, e jamais um cineasta conseguira captar tal faceta da curiosa figura que Truman Capote era como nesta fita.

  • Crítica | O Tempo e o Vento

    Crítica | O Tempo e o Vento

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    Esta não é a primeira adaptação da obra do escritor Érico Veríssimo. Em 1967, O Tempo e o Vento foi levado para a televisão em formato de novela, dirigido por Dionísio de Azevedo e dividido em três partes. Novamente, em 1985, a TV Globo criou a bela minissérie dirigida por Paulo José, em que trazia Tarcísio Meira como Capitão Rodrigo e Glória Pires como Ana Terra. Apenas em 2013, a obra de Veríssimo ganhou uma nova adaptação, dessa vez para os cinemas e com direção de Jayme Monjardim.

    O longa dá início com o belo trabalho de fotografia de Affonso Beato, explorando as paisagens dos pampas gaúchos em um pôr-do-sol esmaecido. Mostra-se a chegada do Capitão Rodrigo (Thiago Lacerda) até a casa da família dos Terra Cambará para encontrar-se com a já centenária Bibiana (Fernanda Montenegro), em meio ao cerco de sua casa pela família Amaral, inimiga declarada dos Terra Cambará.

    Adaptar uma obra como O Tempo e o Vento para os cinemas não é tarefa fácil. A série literária de Veríssimo conta a história de gerações de famílias marcadas por romances e guerras no Rio Grande do Sul. Condensar tudo isso em apenas duas horas de exibição, sem parecer superficial, exigiria uma habilidade que Monjardim deixou a desejar.

    A trama envolvendo a família Terra Cambará é narrada por Bibiana Terra, apresentando toda a história de formação de um período do Brasil. Primeiramente, acompanharemos a história de amor de Ana Terra (Cléo Pires) e o índio Pedro Missioneiro (em uma bela interpretação de Martín Rodriguez). Logo após, Bibiana relembra seu romance com o Capitão Rodrigo Cambará. A narrativa de Bibiana relembra aproximadamente 150 anos de história de amores, capazes de resistir às guerras e grandes tragédias.

    Dito isso, fica mais claro entender a proposta de Monjardim. Contudo, isso não torna mais fácil aceitar algumas de suas escolhas. Sua adaptação busca um tom novelesco, até mesmo burocrático, e seu olhar é voltado apenas para o romance entre os protagonistas. Não espere encontrar muito contexto histórico e político, que é apenas pincelado. Utilizada em segundo plano, a conjuntura da época só aparece como justificativa de que não foi esquecida.

    Castelhanos, Farrapos e Guerra do Paraguai são temas apenas mencionados, dando-se pouca explicação ao que estava acontecendo e sobre o que aquelas batalhas se tratavam. Tudo isso acaba com um gosto ruim na boca. Monjardim parece carecer de objetividade narrativa. Se seu desejo era fundamentar sua obra através de uma trama romântica, deveria ter focado nisso desde o início, colocando alicerces ao longo da história de amor entre Rodrigo e Bibiana e deixando o restante em segundo plano. Contudo, ao abrir a lente filmando um épico, a dimensão de sua obra se esvai em uma narrativa superficial.

    Ainda assim, O Tempo e o Vento está longe de ser um filme ruim; o universo recriado por Monjardim tem personalidade própria. O conceito de que tudo que Deus tira para dar novamente é muito bem explorado ao longo da trama, tempo cíclico a que Veríssimo idealizou em sua obra. O personagem de Rodrigo, muito bem interpretado por Lacerda, esbanja carisma e utiliza muito bem os olhares para demonstrar suas emoções, assim como Fernanda Montenegro, como de costume, se entrega ao papel da velha senhora Bibiana. Difícil não se emocionar com a cena inicial em que Lacerda, com suavidade, carrega Montenegro no colo levando-a até a janela.

    O Tempo e o Vento tem escolhas de roteiro que dificilmente passarão batidas, mas ainda assim é um belo material. A obra de Monjardim ganhou uma versão televisiva em formato de minissérie para a TV Globo, mas resta saber se os problemas narrativos do filme não sejam repetidos na versão para a televisão, não interferindo, assim, na qualidade da obra.

    “Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos.”

  • Crítica | Trapaça

    Crítica | Trapaça

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    Trapaça trata de um grupo marginal de trambiqueiros com um nível de atuação modesto a princípio, visto o perigo que os acomete a todo momento. O caminho da quadrilha é atravessado por um agente da lei, que após idas e vindas (e trocas amorosas), decide por unir forças a fim de pegar peixes maiores para sua rede – por parte do agente – e livrar a própria cara – por parte do bando.

    O “cabelo” bagunçado e colado no topo da cabeça de Irving Rosenfeld (Christian Bale) prenuncia os percalços que seu personagem sofrerá a frente da operação. O exercício de contenção que ele faz ao ter o topete desarrumado é impagável e serve inclusive para demonstrar a tensão dentro do ramo que escolheu e o quanto de cautela é necessário para ter uma longa subsistência.

    David O. Russell sabe como ninguém trabalhar a imagem de Amy Adams. Todo filme que ele a dirige, a atriz parece ficar ainda mais bela se comparada a outras produções, sem falar que sua atuação só ascende quando contrastada com trabalhos de outros realizadores (exceção, claro, de O Mestre, de Paul Thomas Anderson). Graças ao seu cuidado, inteligência para os negócios e aos seus talentos dramatúrgicos, Sidney Prosser (ou Edith) constitui o par perfeito para os ardis e mirabolantes planos de Irving, fazendo-o praticar algo inédito para si: utilizar-se de sinceridade com uma mulher. A sensualidade que a ruiva passa para tela é absurda e é de causar frisson em senhores que não se acham mais viris. Grande parte disso deve-se a atuação, uma dos elementos mais acertados do filme, a outra boa parte é graças aos seus belíssimos predicados.

    A movimentação de Richard DiMaso (Bradley Cooper) ainda no início da película reconfigura os papéis apresentados, mostrando um poder de adaptação ímpar por parte dos personagens. A narração de alguns deles garante multiplicidade de óticas relativas ao golpe que será aplicado e lembra a abordagem escolhida por Scorsese em Cassino. Não que isto seja um problema, longe disso.

    A predileção do cineasta por relacionamentos fracassados e baseados em infidelidade ganha mais um capítulo nesta produção. A associação da incorreção conjugal à charlatanice repete o que foi visto em Huckabees: A Vida é uma Comédia, jogando os pecados de “integridade honrosa” no mesmo caldeirão, ainda que, dessa vez, a criminalidade, de fato, faça parte da equação. A diferença básica é que neste roteiro a poligamia é uma bandeira levantada: sua validade não é muito discutida, mas a situação é real e tratada como só mais uma forma de relação entre os homens, sem escolher um partido ou mensagem moral.

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    Victor Tellegio é um ótimo retorno de Robert De Niro a um de seus papéis mais confortáveis. O ator é magistral mesmo aparecendo durante pouco tempo na tela, tirando a má impressão após sua decepcionante participação em A Família, de Luc Besson.  Outros coadjuvantes com presenças diminutas se destacam, como Jack Huston fazendo um mafioso que, ao contrário de seu personagem em Boardwalk Empire, não usa máscara, mas que rouba a cena sempre que a câmera o enquadra. Destaque também para Louie C. K. que melhora a cada participação em longas-metragens.

    Obviamente que as atenções (ainda) estão voltadas para Jennifer Lawrence. Sua personagem é uma das mais imprevisíveis, não é a melhor coisa do filme, evidentemente – nem é a melhor atuação, se comparada a de Amy Adams – mas, ainda assim, sua caracterização guarda boas surpresas e evoca alguns dos bons twists da história. As desventuras da beldade de orgulho ferido garantem situações das mais curiosas e interessantes do roteiro.

    O trâmite do plano final é tão dúbio que chega a ludibriar até o espectador mais atento, visto que é complicado tentar prever os próximos passos do grupo de Irving graças à imprevisibilidade e raciocínio caótico de seu líder.  O nível de envolvimento de cada personagem só é comprovado após o desfecho, e, mesmo com os destinos finais, os que (aparentemente) têm um bom fim, não o têm sem questões incômodas; a perfeição passa longe de suas vidas. O roteiro de Russell e Eric Warren Singer é finalizado com uma mensagem aparentemente idílica e otimista, mas não tão clara, mais uma vez emulando Martin Scorsese (e Nicholas Pileggi) em Os Bons Companheiros. Trapaça é uma ode ao cinema de Scorsese, especialmente à filmografia ligada à temática da criminalidade, e é reverencial, em suma. Portanto, não desrespeita suas referências, ao contrário, as idolatra e lhes dá um tempero de atualidade e contemporaneidade sem maiores complicações.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Jovem e Bela

    Crítica | Jovem e Bela

    Jovem e Bela

    Isabelle desde o início da película é um objeto a ser observado, ela é vigiada por olhos desejosos de si, ainda que alguns desses o façam de forma inconsciente (questão esta dúbia e discutível, visto o desenrolar da trama). A sexualidade nela é aos poucos aflorada, e como é sublime ver um corpo juvenil se auto-descobrindo, especialmente antes de ser tocada por mãos masculinas que as ferem tal monumento a beleza. É impossível não se afeiçoar minimamente pelas feições e curvas de Marine Vatch

    Os beijos que recebe dos presentes em seu aniversário são desferidos quase todos próximos de sua boca, isto, aliado a música da trilha e sua letra profética, prenunciam uma carência que começa a crescer e que evoluiria dentro de sua psiquê. Havia um desejo por mais, uma necessidade de auto-exposição, que não seria satisfeito num estilo de vida normal e extremamente regrado.

    O seu novo ofício é organizado, ela só atenderia as tardes, nunca a noite ou em finais de semana: seu intuito era o de ter uma carga horária o mais comum e normativa possível, visto que a natureza de seu trabalho não era usual. Seus clientes tem gostos e preferências muito diversas, alguns são exigentes, outros desonestos, outros preferem não ser tocados – o que é esquisito dada a natureza do serviço, sua adaptação é plena e se dá aos poucos, mesmo com (alguns) insultos que recebe de quem a contrata.

    A opção pelo emprego não a exime do constrangimento, que a faz se lavar obsessivamente, para se livrar dos sinais e odores dos homens que a possuem. No entanto, sua insatisfação é crescente, só faz aumentar, mesmo com a pequena fortuna que vai acumulando. Há mais que somente o código moral a incomodando, e ela não consegue entender o que está lhe causando isso.

    A segunda parte da história, a partir do Momento Inverno, mostra a aposentadoria forçada de Isabelle e a decepção de sua mãe ao descobrir seus serviços. A profundidade da questão é abordada muito bem, sob os olhos da figura materna, que procura a culpa em todos os fatores externos a sua própria ação. O sentimento que ela tem pela filha é de asco pelas atitudes que considerava erradas por essência e também de medo do vício que ela adquiriu. Ao final ela não consegue entender a confusão que se passa na mente da moça.

    François Ozon apresenta uma história única, que não é condescendente com o público em momento algum, não o poupando das vicissitudes da questão primordial, mostrando esta sobre várias facetas, desde a comum associação satânica, até a fantasia e fetiche de muitas mulheres – fetiche no caso correspondente o ato de “auto-comercialização”, declarado por uma das personagens. O desfecho, em aberto, levanta inúmeras possibilidades para o futuro de Isabelle, nenhuma dessas porém garantem a si um futuro sem traumas ou lembranças vis.

  • Crítica | Frankenstein: Entre Anjos e Demônios

    Crítica | Frankenstein: Entre Anjos e Demônios

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    Stuart Beattie, responsável pelos roteiro de Austrália e das franquias Piratas do Caribe, G.I. Joe, assume a direção desta versão moderna da história do monstro de Victor Frankenstein. A trama é baseada na HQ escrita por Kevin Grevioux, co-criador de Underworld: Anjos da Noite. Talvez por isso tem-se a impressão de que a história está ambientada num universo semelhante ao de Underworld. Ou seja, em vez de vampiros versus lobisomens, o embate é entre demônios e gárgulas.

    E, assim como na história de vampiros e lobos, a humanidade ignora totalmente a existência de tais criaturas e o confronto entre elas – apesar de ser difícil acreditar que sejam tão despercebidos a ponto de nenhum transeunte notar esses seres estranhos e assustadores com olhos vermelhos nos céus duma metrópole. Mas enfim, se é necessário ignorar esse fato para mergulhar no universo da história, que assim seja.

    Desse “mergulho” advém o principal problema do filme: a falta de profundidade tanto da história quanto dos personagens – não há “onde” mergulhar. A luta entre anjos e demônios é enfocada de modo tão superficial que o espectador sequer se sente compelido a tomar partido de um dos lados. Ambos são tão insossos em suas motivações que parece não fazer muita diferença quem leva a melhor na disputa. Soma-se a isso o fato de que temas centrais da história do monstro de Frankenstein – criatura versus criador, homens brincando de deus – são apenas ligeiramente pinceladas, sem nunca serem exploradas devidamente, o que enriqueceria bastante a trama.

    Nem a presença de alguns bons atores no elenco consegue prender o espectador. Bill Nighy não faz feio, como sempre, mas dá a impressão de ter atuado em modo automático. Miranda Otto, como líder dos gárgulas, dispara algumas das piores falas do filme. Aaron Eckhart até tenta dar mais peso a Adam, mas não há muito o que se fazer com um personagem mal construído.

    Ao menos, o filme não é longo – 93 minutos – e mantém o ritmo com sucessivas cenas de ação. Consegue entreter, se o público não for ao cinema esperando uma nova versão do personagem já que, do clássico personagem criado por Mary Shelley, sobrou apenas o nome no título.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Abrigo

    Crítica | O Abrigo

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    A observação de Curtir LaForche (Michael Shannon) da chuva que se avizinha mostra o homem diminuto diante do destino que o aguarda, mesmo a mais ordinária das obras naturais tem o poder de sobrepujar o esforço deste ser. O Abrigo, a exemplo do último filme de Jeff Nichols, também se passa em uma área rural, e é permeada por pessoas simples com problemas reais e superações familiares a serem alcançadas. O pano de fundo proposto por Nichols é como uma tela em branco, e ajuda o público a embarcar na história de forma satisfatória, cada pequeno detalhe visa remeter a uma vida comum e normal, em um lar conservador e feliz segundo as aparências, mas que atrás da capa de normalidade esconde perturbações e assombrações proféticas ou alucinatórias.

    A despeito de seu discurso, quase sempre calmo, Curtis se sente inadequado, deslocado, como se algo estivesse errado, e como se tudo pudesse piorar e ruir de forma drástica, daí viriam seus sonhos premonitórios catastróficos. Os signos do filme afora, seus momentos não desperto são igualmente lúdicos, mas outros fatores reforçam seu desconforto, seja a deficiência física de sua filha manifestada pela surdez, a sensação de achar-se sujo e não poder lavar-se, seus problemas com a garganta – que são o inverso da incapacidade de sua filha – a dificuldade em se comunicar com suas esposa, seus atrasos para jantares familiares, todos estes problemas provindos de sua paranoia.

    Curtis receia em consultar-se com o psiquiatra que seu médico lhe recomenda, põe obstáculos fáceis de transpor unicamente para ter para onde fugir, mas sua preocupação é justificada ao observar o que ocorreu com a sua mãe, e o destino final que ela tomara. Sua escolha é uma consulta com uma psicóloga, uma alternativa amena e mais leve do que encarar o problema  de forma definitiva, mas que ainda assim, obriga o homem a olhar-se de frente, encarando os seus demônios. A atuação de Jessica Chastain como a esposa (Samantha) é pródiga em demonstrar não só o típico comportamento feminino ao ver a figura masculina que deveria ser forte, tornar-se fraca, mas também mostra o quão conflitante é o sentimento de impotência diante do grave problema que (aparentemente) acomete seu marido. No entanto, mesmo com todo o cuidado, Curtis prossegue com os preparativos para o forte anti-tornados, mostrando que há em sua mente uma dúvida quanto relevância dos sinais que este vê nos céus.

    Os últimos 30 minutos sintetizam o conjunto de sensações que atormentam Curtis, desde o inesperado apoio por parte da esposa – para ele uma causa perdida – até o confronto com seu antigo amigo Dewart (Shea Whigham), que o faz revelar toda a sua insanidade diante dos vizinhos e claro, o evento que poria a prova a razão ou não razão da paranoia do protagonista.

    Take Shellter é um belo filme sobre apoio e sobre convivência amorosa mesmo com adversidades tão intensas. Apesar de assustada, Samantha permite que Curtis tome as rédeas da situação e pouco interfere e deixa espaço para que o marido aja conforme acha ser o correto, ela o abraça e o entende, mas não fecha os olhos para o óbvio, e tenta até o último instante deixá-lo vencer sua condição empurrando-o a tomar uma atitude de ruptura.

    Nichols conduz o desfecho de um modo que deixa o público apreensivo, igualando em partes a duplicidade de pensamento de Curtis no espectador – o que se agrava com a cena imediatamente anterior aos créditos finais, que por si só grafam a ideia de união familiar, inclusive na paranoia. O desfecho ratifica a enorme relação de interdependência entre os personagens de uma forma poética e muito tocante, sem deixar de lado a inexorabilidade do destino, por mais lamentável e triste que isso possa ser.

  • Crítica | 12 Anos de Escravidão

    Crítica | 12 Anos de Escravidão

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    A introdução que McQueen arquiteta é típica de sua filmografia, com nenhuma palavra por parte dos importantes personagens mas escancarando o conjunto de sensações que eles têm através das imagens. Solomon Northup (Chewtel Ejiofor) passa por formas diversas de escravidão, desde o simples plantio de cana até ganhar status e seguir o serviço de músico, como um negro livre das amarras que ainda prendiam seus irmãos. Solomon é obrigado a retornar ao estágio de cativo, perdendo o direito que conquistara para si legitimamente, e com isso, os conflitos que visavam o retorno a liberdade vieram, entre eles, a condescendência de alguns do escravizados. Um dos negros, Clemens, ao ser indagado sobre uma possível rebelião diz:

    “Somos negros, nascidos e criados escravos. Os negros não têm estômago para lutar.”

    A mercantilização das vidas é mostrada de forma emocional, com uma rasgante separação de uma mãe e suas duas crianças… Solomon toca seu violino na tentativa de desviar a atenção da separação, mais tarde recebe o nome de Platt, é comprado por Mister Ford (Benedict Cumberbatch) e volta gradativamente a resignar-se e aceitar o chicote. Ele próprio vê Platt como uma outra personalidade, a que aceita os maus tratos a fim de sobreviver mesmo sabendo o quanto isto é injusto.

    McQueen flagra as consequências da rebeldia, mostrando o personagem preso com uma corda no pescoço por longos momentos, após uma discussão com um dos mestres brancos. Mesmo estando “certo” ele é mantido suspenso, sofrendo por seu ato de desobediência, para aqueles que exploravam seus préstimos, sua vida prosseguia sendo inferior, mesmo para aqueles que este considerava benevolentes.

    Edwin Epps, o novo mestre de Platts é imprevisível, e atuação tresloucada de Michael Fassbender grifa ainda mais esse aspecto. A religiosidade, algumas vezes ligada a esperança de dias melhores, é muito presente na vida dos homens brancos, e os motiva de forma diferente, Ford prefere tratar a todos da forma mais suave possível enquanto a rigidez de Epps é dita como prevista nas páginas sagradas da Bíblia, o realizador utiliza a filosofia religiosa para demonstrar diferentes pontos de vista relativos ao convívio com o diferente.

    Patts, uma das escravas “preferidas” de Epps interpretada por Lupita Nyong’o, é mostrada com as costas inflamadas e sangrando graças a uma sessão de chibatadas de seu mestre: esta parte constitui em si uma cena forte e bastante chocante, não só pelo grafismo do sofrimento, mas também pelas injustas razões do castigo. O espanto para o público infelizmente não é o mesmo para os personagens, acostumados a atos selvagens como aquele. O escravocrata faz questão de humilhá-la e tortura Solomon mentalmente, tentando coagi-lo, por perceber que ele tem um pouco mais de liberdade de pensamento que os outros negros servis.

    Quando o golpe finalmente é resolvido, os cabelos de Solomon são grisalhos, suas feições mudaram, estão mais duras, ele está marcado como nunca, mas ao ver os seus novamente, sua reação é de desabar em lágrimas em frente àqueles que tanto buscava, e seus constantes pedidos de desculpas são prontamente recusados. Mais tarde, ele se tornaria um ativo crítico abolicionista, mesmo sem ter sucesso nos tribunais contra seus agressores. O roteiro adaptado de John Ridley é competente demais em mostrar os muitos momentos da trajetória de Northup, sem fazer concessões e sem saídas politicamente corretas, pois expõe uma realidade dura e cruel sem dar ao povo retratado um papel estereotipado de vítima. A direção de Steve McQueen é ainda mais madura do que a apresentada no ótimo Shame, o que demonstra uma ótima evolução por parte do diretor, especialmente em tocar em temas tão delicados quanto os abordados na sua ainda breve filmografia.

    Ouça nosso podcast sobre Steve McQueen.

  • Crítica | Shotgun Stories

    Crítica | Shotgun Stories

    Shotgun Stories

    Son Hayes (Michael Shannon) aparece na primeira cena do filme sem camisa. Seu corpo é mostrado repleto de cicatrizes nas costas, que mais tarde se revelam um segredo pessoal e de sua família. Seu porte não é nada atlético, garantindo-lhe um aspecto de “aparente” fragilidade natural, característica logo contrariada no decorrer da história.

    A péssima relação familiar, revelada em minutos de exibição, escancara os motivos que o fazem ser tão isolado.  O personagem de Son é real. Com defeitos e falhas, não tem pretensão de ser diferente do que apresenta. Funciona como uma tela em branco, que reflete tudo exposto a sua frente. A reprodução é fidedigna, sem condescendência e rodeios. Tal crueza certamente atrapalha a relação (surpreendentemente existente, visto seu aspecto) com sua parceira/esposa.

    A câmera de Nichols é natural. A forma de filmar é fluida, sem firulas. Sua intenção é mostrar de forma fiel o modo de vida dos habitantes comuns da cidade, sem pretensões de glamourização e afins. Somente registra como estes tocam suas ordinárias vidas e o quão bizarra pode ser a existência do homem, mesmo quando esta segue todos os padrões de normatividade e valorização da família, tradição e propriedade. Son, mesmo não demonstrando de início, tem em seu interior um conjunto de metas deveras ambiciosas, e a frustração de não te-las alcançado se reflete em seu modo passivo/depressivo de encarar a rotina. Ele tem dificuldade de expressar sentimentos, mesmo diante do filho.

    A briga familiar, completamente descabida se analisada de forma fria, deixa rastros de destruição dos dois lados do entrave, onde nenhuma das partes se enxerga como errada, ambas lutam com unhas e dentes por seus “ideais”. Explicita-se uma crítica do realizador às atitudes cegas tomadas de forma passional, praxe infelizmente constante em grande parte dos lares rurais e outras localidades. O constrangimento com os “familiares” dos envolvidos é grande, especialmente em razão da cidade onde vivem ser tão diminuta. A possibilidade de mais confrontamentos só aumenta com o convívio entre os “iguais”, no entanto Son é o retrato da serenidade. Resoluto e calmo em aparência, contraria as evidências internas de ódio que plantou em seu coração e no de seus irmãos. Sua reação é raivosa e carregada de rancor, mas em momento algum é barulhenta ou violenta e, ainda assim, agride muito mais do que um arroubo de emoções ou um estouro de impropérios.

    As maneiras distintas de encarar a perda de um ente querido e as possibilidades de vingança são mostradas de forma clara e direta, explicitando o rompimento dos limites por pessoas de personalidades diversas. A mensagem que Jeff Nichols quer passar pode ser encarada de duas formas: uma crítica direta à violência com que são resolvidos os conflitos, das menores esferas de influência até as maiores; ou pode ser vista como contemplação à natureza humana, agressiva, odiosa e rancorosa. A violência que permeou a existência de Son cobra o seu preço, exigindo de si, e dos que o envolvem, mais e mais ódio e derramamento de sangue. A atitude mais corajosa, que traria a hipótese de uma convivência amistosa, provém do personagem mais covarde retratado, o irmão Bob Hayer (Douglas Ligon). Seu modo de enxergar o mundo prova-se do ponto de vista mais interessante e cabível apresentado na trama.

    O roteiro passa um argumento pacifista sem apelar para moralismos ou armadilhas politicamente corretas, mesmo com o fim do bem sobrepujando o mal. Shotgun Stories é uma análise que evidencia o quão selvagem pode ser o modo de vida do homem, se ele assim o permitir, e visa causar uma reflexão sobre o que realmente vale na defesa do que se acredita ser o certo.

  • Crítica | Rota de Fuga

    Crítica | Rota de Fuga

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    O sonho de consumo de todo fã de filmes de ação era ver os dois maiores brucutus dos anos 80 contracenando juntos – preferencialmente num embate de vida ou morte. Isso ocorreu em doses homeopáticas nos dois episódios da franquia Mercenários. Rota de Fuga viria para suprir a lacuna de um filme inteiro em que Sylvester Stallone (Ray Breslin) e Arnold Schwarzenegger (Emil Rottmayer) interagiriam com tempo de sobra.

    A história não tenta reinventar nada, é somente um filme de fuga da prisão, mas com uma pompa que se mostra desnecessária com minutos de exibição. O roteiro de Jason Keller e Miles Chapman não é lotado de clichês, seu excesso é nos devaneios (mal filmados) de Ray Breslin e nas “saídas de situações” confusas. A desorganização geral tira o poder do clímax, joga o que deveria ser importante na vala comum e torna os dramas mostrados em tela em situações vexaminosas.

    A história não é de todo o ruim, mas as escolhas do elenco são muito equivocadas, especialmente a da dupla de protagonistas. Este era um filme para atores quarentões e canastras, como Tom Cruise e Ben Affleck por exemplo, e não os geriátricos Sly e Schwarza – acreditar que os dois senhores podem fugir de prisões como querem é demais até para a “suspensão de descrença”. É mais fácil crer que eles são capazes de derrubar republiquetas, atirar com metralhadoras na altura da barriga e matar tudo que vive e respira ao redor… é possível até vê-los salvando o mundo de aliens ou de ameaças humanas, mas colocá-las como engenhosos arquitetos e planejadores geniais não é galhofa, é só mau gosto.

    Não chega a ser um dos piores exemplares da filmografia dos dois astros, mas não parece em momento nenhum que os papéis foram feitos para eles. A frustração deste Rota de Fuga é semelhante ao sentimento horrendo de assistir-se As Duas Faces da Lei, que reunia Pacino e DeNiro. O carisma dos atores não garante uma experiência prazerosa, e nem os profissionais com maior talento dramatúrgico podem exercê-lo, dado o podamento que eles sofrem.

    Escape Plan falha como action movie, gera uma expectativa que não é para si. A presença de Stallone e Schwarzenegger faz com que cresça um sentimento de avidez por ação, que não é satisfeito em praticamente momento nenhum, e outro grave defeito da obra é que o problema citado é notado muito cedo no filme.

    As sequências finais são até bem feitas, o suspense e a perseguição fazem o espectador ficar atento como nunca no filme, mesmo com o péssimo antagonista vivido por Jim Caviezel. A última luta, entre Stallone e Vinnie Jones tem bons momentos, mas termina de forma melancólica, com um desfecho aquém do esperado de uma batalha entre brucutus de diferentes gerações – até lembra visualmente o entrave entre Villain e Barney em Mercenários 2. Já o momento em que Rottmayer toma uma metralhadora em punho e começa a atirar nos capangas poderia ser mais sangrenta, o que não ocorre, mesmo este sendo um filme Rated R, o que é lastimável por si só.

  • Crítica | Clube de Compras Dallas

    Crítica | Clube de Compras Dallas

    Dallas Buyers Club

    Ron Woodroof, personagem de Matthew McConaughey, é mostrado imediatamente como um sujeito desregrado cuja vida boêmia o empurrou para o estágio em que está. A câmera o registra a meia distância em suas atividades “marginais”, sua aparência é de decadência, seu corpo aparenta uma enorme fraqueza através da magreza excessiva e das tosses constantes. A notícia de que seria um soropositivo o pega de surpresa e o faz começar negando o problema. Dallas Buyers Club se passa nos anos 80, onde ainda não se tinha total clarividência sobre a doença, e onde ainda se acreditava que esta era algo passado somente em relações sexuais entre homossexuais.

    A percepção que está mal faz com que Woodroof apele para o suborno, numa brincadeira do roteiro com o Modelo de Kluber Ross (e seus cinco estágios: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação), mas não tira de si o comportamento machista. Tal postura pode ser encarada como um mecanismo de defesa, uma dificuldade de conviver com sua condição, especialmente no ambiente em que está, e a coisa só piora quando os seus “iguais” o tratam como as “bichas”, que são basicamente o seu objeto de ódio até ali.

    À sua maneira Ron tenta dar a volta por cima de seus problemas, a escolha do ramo de negócio o faz encarar sua condição com muito mais positividade, e aparentemente ele até melhora seu aspecto, tendo poucos ataques. Ele expande suas fronteiras, torna-se cosmopolita, na tentativa de retomar seu destino em suas mãos, mas as medidas não passam de paliativos.

    Os ataques e recaídas, simbolizadas com um zumbido intermitente são uma ótima artimanha para demonstrar o descontrole de Ron, a escolha de Jean Marc Vallée demonstra o quão suscetível ele permanece ao vírus, mas não invalida seu meio de vida marginal, visto a propensão da Doutora Eve Saks (Jennifer Garner) aos resultados que seus pacientes têm ao comprar de Ron seus medicamentos. A filmografia de Vallée costuma se valer de um discurso que aborda temas ligados a minorias secularmente excluídas, mas sem tratá-las como pobres coitadas (como em Lista Negra e Café de Flore). O clube de compras é mais do que uma tola tentativa de lucrar em cima da desgraça alheia – coisa que nem mesmo Ron percebe de início.

    As atuações estão impecáveis, Matthew McConaughey faz um sujeito bronco, preso numa situação calamitosa mas que tem criatividade o suficiente para se reinventar e reconsiderar seus conceitos. Os coadjuvantes também são competentes, Jennifer Garner e Denis O’Hare, mas é Jared Leto que obviamente rouba as atenções, com sua Rayon no começo como uma louca drag queen e ao final na decadência da doença, sem conseguir se livrar de seus vícios e definhando dia a dia. Sua vida afeta diretamente a de Ron e o faz perceber o quanto ele mesmo mudou.

    A discussão ética presente no roteiro é obviamente válida, especialmente quando de pensa na burocracia do sistema médico americano e no intervencionismo do homem comum para corrigir a conformidade que lhe é imposta. A venda ilegal das drogas impingida por Ron Woodroof evolui de estágio, de um simples tratamento próprio passando pelo lucro e desembocando na defesa de um ideal que beneficia uma parcela da sociedade que antes era até perseguida pelo indivíduo em questão, mas que mesmo diante de todas as qualificações honrosas ainda é diminuto se comparado ao poderio dos conglomerados farmacêuticos. A resistência de Ronald tem seus louros ao final e ele se torna um símbolo da luta de muitos doentes por melhores condições ao conselho médico estadunidense, ainda que este reconhecimento só tenha vindo anos após seu falecimento em 1992.

  • Crítica | À Procura do Amor

    Crítica | À Procura do Amor

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    A vida de Eva (Julia Louis-Dreyfus) está um caco, sua rotina no trabalho é mostrada como algo desprazeroso e pesaroso, e sua vida amorosa não tem tido grandes momentos ou empolgações… Até que esta vai a uma festa, e sua perspectiva muda após conhecer Marianne (Catherine Keener), uma mulher resoluta e interessante, e um pouco mais tarde, um sujeito de meia-idade e não muito atraente chamado Albert (James Gandolfini), que mesmo com esses atributos, se destacou da maioria dos homens presentes por seu ar de indiferença.

    Algo incomum ocorre nas relações de Eva, mesmo com os amigos mais íntimos, as conversas não acontecem face a face quando não são necessárias – ela faz largo uso do skype, artifício que poderia ser encarado como um substituto ao telefone, mas que também dá margem para a interpretação disto ser um traço de impessoalidade em sua senda, principalmente se analisados os seus defeitos. Sua insegurança se apresenta sob diferentes formas, seja nas relações distantes já destacadas como também na necessidade de aceitação que tem junto as pessoas, de precisar sempre agradar terceiros para se sentir bem. Isso só parece ser realmente quebrado com a aproximação de Albert.

    Enough Said é uma comédia que se baseia bastante nos constrangimentos inerentes a meia-idade. Eva passa por conflitos comuns, como a falta de atração por seu parceiro sexual, insegurança quanto ao futuro da relação e, levemente, teme o que terceiros poderão achar de uma relação que começa após os 40/50 anos, período em que as “expectativas” (com muitas aspas, para não correr o risco de parecer um comentário preconceituoso) são mais prováveis para a chegada de netos, ao invés de namorados.

    Eva e Albert estão em momentos muito parecidos, são divorciados, sentem-se como almas ao leo, fora de seu lugar de direito, não só quanto ao amor, mas também se enxergam deslocados quando se vêem a frente de suas filhas. O claro choque de gerações os constrange, os hábitos alimentares e sexuais de seus rebentos os deixam admirados de forma negativa, mas eles não precisam fazer grandes dramas em relação a isto, a reação de ambos a isso é de resignação, como quase todas as respostas que dão para as situações corriqueiras.

    A situação constrangedora que chega a Eva a faz mudar ao ponto dela deixar de ser ela mesma, e passa a emular as reclamações e experiências de outrem. Passa a ser taxativa com Albert e o critica de tal forma que ele sente-se magoado. Os remendos que faz tornam sua vida ainda mais difícil que antes, e ela experimentara cada vez mais a rejeição daqueles que importam para ela. Uma postura tão dobre pouco combina com uma pessoa adulta, e Eva abusa disso quando não consegue administrar seus sentimentos. À Procura do Amor trata do medo da criação de expectativas e da permissividade de (re)viver sensações tipicamente juvenis.

    A imaturidade da protagonista é uma demonstração de que a prudência não necessariamente vem acompanhada da idade ou do tempo de vida. A realizadora Nicole Holofcener faz uma direção comedida, dando espaço para as boas atuações de seu elenco. Gandolfini e Dreyfus trabalham bem. O fato de não haver muita química entre os dois é desconfortável e serve a trama, enfatizando o quanto ambos são deslocados e se sentem inadequados. Eles não são um casal típico de filmes açucarados, tanto que o desfecho do filme não se dá com um romântico beijo, e sim com uma piada constrangedora, mais uma vez sobre as expectativas que cada um carrega para si e para os outros.

  • Crítica | Frozen: Uma Aventura Congelante

    Crítica | Frozen: Uma Aventura Congelante

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    Baseado (levemente) no conto Snow Queen do bicentenário escritor dinamarquês Hans Christian Andersen – que escrevera outros muitos clássicos como O Patinho Feio, A Polegarzinha, A Roupa Nova do Rei e A Pequena SereiaFrozen Uma Aventura Congelante é mais um exemplar da retomada que a Disney fez com seus filmes de princesa, mas têm um algo a mais na fórmula já um tanto batida, pois seu roteiro leva os temas subalternos a diversão infantil um pouco mais a sério do que os seus primos.

    A história mostra uma dupla de irmãs, Elsa e Anna, que são muito amigas. A mais velha tem poderes elementais do gelo, o que faz com que a caçula se divirta horrores, até que em determinado momento, um descuido faz com que Anna se fira, e a futura rainha se afasta da própria irmã, temendo machucá-la ainda mais. Isso obviamente gera na moça uma carência pela falta de sua melhor amiga, agravada ainda mais pela solidão, Anna cresce – a partir daí é dublada por Kristen Bell – torna-se ingênua nas tratativas com as pessoas e necessita de contatos sociais, mas mesmo com a solidão que vivera, permanece otimista e propensa a resgatar a boa relação com Elsa, que por sua vez, torna-se mais e mais introspectiva e temerosa de mostrar suas habilidades.

    O receio de ser encarada como uma aberração – ou algo ainda pior – motiva Elsa a querer encurtar a cerimônia de sua coroação, mais uma vez mostrando seu temor em expor seus poderes. Com o decorrer dos fatos seu receio mostra-se correto, pois ao menor sinal de demonstração da sua mágica ela é inquirida como uma bruxa na Idade Média, um dos personagens (o mais patético visualmente, o Duke de Weselton) aponta o dedo em riste e é seguido por uma multidão que mal pensa, ignora a sua própria rainha em nome de um medo infundado. A perseguição impingida a nobre a faz se afastar de seu “mundo” mas também a faz experimentar a liberdade pela primeira vez em muito tempo, seu grito libertário é tocante.

    Como os clássicos Disney, este possui muitos números musicais, e qual não é a surpresa em perceber que estes são muito bem feitos, especialmente quando Elsa canta, interpretada pela atriz Indina Menzel de Rent e Glee. A atriz, com ótima voz e um excessivo carisma, consegue prender a atenção do público, mesmo quando ainda não tem o alívio cômico.

    A superfície gelada e os cristais de gelo fazem com que os efeitos especiais valham muito a pena, seu emprego não é exagerado, acrescenta muito a trama. A cadência e o ritmo são bem executados pelos diretores Chris Buck e Jennifer Lee. Os cenários, alvos, são grandiosos e muito belos. A escolha da paleta de cores é muitíssima acertada e a edição de som é competentíssima, se destacando e muito da maioria das animações.

    O diferencial de Frozen em comparação com o resto da patuleia é o seu tom, apesar de ser um filme infantil, ele traz uma mensagem digerível para o público adulto dando menos atenção a piadinhas de cunho mongoloide ao mesmo tempo em que desenvolve uma história que realmente prende a atenção de um observador mais seletivo, sem é claro descuidar dos infantes, o real público alvo da produção, mostrando imagens extremamente coloridas, personagens carismáticos e com um desfecho interessante para quem gosta do gênero. Não à toa é lembrada como uma das melhores, se não a melhor animação de 2013.

  • Crítica | O Lobo de Wall Street

    Crítica | O Lobo de Wall Street

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    O cinema, como todo tipo de arte, é influenciado pelo contexto político de sua época. No auge da depressão pós-1929, tivemos vários filmes de monstro onde a urgência era o homem comum vencê-lo. Na paranoia da guerra fria, filmes de ficção científica com mutações genéticas causadas por radiação nuclear até invasões alienígenas onde ninguém sabia dizer quem era quem e o inimigo poderia ser qualquer um. Na Guerra do Vietnã, a espetaculização e a brutalidade ao vivo da guerra trouxe uma nova geração de cineastas tanto trazendo a realidade depressiva quanto buscando escapes dela.

    Atualmente, a história se repete no contexto pós 2008, com filmes e documentários a respeito da ganância de Wall Street e as origens e consequências da crise especulativa se proliferam no mercado. Apesar de já termos sintomas em produções anteriores como Wall Street – Poder e Cobiça (Oliver Stone, 1987), Loucuras de Dick e Jane (Dean Parisot, 2005) e Enron – Os Mais Espertos da Sala (Alex Gibney, 2005), somente a partir de 2008 vemos uma produção em massa nesse sentido, tanto condenando quanto imergindo no universo especulativo para compreender seu funcionamento, e é nessa categoria que o novo filme de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street se encaixa.

    Baseado no livro homônimo de Jordan Belfort e com roteiro de Terence Winter (Boardwalk Empire e Família Soprano), o filme conta a história de um corretor de ações fraudulento que ganhou milhões explorando brechas no sistema, além de enganar milhares de pessoas a investirem em ações sem valor e assim lucrar nas comissões. Contando com um elenco afiado, Scorsese imprime uma narrativa aliada a velocidade e a loucura da cocaína tão usada no filme e faz com que os 180 minutos de exibição passem voando, tamanho seu controle da história e dos personagens.

    Interpretando Belfort está Leonardo Dicaprio, em uma atuação que renderá muitos elogios. Também está o excelente Jonah Hill (que aguardamos por um filme onde seja mais do que o coadjuvante engraçado) como seu amigo e braço direito Donnie Azoff, além de pequenas participações de Matthew McConaughey como Mark Hannah, um corretor experiente que dá dicas ao jovem Belfort, Jon Favreau como Manny Riskin, seu advogado, e Jean Dujardin como o banqueiro suíço Jean Jacques Saurel. Também participa do filme Kyle Chandler como o Agente do FBI Patrick Denham, incansável e incorruptível funcionário público dedicado a caçar criminosos financeiros como Belfort.

    O que difere o tom de Scorsese dos filmes anteriores, em especial a Stone e ao cinema político de Costa-Gavras é a clara compreensão de que antes de serem bandidos desalmados e predadores do sistema, os corretores de Wall Street são seres humanos com pai, mãe, filhos e que precisam justificar seu comportamento para si mesmo e para os outros a todo instante a fim de evitar uma possível crise existencial e dar sentido aquilo tudo. Eles precisam se convencer de que estão fazendo algo normal, e que todos ali fariam o mesmo. Ao também usar da narração como metalinguagem e brincar a todo instante com o fato de o próprio Belfort contar sua própria história, o filme ganha uma leveza essencial para manter a atenção do público. Também é um mérito o fato de não se perder tempo em explicar os tortuosos caminhos e práticas financeiras de Wall Street, porque ali não interessa e nem cabe.

    Partindo dessa premissa, Scorsese consegue produzir uma história com conteúdo ao mesmo tempo explanatório sem ser piegas, e crítico sem ser panfletário. A mensagem ali é clara: o sistema está quebrado, e quanto mais antiético e desprovido de qualquer senso de moralidade a pessoa for, melhor ela se dará no mercado financeiro. Mas ao retratar isso de forma frenética como as festas e o consumo de drogas (no que lembra o também excelente Os Bons Companheiros), além de dar um toque de comédia na medida certa, o filme consegue produzir uma narrativa que não emperra e flui naturalmente, conduzindo o espectador a compreender e fenômeno ocorrido e a indagar como, em uma sociedade considerada democrática, pessoas podem jogar com o dinheiro dos outros, ganhar com isso, e ainda saírem impunes. Também é mostrado a todo instante como Belfort é ovacionado por seus pares, pois nenhum ser humano sozinho é capaz de tal feito. Ou seja, toda a sociedade é cúmplice de seus atos.

    Quando Belfort diz que o sonho de começar do nada e vencer na vida é o sonho americano, dizendo isso em uma empresa corrupta, que se utiliza dos vícios do sistema e da desregulamentação do mercado financeiro iniciada por Nixon e aprofundada por Reagan e Clinton, para enriquecer às custas do trabalhador honesto, mas que acredita na mensagem desse sonho, não é pura coincidência. É o que embala o desenvolvimento do país. Mas quando esse desenvolvimento sai das ferrovias e da metalurgia e passa para os escritórios regados a cocaína, a lógica funciona, mas o sonho continua permanecendo um sonho, e os Rockefeller de ontem se tornam os Belfort de hoje, embalando o povo americano em uma cantiga enquanto puxa sua carteira por trás.

    No final, sem abusar do panfletarismo tão batido nos nossos dias, o filme termina com a simples mensagem de que o sistema está pronto e foi feito para enriquecer apenas alguns com o trabalho de outros. O trabalhador honesto não consegue mais uma vida digna enquanto os “1% de cima” fazem exatamente o inverso. O corretor fraudulento tem quadra de tênis na prisão enquanto a população carcerária americana, composta majoritariamente por negros, explode junto ao desemprego e a violência. Mas nada disso é mostrado em tela, porque é desnecessária a superexposição de elementos políticos que fora do filme já são debatidos. Aqui, o que interessa é a face de Jordan Belfort e como ele personificou o sonho americano, enganou e enriqueceu milhões, usou quilos de drogas, foi condenado, preso, e hoje está solto dando palestras motivacionais. Pouco consegue personificar mais o atual estado de decadência moral de uma civilização.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Fonte da Vida

    Crítica | Fonte da Vida

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    Fonte da Vida (The Fountain, 2006), terceiro longa dirigido por Darren Aronofsky, foi um projeto complicado, com orçamento inicial de 75 milhões de dólares, primeiro com Brad Pitt, que abandonou o projeto ainda na pré-produção para fazer o péssimo Troia, culminando também na saída de Cate Blanchett do elenco. Com a perda das duas estrelas principais, o projeto foi inicialmente cancelado, tendo que ser reescrito para uma versão que consumisse metade do orçamento original, agora com Hugh Jackman e Rachel Weisz nos papéis principais.

    O filme tem o roteiro assinado por Aronofsky e Ari Handel e nos conta a história de Tommy Creo (Jackman), um cientista obcecado pela descoberta da cura do câncer, motivado principalmente pelo fato de sua esposa, Izzi Creo (Weisz), sofrer da doença já em estágio avançado. A possibilidade da cura é aventada com uma amostra de uma árvore única, vinda da Guatemala, que não apenas pode curar o câncer, como tem um efeito rejuvenescedor em quem o tratamento é submetido. Em paralelo à isso, temos a história do Conquistador (também Jackman) e da Rainha Isabel da Espanha (também Weisz), fruto de um livro que está sendo escrito por Izzi, em que o Conquistador deve buscar nas florestas da Nova Espanha a Árvore da Vida, para salvar seu reino da tirania de um inquisidor. Por último temos uma história no futuro, de Tommy, já como um astronauta em uma bolha com a Árvore da Vida, a caminho da nebulosa de Xibalba, que no mito de criação Maia é o mundo dos mortos. Esta terceira história é também fruto do livro escrito por Izzi, seu último capítulo, que ela pede para que Tommy escreva.

    Num primeiro olhar, essa não linearidade da narrativa pode parecer um tanto confusa, mas apenas um pouco de atenção por parte do espectador, e o preenchimento das lacunas deixadas meticulosamente em aberto pelo diretor, já são o suficiente para não apenas entender a obra, mas também dar-lhe uma conotação completamente pessoal.

    Com tantas interpretações e subtextos, seria impossível abordar todos, até porque estes incorreriam inevitavelmente na interpretação pessoal, e não apenas na análise da obra, mas alguns destes podem ser destacados, como o assunto central da narrativa, que funciona como uma grande reflexão poética sobre o amor e a morte, sua aceitação e sua condição como algo inexorável da vida, cíclica desde suas origens nas supernovas e poeira estelar, chegando até nós humanos.

    Além disso, outro tema já recorrente da filmografia do diretor também se faz presente, a já citada obsessão dos personagens interpretados por Hugh Jackman, colocando essa atitude como um difusor no olhar do protagonista, em que ele mira para objetivos inalcançáveis ou irreais, disposto a tudo por eles, mas ao mesmo tempo isso faz com que ele se afaste do que realmente importa na sua vida corrente. Como tenta, sem sucesso, lhe mostrar a Dra. Lillian (Ellen Burstyn), dizendo que mais do que a cura para a doença, o que Izzi mais precisa naquele momento é a presença de Tommy. Ideia reforçada também por Izzi, ao tentar fazê-lo enxergar que a tal descoberta de uma cura para tudo, até mesmo para a morte, não era de fato para ela, que se sentia serena e completa em face da fatalidade, mas sim para ele, que não aceitava o curso natural da vida.

    Outro ponto a se notar é a presença dos mitos de criação, mais explicitamente o Cristão e Maia, que servem como ponto de apoio para nos mostrar que a busca do cientista, do astronauta, e do Conquistador, é algo maior do que apenas a vida eterna, ele pretende se tornar algo que não apenas burla o ciclo que nem mesmo as estrelas escapam, mas se tornar tão grande, ou até maior, do que as nossas próprias mitologias.

    Fora toda a filosofia que pode se retirar da obra, as atuações também estão ótimas; Hugh Jackman, que à época do filme ainda não tinha tantos trabalhos de peso dramático em sua carreira, mostrava que era capaz de uma excelente atuação fora dos filmes de super heróis e ação, passando sempre o peso emocional requerido para o personagem, com uma dificuldade a mais para os trechos como astronauta, em que a situação psicológica do personagem varia entre o zen e a loucura rapidamente, além de estar quase o tempo todo sozinho.

    Rachel Weisz, apesar do pouco tempo de tela, também executa brilhantemente seus papéis, principalmente como Izzi, pois ao mesmo tempo que é uma pessoa em estado terminal que aceita sua condição, também tem os medos e inseguranças naturais de uma situação como essa, sem nunca passar do ponto ou com qualquer exagero habitual desse tipo de papel.

    A trilha sonora também merece ser observada, criada por Clint Mansell, repetindo a parceria entre o diretor e o compositor de PiRéquiem Para Um Sonho, ajudam e muito a compor toda a atmosfera que o filme exige, tanto nos trechos em que a dor, emoção, e amor são os temas, quanto aos momentos contemplativos vividos pelo astronauta Nova Era, estes também acompanhados de bons efeitos visuais, principalmente na simbiose entre o personagem e o Cosmo.

    Fonte da Vida é um filme que tem uma mensagem forte o suficiente até para o mais incauto espectador, mas que se torna ainda melhor se embarcarmos na reflexão por ele proposta, preenchendo as lacunas com nossas visões de mundo, crenças (ou falta delas), fazendo com que seja não mais um filme, mas uma verdadeira experiência produtiva e intensa.

    Ouça nosso podcast sobre Darren Aronofsky.

  • Crítica | Busca Implacável

    Crítica | Busca Implacável

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    O filme de Pierre Morel (B-13 – 13° Distrito), com guião de Luc Besson e Robert Mark Kamen (roteirista também das franquias Carga Explosiva e Karatê Kid) começa com uma gravação em Super 8, remetendo a um passado um pouco diferente da realidade contemporânea de Bryan Neills (Liam Neeson). Sua atual situação era a de estar empregado num serviço mecânico e com poucas variantes, é rejeitado pela ex-esposa – o que é ainda mais doloroso se tratando de Famke Janssen. Na primeira oportunidade de ação, Bryan demonstra uma habilidade incomum, não antes avisada, e graças a isso encontra uma alternativa para consertar a ausência que exerceu na vida de sua filha, mas obviamente fracassa.

    A super-proteção que Bryan exerce sobre a filha logo é justificada com a viagem a Paris. A menina é raptada e o filme começa de verdade. O aposentado agente é forçado a voltar a ativa, mas ele é frio, calculista e nada enferrujado. Bryan ouve sucessivas vezes a gravação do antagonista desejando-lhe sorte – tudo para absorver a raiva e maximizá-la.

    A direção de Morel aliada a produção de Besson dá a obra o típico rótulo de action movie francês, com muito mais violência que os últimos exemplares americanos do gênero. As cenas de perseguição lembram muito a câmera na mão de Paul Greengrass nos filmes de Jason Bourne.

    -Estou aposentado, não morto! – Bryan não se sente como um homem velho, apesar do seu “retiro planejado”, quando o chamado à aventura vem, ele está pronto, suas habilidades não são somente o aprimoramento físico, mas também, talentos ligados a atuação, seu cuidado com as testemunhas é notório, restringindo o envolvimento destes a somente o necessário.

    A motivação e as habilidades de Bryan são parecidas com as de John Matrix (herói de Comando para Matar), mas muito de seu comportamento lembra o protagonista de Desejo de Matar, Paul Kersey, tanto no intuito de vingança e perseguição de seus inimigos, quanto na improvisação com objetos caseiros.

    Há até uma inteligência no roteiro, ainda que o foco não seja a discussão, o subtexto cita o tráfico de mulheres e a consequente prostituição das vítimas, além de envolvimento de ex-agentes corruptos, a abordagem aos temas não é suavizada, mas o que importa realmente é ver Bryan Neills em ação, invertendo o discurso presente em O Poderoso Chefão, considerando tudo pessoal.

  • Crítica | Alabama Monroe

    Crítica | Alabama Monroe

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    O sul dos EUA, a parte do racismo, pobreza, fanatismo religioso e outros problemas, possui uma produção cultural riquíssima, digna de atenção do mundo todo, e não são poucos os músicos e outros artistas que foram influenciados por suas invenções, mesclas de cultura dos africanos e europeus, como o blues, country (com todas as suas variações) e depois, o rock. Essa aura musical é pano de fundo para o longa belga The Broken Circle Breakdown (Alabama Monroe), de Felix Van Groeningen, indicado ao Oscar 2014 de Melhor filme estrangeiro.

    O filme conta a história do casal Elise (Veerle Baetens) e Didier (Johan Heldenbergh). Ela, uma tatuadora com toque pin-up e ele um fanático pela cultura hillbilly e bluegrass do sul dos EUA, tendo inclusive um grupo musical que toca músicas do estilo… na Bélgica. Ambos possuem uma filha pequena, Maybelle (Nell Cattrysse) que fica gravemente doente, colocando em risco toda a relação entre eles.

    Uma das razões para o filme funcionar tão bem, e ter a carga dramática, pesada, tão bem medida, é a montagem. Ao alternar cenas fortes como da filha doente com cenas do passado, do casamento, do nascimento de Maybelle e seus pequenos momentos de descoberta, o espectador consegue dosar a brutalidade de uma doença terrível como o câncer infantil e lidar melhor com os sentimentos. Quando Maybelle morre, somos apresentados ao momento em que Didier e Elise se conhecem. Não fosse isso, provavelmente a experiência de ver o filme se tornaria provavelmente insuportável.

    Outro destaque vai para a trilha sonora, composta por canções originais e regravações de clássicos de bluegrass, executadas pelos protagonistas Heldenbergh, Baetens e Bjorn Eriksson no grupo The Broken Circle Breakdown, que dá nome ao filme. As músicas, reconhecidas por melodias simples e muitas vezes melancólicas, conduz a história quase como um personagem a parte, mais ou menos como os irmãos Coen fizeram em E Aí, Meu Irmão, Cadê Você, inclusive com a repetição de uma música já usada no filme protagonizado por Clooney, “Didn’t Leave Nobody But The Baby”, em um belo, mas trágico momento do filme.

    Trágico, inclusive, é o que melhor traduz o avanço da história, ao mostrar como um casal, por mais conectado que seja, dificilmente consegue superar a perda de um filho. E essa dor traduz em agressões verbais entre Didier e Elise, que apesar de se amarem, não sabem o que fazer com aqueles sentimentos, explodindo para fora.

    A trama, pessoal até então, derrapa um pouco ao tornar Didier porta-voz de um discurso político pró-ciência e anti-religião. Ao se passar no momento em que o presidente Bush proibia as pesquisas com células-tronco nos EUA, há uma mudança pouco natural na temática e que torna o sentimento de Didier artificial, apesar de ser clara a tentativa de mostrar um homem racional tentando lidar, a sua forma, com uma dor tão grande.

    O contraponto interessante nessa parte se dá justamente ao colocar uma figura clássica do sul dos EUA, o presidente George W. Bush, notável conservador e representante da ideologia da maior parte da população da região, vai contra uma pesquisa de células-tronco por motivos religiosos, uma pesquisa que, com a contribuição dos EUA poderia estar mais adiantada e ter salvado a filha do casal. Ou seja, a mesma cultura capaz de produzir uma musicalidade tão formidável produz seres como Bush, responsáveis por desgraças imensas. Didier e Elise aprendem, do jeito mais duro, de que a cultura não é inseparável, e que o sul dos EUA trazem uma carga pesada junto a música.

    Essencial também é notar como Didier, ao melhor estilo da música sulista em sua origem, não é um simples produto de consumo como em nossa sociedade, mas sim uma manifestação artística que une pessoas e as ajuda a passar por momentos difíceis, o que a população negra da região sabe muito bem. Portanto, ao utilizar a música nos momentos mais trágicos do filme, há essa lembrança essencial da real função da arte, a de nos trazer uma reflexão sobre as pessoas, o planeta, e principalmente, sobre nós mesmos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Eu e Você

    Crítica | Eu e Você

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    Na ativa desde os anos 1960, o antigo assistente de direção de Pasolini – em Accattone – se vale de seu passado como estudante de literatura moderna para desenvolver o roteiro de Io e Te, um drama que envolve jovens pessoas, a busca pela maturidade ainda longe de ser alcançada e que ainda sim possuem problemas e dramas de gente grande.

    Bernardo Bertolucci já abordara, em episódios anteriores de sua filmografia, as tragédias juvenis, especialmente em dois filmes (estadunidenses) seus, a saber Beleza Roubada (Steeling Beauty) e Os Sonhadores (The Dreamers). Após o longo exílio, Bernardo volta seus olhos novamente para o cinema italiano, e com um conteúdo universalista por essência. Lorenzo (Jacopo Olmi Antinori), o protagonista poderia ser um rapaz de qualquer nacionalidade, muito graças ao conjunto de signos que o acompanha, desde os fones de ouvido que usa, gigantes, e que o isolam do contato humano quando este o quer ou pela confusão mental típica de quem acabara de sair da fase infante da vida, até mesmo tocando levemente numa variação do Complexo de Édipo, claro, de forma jocosa.

    Lorenzo é um rapaz muito parecido com tantos outros de sua geração, sofre bullying na escola, mas não se acha uma enorme vítima graças a isso, o que o diferencia dos demais é a visão que tem dos adultos e sua independência, ele tem qualquer coisa – talvez a indefinição típica da idade – que o incomoda, o faz querer fugir, se sente um intruso dentro de casa e um penetra por onde quer que ande. Ele encara a infância como uma prisão, ao verificar os adultos que os cerca os vê distantes, em pedestais enormes, não como objetos de adoração, mas como seres acima de si – a câmera flagrando um par dançando sobre um teto de vidro enquanto o rapaz observa, flagra isto com maestria. A inferioridade que o rapaz se auto-impige o faz procurar um esconderijo abaixo de todos, no subsolo, no esquecido porão de seus pais. Sua vontade é se isolar, ter espaço para nada fazer, para exercer o ócio e se entupir de seus refrigerantes e comidas gordurosas – mais avatares da adolescência –  até que sua fortaleza é invadida.

    Olivia (executada pela bela Tea Falco) adentra a privacidade do irmão sem mal bater a porta, e tenciona dividir com ele o lugar da fuga, suas motivações são inversas as dele, Lorenzo sente-se sufocado e quer liberdade, enquanto Olivia sente-se só, abandonada pelos seus – ainda que ambos não queiram demonstrar suas fraquezas, vão aos poucos tecendo uma relação simbiótica. O ambiente/cenário quase nunca muda, Bertolucci quer massificar a ideia da rotina imutável, da dificuldade em mudar e de sair do conformismo mesmo que as situações mostradas estejam longe de ser confortáveis.

    Lorenzo se esconde, se esgueira, ainda não tem dimensão ou noção do que ocorre ao seu redor e da gravidade dos fatos rotineiros a sua volta – no entanto, isso não o impede de sentir-se mal com o modo como sua casa é administrada, além da forma como é tratado por seus parentes. Sua pouca maturidade não o permite sequer perceber o drama de sua meia-irmã na plenitude, e isso corrobora para que ela sinta-se mais a vontade, pois não há tratamento misericordioso ou penoso da parte dele consigo. Pouco a pouco, Lorenzo se permite ter uma relação mais sólida com Olivia, enxergando-a não só como uma irmã, mas também como uma semelhante, um ser igual a si.

    Bertolucci conduz um filme monotemático quantos aos cenários, mas muito dúbio em relação aos dramas da juventude. A monotonia domina o período de reencontro entre as duas crianças, que tentam resgatar a rotina, os tempos mais simples e mais tranquilos de quando os dois tinham uma relação muito mais próxima, ainda que, mesmo com a distância, a ligação entre eles não deixou de existir, vide todo o cuidado e ciúme do caçula pela primogênita, aceitando-a mesmo que ela odeie alguns de seus entes queridos. O amor entre os dois transcende o background e as opiniões diversas, mostrando que a infância pode ser uma fase muito menos preconceituosa que a fase adulta. O prolixo roteiro de Bertolucci, Umberto Contarello e Niccolò Ammaniti toca em temas complicados, mas sem ser apelativo em momento nenhum.

  • Crítica | Tarzan: A Evolução da Lenda

    Crítica | Tarzan: A Evolução da Lenda

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    Esta é a “enegésima” adaptação da obra literária de Edgar Rice Burroughs. E, tal como num telefone sem fio, alguns aspectos da história se perderam ou se truncaram durante a “transmissão”. Sabe-se lá em que momento Greystoke e Clayton deixaram de ser a mesma pessoa. Originalmente, John Clayton (o nome “inglês” de Tarzan) é o Visconde – ou Lorde – Greystoke. Em algum ponto, nesse mar de adaptações teatrais, cinematográficas e de animação, John Clayton deixou de ser o nome do mocinho e passou a ser o do vilão. Isso, além de outros elementos, leva-nos a concluir que as versões mais recentes não são uma adaptação da obra de Burroughs, mas sim, uma adaptação de uma das adaptações que (espero) tenha sido bem sucedida. Desse modo, não é possível julgar como um erro de roteiro se essa imprecisão está presente. Infelizmente, outros tantos problemas narrativos impedem o espectador de sair satisfeito da sala de cinema.

    No início do filme, situações improváveis se sucedem numa quantidade surpreendente. Verdade que é um filme voltado ao público infantil, mas isso não justifica que os eventos não precisem fazer sentido. A rota do helicóptero, que ao fazer um trajeto rotineiro passa por um lugar nunca antes avistado; a atitude imprudente e duvidosa primeiro do pai de John – ao resolver explorar o local – e depois da mãe – ao ir, com o filho, em busca do marido; a “reação” inexplicável da montanha; a queda e subsequente explosão do helicóptero, violenta o suficiente para destruir o aparelho, mas não o bastante para causar a morte de todos os passageiros. Apenas para citar alguns exemplos sem contar demais da história.

    Chamar o filme de “A evolução da lenda” é um eufemismo para justificar a adição de elementos estranhos ao original e, a meu ver, totalmente dispensáveis. Qual a necessidade de incluir dinossauros e substâncias alienígenas? Nesse contexto, transformar o vilão no representante de uma corporação em vez de ser apenas um homem ganancioso, talvez seja o menor dos problemas.

    O que provavelmente mais incomoda o público é a tentativa (infrutífera) de copiar alguns elementos da animação da Disney – referência para a maioria dos espectadores. Posicionamentos dos personagens – principalmente do protagonista -, alguns trechos em que Tarzan “cresce” enquanto atravessa a selva, algumas cenas de ação, tudo isso deixa o espectador com aquela sensação de déjà-vu constante e incômoda. Um tiro no pé, nada mais. Além disso, seria ingenuidade acreditar ser possível cativar o público do mesmo modo como o fez a Disney e a trilha sonora de Phil Collins.

    Aliás, na trilha sonora, registra-se mais um ponto falho. No trecho idílico em que Tarzan mostra a selva à sua amada Jane, a música que toca é “Paradise”, do Coldplay. Ok, tem a ver com a situação, já que reflete a percepção dos personagens. Mas incluir uma música que virou marca registrada de um blockbuster recente – As Aventuras de Pi – é, no mínimo, uma escolha equivocada, pois automaticamente o espectador é “levado” ao outro filme pela melodia.

    Sobre a parte técnica, mais especificamente sobre a animação por computador, há pouco a dizer. Não é ruim, mas fica aquém de algumas produções anteriores – Avatar, ou mesmo alguns mais caricatos, tipo Como treinar seu dragão. Os personagens, para um desenho animado, são bem críveis – até abrirem a boca para falar. E se por um lado percebe-se preocupação com pormenores – os cabelos meio “grudados” e a pele do Tarzan, levemente manchada de terra e sujeira – por outro, há detalhes que dariam mais credibilidade ao personagem mas que foram deixados de lado – um homem da selva com unhas limpas e bem aparadas? Não faz sentido. Pode parecer preciosismo, mas se deram atenção à pele ligeiramente suja, por que não fazer o mesmo com as unhas? E sobre o 3D, não há nada a comentar, já que não foi explorado de modo a contribuir com a experiência de assistir ao filme. Um ou outro outro elemento pulando da tela e nada mais.

    Talvez o público infantil curta o filme, pelas cores, pelos animais, pelas cenas de ação. Mas infelizmente o adulto que levar as crianças ao cinema não irá se divertir tanto. Na certa, ao sair da sessão estará saudoso da versão Disney, não vendo a hora de chegar em casa, colocar o blu-ray no player e cantarolar “You’ll be in my heart” junto com Phil Collins.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Esquadrão Classe A

    Crítica | Esquadrão Classe A

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    A introdução dos personagens é perfeita: o Coronel (Neeson), Bosco B. A. (Quinto Jackson), Cara de Pau (Cooper), Murdock (Sharlto Copley), além do furgão é claro – o panteão de personagens é muito bem reprisado e as consequências de ação iniciais são eletrizantes e já mostram a que vieram. A perseguição com helicópteros é muito bem filmada – até o anúncio dos créditos iniciais ambienta o espectador no mundo do A-Team, a aventura a ser mostrada é despretensiosa, escapista e descompromissada com qualquer mensagem mais profunda, o tom leve do seriado oitentista é muitíssimo bem atualizado por Joe Carnahan e seu elenco, muito bem encaixado, peça por peça. Esquadrão Classe A reitera todo o conteúdo humorístico da série original com uma competente aura moderna em torno de si.

    Neeson faz um Hannibbal Smith parecido com o original, mas com um acréscimo de carisma tipico seu, ainda que sua especialização em filmes de ação não o faça repetir o mesmo estereótipo em filmes diferentes. Ele consegue passar a sensação de liderança que um mentor precisa ter, ao mesmo tempo que concentra em si o protagonismo da história – sua liderança se destaca ainda mais em meio a crise que o grupo passa os valores de unidade, amizade e companheirismo são as sensações focadas na fita de Carnahan. O resgate dos membros da equipe é tão eletrizante quanto as outras cenas de ação. A metalinguagem presente na fuga do Capitão Murdock é emocionante para os fãs da série original. As piadas internas, os medos do quarteto a ambientação, tudo é muitíssimo respeitado.

    Até se ensaia uma reflexão mais profunda relativa a real necessidade de violência na resolução de conflitos e a natureza assassina dos homens fardados, mas o enfoque real é no clima de matinê, nos feitos incríveis e situações fantasiosas, com veículos que pesam toneladas transpassando o ar como se fossem feitos de papel ou repousando sobre o mar acompanhados de um para-quedas a tira-colo.

    É lastimável que o filme não tenha ido bem de bilheteria nos Estados Unidos, o que praticamente inviabiliza uma continuação – mesmo com o gancho presente nos últimos minutos de ecrã. As referências, a reverência, as homenagens, tudo que é registrado pela lente de Joe Carnahan é absolutamente respeitoso – especialmente a cena pós-créditos – e atualizado para o novo público amante de filmes de ação, acostumado às fitas com Vin Diesel, Jason Statham e Dwayne Johnsonn. O diretor soube revitalizar o tema sem feri-lo ao ponto de torná-lo indistinguível do original, e o perigo era grande, vide o que ocorreu com a franquia Missão Impossível – e talvez o “erro” cometido por ele para que o filme não fosse sucesso de público, seja o de não incluir em sua fórmula os clichês teen típicos de seus concorrentes blockbusters de 2010, mas Carnahan prosseguiria realizando bons filmes como A Perseguição, além de estar cotado para dirigir o filme baseado no quadrinho de Mark Millar, Nemesis.

  • Crítica | Red: Aposentados e Perigosos

    Crítica | Red: Aposentados e Perigosos

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    A 1ª adaptação para o cinema dos quadrinhos de Warren Ellis, em seus primeiros minutos, se mostra diferentíssima do texto original, a começar pela abordagem, bastante relacionada a comédia romântica – ainda que não tarde a chegar as cenas de ação, com a linda derrubada de uma casa por conta de um tiroteio desvairado.

    Após começar a caça em si, Frank Moses/Bruce Willis no automático, tem de resgatar sua princesa encantada, Sarah (a ainda deliciosa Mary Louise Parker), o que contradiz o perfil do seu personagem, o solitário e auto-suficiente ex-agente da CIA com grandes contatos. Robert Schwentke tenta angariar dois nichos distintos para sua obra, os fanboys e o público feminino, e ao menos nesse quesito, a fórmula é bem executada e equilibrada.

    As cenas de perseguição no píer são tão galhofadas que parecem retiradas de um cartoon do Pernalonga – nenhum filme do Looney Tunes Live Action levou tão a sério o conceito quanto neste Red. A comédia e o humor rasgado predominam em quase toda a trama, o que não empobrece as outras sequências de luta, muito bem filmadas e coreografadas, aliadas a uma fotografia competente. As cores vivas escolhidas pelo realizador remetem ao tom escapista das HQs de super-humanos da DC.

    O roteiro dos irmãos Join e Erich Hoeber (Terror na Antártida) trata da inadequação do bando de agentes aposentados a vida civil (tema retirado da graphic novel, mas ampliado a mais personagens), e da vontade de Frank em finalmente ter uma vida normal, com paixões, uma família, anseios comuns, inerentes a qualquer ser humano comum. A vida amorosa dos super-espiões é mostrado como algo confuso e cheio de contradições, mas é claro, sem jamais se levar a sério.

    A direção de atores exercida por Robert Schwentke é muito boa, pois não atrapalha. Os artistas estão livres para trabalhar: Morgan Freeman, John Malkovich, Bryan Cox, Helen Mirren estão soltos, enquanto Karl Urban faz o antagonista honrado de uma maneira muito lúcida, seu personagem William Cooper é a síntese do quanto o serviço secreto mudou, no que tange aprimoramento físico, se modernizando para suplantar a geração anterior, mas seu código moral é muito semelhante ao de seus antecessores, e ele não se permite mudar de lado, mesmo que seus superiores o tentem impingir a isso.

    Red mantém o tom jocoso o tempo inteiro, e apesar da pouca semelhança com a história em quadrinhos, é um bom exercício de humor. Tem em seu caráter algo parecido com o que foi visto no primeiro Mercenários de Sylvester Stallone, reunindo um elenco veterano para brincar com os clichês dos filmes de ação.

  • Crítica | Como Não Perder Essa Mulher

    Crítica | Como Não Perder Essa Mulher

    Para um espécime do sexo masculino, é natural entender o que move a psiquê do personagem de Joseph Gordon Levitt, chamado de Don Jon por seus amigos devido a sua fama de conquistador. Ele é claramente um ninfomaníaco, porém afirma que não há nada no mundo como a pornografia, nem mesmo o sexo. Sem muitos rodeios, o discurso é proferido pelo protagonista, frustrado por não conseguir na vida real quase nada do gozo idealizado pelos X rate movies.

    Questões como sexo oral e a necessidade de reciprocidade, as posições pouco vantajosas para quem gosta de analisar as curvas femininas durante a transa, entre outros apontamentos, são argumentos válidos se o espectador estiver inserido na mesma linha de pensamento do protagonista. A evolução disto é a constatação da solidão, clichê típico de uma comédia romântica, gênero em que o ator/realizador sente-se muito à vontade. No entanto, neste filme, as regras são levadas ao limite, exageradas propositalmente para alcançar um público pouco usual do filão.

    A quebra de expectativa, quando Jon não conquista o sexo imediato com a nova parceira, funciona para ele, pois desperta curiosidade e consequente idealização que ele não conseguiria sustentar com seus hábitos antigos. Inclusive, a quebra da rotina se torna menos árdua quando o objeto de adoração é Scarlett Johansson (Barbara). Ao contrário dos filmes água-com-açúcar, há um bocado de pimenta nesta película, ainda que seja acompanhada de um irremediável corta-gozo.

    A cena que registra um dos flagras é filmada com a câmera na mão, emulando a improvisação – e com ela a típica desculpa dos parceiros Y a suas cônjuges X de que o flagrante foi um incidente isolado, quando claramente não o é. Demonstra-se, com isso, a obsessão do personagem em encontrar alternativas para consumir vídeos adultos quando não os consegue em sua casa, acompanhado de Barbara.

    Curioso como a Igreja pede uma menor penitência quando a pornografia é interrompida na vida de Johnny, como se  o fato de consumi-la fosse mais culposo que o de ter relações de verdade, o que demonstra como a sociedade culpa o voyeurismo de forma demoníaca. Conviver com os próprios pecados não é um grave problema para Johnny, visto que este administra suas penitências através do treinamento físico, tentando levar o aprimoramento do corpo junto a seu pretenso perdoado espírito, ainda que, em última análise, ele se sinta culpado por tudo.

    A possessividade de sua parceira o faz sentir-se invadido. Ainda que o seu receio seja o de ser descoberto, a preocupação retratada em tela pode ser encarada como metáfora para praticamente qualquer questão de relacionamento vista como empecilho. Há um bocado de crítica à vaidade excessiva e ao narcisismo, ao egocentrismo, e, é claro, à enorme tendência de um relacionamento cair nestas armadilhas, ao invés de ser baseado em trocas – de amor, carinho e respeito –  e tornar-se uma relação de puro interesse mesquinho.

    O sorrisinho sem graça que o personagem sempre carrega quando se retira de sua idílica rotina evidencia que ele se enxerga como o errado. Don Jon é centrado na atuação de Joseph Gordon Levitt e sua direção é um exercício de valorização de seus dotes dramatúrgicos. O filme é um épico sobre um rapaz numa jornada (um tanto tardia) rumo ao amadurecimento e à aceitação que depende de outros seres humanos – no fim ele é só mais uma alma amargurada e carente. E, neste ponto, nada difere dos heróis das comédias cor-de-rosas: o foco no alvo errado, o aprendizado, a mutação do herói, a trajetória edificante.

    Para os mais incautos, Como Não Perder Essa Mulher pode ser um filme tocante – e ele pretende ser, mas não acerta nisso. No entanto, os acertos são maiores que os erros. As atuações são competentes, especialmente a da mentora que Juliane Moore exerce. No entanto, o mérito especial certamente vai para a desconstrução inofensiva dos contos de fadas para o público masculino.