O Desprezo, de Jean Luc Godard, é um filme ofegante que nos permite respirar de alívio. Produto filho de uma mente toda peculiar que não reinventou a roda, mas ajudou a calibrar os pneus de um indispensável inconformismo na mesma estrada secular por onde passaram tantas outras consciências. É um longo e elegante clímax sensorial além do certo e do errado. A partir da declaração de Glauber Rocha em que “O cinema é a lata de lixo das belas-artes”, e da de Godard: “Sou um pintor de letras, quero entrar na caverna de Platão iluminado pela luz de Cezánne”, O Desprezo é um filme gigante e ainda mais lindo que Brigitte Bardot aos vinte e poucos anos, se for possível, e é esse o efeito de fascínio absoluto que o nipônico Esplendor tanto (nos) pretende alcançar.
A jovem Misako (Misaki Ayame) ganha a vida descrevendo em braile cenas de filmes para um grupo de deficientes visuais que também merecem se maravilhar e/ou exercitar o senso crítico diante de grandes e pequenas obras audiovisuais. Trabalho árduo como só e um tanto melancólico na vida da moça, Misako, mulher independente e de personalidade amigável ao extremo, tem como círculo social pessoas completamente integradas a moral da sua sensível profissão. Para ela, o valor da visão é reforçado a cada dia e a cada empreitada profissional, e por isso mesmo acha motivação ininterrupta para ser útil aos que reconhecem nosso entorno através de adaptações sensoriais, hábitos e trejeitos todo especiais, e nem por isso se esquecem da magia dos filmes.
Tudo segue em harmonia, e tudo se desestabiliza quando o seu pacato caminho se esbarra com o de um fotógrafo em avançado processo de cegueira, e que a acusa com propriedade de ser, em suas palavras, uma tradutora horrível. Para ele, falta em Misako um senso de minimalismo em momentos que não dependem de interpretações ambíguas, mas objetividade e uma perícia maior nesse trabalho. Questionada em súbito, a mulher se abala fácil acerca da própria abordagem no trato com a vastidão de significados que o Cinema carrega, e não apenas sobre isso: Será que sua sensibilidade dá conta de traduzir toda uma miscelânea de imagens em movimento a favor de quem visualmente não é revelada a opulência das coisas desse mundo?
Se Godard quis pintar o mundo moderno e ancestral de pura poesia, a cineasta Naomi Kawase nos faz imaginar o peso diário que existe naqueles que não alcançam não somente essa ou aquela poética manifestada, mas a banalidade e a liberdade de ser e existir que pode parecer de fato inatingível, por exemplo, para um apaixonado por fotografias que, remando no escuro contra o destino, não deixa de lado sua máquina fotográfica e muito menos a sua profunda imaginação humana no registro de uma dimensão que o mantém vivo para capturá-la, de um jeito ou de outro, como ele mesmo se certifica disso, vendo na razão do seu ofício a sua própria razão de respirar.
Contudo, quem pode dizer que Misako também não enxerga sua existência com os olhos do coração, e com a assistência da sua alma em pleno furor e atividade? Nisso, o sentimentalismo da trama de Esplendor sobre a relação cada vez mais direta entre dois seres que literalmente se completam e se auxiliam na vida pode parecer exagerado, mas o apelo emocional casa com grande harmonia ao longo de cenas como a do pôr do sol na montanha, ressaltando então a temperatura das cores, as cores das temperaturas e do intocável. Questionamentos e reflexões válidas para um filme no mínimo envolvente, sereno, leve e constante, sem grandes pretensões tais as literárias de um José Saramago, mas grande e eloquente no conteúdo metafórico que Kawase nos preparou, confiante no poder do som, da imagem, e transbordante nos seus valores universais de brilho inquestionável.