Miguel Gomes é o tipo de cineasta que só filma aquilo que lhe faz expressar, do seu modo, seu amor incondicional e maior que a vida pelo Cinema. Esse modo prolífico que nos faz embarcar ou não em seus convites por realidades tão particulares de um cineasta, disposto a abrir-se e dividir seus fantasmas e loucuras conosco é afetado, ao extremo, no caso do cineasta português, por um misticismo oco e uma hipocrisia metafórica que sempre abstratam e encharcam de duplos sentidos desnecessários o fio que rege a meada das obras de Gomes, por mais simples que seja a história em xeque; e é preciso apontar, ainda que nítido, como essas pretensões atrapalham a releitura do cineasta com os clássicos contos árabes de Xerazade, rejeitando um olhar menos óbvio e abraçando, sem nunca decidir se abraça mesmo ou não, um espetáculo semi vazio de sentidos, além daqueles propostos por imagens que nem falam tão alto, assim.
Uma releitura, logo de cara, que se apropria das palavras, no livro irresistíveis, da mulher que adia sua morte enrolando o rei Xahriár, noite após noite, sempre com uma história melhor que a outra, numa teia de narrativas inebriantes que o filme se apropria para destilar, apostando no poder de uma narrativa imagética sem pé nem cabeça, fábulas de amor e ódio, terror e piedade, sobre a delicadeza e a brutalidade que regem eventos fantásticos intrínsecos ao universo mitológico das interessantes e sedutoras As Mil e Uma Noites, mas que Gomes, exceto em poucos momentos realmente inspirados, nunca consegue, e se esforça para isso, converter o fascínio do original à cadência de seus domínios artísticos em ascensão.
Isso porque, e essa é a pedra reinante no sapato aqui, Gomes entende o surrealismo (forma atribuída à experiência) como anarquia, como desculpa incongruente para a falta de harmonia das coisas, ainda que seja uma anarquia organizada (lê-se controlada) e filtrada pelas ligações sociais mais básicas (e que também regem as fábulas oriundas de um longo ramo sírio) de uma humanidade caótica, colorida e diversificada, tentando juntar todas as histórias num multiplot apressado, mal resolvido entre o contar satisfatório de cada uma, e a ambição de construir um filme sólido ainda que dividido, em várias realidades, tempos e/ou personagens; tudo sem qualquer verossimilhança na ciranda substancial das histórias. Uma antologia de rimas visuais presa no empate entre embaralhar o olhar, e o elucidá-lo.
Se por um lado, a abordagem desenfreadamente contemporânea e paródica com As Mil e Uma Noites tem, na primeira parte d’O Inquieto, histórias traduzidas numa metalinguagem gostosa de acompanhar, inclusive convidativas a uma leitura mais aprofundada, com mais esmero na experiência cedida pelos livros originais, por outro a obra cinematográfica, refém e acomodada numa linguagem mais sintetizada, se perde entre referências literárias que não cabem na tela, entre críticas sociais irritantes e outras obrigações tolas com o lado satírico de um filme vago, confuso, cheio de barriga e tão ambicioso que precisou dilatar sua essência numa trilogia longa, demais. Pelo menos Gomes conseguiu o que, para si, era inegociável: Dá gosto assistir um filme feito com tanta paixão (nem tanto pelas lendas de Xerazade, mas) pelo Cinema.