François Ozon, agora em seu décimo sétimo filme em vinte anos de carreira, é um grande observador francês incorrigível da vida cotidiana dos seres humanos, deixados a mercê de suas relações sempre conflitantes, e por vezes, como mais interessa ao Cinema e a outras expressões, catastróficas. Voyeur assumido, seus dramas são sempre uma ode à observação elegante e bem calculada, orquestrada sem pompa mas com um requinte rítmico e essencial que nem mesmo quem assiste as suas crias sabe explicar parte daquele charme e a sensação de análise existencial que fez seu melhor filme, O Tempo Que Resta, alçar Ozon a um merecido reconhecimento, festivais mundo agora.
Agora, sob o pretexto de Chloé (Marine Vacth), uma jovem moça cujos problemas psiquiátricos, que podem estar ocasionando dores em seu ventre, a levam a conhecer um psicanalista e se envolver muito, mas muito mais que na mera esfera profissional do contato entre ela, e ele, homem sereno e sensato em seu consultório, Ozon reflete com a calmaria e o equilíbrio de um mestre sobre a verdade que pode existir (ou não) entre duas ou mais pessoas recém conhecidas num contexto urbano. Bom ouvinte e observador tal qual o cineasta francês, o doutor Paul Meyer (Jérémie Renier) tampouco se apressa a deixar sua máscara cair, e aos poucos também desnuda sua personalidade a frágil moça de olhos de esmeralda, e rosto de boneca.
É delicioso acompanhar Ozon usando e abusando de técnicas de montagem e fotografia que nunca perdem seu requinte, mesmo num simples ambiente como um consultório, um museu ou um apartamento lavados por uma luz ambiente rotineira, sendo um tanto exagerado (ou melhor: apaixonado) nesse compromisso narrativo com o espectador, ainda que persista a manter nosso interesse pela imagem de forma invejável inclusive para outros cineastas franceses, como o irritante Xavier Dolan, criador de caricaturas desarmoniosas e de péssimo gosto das suas próprias ideias imaturas – e não tem nada demais nisso quando se tem um bom diretor no comando de uma alegoria, seja ela aquilo que a mesma acabe por ser.
No caso deste O Amante Duplo, há muito a se admirar para quem não conhece o trabalho de Ozon, e também para quem já segue os bons filmes contemporâneos do cara, como o ótimo Dentro de Casa, de 2012, e o simpático Potiche, de 2015, filme este com Catherine Deneuve, nossa eterna bela da tarde. Como um estudo de personagem, todavia, eis aqui um filme de 2017 ainda mais inescrupuloso que os já mencionados no que se refere a sexualidade humana, um tema aqui usado para enlaçar um universo de puros desabafos, memórias, meias verdades e manipulação, enfim, que só o gato negro de olhos laranja de Paul parece ver, nitidamente.
Os rostos falam mais que mãos e pés, como já pregava Eduardo Coutinho em suas entrevistas antes da morte, e aqui, o semblante do psicanalista Paul encarando a meiga Chloé, como no embate entre corpos nus na sala de estar já evidencia, cada vez mais remete a alma misteriosa de um De Olhos Bem Fechados, clássico sombrio de Stanley Kubrick, uma vez que o sexo nesse universo de caos crescente não deve ser negado, irrompendo como uma força bruta e recíproca da natureza numa modernidade de cores frias, feito flor colorida no asfalto duro. A mente humana é tanto uma armadilha quanto uma arma, tal qual tantas relações iniciadas e acabadas no caos ruminado por dois.
Típico thriller de cortinas fechadas e dizeres por dizer, sussurrados senão através de intenções sexuais no desdobramento alucinante de um jogo eletrizante de perseguição, e paranoia, O Amante Duplo confirma com firmeza e prazer retóricos François Ozon como um realizador muito subestimado pela grande fatia do público que, a cada filme do francês, ganha uma nova chance de apreciá-lo aonde se deve: no escuro duma sala de cinema, até que as imagens que a fazem viver deixem de ser projetadas, e sua tela, novamente sem movimento, seja, por fim, “estilhaçada”.