Stephen Frears e Judi Dench têm uma parceria de longa data, e muito bem-sucedida, obrigado. Aparentemente, inclusive, nasceram um para o outro na arte que se devotam, já que os projetos de Frears parecem talhados sob medida pra Dench nos lembrar a cada papel anual nos filmes do cara de ser uma das melhores atrizes em atividade, e que junto de Helen Mirren, Maggie Smith e outras divas (Cate Blanchett salta a mente, como não poderia deixar de ser) também habita esse mundo entre mortais para recitar William Shakespeare e incorporar ícones da monarquia europeia sem em momento algum parecer ou soar falso, forçado pela mise en-scène suntuosa que transforma, às vezes, pessoas brancas e normais em reis e rainhas de mentirinha numa corte de estúdio cênico. Com elas, e sob suas entonações, a naturalidade vaza das joias da coroa britânica e seus vestidos de seda indiana.
Temos aqui mais uma boa parceria entre atriz e cineasta veteranos, numa espécie de deja-vú filmado de inúmeros outros filmes e livros sobre a aristocracia que você provavelmente já assistiu ou leu antes. Aqui, entretanto, há algo inusitado nos contornos da trama, com a famosa rainha Vitória, já uma idosa monarca se relacionando numa amizade improvável e confessionária com Abdul, um ‘reles’ funcionário do governo indiano, enviado à corte apenas como entregador de um mohur, uma antiga moeda de ouro de grande significado cultural. É claro que ao vê-la, Vitória esnoba uma reles moeda, e logo antes disso, é dito a Abdul não olhar diretamente a ela, preservando os ritos e as normas de uma inflexível hierarquia real de ordem, e submissão. E, quando este obviamente a olha, dá-se o choque de intimidade doce e singela que o filme precisava para acontecer.
Inofensivo como só, e sem surpreendentemente apelar para o melodrama fácil como poderia, o filme é um deleite visual para toda família, como Frears sabe muito bem preparar, indo contra a subestimação da percepção do seu público cativo – vide exceções, tal qualquer outro filme antes de Sra. Handerson Apresenta, de 2005, quando a partir daí, o cineasta, inglês até não poder mais e com mais bom gosto que vários conterrâneos cafonas da linha de Tom Hooper e Joe Wright, resolveu pegar leve com as plateias, talvez sentindo falta disso nas experiências que temos com o cinema deste século.
O filme, aliás, trata de delimitar muito bem os limites sociais que parecem existir naturalmente para ambos os protagonistas, desde o primeiro plano captando Abdul de baixo, aonde ele estaria na pirâmide social, construindo aos poucos uma relação, senão igualitária, baseada então na disposição sincera da rainha e de seu amigo pela descoberta do novo, sem qualquer conotação sexual ou apologética, porém sem nunca nenhum dos dois ousarem se entregar àquilo que a etiqueta absolutamente não permite, o que a narrativa, neste ponto um tanto covarde, torna quase que desnecessário.
Nota-se, sobretudo, como Frears não é ganancioso em se apropriar de um possível choque cultural e traçar um épico hiperbólico e vazio como Baz Luhrman certamente faria, nem arbitrário ao escolher uma cultura como superior a outra. Respeitoso, meticuloso e sempre curioso ao mundo oposto dos dois, obtém paralelos ideológicos nas suas set pieces extremamente sutis e que falam por si só, de fato muito mais interessantes que até o mais belo dos exuberantes figurinos dispostos aqui (a emocionante cena na chuva, com Vitória pedindo na sua carruagem para que Abdul fique na Inglaterra, num leve afastamento entre ambos, poderia resumir o filme e ser sua cena-chave). Afinal, é sempre irresistível, no cinema ou na vida real, assistir opostos se relacionando.
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