Apesar de sua atual faceta ligada à extrema direita, João Luiz Woenderbag Filho, o multi-instrumentista e prolífico músico Lobão, sempre foi uma personalidade polêmica e uma figura importante no cenário de rock brasileiro. Isso se deve principalmente a suas veementes declarações ligadas à defesa da classe – e consequente rompimento com a Síndrome de Macunaíma –, e, claro, através do lançamento da Revista Outracoisa, que ajudou a montar o cenário musical independente, mostrando às bandas e aos músicos que era sim possível romper com os conglomerados e gravadoras. Detalhe: em uma época em que a internet ainda não tinha a potência que tem atualmente.
A anedota contada no prólogo do livro mostra um personagem distante de tudo: da realidade, graças ao transe da cocaína; distante da maturidade, pois os eventos narrados datavam da década de 1980, época em que Lobão era adepto da porra-louquice; e distante ainda mais da figura que passeia pelas ruas paulistanas e que, de vez em quando, exerce seu ofício como sobrevivente de uma época pródiga do rock nacional. A biografia só funciona devido à jocosidade e intemperança do artista, que são passadas para o texto e preservadas através de toda a sua proficiência em gírias, coloquialismos e palavrões, sendo esta característica a peça fundamental da engrenagem. A árvore genealógica de João Luiz passa por uma paternidade conservadora em essência, com um clã formado por defensores do Governo Médici, o que desde cedo gerou atritos dentro de casa.
A infância de Lobão é contada nos mínimos detalhes. Fora uma ou outra curiosidade, pouco causa interesse no leitor. O que torna a leitura realmente curiosa é a parte dedicada à adolescência, em que ele sonha em se tornar centro-avante do Flamengo até o momento em que finalmente ouve Help e Satisfaction, músicas que mudariam a suas perspectiva de mundo. O menino cresceu e assinou seu primeiro contrato com uma gravadora (Som Livre) com sua banda Vímana (que incluía Lulu Santos) e o compacto Zebra. Graças ao estouro do punk rock, bandas com influências ligadas ao rock progressivo tornaram-se antiquadas, e o Vímana chegou ao fim após alguns imbróglios. Lobão fez parte da primeira formação da Blitz, com Evandro Mesquita, e teve junto aos seus companheiros algumas desventuras curiosíssimas. O som da banda era bastante leve, com letras que falavam de amores fáceis, característica muito diferente do forte nome escolhido para o grupo. No momento de transição entre a banda de Mesquita e o lançamento dos Ronaldos é mostrada a reticência do músico em ter de se retirar do primeiro grupo e em ter que mudar – por ordem da gravadora – o nome do segundo para Lobão e os Ronaldos.
O capítulo 35 contém informações valiosas sobre a discussão entre Lobão e Herbert Vianna. O arranca-rabo durou 17 anos, no espaço compreendido entre os anos de 1983 e 1999 e só teve uma espécie de trégua após o acidente que acometeu o vocalista do Paralamas do Sucesso – inclusive fazendo com que o polêmico biografado assumisse uma admiração pelo roqueiro cadeirante após sua história de superação.
Antes de tocar no assunto, preocupando-se com a repercussão de suas palavras possivelmente hostis, o autor faz um enorme preâmbulo explicando que este pode ter se enganado e talvez esteja até apresentando argumentos paranoicos, afirmando e reafirmando que esta é uma versão parcial dos fatos, contada por uma das faces da moeda. Ele desenvolve uma história constrangedora e quase confessional envolvendo sua idosa mãe que, após um porre homérico, quase sucumbiria a uma inversão de papéis na peça Édipo Rei, obviamente refutada por seu herdeiro. Guarda também algumas palavras sobre a inauguração do Circo Voador que marcou época.
A polêmica com Herbert envolve o que Lobão chamou de plágio de seu disco Cena de Cinema, com o primeiro disco do Paralamas, Cinema Mudo, em que teriam algumas músicas com riffs idênticos aos executados por ele e por sua antiga banda, até mesmo imitando a guitarra de Lulu no ska produzido pelo power trio. Até o vocal seria parecido com o de João Luiz. Sua primeira sensação foi a de não acreditar que uma figura tão dócil quanto Herbert poderia fazer aquilo, e, depois da conscientização, o sentimento era semelhante ao de ser enterrado vivo. Lobão conheceu João Barone num evento recreativo e fez uma Jam Session com o grupo, logo depois que chegaram de Brasília. Neste evento, mostra uma música inédita igualmente copiada, segundo ele, o que engrossou o caldo.
Parte interessante da leitura são as inserções das citações midiáticas a Lobão, cada vez mais frequentes com o aporte nos anos 80 e com os lançamentos de sua músicas pelos Ronaldos e pela parceria com Cazuza, egresso do Barão Vermelho. A interação de Lobão com João Gilberto também é muitíssimo engraçada: o bossa-novista tencionava regravar Me Chama e fez oito versões diferentes, cada uma com um conjunto singular de arranjos de violoncelo, mas com nuances difíceis de serem notadas sem a atenção máxima. No momento da ligação, Lobão estava no meio de uma bad trip de cocaína e, sem conseguir se levantar da cadeira, foi obrigado a avaliar as versões pelo telefone, “chutando” qual delas era a melhor, visto que não conseguia sequer entender o que lhe chegava aos ouvidos.
A passagem que conta sobre o cárcere que o cantor enfrentou por posse de drogas, nos idos dos anos 1986, mostra a solidariedade da classe artística com a sua figura e o seu desespero em estar enjaulado graças à posse de entorpecentes, fruto de um descuido dos mais estúpidos. O período de três meses em que esteve na prisão foi agravado sob alegação de apologia às drogas. Segundo os relatos do autobiógrafo, essa temporada na cadeia parecia uma eternidade, mas na cela ele se tornou um xerife e a partir dali nutriria uma identificação e amizade com a maioria dos bandidos, inclusive visitando alguns morros onde traficantes trabalhavam, se envolvendo em trocas de tiros com facções rivais. A questão da clausura se arrastaria por anos, mesmo com a liberdade condicional. Após chegar de viagem, Lobão estava tão escaldado que trouxe suas próprias algemas, em nome de sua higiene pessoal e do humor.
A morte do “irmãozinho” Cazuza atingiu em cheio o musicista, que não conseguiu se despedir dele por telefone, um dia antes do óbito, sem também conseguir ir ao enterro do músico. A depressão até impediu-o de inaugurar a MTV Brasil, numa apresentação com a Bateria da Mangueira.
A iniciativa de comercializar os discos junto a revistas surgiu por acaso e foi impulsionada graças à falta de tributação de CDs atrelados a produtos editoriais. A importância disso poderia ser grande, especialmente com a crescente postura de alguns artistas de ter de desatender às gravadoras e seus métodos de atrozes de exploração. Além disso, é grande o engajamento de Lobão com a questão da numeração dos CDs à venda, a fim de evitar o excesso de renda destinado às gravadoras em detrimento dos artistas.
Os últimos capítulos contam os bastidores do Acústico MTV, e também incluem as opiniões de Lobão sobre o filme Cazuza: o Tempo Não Para. Segundo ele, a película é bastante parecida com um episódio de Malhação, apesar da boa atuação de Daniel de Oliveira. O músico se sentiu “quase aleijado” por quase não aparecer no filme, e disse ter visto uma versão pirata comprada num camelô. Ele também aproveita para desmentir a desavença com Lulu, afirmando que o grisalho cantor é seu irmão mais velho e que ele poderia ser ótimo se não fizesse um som cafona.
Os últimos pontos de Lobão na Mídia esmiúçam os detalhes da passagem do cantor como funcionário da emissora do Grupo Civita. Segundo o autor, sua trajetória envolveu muita sorte de conseguir emergir de um universo tão caótico quanto o seu. A possibilidade deste ter uma personalidade destrutiva seria uma ilusão de ótica. João Luiz Woenderbag vê o Brasil como um país que coíbe opiniões contrárias da maioria.
O cantor termina seu epílogo se desculpando por qualquer ofensa a quem leu ou a quem foi citado, e ressalta novamente a questão deste 50 Anos a Mil ser apenas a sua versão dos fatos que correram seu primeiro meio século de vida. A leitura é interessante não só para analisar a figura polêmica e divisora de opiniões, mas também para verificar o retrato de uma época da cultura musical brasileira pelos olhos de uma pessoa que estava dentro do esquema o tempo inteiro.
Muito bom, mas só uma “errata”: a primeira banda do Lobão chamava-se Vímana e não Zímana.
Lobão é muito inteligente. Independente do lado que ele resolveu aderir o grande problema é a voz que ele dá pra certos lunáticos, mas mesmo eu não concordando com suas opiniões atuais ainda acho interessante ouvir o que ele tem a dizer. Pelo menos não é um retalho de citações e frases feitas lidas no ‘cara-livro’.
Abraço!
Foi arrumado, obrigado.
Nem li e nem lerei nada desse senil .
Lobão não é ligado a extrema-direita coisa nenhuma. Sarney, Maluf e Renan Calheiros são de extrema-direita e sabemos muito bem com quem eles estão alinhados.
Rapaz, olha que o bichinho é ligado sim, o problema é como o André falou lá em cima, o cara dá voz a muita gente nada a ver, mas escolhas dele…
De qualquer forma é uma ótima leitura.
Sarney, Maluf e Renan Calheiros não são extrema-direita. São pragmáticos. Apesar de ideologicamente terem posturas e defenderem políticas direitistas e excludentes, sempre estiveram e sempre estarão ao lado do poder para terem suas demandas atendidos.
Lobão não se encaixaria na chamada extrema-direita clássica associada ao fascismos, mas se encaixa no que virou o termo no Brasil, associado a essa direita hidrófoba e senil, que vê PT e comunismo em tudo e bota neles a culpa de todos os problemas da humanidade, em uma explicação infantil de uma visão de mundo infantil.