“Não seria a primeira vez que você é tocado pelas trevas, não é?”
O escritor Alan Moore, pai de boa parte da revolução intelectual que os quadrinhos sofreram com Watchmen, e outras obras, uma vez confirmou entrar num estado mental igual dos seus personagens para escrever sobre eles, ou a prática soaria falsa, e oca – algo sinistro, como tudo que tem a ver com o bruxão de Northampton que se esforça para manter sua fama de mal, e inatingível. O cara deixa a consciência fluir, como um rio que trilha outras veredas para atingir um determinado fim, e é justamente esse o efeito que Deuses Caídos causa no leitor: O livro leva nossa total atenção até o abismo mais profundo e que nos encara de volta, expondo, através da narrativa ultra dinâmica de Gabriel Tennyson, toda a sua perturbação e os horrores inimagináveis (antes da leitura) que podem debruçar-se sobre um ser humano.
Vamos dizer que fica difícil acreditar que Deus zela por nós, e nossas almas, ao longo e após Deuses Caídos, pois, enquanto Stephen King e semelhantes cozinham o caldo até não poder mais, Tennyson o atira fervendo na nossa cara, sem dó nem aviso prévio. Indo a fundo em uma investigação policial com um pé (ou os dois) no sobrenatural que habita, sob o sol ou a lua ou a falta de qualquer claridade, a vida urbana do Rio de Janeiro, o escritor carioca nos conduz, junto da policial Júlia Abdemi e do exorcista sacana Judas Cipriano, aos porões mais densos e sufocantes do inferno invisível e místico que se manifesta em possessões, e mil outras barbaridades muito piores que o gênero terror embute em seus mais aterrorizantes aspectos clássicos. Assim, a fim de descobrirem juntos quem (ou o quê) está por trás da tortura de figuras religiosas, transmitidas online para todos assistirem o sadismo como se fosse mais um vídeo do YouTube, a dupla desce até o inferno – e no que existe depois dele – sem grandes garantias mútuas de retorno, ou salvação.
E quando um livro consegue nos afogar em transe, nesse invejável estado mental de controle e absorção de tudo que por nós está sendo imaginado, ora, é fácil embarcar na aventura, exceto para Júlia. A mulher, dona de poderes psíquicos e tecnológicos, mas cética quanto aos desdobramentos sugeridos por Cipriano, não acredita que forças negativas e sobrenaturais possam motivar e levar o caso a níveis de crueldade pública impensáveis até se deparar com elas, tal quando um pastor evangélico literalmente come seu pulso até o osso (difícil de ler esse trecho, como tantos outros piores) e escreve com seu sangue signos satânicos na parede de um quarto. Quando o ocultismo começa a corroer a fé de Júlia nos procedimentos policiais do mundo real para resolver os crimes, o livro poderia se entregar a uma escrita vulgar e apressada com seus ótimos personagens carregando a trama nos ombros, o que jamais acontece aqui. Tennyson merece palmas por este livro, descrevendo o bizarro como se dormisse com ele toda noite; velhos cúmplices expostos num terror nacional brilhante.
Publicado em 2018 pela editora Suma, e com direito a um rápido prólogo a nos introduzir num submundo de pesadelos, já dialogando com o imaginário brasileiro e dando o tom do que vem a seguir em quase trezentas deliciosas páginas, o livro apresenta o John Constantine brasileiro, com um Q do agente Fox Mulder, de Arquivo X, devido sua parceria com Júlia se infiltrando nas ‘trevas’ de uma cidade e seus habitantes – encarnados, ou não. Judas Cipriano é um desses personagens que um escritor se apoia ao longo de toda a carreira, tão interessante que é dificílimo abandoná-lo em toda a sua cafajestagem, e adequação aos mais incríveis cenários. O cara é perturbador e tão descolado como a linguagem pop que Tennyson usa (a citação ao cineasta Zack Snyder é hilária). Cipriano merece ser lembrado, novamente, em outras ocasiões, indo além dessa inesquecível construção mitológica própria, doentia e efervescente que Deuses Caídos nos proporciona, crédula apenas aos horrores inusitados que assombram uma realidade dominada pelo inexplicável, e pela diversão em investigá-lo – ou melhor, degustá-lo.
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