A obra de Edgar Allan Poe é difícil de ser analisada sem que se leve em conta a história pessoal do autor. Apesar do começo promissor, sua carreira acadêmica foi prejudicada pelo vício alcoólico. Elementos como este fizeram do seu passado algo trágico, e tal sofrimento influiu, e muito, em seus contos e poemas. Histórias de Crime e Mistério reúne seis contos, contendo também, como material extra, um belo recordatório da vida do seu criador, escrito por Eliane Robert Moraes, e uma introdução do tradutor Geraldo Galvão Ferraz.
Ao ler um artigo sobre um macaco ladrão, Poe somou um bocado de criatividade, o fascínio pelo crime e influências de Zadig, personagem de Voltaire, para compor o ideário de Assassinatos da Rua Morgue. O contista tinha então o esqueleto do primeiro caso que envolveria o seu personagem Chevalier Auguste Dupin, história que o autor considerava uma das melhores de sua obra até então. Inicia-se o relato com um texto em primeira pessoa, um longo monólogo, analisando os efeitos do raciocínio dedutivo, tomando práticas como o xadrez e o carteado como boas áreas para exercitar tal faculdade.
No entanto, o discurso é contestatório e utiliza-se do poder analítico da simples engenhosidade, enfatizando o repúdio pela fantasia, que, segundo o personagem, dá asas à imaginação e proíbe o sujeito de analisar os fatos de forma minimamente satisfatória. A narração é feita por um observador anônimo – um relato tão inspirado e admirado quanto o que John Watson fazia com o seu objeto de adoração, Sherlock Holmes. Auguste é definido como vindo de uma boa família, antes rica, mas que, àquela altura, já não possuía muito patrimônio.
Dupin tinha um único luxo, seus livros, artefatos de baixo custo e fáceis de adquirir na Paris do século XIX. Era um notívago nato, se sentia à vontade no breu das ruas francesas. Vaidoso, gostava de demonstrar seus dotes que passavam pela análise dos indícios deixados de lado pelas pessoas mais desatentas. Boa parte do conto, principalmente nas descrições atrozes dos crimes, é relatada via texto jornalístico, o que imprime um tom oficial aos relatos.
Há uma espécie de Torre de Babel na obra, em virtude dos depoentes estrangeiros que se embaralham na hora de descrever como ocorreu o crime do qual é inquirido. Dupin louva as coincidências e as evidências que delas extrai a fim de pintar o quadro criminal proposto. As pistas fazem com que o detetive deduza como os fatos se desenrolaram e facilitam o trabalho de traçar um perfil para o criminoso, tirando-o um pouco do anonimato para dar contornos reais à sua figura, aproximando o investigador da solução. Há uma enorme carga de suspense, até o derradeiro final, com uma solução que parece de fácil dedução – após a explicação de Dupin, é claro. Por mais incomum que pareça o desenlace, ainda assim é ligado ao ordinário, ou a entropia que toca o cotidiano – no caso, a fuga do símio em questão. Não há elemento fantástico, apesar de toda o clima e a aura misteriosa.
Em O Mistério de Marie Rogêt, Poe utiliza novamente uma história real, a morte de uma moça que vendia charutos e cigarros em Nova York, chamada Mary Cecilia Rogers. Apesar do grande interesse por parte da opinião pública na época, o caso não foi resolvido até a produção do conto, datada em novembro de 1842. O motivo do óbito foi uma tentativa de aborto mal-sucedida. O autor fez uma mudança óbvia, situando o caso em Paris – área de atuação de seu personagem. Mais tarde, duas pessoas ligadas ao caso de Rogers confirmaram o raciocínio de C. Auguste Dupin para o crime real.
O narrador começa dissertando sobre a crença no sobrenatural, mesmo entre os acadêmicos, em contraposição ao Cálculo das Probabilidades – raciocínio puramente matemático classificado como anomalia mais rígida da ciência. O emissor anônimo sentia-se satisfeito com seus último relatos, mas viu-se impelido a voltar ao tema das investigações de Dupin. Um crime atroz envolvendo uma vítima muito jovem choca a opinião pública parisiense, além de causar muito medo e receio na população. Os rumores das ruas não chegavam até o narrador e o detetive, que permanecia recluso no apartamento de Dupin há cerca de um mês, pesquisando e apurando pistas do paradeiro do facínora – o auto-ostracismo e enclausuramento também eram práticas comuns ao investigador de Baker Street. Detalhes podem mudar o resultado final como em uma equação; a entropia pode esconder-se sob o pretexto de “coincidência” e mudar toda a resolução do problema proposto. No entanto, a coincidência é um resultado viável, mesmo numa questão investigativa, ainda que para o analista seja difícil tal conclusão: este se apega ao detalhe e o esmiúça, espremendo-o atrás de uma resposta plausível e, claro, lógica, que se encaixe perfeitamente como solução para a interrogação proposta como mistério.
O autor usa o raciocínio cético de Dupin para discutir a validade do pensamento religioso e a valorização da ação do Divino em contraste com o mero acaso, pondo em xeque a ação da figura sobrenatural ao usar o tempo como avatar de sua possível não onipotência. Para O Deus, todo o tempo é “agora”. O detetive considera as ações da divindade não como práticas imutáveis, mas sim como vontades, como uma ação naturalmente modificável à escolha de quem as tem, associando as ações do acaso ao jogar dos dados
O terceiro e último conto com o personagem Dupin, A Carta Roubada é comumente considerada a mais influente das histórias do escritor americano, atraindo muita atenção por parte dos críticos, o que gerou um bom número de teorias a respeito da identidade da figura pública abordada em suas páginas, aventando-se a possibilidade desta ter parentesco com o detetive. Pouco tempo se passou entre a história relatada neste conto e as duas anteriores. O “escritor” mantém o sigilo não só com a sua própria identidade, mas também deixa incógnitos os nomes de inúmeros personagens, usando apenas a inicial de seus nomes para distingui-los entre si.
O caso da carta roubada seria de grande simplicidade, mas aspectos peculiares impediram o investigador policial de resolver o enigma fazendo-o procurar Dupin, que, obviamente, desdenha da capacidade intelectual do sujeito por meio de anedotas e piadas carregadas de sarcasmo e ironia – Dupin ofende aqueles a quem “despreza”, mas o faz de forma delicada. A trama conta um estratagema que envolve pessoas importantes da vida política do império. Uma carta foi roubada da casa de um ministro, de modo que a investigação deveria ser conduzida com o máximo de sigilo possível. O caso é de tanta importância e gravidade que o inspetor que pede auxílio ao detetive apresenta-se com uma preocupação excessiva, quase desconsolado por não conseguir resolver a questão sozinho. Isso faz Dupin criticar a pouca variação de métodos da polícia local, dizendo que as abordagens são facilmente superáveis caso o criminoso investigado consiga pensar além da capacidade intelectual dos agentes da lei, o que é bem mais corriqueiro do que eles gostariam.
A análise de Dupin é focada nas evidências mais óbvias. Primeiro separa dois estereótipos, simbolizados pelo poeta, retratando um sujeito de pensamento não normativo e dado a divagações, e o do matemático, em que o indivíduo é preso a métodos e rotinas. Tal dedução simples e corriqueira não parece passar pela cabeça do primeiro investigador, mas é bastante importante aos olhos de Dupin, que assinala que algumas pistas são tão escancaradas e evidentes que passam despercebidas aos olhos de um observador novato ou pouco atento. A ação do detetive para resolver a questão envolve um disfarce para flagrar a real faceta do “culpado”, que parecia ser uma figura excêntrica aos olhos mundanos, mas que na intimidade mostrava-se tão comum quanto qualquer outro. Sua sutileza foi o fator preponderante para que sua iniciativa tivesse êxito. A troca do objeto “roubado” é realizada de forma secreta e quase imperceptível, e há uma ponta de satisfação em Auguste ao fazer a troca, carregado de sarcasmo e de censo de justiça, não só por ter realizado um trabalho bem feito, mas também por impedir um sujeito cujas intenções ultrapassam a canalhice.
Na primeira história sem Dupin, O Coração Denunciador, a trama usa um narrador assassino para descrever meticulosamente seu modo de operar. Desde a aproximação da vítima revelando sua motivação “sobrenatural” como justificativa, até o ato em si, esmiuçado de forma brilhante e surpreendente, tão certeiro que é narrado quase sem dar fôlego ao leitor. O contista expõe o medo da morte como algo inexorável, utilizando a vítima anciã como exemplo. Mesmo estando próximo dela pela idade avançada, ainda assim não a aceita de forma resignada. Ao contrário, a teme como a pior coisa que pode acontecer a ele. O assassino se vê como um mensageiro do destino, trazendo à existência um evento fatídico, mas ainda assim essencial a vida. O executor descreve friamente as minúcias de seu ato e como escondeu as evidências, prestando detalhes mórbidos, como esquartejamento e ocultação de cadáver – tudo a fim de provar que seu estado mental ainda é são.
No final da história, a polícia vai à casa do personagem a fim de entender o porquê do desaparecimento do homem velho, mas como tudo já estava planejado, o assassino nada temia. Sua reação no começo foi cínica e debochada, chegando ao ponto do personagem conversar com os agentes da lei de forma relaxada, em cima do assoalho onde o corpo estava escondido. Nesse momento, seu estado de calma começa a deixá-lo; uma palpitação o toma subitamente e ele pensa ouvir algo vindo debaixo do chão, e se agita por dentro, apesar dos policiais nada perceberem, e prossegue falando de forma natural, até que o incômodo o toma por completo e ele interrompe a conversa nonsense, acusando os guardas de serem hipócritas. Num estouro, culpa e remorso, mas sem um pingo de arrependimento, entrega o esconderijo do defunto, com um medo completamente infundado de ser capturado. A motivação deste ato parece ambígua, com mais chances de que o assassino tenha sido movido por um estado alterado da mente, mas também sem destacar uma motivação que não seja natural, talvez até espiritual. O crescimento do suspense envolve o leitor de uma forma ímpar, com total mérito para o método do autor.
A história de Berenice é como um convite à mente do personagem narrador, por seus anseios e sobretudo pelos desejos por sua amada, oras idealizada, ora tratada como personagem real – aventa-se a possibilidade de Berenice ser uma encarnação fictícia de Virginia, esposa de Poe, que morrera 11 anos depois de publicada a história. As semelhanças entre as duas começam pelo grau de parentesco, pois ambos os casais tinham parentesco sanguíneo – eram primos – o que torna a narrativa ainda mais interessante por seu tom confessional e biográfico. A doença de sua amada leva o personagem a um estado insano. A saudade do que ainda iria perder, movida pela tristeza e o medo de ficar sem o bem mais precioso de sua vida, se manifesta através de uma obsessão por uma figura simbólica, usando como avatar deste desejo os dentes de Berenice.
O mal interior e de razão inexplicada causa muito mais horror do que se tivessem as raízes expostas. A sugestão com poucos indícios faz com que a narrativa seja rica e plena de permissividade ao leitor, compartilhando a responsabilidade de conclusão entre o contador e receptor da história, não nos atos, mas na causa por trás do conjunto de ações. A ambiguidade é o que torna o relato tão vívido e único, não definindo ao certo se o “culpado” é o inconsciente ou uma força sobrenatural que se apossara do “herói”.
O livro fecha-se com O Gato Negro. O personagem narrador aparentemente não possui nenhuma anomalia mental ou de caráter. É afeiçoado aos animais e cuida deles com carinho e bastante apreço, demonstrando, entre outras qualidades, empatia e valorização da vida – ao contrário dos contadores de história costumeiros de Poe, perturbados e que ignoram a vida, seja ela de que espécie for. A fidelidade canina é por ele assinalada como algo incomensuravelmente bom, ao contrário da “rélis e débil” amizade humana – indícios de misantropia. O personagem era casado, e sua esposa também compartilhava do mesmo apreço por animais de estimação, presenteando-lhe com muitos mascotes, das mais variadas espécies: aves, cães e gatos, sendo um o seu preferido, o gato preto Pluto. Com o tempo, o protagonista passa a perder o controle de suas ações graças ao álcool, torna-se irascível e maltrata a esposa e até mesmo seus animais, exceto Pluto. Até que, em um dia, entorpecido pelo gim, tenta agarrar seu animal de forma brusca, e o felino se defende, arranhando-o. Num repente de raiva, o ébrio homem arranca um dos olhos das órbitas do animal.
O bicho parece se recuperar mas sempre foge ante a presença de sua antiga figura de ternura. O dono, antes amoroso, passa a nutrir por ele um sentimento ruim que aos poucos toma uma forma horrenda – este processo é largamente justificado e detalhado pelo personagem, que descreve que sua alma boa parece ter fugido de si, afirmando que algo maligno o possuiu para, enfim, assassinar o animal. Ocorre um incêndio na casa e o protagonista não pode deixar de pensar no cadáver do gato que surgira nos destroços de sua casa, ao invés de estar no jardim ao lado. Até que um outro felino, parecido com Pluto, exceto por uma mancha de pelos brancos, aparece e se delicia com o carinho do narrador. O gato não possuía dono e o acompanhou, mas, ao contrário de Pluto, esta criatura era por ele desprezada, porém jamais tocada, graças às más lembranças provindas do ato cruel anterior.
O personagem se transforma e não tem o mesmo apreço pelos animais, ao contrário de sua esposa, que fica incomodada quando percebe a ausência de um olho no novo gato preto. O aflito homem descreve o felino como um monstro e num repente de raiva tenta acertá-lo com um machado. Ao ser impedido pela esposa, decepa a sua cabeça e esconde o cadáver nas sólidas paredes de sua casa. Fica feliz ao perceber que o gato sumira. A polícia vistoria a casa em perícia algumas vezes. Na última visita, o assassino, em um ato falho, vangloria-se de seu feito e bate com a bengala no local do esconderijo, de onde surge um miado. A criatura, que lhe causou medo e angústia, foi fechada na tumba e obviamente fez jus a todo terror imaginativo de seu antigo dono, denunciando-lhe de seu atroz crime.
A obra de Poe compreende as facetas obscuras da humanidade, na maioria das vezes de modo poético, elevando essas ações corriqueiras a uma potência maior e exagerada para evidenciar o quão naturais são essas sensações, e o quão inevitáveis elas são à existência do homem. Ao contrário do que o Romantismo prega, o bem e o mal não seriam elementos opostos e maniqueístas, e o amor andaria lado a lado com a tragédia.