Em Natureza Morta, o escritor piauiense José Fontenele faz a escolha mais cruel, que apenas os melhores autores possuem a audácia necessária para tanto: desbravar, a fundo, os problemas de um casal. O exercício de jogar luz às mazelas de um relacionamento é absolutamente perturbador, uma vez que não somos apenas espectadores da ação, mas graças ao duplo enredo em primeira pessoa, proposto e milimetricamente desenvolvido aqui, todos nós fazemos parte da essência de Damião e Laura. Aqueles que antes resolviam seus problemas com sexo, um banho bem tomado e uma boa conversa, mas a quem o destino não foi amigo e preparou várias armadilhas – e não apenas de cunho emocional –, corroendo tudo, em prol do desamor. E o seu processo não poderia ser mais lento e traumatizante. Bem-vindo ao início do fim.
Mas nada chega realmente ao fim, não é mesmo? A natureza humana, de fato, parece simples e só parece. Uns querem ser pai, e outras precisam ser mães; Damião queria ser, e Laura, precisava nascer: como mãe, como artista, num ano novo pessoal que nunca chegava. Por que, sendo diferentes, teimamos em ser iguais? Masoquismo e conformismo duelam entre si a medida que os anos passam, os 35 anos chegam, o jovem adulto começa a ter certeza que não é eterno, e de repente, o nosso trabalho se transforma na fuga da nossa vida particular. Damião e Laura não se mereciam, ou melhor, poderiam ter coisa melhor. Suas mentes e corações são, para o leitor, um literal livro aberto sob o calor do meio-dia, e marido não é vilão da mulher, nem vice-versa. Na primeira parte de Natureza Morta, temos o ponto de vista dele, e em seguida, mergulhamos no estado psicológico de Laura até que, nos derradeiros instantes do romance, a pujança passivo-agressiva das letras de Fontenele nos move, junto do casal, à colheita das glórias e carmas germinados.
Toda a sensibilidade de Fontenele, em seu primeiro romance publicado pela Editora Moinhos, impressiona sobretudo pela robustez e constância da narração, e a bem-sucedida manipulação do autor para com as nossas expectativas mais mesquinhas e nobres sobre as partes do casal, seus amigos, suas sortes e azares. O realismo substancial das situações jamais perdoa os desavisados, não havendo exceção em quaisquer parágrafos de suas hiper suficientes 160 páginas. Uma ode direta e reta à imprevisibilidade dos sentimentos, masculinos e femininos, tão bem esculpidos pela versatilidade e a empatia tridimensional literária de Fontenele, nos arranjos de sua organização contemplativa quanto ao inferno dos outros e que todos podemos acessar. O lamento, ou a aceitação, é uma só: nenhuma relação é matemática, não tem jeito. Suas engrenagens compartilhadas são um rio; um rio já existente muito antes do primeiro beijo, cujos contornos e marolas nunca sabemos, ao certo, aonde irão impactar.