Crítica | Happy, Happy
A tradução em português para Sykt Lykkelig, filme de Anne Sewitsky, é insanamente feliz. Isso é passado ao público através da atitude da personagem central Kaja, vivida por Agnes Kittelsen. O estágio de absoluta paz de espírito preconizada por um número musical, apresentado antes mesmo dos personagens, remete à negação clara da miséria existencial da protagonista. O tédio causado pela solidão impingida a Kaja por ela mesma a faz viver expectativas muito altas para as visitas que se aproximam da gélida paisagem onde sua casa fica.
Dois vizinhos se mudam para a casa ao lado, Sigve (Henrik Rafaelsen) e Elisabeth (Maibritt Saerens), e ambos tocam automaticamente a expectativa de Kaja como o perfeito casal, arquétipo do ideal que buscava para si e para o já distante marido Joaikim (Joachim Rafaelsen). A falta de interação e principalmente a castidade imposta pelo homem fazem com que o mantra de combate à própria depressão seja cada vez mais frequente para a personagem central, fazendo de episódios corriqueiros, como um jantar entre vizinhos, eventos entrópicos e cheios de situações. Uma breve análise no cotidiano familiar, repleto de desprezo, dá a tônica do porquê a mulher sente-se tão lisonjeada quando outro a trata minimamente bem.
Happy Happy trata de carências e da inevitabilidade do espírito humano em encontrar eco para as suas situações sentimentais e medos que habitam sua alma, demonstrando que a falta de reciprocidade pode ser esmagadora para a moral de qualquer espécime. A falta de alento ou de esperança em viver uma relação saudável acaba se mostrando verdade também na interação do casal recém-chegado, o que abre portas para as indiscrições anunciadas no segundo terço da fita, claras desde a premissa do filme, insistindo em transformar em tragicomédia a intimidade conjugal mal resolvida.
O formato, com insights do grupo na capela pontuando as sensações dos protagonistas, fornece um fôlego de ineditismo à película, além de destacar a ambiguidade do anseio de Kaja, que nutre cada vez mais a volúpia em se despir de suas roupas, algo que, mesmo em análises pouco profundas, remete à vontade de ser outrem, fazendo-a esquecer os problemas que esmagam sua autoestima e vivendo uma realidade paralela a sua enfadonha rotina.
A capacidade de desprezar os supostos entes queridos não salvaguarda os detratores de seus próprios sentimentos, especialmente quando sua moral é abalada pelas indiscrições de seus parceiros. A música começa a pontuar o conjunto de sensações dos que são os “novos” ignorados, dos que um dia fizeram sofrer e que, no presente, passam a amargar o desdém dos que juraram amar. Quando a verdade se revela, toda a configuração inicial se modifica, produzindo momentos de ásperas reuniões, nas quais a confusão emocional reina, propiciando momentos de completa ignorância no mundo dos adultos, o que se reflete nas sérias brincadeiras protagonizadas pelos filhos dos casais, numa história paralela que perde todo seu impacto ao se revelarem seus detalhes.
A simplicidade do roteiro que Sewitsky conduz apresenta uma narrativa simples e criativa, que toca a alma dos personagens e espectadores igualmente. Ao fazer valer a verve e necessidade humana de tornar o homem comprazido, pleno em espírito e alma, a obra consegue atingir assuntos espinhosos dizendo tão pouco, de forma completamente apolínea apesar dos assuntos aviltantes. A melhor qualidade de Happy, Happy certamente é a delicadeza em sua condução, fazendo com que a verdade se contradiga: justificando o nome original, que remete à felicidade insana, apesar de todas as agruras inerentes a vida, o causo é produzido a partir da estranha normalidade da hipocrisia moderna.